A implementação do programa de saúde específico para a população em situação de rua - Consultório na rua: barreiras e facilitadores

The implementation of the Brazilian health program for the homeless population - Consultório na Rua: obstacles and advantages

Cristiane Reis Soares Medeiros Pedro Cavalcante Sobre os autores

Resumo

O objetivo deste trabalho é investigar as razões da baixa adesão à implementação do programa de saúde específico para a população em situação de rua - Consultório na Rua - pela maioria dos municípios elegíveis. A partir da literatura contemporânea de determinantes da implementação de políticas públicas, a pesquisa, de caráter exploratório-descritivo, utiliza análise de conteúdo em documentos oficiais e, sobretudo, entrevistas com gestores federais e a aplicação de questionários aos gestores de municípios em ambas as situações, aderentes e não aderentes ao programa. Sob a ótica do governo federal, os resultados da investigação sugerem que a implementação do programa foi influenciada positivamente pelo alinhamento com uma política pública maior, com mais recursos e priorização governamental, embora as restrições fiscais, a partir de 2015, e as fragilidades do pacto federativo se apresentem como principais barreiras. Do ponto de vista dos gestores locais, as evidências empíricas demonstram percepções diferentes entre os municípios aderentes ao programa e os que não aderiram, porém há convergências quanto a relevância de um contexto favorável, do legado de políticas prévias e de fatores relacionados às competências e capacidades das prefeituras como determinantes à participação no programa Consultório na Rua.

Palavras-chave:
Implementação de Políticas Públicas; Saúde Pública; População em Situação de Rua; Relacionamento Federativo

Abstract

The paper’s main goal is to investigate the determinants of the adherence to a federal health program focused on homeless population - named Consultório na Rua - by eligible municipalities. Grounded on the contemporary literature of determinants of policy implementation, the exploratory and descriptive research employs official documents analysis, interviews with federal managers and a survey with local government managers, from the cities that joined the program and from the cities that didn’t. Through the perspective of the federal government, the research results suggest that the implementation of the program was positively influenced by the alignment with a larger public policy, which has more funds and priority from the government, in spite of the fiscal restrictions, since 2015, and the weaknesses of the federative pact. On the other hand, the empirical evidences of the local managers’ views demonstrate differences between these two groups of municipalities, however there are convergences towards the fact that favorable context, legacy of prior policies and aspects of competences and capacities of the local governments are determinants to the program adherence.

Keywords:
Policy Implementation; Public Health; Homeless Population; Federative Relationship

Introdução

O objetivo principal deste artigo é avançar na compreensão dos determinantes da implementação de uma política pública relativamente recente e direcionada a uma população específica, o Consultório na Rua, que provê acesso aos serviços de saúde para as pessoas em situação de rua.

Embora a Constituição Brasileira de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Seção 1, p. 1. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1eolror >. Acesso em: 10 jun. 2015.
https://bit.ly/1eolror...
) tenha determinado a saúde como direito de todos e dever do Estado e estabelecido a base para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 20 set. 1990. Seção 1, p. 18055. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2LBrgBw >. Acesso em: 10 jun. 2015.
http://bit.ly/2LBrgBw...
), cuja implementação teve início em 1990, esse direito não é exercido de forma equânime e integral por toda a população brasileira. Esse cenário se agrava no atendimento a grupos populacionais específicos, como no caso dos em situação de rua, cuja heterogeneidade torna necessária a elaboração de estratégias que visem contemplar as particularidades desses sujeitos a partir da criação de serviços diferenciados (Prates; Prates; Machado, 2012PRATES, J. C.; PRATES, F. C.; MACHADO, S. Populações em situação de rua: os processos de inclusão e exclusão precárias vivenciados por esse segmento. Revista Temporalis, Niterói, v. 11, n. 22, p. 191-215, 2012.).

As condições precárias e insalubres das ruas sucedem em exposições e riscos acumulados, sobre os quais são necessárias intervenções e formas de tratamento que atendam às especificidades de cada situação. Nesses casos, os conceitos gerais de universalidade, integralidade e equidade do SUS são desafiados ao ponto de se levantar subsídios para a implementação de políticas públicas de saúde para a população em situação de rua. Considerando a segregação dessa população da organização espacial e social urbana e as resultantes desse processo na sua condição de saúde e na acessibilidade aos recursos públicos, uma política orientada para esse público deveria assumir um desenho singularizado (Varanda; Adorno, 2004VARANDA, W.; ADORNO, R. C. F. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 56-69, 2004.).

Nesse sentido, em 2011, a Política Nacional de Atenção Básica em Saúde (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 24 out. 2011. Seção 1, p. 48-55.) trouxe a concepção dos Consultórios na Rua, os quais se constituem em equipes para o cuidado integral da população em situação de rua, e em janeiro de 2012 foi publicada a normativa que definiu as diretrizes de organização e funcionamento dessas equipes (Brasil, 2012bBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2012. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 26 jan. 2012b. Seção 1, p. 46-47.).

As equipes dos Consultórios na Rua (eCR) são multiprofissionais e lidam com os diversos problemas e necessidades de saúde apresentados pela população em situação de rua, incluindo a busca ativa e o cuidado aos usuários de álcool, crack e outras drogas. Funcionam desempenhando atividades in loco, de forma itinerante, podendo realizar atendimentos na rua, nas unidades de saúde ou em outros locais dentro da sua área de atuação. Os recursos orçamentários para custeio das eCR são transferidos de forma regular e automática, do Fundo Nacional de Saúde (FNS) aos Fundos de Saúde municipais e do Distrito Federal, após o credenciamento e implantação das equipes, conforme regramento definido pelo Ministério da Saúde (MS) (Brasil, 2012bBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2012. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 26 jan. 2012b. Seção 1, p. 46-47.).

