Violência e sofrimento social no contexto escolar: um estudo de caso em Porto Alegre, RS

Violence and social suffering in the school context: a case study in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil

Luiza Machado Piccoli Marisangela Spolaôr Lena Tonantzin Ribeiro Gonçalves Sobre os autores

Resumo

A pesquisa analisou a violência e o sofrimento social em uma escola de Porto Alegre (RS) a partir do discurso de professores, buscando compreender como a violência tem feito parte das relações no contexto escolar. Trata-se de estudo de caso qualitativo realizado por meio de 23 entrevistas individuais semiestruturadas e grupo focal com professoras, contextualizados a partir de observação participante na escola e na comunidade ao longo de um ano. A análise temática de conteúdo resultou em dois eixos analíticos: “Macroviolência: repercussões da violência estrutural na escola” e “Microviolência: a (co)produção da violência nas relações na escola”. Os achados apontaram como o contexto amplo de exclusão social e restrição de direitos e de oportunidades (macroviolências) em que a escola se insere reflete na produção cotidiana de violências na relação com os alunos (microviolências). Essas relações se enraízam num processo de estigmatização e desvalia dos alunos, bem como na sensação de impotência e na verticalização das ações pelas professoras. Apesar de escassas, aproximações alternativas à realidade dos alunos evidenciaram a importância de pensar e pactuar as ações nas escolas na perspectiva da própria comunidade e da territorialidade, buscando enfrentar a violência e o sofrimento social.

Palavras-chave:
Violência; Sofrimento Social; Escola; Saúde

Abstract

The study aimed to analyze the violence and social suffering in a school in Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil, from the teachers’ discourse, seeking to understand how the violence has been part of the relationships in the school context. It was a qualitative case study with 23 semi-structured individual interviews and a focus group with the teachers, contextualized by a one-year participant observation in the school and community. A thematic analysis of content resulted in two analytical categories, entitled “Macroviolence: repercussions of structural violence at school” and “Microviolence: the (co)production of violence in school relationships”. The findings pointed how the wide context of social exclusion and restriction of rights and opportunities (macroviolence) in which the school is inserted is reflected in the daily production of violence in relation to students (microviolence). Those relationships root in a process of stigmatization and devaluation of the students, as well as the feeling of impotence and the verticalization of actions by the teachers. Despite the scarcity, alternative approaches to the reality of the students showed the importance of actions in schools to be considered and agreed from the perspective of the community and its territoriality, seeking to face violence and social suffering.

Keywords:
Violence; Social Suffering; School; Health

Introdução

A violência é um problema que abrange a sociedade em sua totalidade e inevitavelmente atinge a escola de diferentes formas e por distintas razões. São alarmantes os dados que apontam o aumento desse fenômeno dentro e fora do ambiente escolar, impactando as relações entre docentes, discentes e suas famílias (Abramovay, 2002ABRAMOVAY, M. Escola e violência. Brasília, DF: Unesco, 2002.; Giordani; Seffner; Dell’Aglio, 2017GIORDANI, J. P.; SEFFNER, F.; DELL’AGLIO, D. D. Violência escolar: percepções de alunos e professores de uma escola pública. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 103-111, 2017.; Minayo, 1994MINAYO, M. C. S. Violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 10, p. 7-18, 1994. Suplemento 1.). A partir de pesquisa realizada em parceria entre a Secretaria de Educação e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) no ano de 1996, em Porto Alegre, Gonçalves e Sposito (2002GONÇALVES, L. A.; SPOSITO, M. P. Iniciativas públicas de redução da violência escolar no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 115, p. 101-138, mar. 2002.) revelaram que, dos incidentes ocorridos em escolas, 59% referiam-se a situações de violência contra a pessoa (conflitos, ameaças e agressões físicas). A última Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, realizada em 2012, apontou aumento das prevalências de diversas manifestações de violência, como insegurança para ir à escola, insegurança em estar na escola, situações de agressões físicas, brigas e ferimentos decorrentes (Malta et al., 2014MALTA, D. C. et al. Situations of violence experienced by students in the state capitals and the Federal District: results from the National Adolescent School-based Health Survey (PeNSE 2012). Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 17, p. 158-171, 2014. Suplemento 1.).

Investigações apontam que a escola passou a ser permeada por um quadro complexo regido por diversas formas de violência, sobretudo em regiões marcadas pela presença do comércio ilegal de drogas (Burgos, 2007BURGOS, M. Cidade, escola e favela. Cedes, Rio de Janeiro, v. 2, p. 1-10, fev. 2007.). Ao mesmo tempo, estudos revelaram que a forma como o sistema educacional brasileiro se organiza poderia atuar como um modo de reprodução das iniquidades sociais (Adorno, 2010ADORNO, R. C. F. Violência, sofrimento social e a saúde pública. Revista Serviço Social e Saúde, Campinas, v. 9, n. 9, p. 1-25, 2010.; Souza, 2012SOUZA, L. P. A violência simbólica na escola: contribuições de sociólogos franceses ao fenômeno da violência escolar brasileira. Revista Labor, Fortaleza, v. 1, n. 7, p. 20-34, 2012.; Zaluar, 2012ZALUAR, A. Juventude violenta: processos, retrocessos e novos percursos. Dados, Rio de Janeiro, v. 55, n. 2, p. 327-365, 2012). Em contextos latino-americanos, marcados por forte desigualdade social e expostos a regimes autoritários num passado recente, a escola estaria diante do desafio de reconstruir sua relação com o meio popular partindo de um padrão assimétrico e paternalista para um padrão igualitário, equitativo, que considere a diversidade e promova a cidadania (Burgos, 2012).

