Farmacovigilância: uma estratégia biopolítica

Pharmacovigilance: a biopolitical strategy

Resumo

Este ensaio se propõe a problematizar o papel da farmacovigilância como uma estratégia de governo da vida humana. Na introdução é apresentada a hipótese que conduz nossas reflexões: foi à sombra de tragédias envolvendo medicamentos que se desenvolveram disciplinas e formaram-se saberes que sustentam o governo da vida em um Estado que adota a saúde como dever e o medicamento como um de seus mais valiosos recursos. No artigo apresentado, à luz das obras do filósofo Michel Foucault, tenta-se pensar a farmacovigilância como uma tecnologia de engrenagem entre medicamento, corpo e poder. Na primeira parte, discutimos o panoptismo inaugurado por Jeremy Bentham no século XVIII, na tentativa de sinalizar que a inspeção sobre o uso e efeitos dos medicamentos iniciado no século XIX encontrou seu apoio no modelo arquitetônico por ele desenvolvido. Na segunda parte, apresentamos a farmacovigilância como desdobramento de uma modalidade de política da vida investigada por Foucault: a biopolítica. Na terceira parte, discutimos a institucionalização da farmacovigilância e seus efeitos no exercício dos profissionais de saúde e na vida dos usuários de medicamentos. Na quarta e última parte, discutimos a positividade de um poder que normaliza e regula o corpo populacional, o biopoder que, agenciado à farmacovigilância, permite a visibilidade das práticas médicas e o aparecimento do corpo como lugares privilegiados para a demonstração da eficácia e segurança dos medicamentos, anunciando que o corpo é uma realidade biopolítica.

Palavras-chave:
Medicamento; Farmacovigilância; Biopolítica

Abstract

This essay intends to problematize the role of pharmacovigilance as a strategy for governing human life. In the introduction we present the hypothesis that leads our reflections: that it was in the wake of tragedies involving drugs that disciplines were developed and the knowledge that sustain the government of life in a State that adopts health as a duty and medicine as one of its most valuable resources was formed. In the presented article, in the light of the works of the philosopher Michel Foucault, an attempt is made to think of pharmacovigilance as a gear technology between medicine, body, and power. In the first part, we discuss the panopticism inaugurated by Jeremy Bentham in the eighteenth century, in an attempt to signal that the inspection on the use and effects of drugs initiated in the nineteenth century found its support in the architectural model he developed. In the second part, we present pharmacovigilance as an unfolding of a modality of life politics investigated by Foucault: biopolitics. In the third part, we discuss the institutionalization of pharmacovigilance and its effects on the exercise of health professionals and the lives of medication users. In the fourth and final part, we discuss the positivity of a power that normalizes and regulates the population body, the biopower that, acting through pharmacovigilance, allows the visibility of medical practices and the appearance of the body as privileged places for demonstrating the efficacy and safety of drugs, announcing that the body is a biopolitical reality.

Keywords:
Medicines; Pharmacovigilance; Biopolitics

Introdução

Paciente do sexo feminino de 48 anos apresentou enterorragia com dor abdominal constante em julho de 2011, sendo encaminhada para um hospital especializado em Oncologia, onde teve diagnóstico de adenocarcinoma de cólon com presença de pólipo séssil e lesão vegetativa a 50 cm da margem anal e, além disso, apresentava metástase hepática. Foi iniciado o tratamento quimioterápico em agosto de 2011, sendo realizado um total de 8 ciclos com capecitabina 1.000 mg/m2(12/12hs), com duração de 14 dias a cada 3 semanas, e oxaliplatina 130 mg/m2, administrada por infusão intravenosa no D1 de cada ciclo de quimioterapia. Apesar do risco oriundo do acometimento hepático, não foi preconizado nenhum ajuste de dose para este caso no início da quimioterapia, e a paciente recebeu uma dose diária de 3.300 mg de capecitabina. A partir do primeiro ciclo, em entrevista com o farmacêutico, foi verificado o surgimento de lesões cutâneas características da síndrome mão-pé (SMP), sendo observado eritema nas palmas das mãos e dificuldade de locomoção. A paciente continuou o tratamento e foi detectado: evolução das lesões com visível acometimento ungueal e aumento da área afetada com edema, intensificação da cor vermelha observada, formação de blísteres nos pés e persistência na dificuldade do uso das extremidades, principalmente dos pés que demandam maior carga física diária. O quadro foi avaliado como grau de severidade 3 e de causalidade definida tendo como base a pontuação obtida no AN (+9). Nesse momento foi sugerida, para a equipe médica, a prescrição de gel contendo um composto queratolítico, como a ureia. A partir do quarto ciclo, além dos sintomas cutâneos, desordens gastrointestinais, com quadros de diarreia de grau de severidade 4, também se tornaram frequentes. A relação causal da diarreia pelo AN foi considerada provável. Desta forma, foi proposto o ajuste da dose para 2.300 mg de capecitabina e observou-se melhora dos sintomas e remissão gradativa das erupções cutâneas, não sendo observada recidiva até o fim do tratamento. Durante o período de monitoramento, além dos quimioterápicos antineoplásicos, a paciente fez uso dos seguintes medicamentos: dexametasona, omeprazol e ondansetrona. Não foi identificada nenhuma interação medicamentosa que pudesse provocar as RAM observadas no caso. (MARTINS, T. L. et al. Reação adversa induzida por capecitabina: a importância da farmacovigilância. Revista Brasileira de Farmácia Hospitalar e Serviços de Saúde, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 24-26, 2013., p. 25)

Deparar-se com relatos de casos sobre reações adversas a medicamentos, para o leitor contemporâneo, não é um fenômeno incomum. Todavia, o aparecimento do corpo no cenário das tragédias decorrentes da exposição a medicamentos é datado de um período anterior ao do caso anteriormente mencionado. O surgimento do corpo como lugar privilegiado para a demonstração da eficácia ou ineficácia, segurança ou perigo dos medicamentos, nada mais é do que o anúncio de que o corpo, uma realidade biopolítica (Foucault, 2008FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.), encontrou nos medicamentos um dispositivo de regulação. O aparecimento do corpo associado ao medicamento é anúncio de uma modalidade de encontro entre a biologia e a política, entre o mercado e o bios.