A normativa também previa a implantação de 307 eCR, distribuídas no Distrito Federal e em 262 municípios brasileiros com população superior a 100 mil habitantes e que possuam um mínimo de 80 pessoas em situação de rua (Brasil, 2012cBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 123, de 25 de janeiro de 2012. Define os critérios de cálculo do número máximo de equipes de Consultório na Rua (eCR) por Município. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 26 jan. 2012c. Seção 1, p. 48.). No entanto, após quatro anos de criação da política pública, apenas 80 municípios, além do Distrito Federal, aderiram à estratégia e se habilitaram a implantar equipes, totalizando 115 eCR financiadas pelo MS (Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Portal da Saúde. Relatórios de Gestão da Secretaria de Atenção à Saúde. Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2N5dU11 >. Acesso em: 24 jul. 2018.
https://bit.ly/2N5dU11...
), ou seja, somente 30% das cidades elegíveis e 37% de equipes.

Nesse sentido, este artigo se dedica a investigar os determinantes da baixa adesão dos governos locais a esse programa do MS, mais especificamente, a pesquisar quais são as barreiras e fatores facilitadores do processo de implementação. Para tanto, este trabalho, de caráter exploratório-descritivo, utiliza análise de conteúdo em documentos oficiais e, sobretudo, entrevistas com gestores federais e a aplicação de questionários aos gestores de municípios em ambas as situações, aderentes e não aderentes ao programa.

Além da introdução, o artigo possui mais três seções. Na próxima, discute-se a teoria de implementação de políticas públicas, com ênfase em suas barreiras e seus facilitadores. Em seguida, debruça-se sobre a análise empírica, incluindo o detalhamento da estratégia metodológica e os resultados empíricos e suas análises. Encerrando o artigo, algumas considerações finais são tecidas.

Implementação de políticas públicas: barreiras e facilitadores

A implementação corresponde à etapa em que as decisões acerca das alternativas formuladas são colocadas em prática (Wu et al., 2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.). Diante das dificuldades inerentes a essa fase das políticas públicas, nas últimas décadas, a literatura passou a investigar o tema e descobrir o nível de complexidade e obstáculos em implantar efetivamente as políticas governamentais, mesmo aquelas prioritárias e com abundância de recursos, como demonstrado desde o trabalho seminal de Pressman e Wildavsky (1973PRESSMAN, J. L.; WILDAVSKY, A. Implementation: how great expectations in Washington are dashed in Oakland. 3. ed. Los Angeles: University of California Press, 1973.). Desde então, há um esforço tanto na academia como na administração pública para melhor compreender porque determinadas escolhas ou práticas, embora consideradas boas, não necessariamente geram os resultados efetivos e esperados (Hill, 2003HILL, H. C. Understanding implementation: street-level bureaucrats’ resources for reform. Journal of Public Administration Research and Theory, Oxford, v. 13, n. 3, p. 265-282, 2003.).

A cooperação entre diferentes organizações e atores, sobretudo em diferentes esferas de governo, tende a favorecer o sucesso da implementação. Logo, o entendimento dos executores dos programas, especialmente em políticas descentralizadas em contexto federativo, auxilia a identificar os determinantes dessa cooperação, ou não, e, por conseguinte, do êxito da política pública. Esse, por sua vez, ocorre por meio de processos interativos e de negociação entre seus formuladores e os responsáveis pela sua execução, haja vista que os programas apresentam significados diversos para os atores com eles envolvidos, no que diz respeito aos seus objetivos, resultados e recursos disponíveis (Lotta, 2015LOTTA, G. S. Burocracia e implementação de políticas de saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.).

Assim, como o processo de implementação não é nada trivial, ao contrário, é normalmente complexo e multicausal, aqui se expõem os fatores determinantes do sucesso ou do fracasso das políticas públicas, isto é, que atuam tanto como facilitadores ou indutores quanto barreiras ou dificultadores.

Nesse sentido, Struyk (2007STRUYK, R. J. Factors in successful program implementation in Russia during the transition: pilot programs as a guide. Public Administration and Development, Hoboken, v. 27, n. 1, p. 63-83, 2007.) identificou, na literatura sobre o tema, nove fatores que podem condicionar ao sucesso dessa fase: (1) o grau de suporte dado pela liderança local para a implementação da política; (2) características da política a ser implementada, incluindo sua eficácia, clareza, consistência e flexibilidade; (3) disponibilidade de recursos; (4) número de atores envolvidos no processo; (5) atitude positiva/motivação dos responsáveis pela implementação; (6) alinhamento com os interesses dos destinatários da política; (7) oportunidade de aprendizado entre implementadores; (8) experiências prévias com a implementação de políticas/programas similares; e (9) contexto local para implementação, como a economia local e as características da população-alvo.

Em contraponto aos facilitadores, Wu et al. (2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.) elencam uma série de barreiras à implementação de políticas públicas, subdivididas em três categorias de análise: política, competência analítica e capacidade operacional, conforme descrito no Quadro 1.

Quadro 1
Barreiras à implementação de políticas públicas

No Brasil, dado nosso federalismo único, a implantação de uma política de saúde pública exige que sejam observadas, ainda, as particularidades da descentralização presentes no SUS. O desenho dos programas nacionais e sua implementação, que posteriormente foram replicados em outras áreas - como na assistência social -, fundamentam-se nas escolhas dos arranjos institucionais e nos recursos da esfera federal (Cavalcante, 2011CAVALCANTE, P. Descentralização de políticas públicas sob a ótica neoinstitucional: uma revisão de literatura. Revista de Administração Pública-RAP, Rio de Janeiro, v. 45, n. 6, p. 1781-1804, 2011.), mas também dependem das decisões tomadas e das prioridades definidas no âmbito municipal (Dalfior; Lima; Andrade, 2015DALFIOR, E. T.; LIMA, R. C. D.; ANDRADE, M. A. C. Reflexões sobre análise de implementação de políticas de saúde. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 104, p. 210-225, 2015.; Jansson; Fosse; Tillgren, 2011JANSSON, E.; FOSSE, E.; TILLGREN, P. National public health policy in a local context: implementation in two Swedish municipalities. Health Policy, Amsterdam, v. 103, n. 2-3, p. 219-227, 2011.). Nesse caso, os determinantes da implementação estariam, portanto, relacionados ao processo de descentralização das políticas ou programas e os seus fatores subjacentes, como os atributos institucionais da política, que podem ou não gerar incentivos à cooperação dos municípios; a existência de políticas prévias e capacidades em nível local; as características estruturais dos governos municipais, bem como os aspectos que abrangem relações com o governo estadual e entre Estado e sociedade (Arretche, 2004ARRETCHE, M. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 17-26, 2004.).