Para Charlot (2002CHARLOT, B. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão. Sociologias, Porto Alegre, v. 4, n. 8, p. 432-443, 2002.), existem três formas de violência escolar: violência na escola, violência à escola e violência da escola. Esta última se caracteriza por “uma violência institucional, que os próprios jovens suportam através da maneira como a instituição e seus agentes os tratam e os percebem” (Charlot, 2002, p. 435). Dessa forma, a violência se apresenta na/à escola atualmente em uma dupla dimensão: (1) violência provocada por questões sociais mais amplas, como o comércio de drogas e o próprio Estado, quando deixa de cumprir o seu papel de provedor dos direitos humanos fundamentais; (2) violência provocada por meio das relações, no que é dito (ou omitido), negando, oprimindo e destruindo psicologicamente o outro. Uma revisão de teses e dissertações produzidas no Brasil sobre o assunto encontrou que os professores também protagonizam a produção da violência na escola, principalmente por meio da violência simbólica (Silva; Silva, 2018SILVA, M. D.; SILVA, A. G. Professores e alunos: o engendramento da violência da escola. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 43, n. 2, p. 471-494, 2018.).

Ao entender a saúde de um ponto de vista amplo, não há como separar a violência das questões sociais e de saúde, enquanto fenômeno tanto no panorama nacional quanto internacional (Schraiber; D’Oliveira; Couto, 2006SCHRAIBER, L. B.; D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; COUTO, M. T. Violência e saúde: estudos científicos recentes. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, p. 112-120, 2006. Número especial.). O Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, publicado pela Organização Mundial de Saúde em 2002, foi um marco importante ao visibilizar a violência como um problema a ser enfrentado nas suas diversas formas de expressão e estimular a criação de movimentos regionais (Krug et al., 2002KRUG, E. G. et al. World report on violence and health. Genebra: World Health Organization, 2002.). O documento já destacava a violência juvenil, pois era na faixa etária de 10 a 29 anos que se encontrava o maior número de agressores e vítimas. Assim, os números da violência se relacionam diretamente com vivenciar violência na infância, fazer parte de gangues, ter acesso a armas e conviver num ambiente de guerra, exclusão social e pobreza (Krug et al., 2002). Tais situações promovem sofrimento, afetam a saúde e diminuem as possibilidades de vida dos jovens.

Tendo em vista as diversas formas de violência e o sofrimento social a que estão submetidos professores e professoras, alunos e suas famílias, especificamente das redes públicas, é importante investigar o tema sob a perspectiva da saúde integral no contexto escolar. Este trabalho buscou identificar os discursos dos docentes em torno da violência e do sofrimento social que decorrem das relações entre alunos, professores e familiares e no âmbito comunitário ampliado. Propõe-se discutir, a partir dos dados coletados, como a violência e o sofrimento social têm feito parte das relações no contexto escolar a partir do caso de uma escola pública de Porto Alegre (RS).

Metodologia

A pesquisa foi um estudo de caso de abordagem qualitativa (Yin, 2010YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 4. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.). Conforme Minayo (2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 2010.), a pesquisa qualitativa é adequada quando se pretende explorar o significado que indivíduos e/ou grupos atribuem a um problema social ou humano, buscando apreender as dimensões significativas dos fenômenos. Particularmente, o estudo de caso permite um aprofundamento quanto ao fenômeno estudado, considerando as particularidades do universo empírico (Yin, 2010).

Este trabalho é fruto de uma dissertação de mestrado que fez parte de um projeto maior desenvolvido pela UFRGS, onde a primeira autora atuou como colaboradora. Os dados foram coletados em uma escola da rede pública estadual de ensino de Porto Alegre (RS). O projeto maior tinha como objetivo a redução dos índices de evasão escolar e foi aprovado pelo Comitê de Ética da UFRGS (protocolo nº 08-073). Todos os participantes foram incluídos somente após serem prestadas as devidas informações sobre a pesquisa e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A produção dos dados se deu entre março de 2015 e abril de 2016, a partir de entrevistas individuais semiestruturadas, grupo focal com os professores, além de observação participante na escola e na comunidade. Com isso, buscou-se uma triangulação e contextualização dos dados. Foram contemplados(as) nas entrevistas todos(as) os(as) 23 professores(as) da escola, além de 11 deles(as) no grupo focal. Estes(as) ocupavam diferentes cargos, tais como: direção, vice-direção, orientação educacional, supervisão educacional e professores(as) que lecionavam do primeiro ao nono ano do ensino fundamental. No grupo focal não houve participação da equipe diretiva, pois se entendeu que sua presença poderia causar desconforto ou inibição na exposição de ideias e discussões. Já as observações abarcaram tanto os momentos de realização das entrevistas e do grupo focal como contatos informais e idas da pesquisadora à escola e à comunidade ao longo de um ano, durante eventos para os quais fora convidada. A pesquisadora manteve um diário de campo onde registrou observações e impressões.