Em 29 de janeiro de 1848, uma jovem de 15 anos, Hannah Greener, na cidade Winlaton, Inglaterra, recebeu um anestésico geral antes de uma pequena intervenção médica: o tratamento de uma unha encravada (Routledge, 1998ROUTLEDGE, P. 150 years of pharmacovigilance. The Lancet, London, v. 351, n. 9110, p. 1200-1201, 1998.). O agente anestésico empregado foi o clorofórmio, que tinha sido introduzido um ano antes na prática clínica por um professor de obstetrícia, James Simpson. Infelizmente, Hannah Greener morreu durante a exposição ao clorofórmio por causa de uma fibrilação ventricular. Naquela ocasião, por conta das preocupações desencadeadas junto à população e aos profissionais médicos sobre a segurança da anestesia, a revista The Lancet constituiu uma comissão de médicos para que estes relatassem óbitos relacionados a anestesia. Em 1893 a revista publicou tais achados (Report…, 1893REPORT of the Lancet Commission appointed to investigate the subject of the administration of chloroform and other anaesthetics from a clinical standpoint. The Lancet, London, v. 141, n. 3636, p. 1112-1118, 1893.), porém não conseguiu, na ocasião, estabelecer o quanto de clorofórmio era seguro, mas chamou a atenção para o papel do “erro” humano em desfechos com óbitos após o emprego de anestésicos (Jones, 2001JONES, R. S. Comparative mortality in anaesthesia. British Journal of Anaesthesia, London, v. 87, n. 6, p. 813-815, 2001.). Pois bem, há 170 anos, poderíamos dizer que a sociedade presenciou o evento precursor de um sistema de notificação de problemas relacionados ao uso de medicamentos.

Na busca de estabelecer a responsabilidade, a causa do óbito, vimos assistir a partir do caso de Hannah Greener um policiamento médico estrito: a tomada de informações relacionadas à história prévia do indivíduo e de sua família às reações de sensibilidade a medicamentos; uma intensificação no controle da qualidade na fabricação dos produtos, em seu armazenamento e transporte; no controle da qualidade de suas características físico-químicas e farmacológicas; o cuidado ao modo como será administrado ao paciente; o cálculo da dose; a preocupação com o meio onde será administrado; o monitoramento dos efeitos após a administração; a elaboração de protocolos para o manejo das possíveis reações adversas oriundas desta exposição; o registro minucioso destas reações, o tempo em que começam a aparecer, o tempo que permanecem, os sinais e sintomas verificados, os órgãos e sistemas afetados; o encaminhamento destes registros, a análise e discussão dos casos, a elaboração de medidas para evitá-los, o estabelecimento da sua segurança, a mensuração do risco; a publicação dos casos aos profissionais de saúde e as autoridades sanitárias, e finalmente, a tomada de decisões médicas, legais, administrativas, técnicas e sanitárias.

A inspeção sobre o uso e efeitos dos medicamentos começou a funcionar com constância na metade do século XIX. O olhar dos profissionais de saúde se tornou alerta em todo o lugar onde estivesse o medicamento. Comandado por médicos, surgiu um corpo sanitário composto por farmacêuticos, enfermeiros e seus auxiliares, corpos estes atentos no hospital, nos ambulatórios, nos lugares onde o medicamento era manufaturado, nos processos de transporte e armazenamento, nas farmácias hospitalares, nas enfermarias, no leito do paciente, tudo isto para garantir a segurança daqueles que seriam expostos aos fármacos. Todos os dias, este exército sanitário passou a procurar possíveis incidentes, recolhendo formulários de notificações, olhando o prontuário do paciente na busca de potenciais problemas, verificando se eram cumpridas as normas de segurança, se o paciente tinha queixas, se apresentava sinais de reações alérgicas. Estávamos diante de um novo sistema de vigilância, a dos fármacos pós-comercialização. Nascia a Farmacovigilância.

O objetivo deste artigo é discutir como a farmacovigilância se constituiu em uma estratégia de governo da vida das populações humanas, e de como, à sombra de tragédias envolvendo o uso de medicamentos, desenvolveram-se disciplinas e formaram-se saberes que sustentam esse governo. Com esse propósito, adotamos como método escutarmos a história, na tentativa de desmontarmos as peças que constituíram a atividade de profissionais de saúde em notificar e investigar reações adversas, na pretensão de compreender o que as uniu. À luz da obra de Foucault tais peças, quando analisadas, nos possibilitam compreender melhor as implicações da engrenagem entre medicamento e corpo. Tal problematização foi conduzida à luz do conceito de biopoder, isto é, “o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder” (Foucault, 2008FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 3).

O panoptismo como modelo de desenvolvimento da farmacovigilância

Uma leitura crítica de materiais disponibilizados sobre a vigilância das reações adversas a medicamentos, sejam aqueles elaborados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (WHO, 2002WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The importance of pharmacovigilance: safety monitoring of medicinal products. Geneva: WHO, 2002.) ou pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (Brasil, 1999BRASIL. Lei nº 9.872, de 26 de janeiro de 1999. Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 jan. 1999. Seção 1, p. 1.), nos remete a um conceito surgido um século antes do episódio do óbito de Hannah Greener. Trata-se do Panóptico de Bentham (2008BENTHAM, J. O panóptico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.), uma figura arquitetônica que tinha como princípio a visibilidade, em que aquele que é visto não vê, é objeto de informação, assegurando o funcionamento automático do poder.

