O estudo de práticas médicas: o cenário da sociologia das profissões

Marie Jaisson Sobre o autor

Resumo

A sociologia da medicina é feita a partir do modelo da sociologia americana das profissões que surgiu no decorrer da década de 1930 (modelo que também marcou os historiadores da medicina). O artigo traz de volta o contexto em que a sociologia das profissões surgiu e, em seguida, quando foi institucionalizada nos Estados Unidos, sobretudo a partir dos trabalhos de Talcott Parsons, Everett Hughes e Eliot Freidson. Ainda hoje os questionamentos realizados em práticas médicas são fortemente influenciados por essa empreitada, enquanto a sociologia das profissões comporta suposições discutidas e discutíveis e pontos cegos importantes, tais como a ligação entre o Estado e a medicina.

Palavras-chave:
Profissões; Estado; Autonomia; Parsons; Hughes; Freidson

A sociologia da medicina é feita a partir do modelo da sociologia americana das profissões que surgiram durante a década de 1930.11Este modelo também foi retomado amplamente pelos historiadores americanos de medicina. Ainda hoje os questionamentos em práticas médicas são fortemente influenciados por essa empreitada, enquanto a sociologia das profissões comporta suposições discutidas e discutíveis e os pontos cegos importantes, tais como a ligação entre o Estado e a medicina.22Este artigo recupera e estende os meus trabalhos sobre práticas médicas realizadas como parte do meu mestrado e minha tese ainda inéditos.

A questão das profissões foi abordada pela sociologia francesa no início do século XX. Em sua tese publicada em 1893, o sociólogo francês Emile Durkheim discute a questão da evolução histórica da relação entre a personalidade individual e a solidariedade. Para isso, ele identifica dois tipos históricos de solidariedade social - cronologicamente, a solidariedade mecânica e a orgânica. A passagem da primazia de uma sobre a outra é interpretada pelo sociólogo em termos de progresso da divisão do trabalho social. As causas da evolução residem, por um lado, no aumento da densidade moral da sociedade (materializada pela sua densidade material) e por outro, no aumento do volume e densidade de empresas, que “mecanicamente determina o progresso da divisão do trabalho, reforçando a intensidade da luta pela vida” (Durkheim, 1978DURKHEIM, É. De la division du travail social. Paris: PUF, 1978., p. 412-413).

No capítulo em que Durkheim discute as causas da divisão do trabalho social, ele conduz às profissões, implantando seu raciocínio partindo de Darwin e a noção de “luta pela vida”. Assim, argumenta o fato de que, se “o trabalho se divide à medida que as empresas se tornam maiores e mais densas, não é porque as circunstâncias externas nesse cenário são mais variadas, é porque a luta pela vida é mais ardente”. De acordo com as observações de Darwin, “a concorrência entre dois corpos é ainda mais viva do que são mais análogos”. Eles têm de fato “as mesmas necessidades […] e [então] se encontram sempre em rivalidade”. Por outro lado, vai “totalmente de outra forma se os indivíduos que coexistem são de espécies ou variedades diferentes”. Eles “não possuem o mesmo tipo de vida” e “As oportunidades de conflitos assim diminuem com as oportunidades de encontro” (Durkheim, 1978DURKHEIM, É. De la division du travail social. Paris: PUF, 1978., p. 249-250).

Assim, de acordo com Durkheim (1978DURKHEIM, É. De la division du travail social. Paris: PUF, 1978., p. 248-250), em uma mesma cidade,

as diferentes profissões podem coexistir sem serem obrigadas a fazerem mal umas às outras, porque elas buscam objetos diferentes. […] O soldado à procura de glória militar, o padre em busca da autoridade moral, o estadista quer o poder, o industrial a riqueza, o sábio a fama científica; cada um deles pode atingir seu objetivo sem impedir os outros de conseguir os seus. Isso se mantém mesmo quando as funções são menos afastadas umas das outras. O médico oftalmologista não compete com o que trata doenças mentais, nem o sapateiro com o chapeleiro, nem o pedreiro com o marceneiro, ou o físico com o químico etc. Como eles fornecem serviços diferentes, eles podem fazê-los paralelamente.

Esta evocação das profissões ocupa duas páginas do capítulo e é uma das poucas passagens em que o sociólogo fala sobre a questão. Nove anos mais tarde ele retoma o tema, em 1902, na reedição do livro em que ele insere um segundo prefácio longo, de mais ou menos quarenta páginas, intitulado “Algumas observações sobre os agrupamentos profissionais” (Durkheim, 1978DURKHEIM, É. De la division du travail social. Paris: PUF, 1978., p. i-xxxvi). Desde as primeiras páginas o sociólogo define o termo “grupo profissional”, como o “que formaria todos os agentes na mesma indústria reunidos e organizados em um só corpo” (Durkheim, 1978DURKHEIM, É. De la division du travail social. Paris: PUF, 1978., p. vi). Ele concluiu referindo-se ao papel positivo que poderia desempenhar nas organizações profissionais, como o corpo intermediário entre o indivíduo e o Estado, na manutenção da “saúde geral do corpo social” (Durkheim, 1978DURKHEIM, É. De la division du travail social. Paris: PUF, 1978., p. xxxiv).