De acordo com Lima e D’Ascenzi (2013LIMA, L. L.; D’ASCENZI, L. Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 21, n. 48, p. 101-110, 2013.), na literatura, duas abordagens sobre implementação de políticas públicas são consideradas hegemônicas. Uma delas destaca variáveis referentes às normas que estruturam a política pública, a partir de uma análise sobre o seu processo de formulação. A segunda abordagem define como variáveis o cenário local e as burocracias implementadoras, enfatizando elementos da conjuntura na qual a política será implementada.

Diante dessas abordagens teóricas, o artigo parte do pressuposto de multicausalidade nos determinantes do processo de implementação das políticas públicas em contexto federativo, como é o caso do programa Consultório na Rua. Dessa forma, a pesquisa utiliza os argumentos da literatura sobre facilitadores e barreiras para investigar essa política, a partir de uma perspectiva abrangente, isto é, uma lente analítica que atente para dimensões essenciais do policymaking, como as características do desenho do programa, capacidades políticas e operacionais, fatores contextuais e de priorização dos governos federal e locais. Essa estratégia se faz ainda mais necessária em face à complexidade e às limitações em se alcançar cooperação com municípios que notoriamente possuem carências múltiplas e em uma ação governamental voltada para um segmento vulnerável e com baixa grau de influência política.

Determinantes da Implementação do Programa Consultórios na Rua

Metodologia

Este estudo pode ser classificado, quanto ao delineamento, como descritivo- exploratório. Descritivo por tratar da evolução da política em saúde para a população em situação de rua e exploratório por investigar as razões determinantes para a não implementação dos Consultórios na Rua pela maioria dos municípios elegíveis. Opta-se por uma abordagem qualiquantitativa, utilizando-se uma estratégia metodológica diversificada com triangulação de métodos: análise documental, entrevistas semiestruturadas e aplicação de questionários.

Na análise documental, o foco são os Relatórios Anuais de Gestão (RAG) da Secretaria de Atenção à Saúde do MS dos anos de 2012 a 2015, além dos registros disponibilizados nos sítios eletrônicos do FNS e do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES).

Não foram encontradas nenhuma publicação científica e nem avaliações do Consultório na Rua, o que gerou a necessidade de realização de entrevistas para captar as percepções dos gestores federais acerca do processo de implementação da política. Nesse sentido, foram realizadas entrevistas com os quatro técnicos do MS (identificados, neste trabalho, como E1, E2, E3 e E4) para identificar as principais ações, bem como descrever a evolução do processo. O número dos entrevistados reflete o reduzido número da equipe gestora no MS.

A partir de um roteiro semiestruturado, as entrevistas extraíram informações acerca das ações de apoio desenvolvidas pelo MS e seus efeitos sobre o processo de implementação do Consultório na Rua, além da percepção dos gestores sobre quais seriam as razões da baixa adesão ao Programa pela maioria dos municípios elegíveis e de que modo a relação entre os entes federados influencia nesse processo.

Para apurar as razões da baixa adesão, optou-se pela utilização de questionários com uso do FormSUS,11FormSUS consiste em um serviço de uso público, disponibilizado pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde - DATASUS −, para a criação de formulários na web. de modo a coletar a percepção dos gestores locais sobre o programa.

Embora não tenha sido uma amostra probabilística, dentre os 262 municípios elegíveis mais o Distrito Federal, 131 gestores responderam, sendo 53 de municípios que possuem eCR implantadas e 78 de municípios que não implementaram o programa. Considerando as notórias dificuldades de alcançar altas taxas de respostas por meio da estratégia coleta de informações via questionário, acredita-se que a participação dos gestores municipais foi satisfatória, com 50% do total de municípios elegíveis; 66% dos que aderiram ao programa e 43% dos que não aderiram.

As informações e dados obtidos foram analisados utilizando-se diferentes estratégias: as entrevistas e os documentos foram examinados pela técnica de análise de conteúdo (Bardin, 2009BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002.), e as respostas aos questionários foram alvo de análise exploratória de dados.

Resultados e discussão

Nessa parte do artigo, são debatidos os resultados das análises empíricas em diálogo com a literatura de implementação de políticas públicas. Primeiro, a perspectiva dos gestores do MS, tanto pelo exame de publicações oficiais quanto pelas entrevistas com servidores do eCR no MS. Em seguida, o foco se volta para o nível local, quando os resultados dos dados coletados com os municípios são explorados e discutidos.

A implementação do Consultório na Rua sob a ótica dos gestores federais

A partir da análise dos Relatórios Anuais de Gestão da Secretaria de Atenção à Saúde do MS e das informações disponíveis nos sítios eletrônicos do FNS e do CNES, observa-se que a adesão ao programa cresceu gradativamente a cada ano. Entre os anos de 2012 a 2015, o número de eCR implantadas subiu de 30 para 115 e o quantitativo de municípios foi elevado de 18 para 80 em todo o território brasileiro. De acordo com esses documentos, esse crescimento na adesão pode ser relacionado às diversas estratégias de apoio à implementação empreendidas pelo MS, como as oficinas de qualificação das equipes e de sensibilização para gestores dos municípios elegíveis, seminários para discussão, além da publicação de materiais e a realização de um curso para auxiliar os profissionais na prática cotidiana do cuidado a esse público.

O desenvolvimento de atividades de monitoramento da implantação das eCR pactuadas por meio do Programa Crack é Possível Vencer22O Programa Crack, é Possível Vencer é um programa que tem como objetivo ampliar a oferta de tratamento de saúde aos usuários de drogas, elevar as ações de prevenção ao uso e enfrentar as organizações criminosas e o tráfico de drogas. O programa está estruturado em três eixos de atuação: prevenção, cuidado e autoridade. e o aumento do financiamento federal também configuraram como estratégias de apoio à implementação. No Quadro 2 são descritas, ano a ano, as ações desenvolvidas pelo MS para apoiar a implementação do programa.