Se ainda fosse preciso qualquer coisa para mostrar quão distante este plano está de qualquer conexão necessária com medidas severas e coercivas, não poderia haver consideração mais forte do que a da vantagem com a qual ele se aplica a hospitais, estabelecimentos cujo único objetivo é o alívio dos aflitos, os quais aí chegaram a seu próprio pedido. Apegado com nunca ao princípio da onipresença, tomo como assentado, caso o estabelecimento seja grande o suficiente para fazer isso valer a pena, que toda a tribo dos curadores médicos - o cirurgião, o boticário, a parteira, aos quais eu gostaria de acrescentar até mesmo o médico - encontrará no alojamento-de-inspeção e em quaisquer apartamentos que puderem ser anexados acima dele sua constante residência. Aqui, o médico e o boticário podem saber com certeza que a receita que um prescreveu e o outro a executou foi administrada no tempo certo e na maneira exata assim prescritos. […] Queixas dos doentes podem ser recebidas no instante da ocorrência de sua causa, real ou imaginária; embora se possa esperar, na medida em que a má conduta será seguida por uma imediata repreensão, que essas queixas sejam relativamente raras. (Bentham, 2008BENTHAM, J. O panóptico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008., p. 170)

Em sua obra O panótico, datado de 1785, Bentham (2008BENTHAM, J. O panóptico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.) deixa bem claro a seus leitores de que não se trata simplesmente de uma nova arquitetura para as prisões, mas de um dispositivo polivalente de vigilância, uma arquitetura que possibilita a visibilidade das atividades humanas. Os espaços passaram a ser banhados de luz, e essa luz os aprisiona. Aquele que vigia não é visto, está escondido, olhando-nos mesmo quando não esteja nos vendo. A potência do panóptico de Jeremy Bentham é atingir um máximo de vigiados com um mínimo de vigilantes, imitando a Deus. Assim, a prisão é um hospital, e o hospital, uma prisão. Ambos têm a mesma arquitetura. A partir daí é compreensível o aparecimento de saberes, das interdisciplinaridades, do monitoramento das condutas curativas e da produção de subjetividades, a partir da vigilância dos procedimentos de cuidado nos hospitais.

As práticas de vigilância hospitalar originaram um sistema de vigilância sanitária: coleta, organização, armazenamento de dados sobre pessoas, procedimentos e tecnologias. Uma vigilância das práticas profissionais e um microcontrole até então inimaginável. É o que Foucault denominou de poder disciplinar. Para Jeremy Bentham, as vantagens do sistema são:

1) uma transparência universal; 2) a possibilidade de inspecionar a toda hora que for conveniente; 3) a opção, por parte dos inspetores, de serem visíveis ou invisíveis; 4) a facilidade de estabelecer, entre as categorias, separações detalhadas […]; 5) os meios de ter as classes perigosas e difamadas em reclusão; 6) os meios para impedir a entrada de objetos proibidos, tais como bebidas alcoólicas, pólvora, armas etc. (Bentham, 2008BENTHAM, J. O panóptico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008., p. 164)

Dois séculos já se passaram e é possível afirmarmos que o Panóptico de Bentham se trata de um formidável plano de transformação da vida em sociedade pelo controle, algo que não é ficção. Basta olharmos, na contemporaneidade, a disposição dos leitos dos pacientes, sua identificação, as divisões das enfermarias por disciplinas médicas, a criação dos prontuários, os registros médicos das intervenções, os exames e seus resultados, a evolução clínica, o registro das prescrições e dos possíveis eventos adversos. Um dos efeitos mais importantes do Panóptico é induzir-nos a um estado de permanente vigilância para assegurar o poder, mas igualmente a produção do saber.

A questão da vigilância dos efeitos dos medicamentos é tornar possível a formação de um saber e a majoração de um determinado poder, que se reforçam mutuamente e juntos atravessaram um limiar tecnológico. O hospital, graças a sua intervenção fármaconormalizante, tornou possível o conhecimento acerca dos efeitos das farmacoterapias, fortalecendo sempre mais o crescimento do poder. Foi a partir desse laço, específico de um sistema tecnológico ancorado no medicamento, que se formaram posteriormente a farmácia clínica e a atenção farmacêutica. “Duplo processo, portanto: arrancada epistemológica a partir de um afinamento das relações de poder; multiplicação dos efeitos de poder graças à formação e à acumulação de novos conhecimentos” (Foucault, 2004FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004., p. 185).

A extensão do exercício profissional do farmacêutico se inscreve num amplo processo histórico, porém temos que reconhecer que foi ao lado de episódios fatais como o óbito de Hannah Greener pelo clorofórmio na Inglaterra, os das 107 mortes associadas ao dietilenoglicol em 1937 nos Estados Unidos da América (Geiling; Cannon, 1938GEILING, E. M. K.; CANNON, P. R. Pathologic effects of elixir of sulfanilamide (diethylene glycol) poisoning. JAMA, Chicago, v. 111, n. 10, p. 919-926, 1938.), as centenas de casos de focomelia associadas ao uso da talidomida na gravidez reportados a partir de 1961 (McBride, 1961MCBRIDE, W. G. Thalidomide and congenital abnormalities. The Lancet, London, v. 278, n. 7216, p. 1358, 1961.) em diversos países, e ao lado de outros eventos trágicos observados ainda hoje pela exposição a medicamentos, é que se desenvolveram e se formam discursos com status de ciência; mas a mais importante notoriedade da prescrição de medicamentos é que ela põe em funcionamento um poder que age diretamente e fisicamente sobre os homens. Um poder que é capaz de alterar seus comportamentos, regular sua fisiologia, sua performance, prolongar ou reduzir a vida. Um poder tecnológico, o poder da farmacologização.