As sociedades na dominante solidariedade orgânica - tais como as sociedades europeias modernas - são caracterizadas pelo fato de que “indivíduos nesse cenário são agrupados não mais a partir de suas relações de descendência” (como em sociedades segmentadas em solidariedade mecânica), “mas de acordo com a natureza específica da atividade social que lhes são dedicados. Seu ambiente natural e necessário não é mais o berço, mas o local de trabalho” (Durkheim, 1978DURKHEIM, É. De la division du travail social. Paris: PUF, 1978., p. 158). A cada um destes dois tipos de solidariedade correspondem as regras morais, normas jurídicas particulares, e os corpos intermediários entre o indivíduo e o Estado são componentes essenciais do valor moral.

Para Durkheim (1978DURKHEIM, É. De la division du travail social. Paris: PUF, 1978., p. 206, 393-394),

é moral, podemos dizer, tudo o que é fonte de solidariedade, que força o homem a depender dos outros para definir seus movimentos em outra coisa que os impulsos de seu egoísmo, e a moralidade é mais sólida do que esses laços são mais numerosos e fortes. […] para cada profissão existe uma moral profissional. Dentro de um mesmo grupo de trabalhadores há uma opinião, difusa no âmbito deste agregado limitado, e que, sem estar equipado das sanções legais, se faz ainda a obedecer.

Essa moralidade profissional está localizada, assim, própria para um determinado grupo. A natureza repressiva das sanções é menos acentuada do que aquela relacionada à moralidade pública, mas as regras da moral profissional operam o mesmo tipo de estresse do que os da moralidade pública, pois elas “forçam o indivíduo a agir para fins que não são os seus próprios, a fazer concessões, compromissos, a ter em conta os interesses superiores aos seus” (Durkheim, 1978DURKHEIM, É. De la division du travail social. Paris: PUF, 1978., p. 206-207).

Uns 90 anos mais tarde, os sociólogos Claude Dubar e Pierre Tripier, autores do primeiro manual de sociologia das profissões em língua francesa, apresentam sua parte teórica em um capítulo intitulado “De Durkheim à teoria funcionalista das profissões” (1998, p. 67-91). Entretanto somente um quinto do capítulo lida com o sociólogo francês, o restante é dedicado à abordagem anglo-saxônica das profissões.

A sociologia das profissões emergiu como disciplina nos Estados Unidos na década de 1940. O sociólogo americano Talcott Parsons desempenhou um papel importante; ele, que fez intercâmbio para estudos por um ano em Londres e um ano em Heidelberg, era um “tradutor” importante da sociologia de Max Weber e Émile Durkheim. A leitura desses autores foi fortemente marcada por uma abordagem funcionalista.33O funcionalismo, teoria antropológica formulada por Bronislaw Malinowski, tem sido uma das mais importantes teorias sociológicas do século XX. Trata-se de uma leitura da sociedade compreendida a partir das funções que asseguram sua estabilidade. Parsons defendeu sua tese em economia e sociologia em 1927, ele fez toda a sua carreira nos EUA em Harvard, primeiramente encarregado do curso de economia, depois como professor de sociologia e diretor do Departamento de Relações Sociais que ele ajudou a criar em 1946. O sociólogo se aposentou em 1974 e morreu em 1979, em Munique. Parsons tem dominado o espaço da sociologia americana da década de 1940 até a de 1980. Em 1949 tornou-se chefe da American Sociological Society (agora a American Sociological Association) que, entre seus objetivos, busca “avançar a sociologia como uma disciplina e profissão científica ao serviço do bem público” (ASA, [2018?]ASA - AMERICAN SOCIOLOGICAL ASSOCIATION. About ASA. [2018?]. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2CEJZw3 >. Acesso em: 10 set. 2018.
https://bit.ly/2CEJZw3...
, tradução nossa).44No original: “dedicated to advancing sociology as a scientific discipline and profession serving the public good”. É no contexto da Guerra Fria que ele se torna chefe da associação. Localmente, entre 1950 e 1956, os Estados Unidos estão experimentando um período de repressão política encarnado pelo senador Joseph R. McCarthy (1908-1957). Vários estudiosos americanos viram suas carreiras em perigo, senão destruídas. Coube à Associação assegurar tanto quanto possível autonomia perante a piora da situação. É neste contexto que a sociologia das profissões emergirá como novo ramo disciplinar, ao mesmo tempo criando um modelo geral e regras de proteção para a profissão acadêmica.

O termo “profissão” não tem o mesmo significado em ambos os lados do Atlântico. Vimos que Durkheim refere-se a um grupo de indivíduos que possuem um mesmo conjunto de atividades remuneradas. No mundo de língua inglesa, o termo é muito mais restritivo, caracterizando ofícios organizados em associações e reconhecidos legalmente: somente os membros de determinada associação são permitidos para prática da profissão. A sociology of professions (sociologia das profissões) é o estudo exclusivo destas atividades profissionais que ocupam lugar privilegiado no mundo do trabalho, por exemplo a medicina, os ofícios jurídicos, o ensino ou a engenharia. Esta sociologia das profissões anglo-saxônica utilizará como trabalhos fundadores aqueles feitos por dois ingleses no final da década de 1920, o demógrafo Alexander M. Carr-Saunders e o historiador Paul A. Wilson (1933aCARR-SAUNDERS, A. M.; WILSON, P. A. Professions. In: SELIGMAN, E. R. A.; JOHNSON. A. (Ed.). Encyclopaedia of the social sciences. New York: MacMillan, 1933a. v. 12. p. 476-480., 1933bCARR-SAUNDERS, A. M.; WILSON, P. A. The professions. Cambridge: Oxford University Press, 1933b.). Esta gênese então será retomada tal qual pelos sociólogos franceses de profissões.