Quadro 2
Estratégias de apoio à implementação do Consultório na Rua desenvolvidas pelo Ministério da Saúde

É nítido, portanto, que mesmo em um curto período de tempo, o governo federal procurou ajustar e incorporar novas ações à formulação original do programa de modo a ampliar sua cobertura e capacidade de impacto no público-alvo. Esse processo demonstra a dinâmica de uma política pública complexa, na qual o desenho não se esgota na etapa de formulação, ao contrário, tende a se modificar constantemente a partir da avaliação dos atores envolvidos, quanto às necessidades de aprimoramento e a correção de rumos (Wu et al., 2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.).

Na mesma direção, as entrevistas confirmam esses achados, haja vista que as ações desenvolvidas para apoiar a implementação do Consultório na Rua, citadas pelos entrevistados, são descritas na pesquisa documental. No entanto, os relatos indicam uma maior influência de uma ou de mais ações no crescimento do programa. É unânime entre os entrevistados a opinião de que todas as estratégias desenvolvidas surtiram efeito cumulativo para apoiar a implementação, com destaque para a inclusão do Consultório na Rua como serviço pactuado, a partir adesão dos municípios ao Programa Crack é Possível Vencer e seu monitoramento, conforme trecho da entrevista: com o Programa Crack, ele [o programa do Consultório na Rua] ganha uma força especial (E3). Enquanto o E2 citou a capacidade do monitoramento realizado conjuntamente por vários ministérios que favorece a intersetorialidade nos municípios e, consequentemente, a implementação dos serviços.

De acordo com a literatura, quanto mais atores envolvidos na implementação, maiores são as chances de que esta não seja bem-sucedida ou que seu desenvolvimento seja retardado (Struyk, 2007STRUYK, R. J. Factors in successful program implementation in Russia during the transition: pilot programs as a guide. Public Administration and Development, Hoboken, v. 27, n. 1, p. 63-83, 2007.). Entretanto, no caso da implantação de eCR pactuadas por meio de uma política mais abrangente dentro do governo, como a de enfrentamento ao crack, o acompanhamento do processo por um conjunto de setores (saúde, assistência social, segurança, entre outros), coordenado pela Casa Civil da Presidência da República, mostrou-se positivo. Tal fato corrobora o argumento de Giacchino e Kakabadse (2003GIACCHINO, S.; KAKABADSE, A. Successful policy implementation: the route to building self-confident government. International Review of Administrative Sciences, Thousand Oaks, v. 69, n. 2, p. 139-160, 2003.) de que a gestão eficaz do número de implementadores incentiva a colaboração entre as partes interessadas para uma política caracterizada pelo alinhamento de objetivos, pelo desenvolvimento de relacionamentos pessoais fortes e por uma alta disposição para compartilhar habilidades e informações. Além disso, vale ressaltar que o Consultório na Rua era compreendido como parte dessa macropolítica prioritária que possui mais recursos e apoio, o que tende a reduzir as barreiras tanto de capacidade política quanto operacional (Wu et al., 2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.).

Não por acaso que outra estratégia importante apontada por todos os entrevistados para explicar o crescimento da adesão foi o aumento do financiamento federal para as eCR. Conforme opinião do E1 o custeio [...] hoje pago pelo MS, [...] por mês para essas equipes, é razoavelmente bem exequível para a implantação; o que também é convergente com o debate teórico (Struyk, 2007STRUYK, R. J. Factors in successful program implementation in Russia during the transition: pilot programs as a guide. Public Administration and Development, Hoboken, v. 27, n. 1, p. 63-83, 2007.). Com efeito, justamente nos anos de 2013 e 2014, foi o alinhamento do programa Consultórios de Rua com o Crack é Possível Vencer que gerou incremento do orçamento federal para o custeio das equipes, culminando no maior número de adesões à primeira política.

Por outro lado, percebe-se um crescimento menor em 2015, quando não houve credenciamento de novas equipes pelo MS. É importante ressaltar que esse ano foi marcado por um forte ajuste fiscal por parte do governo federal. Segundo Wu et al. (2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.), as mudanças de prioridade podem influenciar negativamente o processo de implementação de uma política ou de um programa. Nesse contexto, E2, E3 e E4 ponderam que o contingenciamento de recursos refletiu no foco ao desenvolvimento de ações de qualificação em detrimento da expansão de equipes. A aposta na qualificação das eCR encontra respaldo na afirmação de Struyk (2007STRUYK, R. J. Factors in successful program implementation in Russia during the transition: pilot programs as a guide. Public Administration and Development, Hoboken, v. 27, n. 1, p. 63-83, 2007.), de que o importante não é simplesmente o tamanho do orçamento disponível; a probabilidade de sucesso de implementação é maior quando outros fatores de produção estão presentes, como a gestão de projetos e a presença de pessoal qualificado.

Esses mesmos trabalhos apontam o contexto social, relacionado ao apoio do público à política ou ao programa, como outra variável determinante. Na visão de todos os entrevistados, as pessoas em situação de rua são, habitualmente, uma população invisibilizada pela sociedade e pelos gestores e políticos, que não têm interesse em investir em políticas públicas para esse grupo em específico, como fica evidente no trecho:

esse é um processo que requer intensa sensibilização dos gestores e da sociedade civil em torno da necessidade; faz parte de um processo lento e gradual que as pessoas assumam esse protagonismo nos seus municípios e possibilitem a esse público a produção da equidade, do acesso ao SUS a partir dessas equipes [de Consultório na Rua]. (E1)

Quanto à questão federativa E2, E3 e E4 apontam a necessidade do aperfeiçoamento do relacionamento com os governos subnacionais para o sucesso na implementação do programa. Eles defendem o estabelecimento do papel dos estados nesse processo, visto que, ao mesmo tempo em que é cobrada a sua cooperação para o financiamento do programa, a sua participação na formulação e desenvolvimento das estratégias de apoio à implementação não é formalmente prevista, o que resulta também em barreiras políticas e operacionais (Wu et al., 2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.).