Foi realizada a análise de conteúdo temática, que tem como princípio desmontar a estrutura e os elementos do conteúdo para esclarecer suas diferentes características e extrair sua significação (Bardin, 1995BARDIN, L. Análise de conteúdo qualitativa. In: BARDIN, L. (Ed.). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995. p. 225.; Minayo, 2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 2010.). As categorias analíticas foram construídas com base nos próprios dados e também a partir de aportes teóricos sobre sofrimento social e violência, além de discussões de etnografias já realizadas naquela comunidade (Bourdieu; Passeron, 1999BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1999.; Charlot, 2002CHARLOT, B. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão. Sociologias, Porto Alegre, v. 4, n. 8, p. 432-443, 2002.; Giacomazzi, 1997GIACOMAZZI, M. C. G. O cotidiano da Vila Jardim: um estudo de trajetórias, narrativas biográficas e sociabilidades, sob o prisma do medo na cidade. 1997. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997.; Kleinman; Das; Lock, 1997; Silva, 2002SILVA, M. K. Cidadania e exclusão: os movimentos sociais urbanos e a experiência de participação na gestão municipal de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. ). Portanto, as visões qualitativamente distintas dos educadores foram importantes para compreender como a violência se apresentava na relação entre eles e os alunos. O primeiro eixo temático, nomeado “Macroviolência: repercussões da violência estrutural na escola”, busca apresentar uma discussão a respeito das relações entre violência estrutural e a escola como um lugar e em um lugar de violência. O segundo eixo, “Microviolência: a (co)produção da violência nas relações na escola”, aborda a violência nas relações dentro dessa instituição. Como eixos transversais que interligam as categorias, estão as iniquidades sociais e o comércio de drogas.

A seguir, são apresentadas as duas categorias temáticas que contemplam a compreensão de como o contexto social e o discurso dos professores sobre as famílias e os alunos se relacionam com a violência e o sofrimento social. O caso da escola, agora chamada de Quintal, será descrito e contextualizado. Nas vinhetas ilustrativas o código “E” refere-se às entrevistas e “GF” aos dados do grupo focal, seguidos de um número correspondente, para se referir aos professores individualmente. Sendo 21 mulheres participantes e dois homens, preferiu-se usar o termo “professoras” na descrição dos achados. Quando necessário, a referência ao gênero foi mantida.

Resultados e discussão

Macroviolência: repercussões da violência estrutural na escola

Em 2015, a escola atendia 189 alunos, cursando do primeiro ao nono ano. Eram 23 professores e cinco outros profissionais, que atuavam na secretaria, limpeza e refeitório. Chamava atenção o grande número de jovens com idade não correspondente à esperada para a série, além da alarmante diminuição no número de alunos à medida que as séries avançavam. Por exemplo, a turma do primeiro ano contava com 33 alunos enquanto o nono tinha apenas cinco. Grande parte dos discentes residia no bairro, mais especificamente nos becos, e, conforme relatos das professoras, muitos dos familiares eram envolvidos com o comércio de drogas.

A média de idade das professoras entrevistadas foi de 47 anos, variando de 23 a 70. Quanto ao tempo de docência, o mínimo foi quatro e o máximo foi 43 anos, sendo que algumas professoras lecionavam na escola havia 25 anos e a que tinha menos tempo no local trabalhava lá havia duas semanas. Onze professoras tinham concluído a pós-graduação. Sobre a carga horária, 19 tinham 40 horas semanais, das quais 11 atuavam em dedicação exclusiva na escola abordada. A maioria das professoras (78,3%) não morava no bairro, escolheu aquela escola e afirmou não desejar mudar de local de trabalho. Outras cinco foram encaminhadas pela Secretaria Estadual de Educação.

A história da Escola Quintal e da comunidade em que se inseria é caracterizada por envolvimento comunitário e protagonismo na efetivação de ações na luta por direitos sociais (Mello, 2010MELLO, E. D. Trauma e sintoma social: resistências do sujeito entre história individual e história da cultura. 2010. Tese (Doutorado em Psicologia Social e Institucional) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.). A escola foi fundada a partir da reivindicação de moradores no final da década de 1960 e diversas melhorias de saneamento e urbanização realizadas no bairro foram obtidas por meio da participação da comunidade ao longo da década de 1970 (Silva, 2002SILVA, M. K. Cidadania e exclusão: os movimentos sociais urbanos e a experiência de participação na gestão municipal de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. ). Outro dado relevante é que a Associação de Moradores articulou junto à escola a doação de parte do terreno para a construção da unidade de saúde do território, edificada em regime de mutirão, pela própria comunidade, nos anos 2000.

Um estudo sobre o histórico da urbanização do bairro mostrou que o desenvolvimento populacional e territorial foi reflexo de uma situação fundiária extremamente complexa (Silva, 2002SILVA, M. K. Cidadania e exclusão: os movimentos sociais urbanos e a experiência de participação na gestão municipal de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. ). O projeto original do loteamento previa jardins que centralizavam as quadras, contudo, no final dos anos 1970, com o processo de urbanização e o aumento da pobreza e do êxodo rural, ocorreu a ocupação desses jardins internos, transformados em espaços de moradia. Nesse local se criaram os “becos” (Mello, 2010MELLO, E. D. Trauma e sintoma social: resistências do sujeito entre história individual e história da cultura. 2010. Tese (Doutorado em Psicologia Social e Institucional) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.), que hoje se encontram invisibilizados por grandes empreendimentos comerciais e imobiliários que circundam o bairro onde se localiza a escola.

Atualmente, o bairro possui 12.782 habitantes, representando 0,91% da população do município, sendo uma região marcada por iniquidades sociais, taxas elevadas de violência, tráfico de drogas e alto percentual de evasão escolar no ensino fundamental (4,18%) e médio (22,46%), com taxas muito acima da média da cidade (0,7% e 7%, respectivamente) (Observa POA, 2018). O rendimento médio dos responsáveis por domicílio no bairro é de 3,95 salários mínimos, mas 19,63% das famílias possuem renda inferior a um salário mínimo, 51,14% recebem até dois salários mínimos e apenas 7,61% das famílias contam com responsáveis com renda superior a dez salários mínimos mensais (Observa POA, 2018). Em 2016, 66,67% das mortes de jovens de 15 a 29 anos ocorreram por homicídios nesse bairro. Na mídia, desde a década de 1980, a comunidade aparece como uma das mais violentas da cidade, em função da forte presença da guerra pelo domínio do comércio de drogas (Giacomazzi, 1997GIACOMAZZI, M. C. G. O cotidiano da Vila Jardim: um estudo de trajetórias, narrativas biográficas e sociabilidades, sob o prisma do medo na cidade. 1997. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997.; Ruas, 2016).