No final dos anos 1920, começando na década de 1930, na Inglaterra, o modelo jurídico de profissões regulamentadas conhecia um debate: havia preocupações nomeadamente sobre os limites de sua validade e legitimidade de seu monopólio. Carr-Saunders e Wilson então conduziram investigações histórico-sociológicas sobre a gênese e evolução de trinta ou mais profissões definidas, vez ou outra, em associações, e detentoras, temporária ou permanentemente, de uma autorização para exercer o monopólio de sua atividade. Eles forneceram um compilado sintético em 1933 no artigo “Profissões” da Encyclopaedia of the social sciences (Carr-Saunders; Wilson, 1933aCARR-SAUNDERS, A. M.; WILSON, P. A. Professions. In: SELIGMAN, E. R. A.; JOHNSON. A. (Ed.). Encyclopaedia of the social sciences. New York: MacMillan, 1933a. v. 12. p. 476-480.).

Os dois autores situam o momento da emergência das profissões na Idade Média com a introdução do ensino universitário. Para oferecer suporte a suas observações, tomaram como exemplo a prática de médicos e advogados. Eles constatam que, durante a Idade Média, haviam aulas específicas nas universidades, onde a influência da Igreja era forte. Em seguida, até o século XIX, a Igreja perde gradualmente sua influência e as profissões ganham autonomia, estabelecendo corporações e associações profissionais que o Estado controlaria mais ou menos severamente, dependendo do país.

Carr-Saunders e Wilson (1933aCARR-SAUNDERS, A. M.; WILSON, P. A. Professions. In: SELIGMAN, E. R. A.; JOHNSON. A. (Ed.). Encyclopaedia of the social sciences. New York: MacMillan, 1933a. v. 12. p. 476-480., 1933bCARR-SAUNDERS, A. M.; WILSON, P. A. The professions. Cambridge: Oxford University Press, 1933b.) salientam que em países do modelo ocidental o exercício da medicina e do direito é controlado pelo Estado, e que as profissões não regulamentadas diretamente pelo Estado são reguladas por associações profissionais, como é o caso dos Estados Unidos, que funcionam como parte de uma delegação da autoridade do Estado. No caso das profissões regulamentadas pelo Estado, como a medicina na França, as associações profissionais são então limitadas a duas funções: proteção do corpo profissional e intervenção em matéria de políticas públicas.55Na França, a ordem dos médicos preenche essas duas funções.

Carr-Saunders e Wilson (1933aCARR-SAUNDERS, A. M.; WILSON, P. A. Professions. In: SELIGMAN, E. R. A.; JOHNSON. A. (Ed.). Encyclopaedia of the social sciences. New York: MacMillan, 1933a. v. 12. p. 476-480., 1933bCARR-SAUNDERS, A. M.; WILSON, P. A. The professions. Cambridge: Oxford University Press, 1933b.) mostram que a história da prática profissional é caracterizada pela transformação de dispositivos de reprodução da prática, conduzindo para a institucionalização da formação sob a égide do Estado, processo que posteriormente vem sendo em grande parte confirmado por vários trabalhos históricos.66Ver por exemplo Richard Palmer (1981); Carlo Cipolla (1976), ou ainda Elisa Andretta (2011).

Mais de 30 anos depois, em 1968, Talcott Parsons publica seu artigo sobre as profissões na International encyclopedia of the social sciences, mencionando o trabalho de ambos os estudiosos ingleses como fundador da sociologia das profissões.

Dez anos antes, em 1951, Parsons introduzira, em seu livro The social system, sua teoria sobre as funções sociais das profissões, especialmente em seu décimo capítulo, sobre a profissão médica, considerada o tipo ideal das profissões. Para o sociólogo americano, as profissões representam as principais instâncias de controle social do mundo moderno. No caso da medicina, o fato de estar doente provoca uma incapacidade do indivíduo de exercer suas atividades sociais e, portanto, a doença é um desvio, como uma ameaça à ordem social. A profissão médica, o exemplo típico, então se caracteriza pelo controle que exerce em seus pares sobre cada médico, particularmente em termos de prestação de serviços. Se seguirmos o raciocínio de Parsons, as profissões geralmente são um tipo de ofício regulamentado socialmente, não apenas por interesses econômicos, mas por um conhecimento e habilidade especializada (induzindo um compartilhamento social entre leigos e especialistas), e pela internalização de um sistema de valores. Por causa do monopólio de uma competência científica e técnica e da aplicação de um código moral que regulamenta a atividade, as profissões são caracterizadas por sua autonomia. A formação é a pedra angular do regulamento do exercício dos profissionais. As normas e os valores que fundamentam a ação de profissionais são: universalismo, formação em longo prazo, neutralidade emocional, interesse coletivo, racionalidade, autoridade social do corpo. Estes são todos os pontos que a sociologia das profissões discutirá e alterará mais tarde.