Em suma, tanto a análise dos documentos oficiais quanto as entrevistas indicam que a adesão ao eCR, na ótica do governo federal, foi influenciada positivamente pelo alinhamento com uma política pública maior, com mais recursos e priorização governamental. Por outro lado, as restrições fiscais a partir de 2015 e as fragilidades do pacto federativo em relação ao Consultórios de Rua constituíram as principais barreiras à sua implementação.

A implementação do Consultório na Rua na visão dos gestores locais

A implementação de uma política pública como um processo de acordos intertemporais é bastante influenciada pelas circunstâncias presentes na ponta, nesse caso específico, nos municípios. Logo, examinar a percepção dos gestores acerca dos fatores que induzem ou restringem a adesão é estratégia essencial para compreender esse processo. Por conseguinte, o artigo dedica essa seção para buscar conhecer não apenas esses fatores, mas também a realidade dos municípios elegíveis ao Consultório na Rua no que se refere à existência de equipes para o cuidado em saúde das pessoas em situação de rua e de outros serviços direcionados a essa população.

Dos municípios participantes deste estudo que possuem eCR implantadas, a grande maioria (90%) possui apenas uma equipe, 8% possuem de duas a cinco equipes e apenas 2% possuem 10 ou mais equipes, o que se justifica pelo fato de a legislação limitar o quantitativo máximo de eCR a serem credenciadas e financiadas pelo MS. Das equipes implantadas, 49% funcionam há dois ou três anos, tendo iniciado suas atividades entre 2013 e 2014, justamente no período em que o MS desenvolveu um maior número de estratégias de apoio à implementação (Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Portal da Saúde. Relatórios de Gestão da Secretaria de Atenção à Saúde. Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2N5dU11 >. Acesso em: 24 jul. 2018.
https://bit.ly/2N5dU11...
).

Para comparar as opiniões dos gestores municipais quanto aos determinantes da implementação do eCR, algumas perguntas foram repetidas em ambos os questionários (aderentes e não aderentes). Os percentuais das respostas estão descritos nos Gráficos 1 e 2.

Gráfico 1
Facilitadores da implementação do Consultório na Rua

Gráfico 2
Barreiras à implementação do Consultório na Rua

Naturalmente, as barreiras, em boa medida, são as negativas dos facilitadores listados, porque a presença ou inexistência de um determinado fator pode contribuir ou dificultar o processo de implementação, embora não necessariamente essa contraposição é sempre exata na percepção dos respondentes.

Para auxiliar a discussão dos resultados fundamentada na literatura de implementação de políticas públicas (Cavalcante, 2011CAVALCANTE, P. Descentralização de políticas públicas sob a ótica neoinstitucional: uma revisão de literatura. Revista de Administração Pública-RAP, Rio de Janeiro, v. 45, n. 6, p. 1781-1804, 2011.; Howlett, Ramesh; Perl, 2013HOWLETT, M.; RAMESH, M.; PERL, A. Política pública, seus ciclos e subsistemas. Rio de Janeiro: Campus, 2013.; Lima; D’Ascenzi, 2013LIMA, L. L.; D’ASCENZI, L. Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 21, n. 48, p. 101-110, 2013.; Lotta, 2015LOTTA, G. S. Burocracia e implementação de políticas de saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.; Struyk, 2007STRUYK, R. J. Factors in successful program implementation in Russia during the transition: pilot programs as a guide. Public Administration and Development, Hoboken, v. 27, n. 1, p. 63-83, 2007.; Wu et al., 2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.), analisamos os resultados empíricos a partir das dimensões política e contextual, como também das características do programa e respectivas competências analíticas e operacionais subjacentes.

Primeiro, a presença de um contexto local favorável poderia contribuir para o êxito da implementação, assim, acreditava-se que a existência de outros serviços direcionados à população em situação de rua33Esses serviços são predominantemente de Abordagem Social e os Centros Pop, mas os respondentes também citaram os abrigos, albergues, casas de passagem, hotel social, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas)., nos municípios, estaria relacionada a uma maior implantação das eCR. Tal suposição foi confirmada pela pesquisa, uma vez que o percentual de municípios que possuem esses serviços foi maior entre aqueles que possuem eCR implantadas, 89% contra 63%. Essa maior predisposição em aderir pode ser explicada pela sensibilidade das prefeituras em relação ao tema e/ou também pelo nível da gravidade do problema no município.

Entre os municípios respondentes que não possuem eCR implantadas, apenas sete (10%) possuem alguma equipe específica para o cuidado em saúde da população em situação de rua não credenciada pelo MS. Os motivos apontados pela não adesão envolvem, de modo geral, barreiras de capacidade operacional (Wu et al., 2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.), como a autorização lenta por parte do MS, que tende a gerar frustrações e perda de interesse no nível local.

Ainda na dimensão contextual e política, cerca de 8% dos municípios que possuem eCR implantadas indicaram a priorização das necessidades de saúde da população em situação de rua pela gestão municipal como facilitadora para o processo de implementação, enquanto isso, entre os que não possuem eCR implantadas, 60% acreditam que a priorização se configura como facilitador.

A variável ausência de apoio ou falta de conhecimento da população em geral acerca do programa parece ter mais interferência negativa sobre o processo de implementação do que o apoio generalizado do público o influenciaria positivamente. O resultado converge com o achado de Flint (2014FLINT, S. S. How bipartisanship and incrementalism stitched the child health insurance safety net (1982-1997). Health & Social Work, Oxford, v. 39, n. 2, p. 109-116, 2014.), que indica que a simpatia da população em relação ao público-alvo de uma política é determinante para as expansões sucessivas de seu financiamento e, logo, da sua evolução. Nesse caso específico, a fragilidade desse apoio percebida como uma importante barreira à execução do eCR fortalece a ideia de invisibilidade social das pessoas em situação de rua e sua baixa capacidade de articulação e pressão política que, consequentemente, gera negligência do poder público em relação às suas necessidades de saúde.