Para Minayo (1994MINAYO, M. C. S. Violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 10, p. 7-18, 1994. Suplemento 1.), a violência é fenômeno complexo e dinâmico que envolve características biopsicossociais da vida em sociedade. Cabe ressaltar que a violência não é democraticamente distribuída, tendo em vista os resultados dos estudos sobre a mortalidade das vítimas. Ela incide de forma desproporcional em um perfil específico de brasileiros: negros, pobres, com pouca escolaridade, que vivem em comunidades empobrecidas dos grandes centros urbanos (Souza; Jorge, 2006SOUZA, E. R.; JORGE, M. H. P. M. Impacto da violência na infância e adolescência brasileiras: magnitude da morbimortalidade. In: LIMA, C. A. (Ed.). Violência faz mal à saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006. p. 23-29.), indicando a intersecção da violência com o racismo estrutural (Almeida, 2018ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.). Como se viu, a escola Quintal está numa comunidade pobre da cidade e enfrenta diversos problemas sociais, como o comércio de drogas, violência, altos índices de desigualdade social e de evasão escolar, situação que era percebida pelas professoras e se associava com uma desvalia do potencial dos alunos.

É tudo uma miséria, sabe, é uma miséria material, é uma miséria afetiva, é uma miséria familiar, é um pouco quase nada de tudo. Então, de onde tu vai tirar dessa criança vontade de estudar? O convencimento de dizer: “olha, aqui, através disso aqui é que tu vai dar um rumo na tua vida”. (E20)

Sposito (2001SPOSITO, M. P. Um breve balanço da pesquisa sobre violência escolar no Brasil. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 87-103, 2001.) aponta que a violência também ocorre em escolas destinadas à elite, mas acaba sendo mais frequente nas situadas em ambientes carentes de segurança, saneamento e saúde - que não asseguram condições de vida digna -, fatores que contribuem para um quadro de violência geral. Conforme Tavares-dos-Santos e Machado (2010), a violência estrutural se relaciona intimamente com a distribuição do poder e o exercício deste é o que gera sofrimento, de forma que a violência pode ser compreendida através do excesso de poder que impede o reconhecimento do outro. A violência seria um dispositivo de excesso de poder que produz um dano social por meio de uma prática disciplinar, atuando num determinado espaço e tempo com uma justificativa racional, que atua desde o estigma até a exclusão, real ou simbólica (Tavares-dos-Santos; Machado, 2010). A violência estrutural expressa formas de manifestação relacionadas à dominação de classe, de grupos e do próprio Estado e as formas como determinados grupos/instituições criam condições de vida desiguais e injustas (Farmer, 2004FARMER, P. An anthropology of structural violence. Current Anthropology, Chicago, v. 45, n. 3, p. 305-325, 2004.). Muitas vezes, essa violência não é entendida como tal nem contestada, mas vista como incompetência dos governantes e até mesmo como um jeito de lidar com os conflitos sociais.

Na tentativa de lidar com os problemas do cotidiano, muitas vezes, as professoras e/ou direção da escola Quintal acabavam por justificar formas de violência com os alunos na tentativa de manter a ordem. Segundo Bourdieu (1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.), a violência estrutural seria sempre operacionalizada pelos representantes do Estado, que detêm o monopólio da violência simbólica legítima, dentre os quais se incluem a escola e o professor. Para Abramovay (2008ABRAMOVAY, M. Escola e violências. Revista Observare, Salvador, v. 4, p. 1-7, jul./dez. 2008.), a violência acaba como recurso sistemático na resolução de problemas quando as relações estabelecidas são hierarquizadas de forma rígida e, assim, os conflitos acabam permeando o ambiente escolar.

As estruturas de poder e disciplina nas instituições escolares acabam reforçando as iniquidades. Assim, a escola tem poder limitado na eliminação do problema, tendo dificuldade de promover a inserção social de seus alunos (Dayrell, 2007DAYRELL, J. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 1105-1128, 2007.), o que ficou evidente nos relatos das docentes:

Pode vir de casa a baixa escolaridade dos pais, então eles não têm aquilo do: “Por que eu vou estudar? Por quê? Minha mãe ganha 700 reais, tá bem, por que eu vou estudar? Porque os salários de vocês [professores] também é um salário-mínimo e vocês se mataram de estudar”. (E13)

Nesse cenário, Abramovay (2008ABRAMOVAY, M. Escola e violências. Revista Observare, Salvador, v. 4, p. 1-7, jul./dez. 2008.) questiona sobre quais seriam, então, as funções da escola, já que a educação é uma obrigação do Estado, mas que, baseada em um modelo que atendia à elite brasileira, acaba, muitas vezes, excluindo os alunos e desrespeitando as diferenças, refletindo o que acontece extramuros. A escola aparece como justa e “neutra”, intervindo muito pouco na vida dos alunos, mas, como as injustiças e desigualdades escolares seriam consequências das iniquidades sociais, esta reproduz a estrutura de exclusão (Dubet, 2003DUBET, F. A escola e a exclusão. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 119, p. 29-45, jul. 2003.). Diante disso parece não haver saídas:

“Cadê a atividade de casa?” […] “Sora eu não posso, não tenho tempo, tenho que cuidar do meu sobrinho”. Quer dizer, uma criança com nove, dez anos, cuidando de outra criança de um ano e meio, dois anos, né. Então todas essas coisas, tá, e a mãe? Ah, a mãe sai às seis da manhã e volta, às vezes, às dez da noite trabalhando. (E15)

Mas como poderia a escola intervir nessas questões? Práticas pedagógicas que deem conta das especificidades dos alunos, abarcando as características de sua comunidade e das iniquidades sociais vividas, não eram vistas como possibilidades.