A noção de papel social decorre de uma característica das profissões, o relacionamento com o público (clientes, doentes…), que tende a tornar os serviços eficientes e desinteressados. Isso estabelece portanto um sistema de relacionamento em que o profissional é solicitado a responder às expectativas do público, e este é mantido pelo papel social do cliente, que está sujeito a um conjunto de expectativas institucionalizadas correspondentes a valores morais e sanções. No caso da medicina, as funções do paciente e do médico são precisamente moldadas. O paciente tem a obrigação de não trabalhar, de “ficar na cama”, sob pena de desaprovação moral (que pode se traduzir em sanção), de aceitar ajuda, de reconhecer “que não pode se curar sozinho”, de querer melhorar e reconhecer que a doença é um estado indesejável, de encontrar um médico, de seguir à risca suas recomendações durante o tratamento e cooperar com ele, como muitos recursos que podem ser questionados. Quanto ao médico, seu papel é de reconhecer o estado de doente do paciente, ajudá-lo a curar, implementar tudo que for necessário para alcançar este objetivo e cooperar com seu paciente para cumprir as melhores condições de cura. Tal modelo é caracterizado por uma situação estabelecida como assimétrica e entendida como consensual. Assimétrico pois é o médico, sozinho, para resolver o problema do paciente, que tem um papel ativo; entretanto os pacientes devem cumprir uma passividade obsequiosa. Além disso, este modelo é consensual na medida em que o paciente deve reconhecer o poder do médico e ambos devem concordar com um objetivo comum: a cura. Neste esquema, uma consulta ocorre com êxito quando médico e paciente cumprem suas respectivas funções. O paciente pode então beneficiar da isenção temporária de suas responsabilidades habituais e o caráter de desvio da doença é cancelado por tornar-se um estado legítimo no âmbito da sociedade. Para Parsons, o médico, e de modo geral qualquer profissional, se define pela habilidade técnica que o designa como um especialista em tal área. Sua autoridade social cai no âmbito estrito desta habilidade técnica. Então a relação do profissional com seu cliente não deve se basear em relações pessoais, mas em regras abstratas, referindo-se à competência técnica. O raciocínio de Parsons sobre as profissões é mais uma abordagem normativa do que uma demonstração sociológica dessas práticas.77Aaron Cicourel escreveu em seu livro publicado em 1968 e recentemente traduzido para o francês: “A questão crucial é saber como o observador objetiva a matéria-prima que ele observa, para que outros possam chegar a inferências semelhantes. Os estrutural-funcionalistas curto-circuitam o problema pelo uso de um vocabulário pouco explicativo que promove o estrutural por simples decreto. Tomam como evidente a existência de atividade que descrevem formalmente e assumem que nenhuma explicação adicional é necessária sobre como eles chegaram a saber de sua existência. Este vocabulário abstrato evacua a pergunta, a objetivação e a descrição das interações sociais com base diária, aquelas a partir das quais as inferências sobre as estruturas sociais são elaboradas” (Cicourel, 2018, p. 56). O sociólogo aqui é prisioneiro das representações dominantes veiculadas pela sociedade americana na medicina do seu tempo, das décadas de 1940 e 1950, marcadas por progressos terapêuticos significativos, como a descoberta dos antibióticos, entre outros. Parsons compartilha com muitos de seus conterrâneos a ideia de que os EUA representam o modelo de progresso; então em seus últimos trabalhos, marcados por um retorno a um pensamento evolucionista (um conceito que ele tinha, todavia, criticado severamente em seus primeiros trabalhos), ele escreve que “o novo tipo de comunidade social que representa os Estados Unidos […] justifica que lhe permitamos entender a última fase da modernização” (Parsons, 1973PARSONS, T. Le systeme des sociétés modernes. Paris: Dunod, 1973., p. 121). Podemos medir quanto o quadro analítico da sociologia da medicina da década de 1950 nos Estados Unidos foi projetado em uma teoria geral das profissões com a qual todos os autores estão lutando desde então.

O segundo polo forte da sociologia americana sobre estas questões é apresentado pelo departamento de sociologia da Universidade de Chicago. Em efeito, é neste departamento que emerge uma crítica da sociologia parsoniana: o trabalho desenvolvido por Everett C. Hughes e Howard Becker pavimentará o caminho para a sociologia interacionista de Erving Goffman. As pesquisas realizadas neste contexto podem ser opostas do ponto de vista metodológico aos trabalhos de Parsons e Merton. Se Parsons desenvolve um conjunto de teorias de alcance geral, os sociólogos da Universidade de Chicago estão buscando por sua vez implementar um know-how metodológico, especificando-o de acordo com os objetos específicos de estudo. Nesta abordagem, a influência passa por antes de qualquer consideração mais generalizada. A história relatada por um antigo aluno na década de 1940 no departamento de sociologia em Chicago é sobre este ponto bastante esclarecedora:

Uma história inventada por um de nós no momento pode concretizar a visão de Chicago, limitada e presa na influência. Dizemos que uma tese sobre o consumo de álcool escrita por um estudante de Harvard pode ser intitulada: Modos de descompressão cultural em sistemas sociais ocidentais; a mesma tese por um estudante da Columbia daria: Funções latentes do consumo de álcool a partir de uma pesquisa nacional; e para um aluno de Chicago: Interação social na casa do Jimmy: um bar na 55th Street.88GUSFIELD, J. The scholarly tension: graduate craft and undergraduate imagination. Chicago, nov. 1982. p. 6-7, tradução nossa. Comunicação pelo 40º aniversário do curso Sciences sociales II.

Os sociólogos de Chicago desenvolvem uma sociologia das ocupações e do trabalho que entrou em uma abordagem interacionista que se opõe à abordagem parsoniana. Everett C. Hughes, o principal representante da renovação do departamento de sociologia da Universidade de Chicago, muitas vezes rapidamente qualificado de “Escola de Chicago”,99De fato, esse nome sugere uma homogeneidade das abordagens sociológicas dentro do departamento que era muito longe da realidade. está ligado à realização e gestão de muitas monografias e investigações de campo. Ele se interessou particularmente no estudo dos ofícios ou ocupações, termo que se opõe às profissões legalmente estabelecidas.1010O sistema jurídico americano distingue os direitos e deveres das profissões legalmente reconhecidas das outras atividades referidas como ocupações.