A regulação farmacológica do corpo na medicina em geral tem como objetivo um estado normalizado. Exposto a medicamentos, o corpo serve de engrenagem entre as práticas normalizantes e os saberes produzidos. Nos estudos experimentais que buscam avaliar a eficácia e a segurança, observaremos um tipo especializado de interrogatório regulamentado, que obedecerá a procedimentos bem definidos, com um tamanho determinado de uma população a ser exposta, com critérios de inclusão e exclusão de indivíduos, com definição dos instrumentos, da dose a ser administrada, das vias de administração, com registro dos efeitos, com definição dos testes estatísticos de validação dos resultados. Trata-se de uma maneira particular de se obter a verdade sobre os medicamentos, sobre o corpo que foi exposto, sobre a doença a ser tratada. Mas trata-se também de uma maneira de se desenvolver e revigorar uma rede de profissões que auxiliam um controle social. O poder é disseminado em discursos e em tecnologias que atuam diretamente sobre indivíduos livres, modificando suas decisões, sua criatividade e o modo como se relacionam entre si, com seus corpos e o corpo dos outros.

O equivalente histórico da farmacovigilância é, indiscutivelmente, a técnica inquisitorial. Revestida da função de “proteger, promover e defender a saúde”, a vigilância dos medicamentos tem suas ações voltadas para os riscos reais relacionados a sua exposição. De natureza regulatória, subsidiada por leis, para desempenhar suas funções, a farmacovigilância se articula com diversos campos do saber, entre os quais o técnico-científico, jurídico e administrativo. Ora, é característico do poder a descentralização de ações, promovendo a irradiação de seus efeitos. É portanto daí que as atividades de farmacovigilância sejam coordenadas por um centro ou um núcleo, e no Brasil não é diferente, já que estas são da responsabilidade de todas as esferas administrativas do país (Brasil, 1999BRASIL. Lei nº 9.872, de 26 de janeiro de 1999. Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 jan. 1999. Seção 1, p. 1.).

A biopolítica das populações e o uso de medicamentos

Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos pólos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos - tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. (Foucault, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal , 1988. v. 1., p. 130)

O que é evidente na análise realizada por Foucault sobre o poder é a existência de uma rede de micropoderes, articulada a distintos saberes, que atravessa toda estrutura social. Não se trata de um poder que parte do centro (o Estado) e que exerce seus efeitos em níveis mais baixos, ao contrário, ele parte das extremidades e se direciona ao nível central. É o que pode ser observado na temática das investigações sobre reações adversas, que aparece no leito do paciente e finaliza em um banco de dados gerenciado por um órgão central. As relações de poder, todavia, ultrapassam o nível central e se estendem por toda a sociedade.

Tanto em Vigiar e punir (Foucault, 2004FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.), quando faz uma análise do poder disciplinar, como em A vontade de saber (Foucault, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal , 1988. v. 1.), em que sinaliza o nascimento do biopoder, Foucault demonstra o equívoco de se pensar o poder como repressivo, que diz “não”, que impõe limitações. O poder disciplinar produz conhecimento e corpos submissos, o biopoder se encarrega da vida, daquilo que a ameaça, é um poder que se apropria dos processos biológicos para controlá-los e modificá-los. Se no poder disciplinar o corpo orgânico do indivíduo é alvo de intervenções médicas, no biopoder a população é o “novo corpo”, sobre o qual a medicina vai intervir. A biopolítica se ocupa da população, um corpo múltiplo a ser descrito, quantificado, comparado em suas taxas de natalidade e mortalidade, em suas causas de adoecimento, longevidade e migrações. Na biopolítica aparecem múltiplos saberes, como a Estatística, a Geografia, a Medicina Social, a Epidemiologia e a Farmacoepidemiologia. A espécie humana entrou no jogo das estratégias do Estado.

Como consequência desse biopoder, desse poder de promover a vida, desenvolveram-se tecnologias médicas cujo objetivo é normalizar a população. Os medicamentos, portanto, numa perspectiva foucaultiana, é uma tecnologia normalizadora que possibilita, sob certa medida, a regulação do corpo populacional. Essa regulação, segundo as investigações do autor, será realizada para o mercado, ou seja, uma biopolítica configurada pela economia de mercado e que concebe o corpo populacional, objeto de regulação e normalização, como suscetível a riscos. É a gestão dos riscos, a promoção da saúde dos seres vivos de uma população, que caracteriza essa nova modalidade de poder.

Na análise do fenômeno de vigilância dos efeitos dos medicamentos sobre o corpo, é preciso considerar o ano de 1942, quando foi elaborado na Inglaterra o famoso Plano Beveridge que foi modelo para a organização da saúde em diversos países depois da Segunda Guerra Mundial (Musgrove, 2000MUSGROVE, P. Health insurance: the influence of the Beveridge Report. Bulletin of the World Health Organization, Geneva, v. 78, n. 6, p. 845-846, 2000.). O que vimos se consolidar a partir daquele período foi o direito à saúde. O Plano é bem claro: o Estado tem o dever de promover a integridade física de seus governados. A saúde entrou no plano da macroeconomia, tornando-se fonte de despesas, de modo que a redistribuição econômica de uma nação levará em consideração as doenças e as maneiras como essas serão tratadas. A saúde se tornou um verdadeiro objeto de disputa política. Portanto, tomando o Plano Beveridge como referência, observamos nesse período a formulação de uma nova política do corpo. O corpo se tornou, a partir da metade do século XX, um dos objetivos principais da intervenção do Estado (Foucault, 2010FOUCAULT, M. Crise da medicina ou crise da antimedicina. Verve, São Paulo, n. 18, p. 167-194, 2010.).