Outra problemática vinculada à violência que merece destaque é o comércio de drogas, fator central para os índices de violência da comunidade. As professoras mencionam que muitas famílias de alunos sobrevivem do tráfico, mas, segundo elas, o uso não acontece dentro da escola, já que os alunos respeitam a instituição. De acordo com uma professora, há um pacto de silêncio entre alunos, comunidade e comerciantes de drogas ilícitas: O comportamento deles [alunos] é bem característico… De… Que eles convivem com isso, né? E que existe um pacto entre eles de silêncio submisso (E9). Este “silêncio submisso” pode ser entendido como outra forma de violência, já que a integridade do indivíduo está em risco, caso ele mencione algo. O silêncio, portanto, se coloca tanto com relação aos comerciantes de drogas ilícitas como na própria escola.

A sociedade contemporânea ao mesmo tempo reflete, repudia e cria mecanismos de controle da violência (Adorno, 2010ADORNO, R. C. F. Violência, sofrimento social e a saúde pública. Revista Serviço Social e Saúde, Campinas, v. 9, n. 9, p. 1-25, 2010.). Giacomazzi (1997GIACOMAZZI, M. C. G. O cotidiano da Vila Jardim: um estudo de trajetórias, narrativas biográficas e sociabilidades, sob o prisma do medo na cidade. 1997. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997.), em seu estudo, constatou que o medo e a violência estavam explícitos nas relações da comunidade: para dominar, ter respeito, era necessário impor o medo e esta era a via para manter algum domínio nas situações. Essa estratégia era adotada pela escola Quintal para o controle do uso de drogas ou de brigas no ambiente escolar, marcada por uma atitude policialesca e pela recorrida direta à autoridade policial.

Eu acho que isso foi coibido no momento que eu disse para eles que a Brigada estaria aqui dentro sempre que fosse necessário. Então eles [alunos]: “Opa, ela é da polícia”. […] Se é terrorismo eu não sei, eu só sei que no meu colégio não tem briga. E a cada ocorrência eu passo em sala “Aconteceu isso, isso e isso. Eu fiz isso, isso, isso. Quem quer ir atrás? Quer ir embora? É só me dizer que eu mando!”. (E10)

Ainda, conforme as professoras, o comércio de drogas influenciava a evasão escolar, visto que os alunos preferiam abandonar os estudos, pois o tráfico traria mais benefícios: Essa questão da droga é muito importante, muito marcante pra eles […], como eu falei antes, eles acabam vendo que, realmente, eles podem ter maiores resultados, maiores frutos do que trabalhando honestamente. E aí eles acabam largando a escola (E15). Para Dayrell (2007DAYRELL, J. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 1105-1128, 2007.), a relação estabelecida entre os alunos pobres com a escola reflete a desigualdade social, acaba por esgotar as possibilidades de mobilidade social e engendra outras formas de dominação, como o tráfico. Assim, a responsabilização recai sobre o aluno e, por sua vez, a escola acaba reforçando o fracasso tanto escolar quanto pessoal, culpando-o pela “opção” pelo tráfico.

As ações em uma instituição disciplinar como a escola buscam formar sujeitos adaptados às necessidades e expectativas criadas pela ordem social dominante, produzindo “bons” cidadãos. Assim, a população “em risco” (vítima) é também “de risco” (ameaça), questionando a ordem estabelecida por um lado e, por outro, necessitando de cuidados e reabilitação, seja moral, psicológica ou medicamentosa (Pussetti; Brazzabeni, 2011). Na próxima categoria, pretende-se explorar como a violência apresenta-se nas relações dentro da escola Quintal, (co)produzindo o contexto de macroviolências.

Microviolência: a (co)produção da violência nas relações na escola

Não há como tratar das violências cotidianas no ambiente escolar sem relacioná-las com o cenário mais amplo de violências estruturais. Souza (2012SOUZA, L. P. A violência simbólica na escola: contribuições de sociólogos franceses ao fenômeno da violência escolar brasileira. Revista Labor, Fortaleza, v. 1, n. 7, p. 20-34, 2012.) corrobora essa ideia explicitando que, sobre a violência da escola, um dos fenômenos que pode ser observado é a reprodução da violência que se expressa a partir de uma imposição e interiorização da cultura dominante, correlacionando as iniquidades sociais e escolares. Neste trabalho, entendemos que as relações nunca reproduzem exatamente o mesmo, mas guardam a especificidade do contexto e dos atores envolvidos na sua produção. Portanto, optamos por utilizar a expressão (co)produção para enfatizar a posição de agência dos sujeitos, a qual encerra também a possibilidade de deslocamentos e resistência contra a violência estrutural.

Nesse sentido, constatamos o predomínio de uma visão negativa, pré-concebida e, por vezes, estigmatizante sobre os alunos, suas famílias e a comunidade, o que se associava ao baixo nível socioeconômico, às drogas e à violência. Por exemplo, o papel atribuído à educação na vida dos alunos e das famílias foi uma questão iminente e, muitas vezes, problematizada pelas professoras. Por vezes, o “descaso” (sic) com que as famílias e, consequentemente, os alunos se relacionavam com a escola e seu desconhecimento sobre sua função, era naturalizado, dada sua condição social.