Entre 1947 e 1957, mais de 60 mestrados e doutorados nesse departamento incidem sobre pequenos serviços e vários ofícios (catadores, zeladores, rabinos, policiais etc.). Everett Hughes explica na introdução de uma edição da American Journal of Sociology, onde são publicados trabalhos realizados por seus alunos, que é observando os zeladores que podemos entender o comportamento dos médicos:

Além disso, tanto o médico orgulhoso e o humilde zelador precisam se proteger contra o cliente ansioso e inoportuno (inquilino ou paciente); ambos devem manter distância para não deixar qualquer cliente interferir com os deveres para com os outros ou com o próprio programa em curso, de trabalho ou lazer. (Hughes, 1952HUGHES, E. C. The sociological study of work: an editorial foreword. American Journal of Sociology, Chicago, v. 57, n. 5, p. 423-426, 1952., p. 424-425)

O que Hughes descreve, num estilo às vezes um tanto provocante, é pôr em prática o princípio da comparação no qual Mauss e Fauconnet (1968MAUSS, M.; FAUCONNET, P. La sociologie : objet et méthode. In: MAUSS, M. Essais de sociologie. Paris: Minuit, 1968. p. 6-41., p. 36) destacaram o valor experimental, em seu artigo na Sociology: “No fundo, uma comparação bem conduzida pode dar, na sociologia, resultados equivalentes àqueles de um experimento”.

Em um artigo publicado em 1951, Hughes explica que o problema na origem da sua tese sobre os promotores imobiliários em Chicago era apreender se “estes homens [foram] profissionais” (Hughes, 1996HUGHES, E. C. Le regard sociologique. Paris: EHESS, 1996., p. 76). Porém, rapidamente ele descobriu que “era uma falsa questão, porque o conceito de ‘profissão’ em nossa sociedade não é tanto um termo descritivo, e sim um julgamento de valor e de prestígio”. Hughes diz que “isso acontece muito frequentemente, que as pessoas que exercem um ofício estão tentando mudar a ideia que seus diferentes públicos entendem. Assim, elas também estão tentando mudar suas próprias opiniões, de si e de seu trabalho”. O modelo que estes ofícios se caracterizam é o da “profissão”. Ele concluiu que “o termo profissão é um símbolo de concepção de trabalho que é reivindicado, e mais tarde um símbolo de si próprio” (Hughes, 1996HUGHES, E. C. Le regard sociologique. Paris: EHESS, 1996., p. 77). Para Everett Hughes, profissões são apenas um caso particular, sociologicamente constituído, de alguns ofícios. O ideal profissional então é tratado como um objeto social e não, como Parsons dizia, como um tipo ideal abstrato eventualmente à realização. Pode-se notar de passagem que um uso ortodoxo do tipo ideal weberiano poderia conformar as duas abordagens: o modelo de Parsons ilustra as especificidades de ofícios como profissões no sentido no qual Hughes os estuda. Eliot Freidson, sociólogo formado em Chicago, um pouco mais velho que Howard Becker, aluno e discípulo de Hughes, escreveu em 1970: “Becker pensou que podia […] concluir que é inútil procurar [nas profissões] outra coisa senão um símbolo social ligado a certos ofícios à exclusão dos outros” (Freidson, 1984FREIDSON, E. La profession médicale. Paris: Payot, 1984., p. 14).

Concentrando-se no estudo dos ofícios marginais, a abordagem de Hughes vai contra a perspectiva de Parsons. Hughes faz dois principais argumentos para justificar esta postura. O primeiro é que o estudo dos ofícios de baixo estatuto tem a vantagem para o pesquisador de não se opor a uma imagem que é valorizada pela sociedade, e para a qual seria tentar juntar-se espontaneamente ao fato de sua própria posição social. A segunda razão dada por Hughes é que o estudo destes pequenos ofícios (abandonados pela sociologia do trabalho centrada na indústria) oferece um quadro comparativo para introduzir a lógica da divisão do trabalho e do desenvolvimento de carreiras em outras profissões. De fato, para Hughes é necessário investigar as condições de produção da divisão do trabalho e não a tratar como um feito pré-existente como o fazem os funcionalistas.

Se alguns ofícios são capazes de se valorizarem mais que outros através de sua posição na divisão do trabalho e de sua capacidade de coalizão, todos, acredita Hughes, aspiram a obter um status de proteção - ele então estudará o processo que leva ao reconhecimento ou não como uma profissão (e não partir das profissões já estabelecidas, como faz Parsons).

No entanto Hughes não hesita em ir para o campo dos parsonianos com o objetivo de refutar as teorias, criando um trabalho de investigação sobre estudantes de medicina (Becker et al., 1961BECKER, H. S. et al. Boys in white: student culture in medical school. Chicago: University of Chicago Press, 1961.). Este trabalho, que é uma exceção no corpus dos trabalhos sobre os ofícios produzido no departamento de sociologia em Chicago, foi publicado quatro anos depois do homólogo liderado por Robert Merton, George Reader e Patricia Kendall (1957MERTON, R. K.; READER, G. G.; KENDALL, P. L. The student-physician: introductory studies in the sociology of medical education. Cambridge: Harvard University Press, 1957.). Para estes, trata-se de entrar no processo de aquisição de valores profissionais entre alunos em medicina, tendo o ensino como uma modalidade privilegiada.