Foi pois no momento em que a medicina assumia suas funções estatais de proteção do corpo como um dever do Estado, este corpo individual e coletivo, que a tecnologia médica experimentava progressos e tragédias. O avanço tecnológico, verificado na descoberta e síntese de moléculas que impactaram positivamente no duelo travado entre a medicina e as doenças, deu-se simultaneamente junto às iatrogenias associadas ao emprego de medicamentos. Não é necessário elencarmos as tragédias ocorridas na medicina para concluirmos que “a medicina mata, sempre matou e sempre se teve consciência disso” (Foucault, 2010FOUCAULT, M. Crise da medicina ou crise da antimedicina. Verve, São Paulo, n. 18, p. 167-194, 2010., p. 174). A questão é que não tínhamos, até a tragédia ocorrida com Hannah Greener, o registro de seus efeitos nocivos, não existiam investigações sobre o modo como eram administrados os medicamentos, a dose empregada, suas características físico-químicas, por exemplo. Ora, o que é provavelmente mais interessante não são os aspectos nocivos verificados, mas a iatrogenia positiva associada, ou seja, os efeitos nocivos associados não aos erros de diagnóstico, de indicação, de posologia, mas aos fundamentos racionais da medicina. Sabemos, por exemplo, que o uso de antimicrobianos ao longo dos anos desencadeou o surgimento de micro-organismos altamente resistentes; em outras palavras, o efeito positivo e terapêutico produziu uma perturbação do ecossistema individual e coletivo, de modo tal que nos encontramos, como espécie, sob grave ameaça. A ignorância médica deixou de ser perigosa e o perigo encontra sua força no próprio saber.

A institucionalização da farmacovigilância

A farmacovigilância se apoia num sistema de registro permanente: notificações espontâneas dos profissionais de saúde, particularmente prescritores, e notificações realizadas pela busca ativa de problemas suspeitos. O registro das reações adversas deve ser constante e centralizado. A relação de cada paciente com seu medicamento passa por uma instância de poder, pelo registro desta relação, pelas decisões que se tomam a partir de suas análises. Aqui é importante mencionar o Programa Internacional, criado em 1968 pela OMS, para detectar e quantificar as reações adversas a medicamentos, coordenado pelo centro colaborador do Uppsala Monitoring Centre, na Suécia, do qual o Brasil se tornou membro em 2001 (Brasil, 2001BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 696, de 7 de maio de 2001. Institui o Centro Nacional de Monitorização de Medicamentos (CNMM) sediado na Unidade de Farmacovigilância da Anvisa, tendo por finalidade a notificação, registro e avaliação das reações adversas dos medicamentos registrados pelo Ministério da Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 maio 2001. Seção 1, p. 18.; WHO, 2002WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The importance of pharmacovigilance: safety monitoring of medicinal products. Geneva: WHO, 2002.) - embora o estado do Ceará em 1996 já criava o primeiro Sistema Estadual de Farmacovigilância no Brasil (Arrais, 1996ARRAIS, P. S. D. Farmacovigilância: até que enfim no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, n. 49-50, p. 80-82, 1996.; Coelho; Arrais; Gomes, 1999COELHO, H. L. L.; ARRAIS, P. S. D.; GOMES, A. P. Sistema de farmacovigilância do Ceará: um ano de experiência. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 631-640, 1999.).

No Brasil, a Anvisa - criada em 1999 e com o ela a Unidade de Farmacovigilância (Unifarm) -, estabeleceu algumas etapas no processo de vigilância dos eventos ou problemas relacionados a medicamentos. As etapas são: (1) notificar; (2) analisar caso a caso; (3) identificar o evento; (4) investigar; (5) tomar decisões; e (6) comunicar. Importante observar que cada uma dessas etapas é composta por comandos de ordem, procedimentos e técnicas de obtenção e produção de conhecimentos.

A notificação é a submissão de qualquer evento adverso ou queixa à autoridade sanitária local, que por sua vez deve encaminhar esta notificação à autoridade sanitária nacional; esta deve então ser analisada o mais rápido possível. Daí a necessidade de que a notificação seja feita de modo que facilite a investigação, ou seja, será necessário registrar o maior número possível de informações, como: o lote do produto, o fabricante, as datas de fabricação e validade, sua apresentação (solução, cápsula, comprimido, creme, pomada, xarope, unguento etc.), a concentração do fármaco, a dose administrada, a via de administração, a idade do paciente, o peso, o motivo da utilização, a identificação do prescritor, do estabelecimento em que se encontrava o usuário, os efeitos adversos suspeitos, as características, o tempo transcorrido entre a última administração do medicamento e o surgimento dos primeiros sinais e sintomas.

As reações têm uma natureza, ocorrendo em determinados sistemas, órgãos e tecidos. Elas têm graus diferenciados de intensidade, podendo ser gerais ou específicas. Elas podem sinalizar novos fatores de risco. O aumento do registro de casos, ou a gravidade dos eventos é que geralmente determinam a velocidade para adoção de medidas pelas autoridades sanitárias. Na análise do caso, os elementos envolvidos (medicamentos, reações adversas suspeitas e indicações terapêuticas) recebem códigos. Estes pertencem a um sistema internacional de registro e monitoramento das reações adversas em todo o mundo. É a partir da análise dos casos por especialistas designados que será possível ou não estabelecer uma relação de causalidade entre o evento e a exposição ao medicamento. O especialista vai coletar dados, avaliar a história clínica, entrevistar os envolvidos, coletar material do paciente para exames e amostras do medicamento suspeito. Pois bem, estamos diante de um modelo de produção de verdades. É a verdade do inquérito.