Nos determinantes relativos às características do programa e às competências analíticas envolvidas, os resultados também são interessantes. Primeiro, a incompreensão sobre a forma como diferentes serviços funcionam e a complexidade da sua formulação podem dificultar sua implantação. Do mesmo modo, a falta de clareza e a ambiguidade nos planos operacionais e falhas de comunicação são barreiras à implementação de políticas públicas (Lima; D’Ascenzi, 2013LIMA, L. L.; D’ASCENZI, L. Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 21, n. 48, p. 101-110, 2013.; Wu et al., 2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.). Não obstante, as respostas dos gestores locais sinalizam que a dificuldade em compreender as normativas referentes ao Consultório na Rua e a atual estrutura do programa não parecem ser barreiras tão importantes nos municípios que não possuem eCR implantadas. Apenas 9% destes indicaram a primeira, enquanto 19% caracterizaram a segunda como obstáculo à implementação. Curiosamente, entre os municípios que possuem eCR implantadas, 13% consideraram a dificuldade na compreensão das normativas e 30% apontaram a estruturação do programa como barreiras à sua implementação. Tal achado pode sugerir duas análises: reformulações nas normativas e na estruturação do programa poderiam promover apenas um pequeno impacto na adesão de mais municípios, visto que poucos dos que não possuem eCR implantadas percebem esses aspectos como negativos à implementação, porém seriam capazes de facilitar a execução do programa por aqueles que já aderiram.

No que tange às questões de caráter operacional, a variável de existência de profissionais de saúde disponíveis em compor as eCR guardou coerência quando apontada, respectivamente, como facilitadora ou barreira à implementação do Consultório na Rua, em ambos os grupos de municípios. Entre os aderentes, 55% apontaram a questão como facilitadora e 58%, como barreira, enquanto entre os demais, 42% consideraram-na como influência positiva à implementação e 48%, como negativa ao processo. Os dados encontrados coincidem com aqueles apresentados por Frumence et al. (2013FRUMENCE, G. et al. Challenges to the implementation of health sector decentralization in Tanzania: experiences from Kongwa district council. Glob Health Action, Abingdon, v. 6, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2LEsSdZ >. Acesso em: 18 ago. 2016.
http://bit.ly/2LEsSdZ...
) que, em estudo sobre a descentralização de serviços de saúde, constataram que a quantidade insuficiente e a baixa qualidade dos profissionais são impeditivos ao sucesso da implementação.

Ainda nas capacidades operacionais, a organização do aparato administrativo é citada na literatura como variável interveniente na implementação (Howlett; Ramesh; Perl, 2013HOWLETT, M.; RAMESH, M.; PERL, A. Política pública, seus ciclos e subsistemas. Rio de Janeiro: Campus, 2013.). No caso do Consultório na Rua, o ônus à estrutura organizacional do município para implementação do programa mostrou-se mais relevante como barreira do que como facilitador para o processo, principalmente entre os municípios que não possuem eCR implantadas, o que pode ser considerado como uma das razões para a não adesão ao programa. Enquanto 30% dos municípios que aderiram ao eCR acreditam que isso é um obstáculo, esse percentual sobe para mais de 50% entre os aderentes. Essa evidência converge com a perspectiva de barreira à implementação descrita por Wu et al. (2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.), como a má estrutura de gestão.

Mais especificamente no processo de descentralização das políticas sociais no Brasil, a literatura argumenta que o legado deixado por políticas prévias como um fator importante no processo de descentralização das políticas de saúde (Arretche, 2004ARRETCHE, M. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 17-26, 2004.; Palotti; Costa, 2011PALOTTI, P. L. M; COSTA, B. L. D. Relações intergovernamentais e descentralização: uma análise da implementação do SUAS em Minas Gerais. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 39, p. 211-235, 2011.; Pinheiro Filho; Sarti, 2012PINHEIRO FILHO, F. P.; SARTI, F. M. Falhas de mercado e redes em políticas públicas: desafios e possibilidades ao Sistema Único de Saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 11, p. 2981-2990, 2012.). Analogamente, poder-se-ia supor que a existência de uma rede de cuidados presente no município, voltada para a população em situação de rua, como experiência pregressa na implantação de serviços direcionados a esse grupo, seria positiva à implementação do Consultório na Rua. As respostas dos questionários possibilitam confirmar esse argumento, uma vez que 75% dos municípios que aderiram ao programa e 67% dos que não aderiram identificaram essa questão como facilitadora à implementação. É interessante observar que entre os municípios que não possuem eCR implantadas, mais do que o dobro assinalou a presença de uma rede de cuidados como contribuinte para o processo de implementação do Consultório na Rua, em relação aos que classificaram sua ausência como obstáculo. Desse resultado, pode-se depreender que a ausência de outros serviços voltados à população de rua não parece ser uma razão tão contundente para justificar a não adesão ao programa.

No que tange às receitas e despesas, conforme bem ressaltado pela teoria (Howlett; Ramesh; Perl, 2013HOWLETT, M.; RAMESH, M.; PERL, A. Política pública, seus ciclos e subsistemas. Rio de Janeiro: Campus, 2013.; Struyk, 2007STRUYK, R. J. Factors in successful program implementation in Russia during the transition: pilot programs as a guide. Public Administration and Development, Hoboken, v. 27, n. 1, p. 63-83, 2007.; Wu et al., 2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.), a questão do financiamento federal para o custeio do programa mostrou-se um fator central na implementação local dos Consultórios na Rua, pois a maioria dos gestores municipais concorda que a provisão de recursos federais tende a facilitar a adesão, mas também, quando insuficiente ou inadequado, pode constituir-se como uma barreira. Esse resultado é reforçado também quando gestores apresentam sua percepção quanto às razões da não adesão ao eCR (Gráfico 3), haja vista que a maioria dos municípios, dos dois grupos, designou um financiamento federal adequado como facilitador e um financiamento federal inadequado como barreira à implementação do programa. No entanto, o percentual de municípios que considerou a inadequação como óbice foi maior entre os que ainda não aderiram. Por esse motivo, pode-se supor que o valor repassado pelo MS aos municípios, referente ao custeio das eCR, não se configura como estímulo à implementação do programa.