Ah, educação, escola? Eu preciso trabalhar, meus filhos estão mais lá porque não tenho com quem deixar e sou obrigado porque senão o conselho tutelar vem em cima. (E01)

Eu vejo que eles também não têm muito estímulo da família para procurar isso. Elas acham que tá bom ou ser pedreiro, pedreiro de obra, “ah vai trabalhar na obra”, ou ir para o supermercado. (E10)

Em vários relatos, também parecia que se associava a pobreza das famílias com um ambiente de degradação moral, o que impossibilitava a realização do ideal educativo. As próprias docentes se mostravam contaminadas por essa desvalia com que viam os alunos e suas famílias, vendo-se impotentes para alterar essa realidade e recolocando, nas relações com eles, a exclusão social.

Então às vezes eu fico pensando assim: “Meu deus, a gente quer dar aqueles conteúdos que eles precisam saber, mas se os meus alunos não vão fazer uma faculdade, eu só quero, assim, que eles sejam boas pessoas, que eles não se tornem criminosos”. (E20)

Nesse cenário, a violência simbólica é coproduzida, por exemplo, quando “a escola valoriza e exige dos alunos determinadas qualidades que são desigualmente difundidas entre as classes sociais, de maneira especial, o capital cultural e certa naturalidade no trato com a cultura e o saber” (Souza, 2012SOUZA, L. P. A violência simbólica na escola: contribuições de sociólogos franceses ao fenômeno da violência escolar brasileira. Revista Labor, Fortaleza, v. 1, n. 7, p. 20-34, 2012., p. 21). Assim, as entrevistadas viam como muito restrita a participação familiar na vida escolar dos filhos, mesmo para estimulá-los para leitura, por exemplo, o que dificultava um melhor desempenho e interesse pelos estudos, resultando na evasão. Uma característica observada no perfil de participação das famílias era que, ao passo que as crianças cresciam, a ausência dos responsáveis se agravava.

Às vezes a gente se frustra porque eles não querem nada com nada. Não estudam porque têm exemplo em casa de quem nunca fez nada, mas ganha dinheiro com alguma coisa. Então eles não têm essa perspectiva de estudar e ir mais longe, como a gente tem. A vida deles é muito próxima, é hoje e amanhã, daí pra frente eles não têm noção. (E04)

Eu acho que, na verdade, os pais tinham que participar mais do que está acontecendo, ter cultura? Aceitar melhor o que a gente propõe. (E11)

A escola busca reafirmar a cultura dominante por meio de sua ação pedagógica, produzindo também as relações de poder instituídas na sociedade e instaurando uma violência simbólica (Bourdieu, 1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.; Bourdieu; Passeron, 1999; Souza, 2012SOUZA, L. P. A violência simbólica na escola: contribuições de sociólogos franceses ao fenômeno da violência escolar brasileira. Revista Labor, Fortaleza, v. 1, n. 7, p. 20-34, 2012.). Diante da dificuldade em “atrair” os alunos e a distância que eles demonstravam do que era ofertado pela escola Quintal, predominava a verticalização das ações pedagógicas:

A gente sabe que existem problemas familiares em tudo que é classe né, social, mas eu […] encontro assim, dificuldade nesse sentido, tá? Tanto de valores, como a parte da didática mesmo, do conteúdo. (E08)

O problema deles é aceitar as coisas, só [risos]. Essa é a única questão. (E10)

As percepções das professoras sobre as famílias, os alunos e a comunidade podem ser interpretadas por meio do conceito de sofrimento social, que traz a ideia de que os fenômenos não podem ser observados e explicados desconectados das dinâmicas sociais e do contexto político, histórico, econômico e institucional (Kleinman; Das; Lock, 1997). Adorno (2010ADORNO, R. C. F. Violência, sofrimento social e a saúde pública. Revista Serviço Social e Saúde, Campinas, v. 9, n. 9, p. 1-25, 2010.) afirma que o sofrimento social pode ser compreendido através da análise das biografias dos sujeitos que vivenciam o impacto da violência estrutural no âmbito da experiência cotidiana. Essas relações desiguais de poder criam uma ecologia de relações e moralidades na qual a violência é cometida e transmitida pela própria estrutura social e não por indivíduos ou um grupo específico. Assim, pode-se vincular a guerra do tráfico e a violência diária vivida pela comunidade com a forma estereotipada e estigmatizante como os alunos eram vistos e tratados (Farmer, 2004FARMER, P. An anthropology of structural violence. Current Anthropology, Chicago, v. 45, n. 3, p. 305-325, 2004.; Kleinman; Das; Lock, 1997). A violência estrutural se infiltra nas relações cotidianas, condicionando os arranjos e trocas possíveis entre as pessoas, sendo que, na escola, ela minava a possibilidade de estabelecer relações de empatia e proximidade.

Ao passo que a escola tentava manter a violência fora dos muros, esta penetrava nas relações, perpetuando modos de exclusão e estigmatização, como ilustra a seguinte situação. Após um tubo de ensaio ter sido furtado da escola Quintal, a solução encontrada foi bastante violenta, sem que tenha sido feita nenhuma tentativa de mediação. Os pais do aluno do sexto ano que furtou o tubo foram chamados imediatamente para trazerem o filho à escola. Ao chegarem, encontraram policiais e dois camburões estacionados em frente à instituição, aguardando para levá-los à Delegacia Especial de Crianças e Adolescentes. Ao chegar ao local, a família questionou sobre o exagero nessa condução e uma discussão acalorada aconteceu, sendo que um policial chegou a apontar uma arma para o pai do jovem. O aluno, que foi expulso da escola nesse mesmo dia, era, até então, considerado um bom estudante, compenetrado e assíduo. Na conversa com a orientadora pedagógica, o jovem admitiu que estava sob ameaça de dois comerciantes de drogas ilícitas, que o coagiram a pegar o tubo de ensaio que seria transformado em um cachimbo para o uso de drogas. A situação ilustra o quanto a violência, que a escola tentava manter higienicamente fora dos muros, penetrava nas relações, perpetuando modos de exclusão e estigmatização.11 Registro do diário de campo, março de 2016.