Os sociólogos de Chicago, permanecendo na lógica de sua abordagem, se centram por outro lado a considerar os estudantes de medicina como aprendizes de um ofício dentre outros. Assim, eles analisaram os ajustamentos identitários sucessivos que estes alunos devem operar por meio dos vários estágios do currículo e as negociações as quais estão sujeitos a cada nova situação. O problema inicial da pesquisa era entender por que os estudantes de medicina não foram orientados na direção desejada por seus professores. O campo de pesquisa e observação foi a universidade de medicina de Kansas. Os arquivos de Hughes, mantidos pelo departamento de sociologia de Chicago, confirmam que o tema tinha sido deliberadamente escolhido em relação com o trabalho conduzido quatro anos antes na Universidade de Columbia, sob a direção de Merton. O objetivo foi demonstrar que o estudo das profissões com ajuda da investigação do trabalho de campo aprofundado fornece resultados mais férteis do que os trabalhos da Bureau of Applied Social Research conduzidos a partir de inquéritos por questionário com três faculdades de medicina (Merton; Reader; Kendall, 1957MERTON, R. K.; READER, G. G.; KENDALL, P. L. The student-physician: introductory studies in the sociology of medical education. Cambridge: Harvard University Press, 1957.).

A particularidade do inquérito conduzido pela equipe de Hughes, baseado no fato de que as profissões estabelecidas legalmente se caracterizam por uma forte institucionalização, foi para se centrar sobre a dificuldade de articular a realização do ideal profissional e a realidade institucional.

Em seu texto de síntese sobre as profissões, Hughes aponta que o ajuste entre a atividade profissional (por exemplo, médica) e a prática dentro de uma organização (por exemplo, hospital) não é autoevidente:

É uma característica das profissões modernas de se exercer em tais estruturas institucionais, muitas vezes utilizando meios de produção que seus membros não possuem, e em colaboração com uma grande variedade de pessoas. A ideologia das profissões estabelecidas tem predileção por um acordo entre duas partes: o profissional e o cliente. Ela tem uma predileção por um cliente que pode se expressar e pagar por si mesmo. Mas não é o arranjo mais comum e não é suscetível que se torne. O resultado é muitos problemas para as profissões. No passado, era para adquirir um cliente; agora é conseguir um lugar em um sistema de organização. (Hughes, 1996HUGHES, E. C. Le regard sociologique. Paris: EHESS, 1996., p. 117)

Em seu discurso, Hughes visa sem ambiguidade a teoria da relação profissional/cliente - médico/paciente - desenvolvida por Parsons e amplamente utilizada na sociologia que a inspirou. Ele vai um pouco mais além do que o indivíduo admitido numa instituição pode ter maior independência do que aqueles que exercem fora da instituição: “Aquele que trabalha dentro de uma organização pode pelo contrário adquirir uma reputação mais ampla, ou mesmo nacional, e melhorar sua situação, alterando o local de vez em quando. Ele é menos suscetível a pressões sociais” (Hughes, 1996HUGHES, E. C. Le regard sociologique. Paris: EHESS, 1996., p. 118).

A possibilidade de deslocamento evocada por Hughes precisa ser especificada de acordo com as atividades e os estados. Existe uma grande variabilidade de cenários possíveis, por exemplo, os engenheiros têm maior mobilidade do que ofícios jurídicos, e dentro de um tribunal, os advogados têm maior facilidade de movimento que os magistrados. Em efeito, Hughes ressalta que o exercício fora das instituições não é a garantia de uma independência e a prática privada não significa necessariamente tal liberdade:

Em teoria, aqueles que exercem como autônomo são livres para alterar seu local de trabalho à vontade; na verdade, esta mudança é muito perigosa para quem adquiriu uma clientela em uma comunidade. Para tudo que é proveniente de clientes, a reputação existe apenas em nível local e muitas vezes depende da conformidade das crenças locais e costumes em áreas estrangeiras à profissão. (Hughes, 1996HUGHES, E. C. Le regard sociologique. Paris: EHESS, 1996., p. 118)

Se os trabalhos desenvolvidos no departamento de sociologia em Chicago têm apontado os pontos fracos da abordagem funcionalista das profissões, por outro lado eles compartilham com o último um mesmo ponto cego, o papel do Estado. Mas as razões são diferentes. Para Hughes, o desenvolvimento das profissões está relacionado com industrialização e urbanização do país, independentemente do sistema e das ideologias políticas. Parsons, por sua vez, acredita que as profissões são independentes da organização do Estado e tudo o que pertença a sua natureza política. Esta independência se baseia para ele na quase total autonomia da qual teriam as profissões. Também a crítica de autonomia desenvolvida contra Parsons pelos sociólogos de Chicago deveria conduzi-los a levar em consideração a questão do Estado. Mas não foi o caso.

Se é verdade que sua abordagem, em que a principal influência não era favorável, os fatores mais gerais explicam esta atitude compartilhada. De fato, boa parte desta visão limitada com relação ao papel do Estado é explicada no fato de que todos estes sociólogos trabalham em um período marcado pela institucionalização da disciplina com ênfase em uma reivindicação profissional, primeiramente num contexto político de ameaça contra a autonomia do trabalho acadêmico e intelectual e, em seguida, em um mundo mais favorável. Hoje podemos apenas pensar por exemplo na importância do Estado para a segurança social desde a década de 1940. Mas será necessário aguardar até o fim da década de 1970, o início da década de 1980, para que estas questões sejam sujeitas a estudos exaustivos. Ainda em 1930, Carr-Saunders e Wilson enfatizaram em sua análise das profissões a importância desempenhada pelo Estado em seu reconhecimento, especialmente por causa da garantia oferecida pelo Estado sobre a formação, tanto em todos os países europeus quanto nos Estados Unidos.