Gráfico 3
Razões para não implantação das eCR

Confirmando a tendência já mencionada, a organização do aparato administrativo mostrou-se relevante como razão para a não implantação das eCR. Enquanto 45% dos respondentes indicaram o alto ônus à estrutura organizacional do município, 38% apontaram a indisponibilidade dos profissionais em compor as equipes como justificativas para a não adesão ao programa. Na mesma direção, a inexistência de uma rede de cuidado voltada à população em situação de rua também foi apontada como uma das razões para os municípios não aderirem (32%). Embora cerca de um terço dos gestores ter assinalado essa razão, percebe-se que a presença de serviços direcionados ao grupo populacional em voga é superior em municípios que possuem eCR implantadas, sugerindo interação entre esses dois fatores. Por outro lado, a não priorização das necessidades de saúde da população em situação de rua pela gestão municipal e a ausência de apoio/falta de conhecimento da população em geral para a implementação do programa foram registradas por apenas 14% dos respondentes. A baixa priorização de um determinado projeto e/ou a presença de interesses conflitantes entre atores fundamentais no processo de implementação são elencadas por Wu et al. (2014WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.) como responsáveis por retardar ou mesmo por boicotar a implementação, enquanto Howlett, Ramesh e Perl (2013HOWLETT, M.; RAMESH, M.; PERL, A. Política pública, seus ciclos e subsistemas. Rio de Janeiro: Campus, 2013.) apontam o contexto social, relacionado ao apoio do público à política ou ao programa, influente no policymaking.

Para esses autores a compreensão da política por parte dos executores é indutora para a implementação. Em conformidade com tal premissa, a dificuldade de compreensão das normativas concernentes ao Consultório na Rua e a sua estrutura atual foram citados como causas para a não implantação das eCR, por, respectivamente, 4% e 16% dos respondentes. Esse dado mantém coerência com o fato de que poucos desses municípios indicaram a dificuldade em compreender as normativas referentes ao Consultório na Rua e a atual estrutura do programa como barreiras a sua implementação. Todavia, é importante ponderar que essas três últimas variáveis podem também ser compreendidas como críticas à gestão local, seja por competências analíticas e operacionais ou em função de apoio da população e envolvimento da burocracia. Portanto, é natural que os respondentes citem menos essas razões.

Ademais, 21% dos municípios indicaram outras razões como causas para a não implantação das eCR. Dentre elas, as mais citadas foram ausência de população de rua nos municípios e demora no credenciamento das equipes pelo MS.

Em síntese, essa seção explorou as visões dos gestores locais acerca da implementação do programa, passados quatro anos do seu início. Observa-se uma convergência na visão de multicausalidade e complexidade desse processo, em linha com a perspectiva dos atores envolvidos no âmbito federal e também com a literatura. Nesse sentido, as respostas aos questionários indicam, mesmo com esperadas diferenças entres os municípios aderentes ao eCR e os que não implementaram, a relevância de um contexto favorável, do legado de políticas prévias e de fatores relacionadas às competências e às capacidades das prefeituras como determinantes à participação no programa Consultório na Rua.

Considerações finais

O artigo teve como principal finalidade analisar os fatores determinantes da implementação de políticas pública a partir de um caso específico na área da saúde, o Consultório na Rua (eCR). Seguindo a lógica da maioria das políticas e programas sociais da saúde no país, a implementação do eCR ocorreu de maneira descentralizada, dependendo, portanto, da adesão discricionária dos municípios, prerrogativa que decorre da autonomia conferida aos entes federados.

Apesar dos esforços do governo federal no sentido de gerar comportamento cooperativo em relação ao programa, entre 2012 e dezembro de 2015, cerca de 30% dos municípios elegíveis à implementação do Consultório na Rua possuíam equipes. Para analisar a relativa baixa adesão, o trabalho procurou descrever e investigar empiricamente os fatores facilitadores e as barreiras ao processo em face ao debate teórico contemporâneo.

Como resultado, a análise documental e as entrevistas com os gestores do governo federal indicaram que a maior expansão do eCR ocorreu entre 2013 e 2014, época em que houve intenso monitoramento da implantação das equipes por meio do Programa Crack, é Possível Vencer, e o incremento do recurso federal destinado ao custeio mensal do Consultório na Rua. Por outro lado, o ritmo de expansão desacelerou em 2015, exatamente no momento em que ocorreu o contingenciamento de recursos no governo federal.

Na perspectiva dos gestores municipais, a pesquisa constatou que são variadas as razões que levam a não adesão ao eCR e que muitas delas convergem com os determinantes descritos na literatura. Dentre esses fatores, destacam-se a não priorização das necessidades de saúde da população em situação de rua pela gestão municipal; o baixo apoio da população em geral ao programa; a estrutura do programa e a compreensão das normativas a ele pertinentes; o ônus trazido à estrutura organizacional do município; a disponibilidade de profissionais para compor as eCR e à existência de outros serviços voltados ao cuidado da população em situação de rua; bem como o financiamento do governo federal para o custeio das equipes.

Vale frisar que a presença de uma rede de cuidado à população em situação de rua foi indicada pela maior parte dos municípios participantes como facilitadora para a implementação do Consultório, robustecendo a compreensão de que é fundamental a articulação de diferentes setores para tratar das questões apresentadas por esse grupo populacional. Foi verificado ainda que a existência dessa rede é bem maior nos municípios que possuem eCR implantadas. Ademais, a sensibilização de políticos, gestores e sociedade acerca das necessidades do povo da rua também foi citada como relevante para gerar a priorização do desenvolvimento de ações voltadas a esse público, incluindo a implantação de eCR.

De todos os determinantes para a implementação do programa assinalados pelos municípios participantes, sem dúvida, o que mais se destacou foi a questão do financiamento do governo federal para o custeio das eCR. Depreende-se dos dados que, apesar de ter sofrido ajustes, o financiamento é considerado inadequado na visão dos executores, sendo, inclusive, apontado pela maioria dos municípios que não possuem equipes implantadas (63%) como razão da não adesão ao programa.

Em suma, as visões distintas acerca do mesmo programa e de seus determinantes reforçam a importância de se colocar no lugar dos executores da ponta para melhor diagnosticar os problemas e desafios da implementação descentralizada. Dessa forma, a pesquisa sinaliza que governo federal precisa, constantemente, considerar a heterogeneidade política, socioeconômica e as capacidades dos governos municipais, de modo a gerar cooperação interfederativa e, por conseguinte, êxito na efetividade de suas políticas públicas.