Na farmacovigilância temos o gerenciamento dos possíveis riscos associados à exposição da vida humana aos medicamentos. Mas não são apenas as reações adversas o objeto desta vigilância, encontraremos sob este olhar os erros de prescrição e uso, a inefetividade dos tratamentos farmacológicos, os desvios da qualidade, as intoxicações, os empregos ilegítimos e as interações medicamentosas. Temos a ampliação crescente e incessável de um olhar. O medicamento funciona como um elemento semiótico-material (ele é ao mesmo tempo molécula e discurso, máquina e substância orgânica), numa gramática higienista da cultura da intolerância à vulnerabilidade, a tudo aquilo que ameaça a vida, inclusive aos formatos vulneráveis de sua apresentação.

Passados 170 anos do caso de Hannah Greener, o que temos hoje é uma disseminação maciça de um apelo ao registro de problemas relacionados a medicamentos.

As informações sobre os eventos adversos que ocorrem na fase pós-comercialização de um medicamento são obtidas principalmente por meio da notificação voluntária realizada pelos profissionais de saúde e usuários de medicamentos. A notificação voluntária é uma ferramenta importante na obtenção de dados em farmacovigilância. Para realizar uma notificação, o profissional de saúde deve realizar um cadastro no Notivisa e preencher um formulário com dados sobre o evento, o medicamento e o paciente.

- Se você é um profissional de saúde e já possui cadastro no Notivisa, acesse o sistema.

Para acessar o Formulário de Eventos Adversos a Medicamentos, escolha a opção “Medicamento” e responda “Sim” à pergunta “Houve dano à saúde?”.

- Se você é um profissional de saúde e ainda não possui cadastro no Notivisa, realize o cadastro.

O cidadão também pode realizar notificações de eventos adversos por meio do Notivisa. Acesse o formulário destinado ao cidadão. Após acesso ao formulário, o cidadão deverá preencher os dados solicitados e escolher a opção: “Problema/evento adverso relacionado ao uso de medicamentos” no campo “Tipo de incidente/evento adverso”.11 Disponível em: <https://bit.ly/2OZiEGg>. Acesso em: 13 jun. 2016.

A torre de vigilância, característica da arquitetura das sociedades disciplinares, que incitou o olhar dos farmacêuticos, dos médicos e demais prescritores, o olhar do(a) enfermeiro(a), do(a) técnico de enfermagem, enfim, de todo olho que percorre o corpo do doente usuário do medicamento, se agenciou a um outro olhar, o olhar do paciente, do usuário que regula o próprio uso dos medicamentos, os efeitos da exposição, seja sobre si mesmo ou sobre outro, próximo a si. Ora, já não é mais necessário enclausurar/confinar o indivíduo para submetê-lo a experimentos bioquímicos, visto que a experimentação sobre o corpo e sobre sua “consciência” poderá ser praticada no interior do corpo em si, do próprio indivíduo e por ele mesmo, sob sua atenta supervisão. É o que Foucault iniciou a problematizar no início da década de 1980 no curso Do governo dos vivos (Foucault, 2014FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. São Paulo: WMF Martins Fontes , 2014.).

O registro da reação adversa se tornou uma atividade autômata, o surgimento de um mecanismo administrativo que inclui profissionais de saúde, usuários de medicamentos, pacientes e/ou seus familiares, prescritores e gestores, mas que também igualmente desonera o Estado e os setores fabricantes da exclusividade do mal-estar da fatalidade associada a esta exposição.

As engrenagens entre farmacovigilância e biopoder

O que vemos na farmacovigilância é justamente o funcionamento de uma tecnologia que permite a previsão estatística dos possíveis danos associados à exposição a medicamentos, num dado subgrupo populacional, numa determinada cidade, numa determinada unidade de saúde, numa determinada etnia. E este cálculo é tão refinado que permite ainda prever que sistemas e órgãos anatômicos serão mais atingidos, que moléculas poderão causar mais danos e quais os custos para a sociedade desta exposição. E outras perguntas poderão ser respondidas, tais como: é mais oneroso não expor as populações a estes medicamentos ou expô-las sob o risco do dano? Qual o custo comparado da cura e da hospitalização por conta do uso? (Caton et al., 2016CATON, S. et al. Assessing the clinical and cost impact of on-demand immunoassay testing for the diagnosis of heparin induced thrombocytopenia. Thrombosis Research, Philadelphia, v. 140, n. 1, p. 155-162, 2016.; Hoffman et al., 2015HOFFMAN, K. B. et al. A drug safety rating system based on postmarketing costs associated with adverse events and patient outcomes. Journal of Managed Care and Specialty Pharmacy, Alexandria, v. 21, n. 12, p. 1134-1143, 2015.; Jolivot et al., 2016JOLIVOT, P.-A. et al. An observational study of adult admissions to a medical ICU due to adverse drug events. Annals of Intensive Care, New York, v. 2016, n. 6, p. 9, 2016.). Em todo o caso, foi o mecanismo da segurança que, aparecendo no interior da relação entre homens e medicamentos, possibilitou o nascimento da farmacovigilância.