Entende-se que as formas com que a escola maneja os paradoxos e dilemas que a segregação urbana produz é marcada por contradições que tornam extremamente complexa sua atuação socializadora (Burgos, 2007BURGOS, M. Cidade, escola e favela. Cedes, Rio de Janeiro, v. 2, p. 1-10, fev. 2007.). Nesta pesquisa, verificou-se a dificuldade da comunidade escolar na construção de saídas desse ciclo de violência e desigualdade, havendo pouca abertura para projetar outros desfechos possíveis para esses sujeitos.

Tu pega, assim, dez crianças, tem três que tu diz assim: “esse guri vai ser um cidadão de bem, ele vai fazer a diferença na sociedade”. E tu pega sete, assim: “não sei que fim vai dar isso aí”. Não sei se eles vão sobreviver até a vida adulta, eu não sei se eles vão parar na cadeia, tu tá vendo isso aí. Tu tem como antecipar essa realidade. (E16)

Apesar dos relatos se referirem basicamente aos alunos e suas famílias, esses discursos denunciam a ausência de reflexão quanto à complexidade da ação educativa em comunidades rivalizadas pela pobreza. Nessa direção, grande parte das professoras relatava o contexto de vida dos seus alunos com apropriação, enquanto desconheciam lideranças e/ou pessoas de referência da comunidade. Isso reforçou a ideia de reprodução de visões estanques sobre aquela realidade social assim como o distanciamento e o não envolvimento como possíveis agentes de mudança.

A escola pública e seus atores lidam com um amplo desafio estrutural, marcado pela associação entre uma ordem urbana excludente e o diferente capital cultural das famílias e de seus alunos (Burgos, 2007BURGOS, M. Cidade, escola e favela. Cedes, Rio de Janeiro, v. 2, p. 1-10, fev. 2007.). Sobre isso, as relações na escola evidenciavam um choque entre realidades muito distintas, por vezes implicando distância social e psicológica. Esta distância produz a retificação da antinomia entre o mundo dos professores e o dos alunos, um “nós” e um “eles”, que interfere negativamente na tarefa de mediação cultural e social da escola (Burgos, 2007, 2012).

Eu acho que às vezes as famílias não têm noção do que é família, sabe? Desestruturação familiar total […]. Ou tão trabalhando ou tão traficando, ou não tão fazendo nada, sabe? E os nossos alunos, na verdade são filhos dos filhos dos avós que são os pais de todo mundo. (E03)

Sobre o comércio de drogas ilícitas, esse distanciamento ficava ainda mais evidente, como se fosse um problema totalmente externo à escola e sobre o qual não se podia influir, mesmo em relação ao apoio direto aos alunos. Abramovay (2002ABRAMOVAY, M. Escola e violência. Brasília, DF: Unesco, 2002.) afirma que a coação e o medo associados à presença de gangues e tráfico de drogas dificultam que a comunidade escolar problematize a situação diante das represálias que podem acontecer. Neste estudo, isso também foi verificado, tornando o tema das drogas algo presente, mas, muitas vezes, silenciado. Novamente, tal situação também parecia contaminar as relações, reforçando a distância entre professoras e alunos e suas demandas.

Mas é uma questão, assim, bastante complicada; eu ainda tenho muito medo de falar né, em relação a isso, porque a gente nunca sabe como essa criança vai entender e chegar em casa e interpretar o que ouviu. (E01)

Nós falarmos sobre as drogas é muito difícil. Não vou me meter a fundo numa coisa que eu posso me prejudicar também. (E06)

Podemos pensar que os processos sociais de construção de sentidos para os fenômenos são permeados pelas contingências históricas da sociedade, e que, mais do que o fato em si, podem qualificar de maneira estereotipada seus agentes. Assim, percebe-se a atribuição da violência ao outro: o que não pertence à minha classe social, o que presumivelmente não tem os mesmos comportamentos que eu (Adorno, 2010ADORNO, R. C. F. Violência, sofrimento social e a saúde pública. Revista Serviço Social e Saúde, Campinas, v. 9, n. 9, p. 1-25, 2010.).

Embora houvesse elogios ao corpo docente da escola Quintal, visto como exemplo para os estudantes em momentos de crise, algumas atitudes contradiziam esse discurso de coletividade e apoio mútuo, além de demonstrar uma pobre responsabilização pelo destino dos alunos. Por exemplo, durante a pesquisa, houve um “toque de recolher” na comunidade porque um dos grupos que dominava o tráfico na região iria “invadir” o bairro para vingar-se de um assassinato ocorrido no final de semana anterior. Logo que a notícia se espalhou na escola, por meio das redes sociais, o clima passou a ser de muita tensão, e as professoras, uma a uma, decidiram ir embora e em 30 minutos ninguém estava mais lá. No meio da tarde, quando se ouviam tiros no entorno da escola, só restava a diretora e cerca de 70 crianças à espera dos responsáveis para buscá-los.