O sociólogo Eliot Freidson, formado na Universidade de Chicago por Hughes e seus colegas, e que fez toda a sua carreira na Universidade Estadual de Nova York, tentou fazer uma síntese das duas correntes dominantes da sociologia americana. Ao contrário de Becker ou Hughes, Freidson passou a maior parte de suas pesquisas em trabalhos tratando da medicina a partir de um questionamento em termos de profissão e ocupação. Freidson retoma características parsonianas da profissão, mas retraduz esta abordagem em termos de vizinhos das análises dos sociólogos de Chicago. Uma profissão é de fato, para ele, o resultado da ação simbólica daqueles que se afirmam. Neste contexto, ele deve, portanto, estudar o tipo de processo pelo qual alguns ofícios são consagrados como profissão por um lado, e por outro o tipo de instituições que se conecta. A fronteira entre profissão e ofício é bastante fluida. Na penúltima de suas obras sobre o renascimento do profissionalismo, Freidson define finalmente nestes termos as profissões:

Uso o termo “profissão” para caracterizar uma ocupação que controla seu próprio trabalho, que é organizada em instituições especializadas com base na ideologia própria da expertise e do serviço. Uso o termo “profissionalismo” para descrever esta ideologia e essas instituições especializadas. O uso destes dois termos evoluiu (em meus trabalhos) e nem sempre são claramente distinguidos nos textos que compõem este volume. (Freidson, 1994FREIDSON, E. Professionalism reborn: theory, prophecy, and policy. Cambridge: Polity Press, 1994., p. 10)

Freidson concorda com Carr-Saunders e Wilson por constatar que a existência de ofícios profissionais atende a uma necessidade social cujo apoio é o resultado de uma delegação por parte do Estado. Partindo desse estado de fato, os médicos definem eles mesmos a atividade médica por meio de seu exercício diário da função. Para ele, trata-se de uma conexão funcional, e não histórica como pensava seus dois colegas ingleses. O papel do Estado é baseado em uma intervenção exterior que pode contribuir ou não para a autonomia da profissão. Ele reinterpreta a gênese do demógrafo e do historiador inglês, limitando o período de intervenção do Estado. Mas para o sociólogo americano a profissão mantém uma área onde ela continua a ser o único mestre: é o conteúdo de seu trabalho que escapa do controle de tudo que é estranho ao ofício. Há uma idealização da autonomia da prática médica no que diz respeito a interesses econômicos e industriais.

Freidson (1984FREIDSON, E. La profession médicale. Paris: Payot, 1984., p. 30) observa que esse ensinamento, tal qual ele se desenvolveu desde o final do século XIX, tem por efeito que o público é educado “com conhecimentos e crenças menos estrangeiras aos do médico e se torna mais receptivo ao trabalho deste último”.

Em geral, a medicina ou mesmo o exercício do direito, para citar dois exemplos, precisam acreditar que têm um monopólio de sua prática. Portanto, é necessário que haja uma crença nestas práticas. Isto é uma questão muito importante da educação e da informação sobre os cuidados nas sociedades ocidentais. Isso explica a luta necessária e constante travada contra charlatães e práticas ilegais.

Se a concepção de Freidson sobre o papel do Estado não está em conformidade com a realidade histórica, seus trabalhos formam ainda a síntese mais satisfatória sobre as profissões. No entanto, no final da sua carreira, o sociólogo não estará satisfeito e retornará para a questão na publicação de seu penúltimo livro em 1994, no qual faz uma revisão do estado da sociologia das profissões. Ele lamenta que não há ainda um modelo teórico satisfatório das profissões e destaca o baixo número de estudos comparativos que precisam ser desenvolvidos de forma mais sistemática. Por fim, ele observou que o papel do Estado continua a ser analisado:

É muito cedo para dizer onde nos levará o crescente interesse por estudos comparativos e pelo Estado. Podemos assumir que o interesse dos historiadores para a profissionalização continuará somente porque o estudo do desenvolvimento das instituições no momento é intrínseco a sua disciplina. Não há dúvida que a análise recente e brilhante de Abbott sobre o papel de recursos judiciais e litígios na sorte mutável das profissões forçará que sejamos mais atentos nas futuras interações entre ocupações ocupando posições contíguas na divisão do trabalho. Em ambos os casos, o papel do Estado é quase certo de ser explorado mais cuidadosamente do que tem sido no passado. (Freidson, 1994FREIDSON, E. Professionalism reborn: theory, prophecy, and policy. Cambridge: Polity Press, 1994., p. 6-7)

Para concluir, há a questão das relações entre o Estado e a medicina que não se coloca no quadro geral teórico de Parsons, caracterizado por um a análise sincrônica das profissões como grupos autônomos. Everett C. Hughes não se debruça sobre a questão de uma possível ligação entre o Estado e a profissão; ele explica em um quadro muito geral o desenvolvimento das profissões, vinculando-o à expansão das cidades e indústrias. Mas ele também faz a suposição, historicamente questionável, que esta evolução não tem qualquer ligação com as transformações da organização política dos Estados. Freidson por sua vez insiste sobre a interação entre o Estado e as profissões em um determinado momento em sua implementação, mas não atualiza esta tentativa de perspectiva histórica nem mostra o impacto sobre a prática imediata da medicina. Sabemos na França da importância do Estado em reconhecer as posições, conferida por qualquer grau de faculdade de medicina.