Junto à institucionalização da vigilância dos medicamentos aparece uma verdadeira inflação de códigos jurídico-sanitários para fazer esse sistema de segurança funcionar. E ao mesmo tempo, um corpus disciplinar é ativado (Borg et al., 2015BORG, J. J. et al. European Union pharmacovigilance capabilities: potential for the new legislation. Therapeutic Advances in Drug Safety, London, v. 6, n. 4, p. 120-140, 2015.; Ozcan et al., 2016OZCAN, G. et al. Adverse drug reaction reporting pattern in Turkey: analysis of the national database in the context of the first pharmacovigilance legislation. Drugs: Real World Outcomes, Cham, v. 3, n. 1, p. 33-43, 2016.), fazendo surgir nas grades curriculares de cursos de graduação e de pós-gradução: disciplinas, cursos, linhas investigativas que têm como área temática os efeitos da exposição a medicamentos (Arici et al., 2015ARICI, M. A. et al. Short and long-term impact of pharmacovigilance training on the pharmacovigilance knowledge of medical students. Indian Journal of Pharmacology, Mumbai, v. 47, n. 4, p. 436-439, 2015.; Baniasadi et al., 2014BANIASADI, S. et al. Increasing the number of adverse drug reactions reporting: the role of clinical pharmacy residents. Iranian Journal of Pharmaceutical Research, Tehran, v. 13, n. 1, p. 291-297, 2014.; Khan et al., 2015KHAN, M. U. et al. The need for redesigned pharmacy practice courses in Pakistan: the perspectives of senior pharmacy students. Journal of Educational Evaluation for Health Professions, Chuncheon, n. 12, p. 27, 2015.; Wiens et al., 2014WIENS, M. O. et al. Post-market drug evaluation research training capacity in Canada: an environmental scan of Canadian educational institutions. Journal of Population Therapeutics and Clinical Pharmacology, Toronto, v. 21, n. 3, p. e370-e378, 2014.). A vigilância dos medicamentos é “uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos próprios mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina” (Foucault, 2008FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 14).

O que caracteriza essencialmente a farmacovigilância e outras disciplinas herdaram dela essa tecnologia é que a gestão do uso dos medicamentos só pode ser controlada por estimativas de probabilidades. Enquanto a delimitação das práticas e a hierarquização das funções e dos corpos se dão pela disciplina, a vigilância da segurança dos medicamentos estabelece atividades, cria, organiza e planeja meios antes mesmo de o evento ocorrer, ser investigado e identificado. Essa tecnologia de governo encontra no medicamento um apoio para o desenvolvimento de um regime político farmacêutico, ou seja, o corpo, sobretudo após o aparecimento dos parques químico-farmacêuticos, passou a ser governado por um regime farmacopolítico, onde o controle é simultaneamente democrático e privado, inalável, comestível, injetável, potável, de fácil administração. Onde o controle das ameaças da vida humana, os combates entre as nações, se dão sob a proteção de um arsenal farmacológico. Mas, como disse Foucault, não se trata somente do corpo dos indivíduos, mas de um corpo populacional (Foucault, 2002FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2002.). A relação entre corpo e poder se tornou não somente mais intensa, mas eles se fundiram. O corpo foi absorvido pelo poder, mas também o absorveu, de modo que se tornou plenamente ocupado. Nas palavras de Paul Beatriz Preciado,

não é o poder que se infiltra do exterior, é o corpo que deseja o poder, que busca engoli-lo, comê-lo, administrá-lo, encher-se dele mais e mais, por cada orifício, por meio de cada via de administração. O biopoder não se insinua do exterior, ele já reside no interior. (Preciado, 2015PRECIADO, P. B. Testo tossico: sesso, droghe e biopolitiche nell’Era farmacopornografica. Roma: Fandango Libri, 2015., p. 183, tradução nossa)

O modelo criado por Bentham serviu para o desenvolvimento e aprimoramento dos ensaios clínicos envolvendo medicamentos. Após o registro de tragédias como as das malformações congênitas associadas ao uso da talidomida na gravidez (McBride, 1961MCBRIDE, W. G. Thalidomide and congenital abnormalities. The Lancet, London, v. 278, n. 7216, p. 1358, 1961.), tornou-se imperioso experimentar medicamentos e verificar seus efeitos. Mas, anteriormente a isto, os campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial se apropriaram do modelo de Bentham e o aperfeiçoaram. Foi nestes espaços de confinamento que se desenvolveram experimentos humanos com fármacos, que se consolidou uma nova modalidade de se empregar medicamentos, uma modalidade de governo do biológico, do psíquico, ancorado na farmacologização do corpo populacional, uma farmacopolítica. Esta farmacopolítica é a maneira de se regular a vida humana pelo emprego de medicamentos, e entenda-se aqui a regulação do nascimento, da morte, da sexualidade, do prazer, da performance físico-mental, em suma, da vida humana em sua dimensão orgânica e psíquica. Foi, portanto, graças aos sistemas de registros desenvolvidos para o monitoramento dos problemas relacionados a medicamentos que se elaboraram instrumentos e técnicas para descrever, avaliar e comparar condições clínicas entre indivíduos, mas também condições sócio-sanitárias entre territórios e populações. A prática normalizante se dá nos corpos individual e populacional.

Considerações finais

O corpo foi introduzido no mercado por duas vezes: a primeira, quando o homem vendeu sua força de trabalho, e a medicina colabora na maximização dessa força, e a segunda, por intermédio da saúde, objeto de produção e de consumo. Suscetível tanto às doenças como à saúde, o corpo humano encontra no medicamento um elemento revestido de diversos significados, cujos efeitos podem potencializá-lo ou não.

A farmacovigilância nasceu como uma exigência econômica. Não se deve esquecer que desde a descoberta de novas moléculas, passando pelo desenvolvimento de medicamentos até sua autorização junto aos órgãos sanitários para sua comercialização, a indústria farmacêutica investe milhões de dólares, e que, portanto, é de interesse desta que seu produto seja aceito pelo mercado, seja demonstrado eficaz e seguro, afinal de contas, o lucro a ser obtido depende diretamente destes aspectos. Por sua vez, o Estado não quer gastar seus “parcos” recursos no tratamento de problemas ocasionados por produtos desenvolvidos e adquiridos com a finalidade de promoção e proteção da saúde. A vigilância dos medicamentos no período de pós-comercialização é, portanto, uma prática biopolítica.