Por fim, cabe salientar o caráter exploratório desta pesquisa, que apresenta algumas limitações, sobretudo, de cunho metodológico, haja vista o curto tempo de existência do programa e as dificuldades relativas ao número reduzido de gestores federais e de acesso aos gestores municipais. Não obstante, o trabalho traz contribuições originais e importantes para se compreender processos de implementação de políticas públicas que demandam intensa necessidade de cooperação em cenários complexos e dinâmicos. Tais resultados podem também apoiar o policymaking desse programa como de outros voltados às populações específicas vulneráveis, que carecem de atenção do poder público, bem como de voz, direitos e capacidade de organização.

Referências

  • ARRETCHE, M. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 17-26, 2004.
  • BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 out. 1988. Seção 1, p. 1. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1eolror >. Acesso em: 10 jun. 2015.
    » https://bit.ly/1eolror
  • BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 20 set. 1990. Seção 1, p. 18055. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2LBrgBw >. Acesso em: 10 jun. 2015.
    » http://bit.ly/2LBrgBw
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 24 out. 2011. Seção 1, p. 48-55.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Manual sobre o cuidado à saúde junto a população em situação de rua. Brasília, DF, 2012a. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1L6VqbF >. Acesso em: 24 jul. 2018.
    » https://bit.ly/1L6VqbF
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2012. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 26 jan. 2012b. Seção 1, p. 46-47.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 123, de 25 de janeiro de 2012. Define os critérios de cálculo do número máximo de equipes de Consultório na Rua (eCR) por Município. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 26 jan. 2012c. Seção 1, p. 48.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Caderno de atenção básica: saúde mental. Brasília, DF, 2013. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2lyQqVc >. Acesso em: 24 jul. 2018.
    » https://bit.ly/2lyQqVc
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.238, de 6 de junho de 2014. Fixa o valor do incentivo de custeio referente às Equipes de Consultório na Rua nas diferentes modalidades. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 9 jun. 2014. Seção 1, p. 43.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portal da Saúde. Relatórios de Gestão da Secretaria de Atenção à Saúde. Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2N5dU11 >. Acesso em: 24 jul. 2018.
    » https://bit.ly/2N5dU11
  • CAVALCANTE, P. Descentralização de políticas públicas sob a ótica neoinstitucional: uma revisão de literatura. Revista de Administração Pública-RAP, Rio de Janeiro, v. 45, n. 6, p. 1781-1804, 2011.
  • DALFIOR, E. T.; LIMA, R. C. D.; ANDRADE, M. A. C. Reflexões sobre análise de implementação de políticas de saúde. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 104, p. 210-225, 2015.
  • FLINT, S. S. How bipartisanship and incrementalism stitched the child health insurance safety net (1982-1997). Health & Social Work, Oxford, v. 39, n. 2, p. 109-116, 2014.
  • FRUMENCE, G. et al. Challenges to the implementation of health sector decentralization in Tanzania: experiences from Kongwa district council. Glob Health Action, Abingdon, v. 6, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2LEsSdZ >. Acesso em: 18 ago. 2016.
    » http://bit.ly/2LEsSdZ
  • GIACCHINO, S.; KAKABADSE, A. Successful policy implementation: the route to building self-confident government. International Review of Administrative Sciences, Thousand Oaks, v. 69, n. 2, p. 139-160, 2003.
  • HILL, H. C. Understanding implementation: street-level bureaucrats’ resources for reform. Journal of Public Administration Research and Theory, Oxford, v. 13, n. 3, p. 265-282, 2003.
  • HOWLETT, M.; RAMESH, M.; PERL, A. Política pública, seus ciclos e subsistemas. Rio de Janeiro: Campus, 2013.
  • JANSSON, E.; FOSSE, E.; TILLGREN, P. National public health policy in a local context: implementation in two Swedish municipalities. Health Policy, Amsterdam, v. 103, n. 2-3, p. 219-227, 2011.
  • LIMA, L. L.; D’ASCENZI, L. Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 21, n. 48, p. 101-110, 2013.
  • LOTTA, G. S. Burocracia e implementação de políticas de saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.
  • PALOTTI, P. L. M; COSTA, B. L. D. Relações intergovernamentais e descentralização: uma análise da implementação do SUAS em Minas Gerais. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 39, p. 211-235, 2011.
  • PINHEIRO FILHO, F. P.; SARTI, F. M. Falhas de mercado e redes em políticas públicas: desafios e possibilidades ao Sistema Único de Saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 11, p. 2981-2990, 2012.
  • PRATES, J. C.; PRATES, F. C.; MACHADO, S. Populações em situação de rua: os processos de inclusão e exclusão precárias vivenciados por esse segmento. Revista Temporalis, Niterói, v. 11, n. 22, p. 191-215, 2012.
  • PRESSMAN, J. L.; WILDAVSKY, A. Implementation: how great expectations in Washington are dashed in Oakland. 3. ed. Los Angeles: University of California Press, 1973.
  • STRUYK, R. J. Factors in successful program implementation in Russia during the transition: pilot programs as a guide. Public Administration and Development, Hoboken, v. 27, n. 1, p. 63-83, 2007.
  • VARANDA, W.; ADORNO, R. C. F. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, p. 56-69, 2004.
  • WU, X. et al. Guia de políticas públicas: gerenciando processos. Brasília, DF: ENAP, 2014.

  • 1
    FormSUS consiste em um serviço de uso público, disponibilizado pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde - DATASUS −, para a criação de formulários na web.
  • 2
    O Programa Crack, é Possível Vencer é um programa que tem como objetivo ampliar a oferta de tratamento de saúde aos usuários de drogas, elevar as ações de prevenção ao uso e enfrentar as organizações criminosas e o tráfico de drogas. O programa está estruturado em três eixos de atuação: prevenção, cuidado e autoridade.
  • 3
    Esses serviços são predominantemente de Abordagem Social e os Centros Pop, mas os respondentes também citaram os abrigos, albergues, casas de passagem, hotel social, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2017
  • Revisado
    13 Maio 2018
  • Aceito
    26 Maio 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br