Uma fraqueza da construção teórica do conceito de profissão aparece comparando estes dois tipos de análises: o cerne da questão é o sistema de formação de médicos, que garante a reprodução do universo médico, mas que é também um elemento inseparável do todo do sistema de reprodução social.

É neste conjunto de mediações que se desempenha a relativa autonomia das práticas médicas em relação ao Estado, mas também em comparação com outras esferas sociais, tais como as atividades econômicas. Assim, o princípio da construção da identidade social dos agentes por meio de sua carreira escolar é um componente principal de profissionalização.

Para analisar, é importante comparar tal formação específica da profissão com outras formações homólogas, ou seja, todo o sistema de ensino. Esta diferenciação do treinamento é precisamente o lugar onde há uma forte dependência do Estado e o próprio processo que permite caracterizá-lo.

Se considerarmos que o Estado não exerce sozinho o monopólio tendencial da violência física (definição weberiana sobre a qual os trabalhos americanos se apoiam), mas também o monopólio da violência simbólica na acepção de Pierre Bourdieu (1994BOURDIEU, P. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Seuil, 1994.),1111“Violência simbólica é esta violência que extorque as submissões que não são nem percebidas como tal por depender de “expectativas coletivas”, de crenças socialmente inculcadas. Como a teoria da magia, a teoria da violência simbólica é baseada em uma teoria da crença, ou melhor, em uma teoria da produção de crença, do trabalho de socialização necessária para produzir agentes com os padrões de percepção e apreciação que lhes permitam perceber as injunções inscritas numa situação ou em um discurso e obedecê-las” (Bourdieu, 1994, p. 188). esta que está em jogo nas operações sociais de qualificação e em cada ato de certificação, é durante o período da especialização mais técnica que se deve localizar as características sociais (e não apenas técnicas) do exercício profissional.

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  • PARSONS, T. Le systeme des sociétés modernes. Paris: Dunod, 1973.

  • 1
    Este modelo também foi retomado amplamente pelos historiadores americanos de medicina.
  • 2
    Este artigo recupera e estende os meus trabalhos sobre práticas médicas realizadas como parte do meu mestrado e minha tese ainda inéditos.
  • 3
    O funcionalismo, teoria antropológica formulada por Bronislaw Malinowski, tem sido uma das mais importantes teorias sociológicas do século XX. Trata-se de uma leitura da sociedade compreendida a partir das funções que asseguram sua estabilidade.
  • 4
    No original: “dedicated to advancing sociology as a scientific discipline and profession serving the public good”.
  • 5
    Na França, a ordem dos médicos preenche essas duas funções.
  • 6
    Ver por exemplo Richard Palmer (1981PALMER, R. Physician and the State in Post-Medieval Italy. In: RUSSEL, A. W. (Ed.). The town and State physician. Wolfenbüttel: Herzog August bibliothek, 1981. p. 47-61.); Carlo Cipolla (1976CIPOLLA, C. Public health and the medical profession in the Renaissance. Cambridge: Cambridge University Press, 1976.), ou ainda Elisa Andretta (2011ANDRETTA, E. Roma medica : anatomie d’un système médical au XVIe siècle. Rome: Ed. Ecole française de Rome, 2011.).
  • 7
    Aaron Cicourel escreveu em seu livro publicado em 1968 e recentemente traduzido para o francês: “A questão crucial é saber como o observador objetiva a matéria-prima que ele observa, para que outros possam chegar a inferências semelhantes. Os estrutural-funcionalistas curto-circuitam o problema pelo uso de um vocabulário pouco explicativo que promove o estrutural por simples decreto. Tomam como evidente a existência de atividade que descrevem formalmente e assumem que nenhuma explicação adicional é necessária sobre como eles chegaram a saber de sua existência. Este vocabulário abstrato evacua a pergunta, a objetivação e a descrição das interações sociais com base diária, aquelas a partir das quais as inferências sobre as estruturas sociais são elaboradas” (Cicourel, 2018CICOUREL, A. La justice des mineurs au quotidien de ses services. Genève: Editions IES, 2018., p. 56).
  • 8
    GUSFIELD, J. The scholarly tension: graduate craft and undergraduate imagination. Chicago, nov. 1982. p. 6-7, tradução nossa. Comunicação pelo 40º aniversário do curso Sciences sociales II.
  • 9
    De fato, esse nome sugere uma homogeneidade das abordagens sociológicas dentro do departamento que era muito longe da realidade.
  • 10
    O sistema jurídico americano distingue os direitos e deveres das profissões legalmente reconhecidas das outras atividades referidas como ocupações.
  • 11
    “Violência simbólica é esta violência que extorque as submissões que não são nem percebidas como tal por depender de “expectativas coletivas”, de crenças socialmente inculcadas. Como a teoria da magia, a teoria da violência simbólica é baseada em uma teoria da crença, ou melhor, em uma teoria da produção de crença, do trabalho de socialização necessária para produzir agentes com os padrões de percepção e apreciação que lhes permitam perceber as injunções inscritas numa situação ou em um discurso e obedecê-las” (Bourdieu, 1994BOURDIEU, P. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Paris: Seuil, 1994., p. 188).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2018
  • Aceito
    03 Set 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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