Um dos efeitos mais importantes que o panoptismo exerceu sobre os profissionais de saúde foi o desencadeamento de um estado de consciência de que, embora não sejam infratores, são igualmente vigiados, de que encontram-se numa condição de visibilidade e que é graças a este estado que lhes é garantido o exercício do controle e do poder sobre os outros, e sobre si mesmos.

Se as abordagens feitas aqui encontram algum apoio nas observações e constatações presentes nos discursos científicos referenciados, talvez seja devido a uma certa deficiência ou lentidão em confrontarmos as diversas estratégias de governamentalidade (Foucault, 1984FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.) presentes na medicina, especificamente no campo da farmacoterapia. A farmacovigilância faz parte da história da medicina. Ela, assim como a medicina, não é uma ciência exata; fazendo parte de um sistema econômico, a farmacovigilância integra um sistema de poder-saber, que ainda faz necessário trazermos à luz seus vínculos com a economia, com a sociedade, para compreendermos se o atual modelo necessita ou não de ser retificado.

Referências

  • ARICI, M. A. et al. Short and long-term impact of pharmacovigilance training on the pharmacovigilance knowledge of medical students. Indian Journal of Pharmacology, Mumbai, v. 47, n. 4, p. 436-439, 2015.
  • ARRAIS, P. S. D. Farmacovigilância: até que enfim no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, n. 49-50, p. 80-82, 1996.
  • BANIASADI, S. et al. Increasing the number of adverse drug reactions reporting: the role of clinical pharmacy residents. Iranian Journal of Pharmaceutical Research, Tehran, v. 13, n. 1, p. 291-297, 2014.
  • BENTHAM, J. O panóptico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
  • BORG, J. J. et al. European Union pharmacovigilance capabilities: potential for the new legislation. Therapeutic Advances in Drug Safety, London, v. 6, n. 4, p. 120-140, 2015.
  • BRASIL. Lei nº 9.872, de 26 de janeiro de 1999. Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 jan. 1999. Seção 1, p. 1.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 696, de 7 de maio de 2001. Institui o Centro Nacional de Monitorização de Medicamentos (CNMM) sediado na Unidade de Farmacovigilância da Anvisa, tendo por finalidade a notificação, registro e avaliação das reações adversas dos medicamentos registrados pelo Ministério da Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 maio 2001. Seção 1, p. 18.
  • CATON, S. et al. Assessing the clinical and cost impact of on-demand immunoassay testing for the diagnosis of heparin induced thrombocytopenia. Thrombosis Research, Philadelphia, v. 140, n. 1, p. 155-162, 2016.
  • COELHO, H. L. L.; ARRAIS, P. S. D.; GOMES, A. P. Sistema de farmacovigilância do Ceará: um ano de experiência. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 631-640, 1999.
  • FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
  • FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal , 1988. v. 1.
  • FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2002.
  • FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
  • FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  • FOUCAULT, M. Crise da medicina ou crise da antimedicina. Verve, São Paulo, n. 18, p. 167-194, 2010.
  • FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. São Paulo: WMF Martins Fontes , 2014.
  • GEILING, E. M. K.; CANNON, P. R. Pathologic effects of elixir of sulfanilamide (diethylene glycol) poisoning. JAMA, Chicago, v. 111, n. 10, p. 919-926, 1938.
  • HOFFMAN, K. B. et al. A drug safety rating system based on postmarketing costs associated with adverse events and patient outcomes. Journal of Managed Care and Specialty Pharmacy, Alexandria, v. 21, n. 12, p. 1134-1143, 2015.
  • JOLIVOT, P.-A. et al. An observational study of adult admissions to a medical ICU due to adverse drug events. Annals of Intensive Care, New York, v. 2016, n. 6, p. 9, 2016.
  • JONES, R. S. Comparative mortality in anaesthesia. British Journal of Anaesthesia, London, v. 87, n. 6, p. 813-815, 2001.
  • KHAN, M. U. et al. The need for redesigned pharmacy practice courses in Pakistan: the perspectives of senior pharmacy students. Journal of Educational Evaluation for Health Professions, Chuncheon, n. 12, p. 27, 2015.
  • MARTINS, T. L. et al. Reação adversa induzida por capecitabina: a importância da farmacovigilância. Revista Brasileira de Farmácia Hospitalar e Serviços de Saúde, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 24-26, 2013.
  • MCBRIDE, W. G. Thalidomide and congenital abnormalities. The Lancet, London, v. 278, n. 7216, p. 1358, 1961.
  • MUSGROVE, P. Health insurance: the influence of the Beveridge Report. Bulletin of the World Health Organization, Geneva, v. 78, n. 6, p. 845-846, 2000.
  • OZCAN, G. et al. Adverse drug reaction reporting pattern in Turkey: analysis of the national database in the context of the first pharmacovigilance legislation. Drugs: Real World Outcomes, Cham, v. 3, n. 1, p. 33-43, 2016.
  • PRECIADO, P. B. Testo tossico: sesso, droghe e biopolitiche nell’Era farmacopornografica. Roma: Fandango Libri, 2015.
  • REPORT of the Lancet Commission appointed to investigate the subject of the administration of chloroform and other anaesthetics from a clinical standpoint. The Lancet, London, v. 141, n. 3636, p. 1112-1118, 1893.
  • ROUTLEDGE, P. 150 years of pharmacovigilance. The Lancet, London, v. 351, n. 9110, p. 1200-1201, 1998.
  • WIENS, M. O. et al. Post-market drug evaluation research training capacity in Canada: an environmental scan of Canadian educational institutions. Journal of Population Therapeutics and Clinical Pharmacology, Toronto, v. 21, n. 3, p. e370-e378, 2014.
  • WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The importance of pharmacovigilance: safety monitoring of medicinal products. Geneva: WHO, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2016
  • Revisado
    11 Abr 2018
  • Aceito
    28 Maio 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br