Desse modo, percebe-se que a violência afetava de tal maneira o contexto escolar que obstaculizava a adoção de estratégias mais coletivas de enfrentamento, verificando-se até a dificuldade de enxergar os alunos também como vítimas a serem protegidas. A falta de ações de enfrentamento da violência e a dificuldade de lidar com situações de conflito na escola também já foram constatadas em outro estudo (Giordani; Seffner; Dell’Aglio, 2017GIORDANI, J. P.; SEFFNER, F.; DELL’AGLIO, D. D. Violência escolar: percepções de alunos e professores de uma escola pública. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 103-111, 2017.). Contudo, é importante não culpabilizar as professoras, já que estão inseridas em um contexto complexo, atravessado por barreiras em nível de gestão, institucionais e sociais que diminuíam sua possibilidade de escolha/ação (Burgos, 2012BURGOS, M. Escola pública e segmentos populares em um contexto de construção institucional da democracia. Dados, Rio de Janeiro, v. 55, n. 4, p. 1015-1054, 2012.). As docentes sentiam uma grande desvalorização do professor e da escola na vida dos jovens, mas também expressavam uma frustração com sua baixa remuneração, o que, de certo modo, poderia aproximá-las das privações vividas pelos alunos. Elas não se sentiam apoiadas pela Secretaria Estadual de Educação e Cultura para desenvolver iniciativas ou mesmo atividades básicas da escola e, havia meses, tinham os salários parcelados devido à crise financeira do Estado. A escola não tinha laboratório de aprendizagem e a biblioteca, que contava com um grande acervo de livros, estava fechada devido à falta de funcionários. Com isso, entende-se que a violência estrutural também faz dos professores suas vítimas, pela falta de recursos, de infraestrutura inadequada da escola, das longas jornadas de trabalho em várias instituições, da falta de tempo e espaços para o planejamento e trabalho conjunto, bem como para o engajamento com a comunidade.

Apesar do predomínio do distanciamento quanto à realidade vivida pela comunidade, foram percebidos alguns movimentos empáticos, no sentido de problematizar o contexto de vida dos alunos. Por exemplo, durante o grupo focal, uma das professoras verbalizou: Eu faço o seguinte exercício, bom, eu já tive 13/14/15 anos e eu tento me reportar pra essa época, como a gente era quando tinha essa idade? (GF - E26). Também se pontuou que as dificuldades enfrentadas no cotidiano das famílias, tais como longas jornadas de trabalho, inserção no mercado informal, condições ambientais precárias e de estrutura familiar, podiam interferir no engajamento e no acompanhamento das atividades escolares dos jovens. Ainda, embora represente um momento pontual, destacou-se também a realização das Olimpíadas, que envolveu o trabalho colaborativo de professores e alunos quanto a temas transversais, como sexualidade, drogas, esporte e cultura.

Pensa-se que a baixa participação da comunidade está associada muito menos à falta de motivação dos pais do que à desigualdade de poder em que os ideais e os interesses estabelecidos estão centrados nas instituições e não nas necessidades e interesses das classes populares (Burgos, 2012BURGOS, M. Escola pública e segmentos populares em um contexto de construção institucional da democracia. Dados, Rio de Janeiro, v. 55, n. 4, p. 1015-1054, 2012.). De fato, a história da escola e da comunidade era marcada por um grande envolvimento comunitário e protagonismo para garantir direitos sociais (Mello, 2010MELLO, E. D. Trauma e sintoma social: resistências do sujeito entre história individual e história da cultura. 2010. Tese (Doutorado em Psicologia Social e Institucional) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.; Silva, 2002SILVA, M. K. Cidadania e exclusão: os movimentos sociais urbanos e a experiência de participação na gestão municipal de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002. ). Assim, podemos pensar que a violência ligada ao crescimento do comércio de drogas ilícitas e o acirramento das iniquidades sociais no bairro precarizavam os laços sociais e as condições de vida. Ainda, além da violência que circunda a escola, como foi discutido, a violência da escola parece promover uma separação entre alunos/moradores locais/comunidade versus professores/escola/sociedade, produzindo sofrimento social e minando a possibilidade de diálogo e relações mais solidárias.

Considerações finais

A realização deste estudo possibilitou a percepção de que a escola, inserida num contexto de macroviolências, acaba, muitas vezes, coproduzindo violências na relação com os alunos, o que chamamos de microviolências. Estas, por sua vez, geram sofrimento por meio da exclusão, preconceito, falta de oportunidades e de incentivo, incidindo negativamente sobre a saúde dos jovens. Tal situação parte de um quadro mais amplo de exclusão que envolve a restrição de direitos, como melhores condições de vida através de políticas públicas, acesso aos direitos básicos - como alimentação, educação e saúde - por parte do Estado.

Apesar de a escola ter surgido em meio a um grande envolvimento da comunidade, parece que, aos poucos, a possibilidade de uma relação mais construtiva foi se perdendo. Esse movimento era ratificado pela baixa participação das famílias no cotidiano escolar e nos relatos de esvaziamento dos espaços de controle social que eram destinados à comunidade, como, por exemplo, no Conselho Local de Saúde. Por outro lado, mesmo que limitadas, algumas iniciativas e aproximações alternativas à realidade dos alunos comprovaram a importância de que as ações nas escolas sejam pensadas e pactuadas a partir da perspectiva da própria comunidade e da territorialidade, de acordo com as necessidades dos alunos e incentivando seu desenvolvimento.

Entende-se como necessário o fortalecimento e a ampliação dos espaços de discussão permanente no cotidiano escolar, no sentido de deslocar concepções estigmatizantes sobre os alunos e as comunidades que geram ainda mais sofrimento (Giordani; Seffner; Dell’Aglio, 2017GIORDANI, J. P.; SEFFNER, F.; DELL’AGLIO, D. D. Violência escolar: percepções de alunos e professores de uma escola pública. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 21, n. 1, p. 103-111, 2017.). Nesse sentido, considera-se que novas pesquisas, incluindo a perspectiva dos alunos e suas famílias, podem aprofundar o olhar sobre os desafios e possibilidades de engajamento e redução da violência no contexto escolar, bem como para problematizar as condições macroestruturais produtoras de exclusão social.

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  • 1
    Registro do diário de campo, março de 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2019
  • Aceito
    16 Jul 2019
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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