Princípios invocados numa política intersetorial de saúde: o caso da fluoretação da água no Brasil

Antonio Carlos de Souza Neto Paulo Frazão Sobre os autores

Resumo

O objetivo foi identificar princípios invocados numa política intersetorial de saúde, tomando como caso uma proposta legislativa de revogação da fluoretação da água no Brasil apresentada em 2003. Realizou-se estudo descritivo por meio de pesquisa documental, na qual foram selecionados registros gerados na tramitação do Projeto de Lei nº 510/2003 na Câmara dos Deputados. Buscou-se destacar estratégias discursivas utilizadas pelos atores conforme o jogo de interesses e o contexto conflitivo, utilizando-se o institucionalismo histórico como referencial teórico. O Projeto de Lei tramitou 13 meses, passando pelo Plenário, por três comissões, e sendo arquivado. Três deputados de partidos distintos, órgãos do Poder Executivo federal, agências reguladoras e entidades representativas da categoria odontológica, da saúde pública/coletiva, da engenharia sanitária e das empresas de saneamento participaram diretamente do debate em que emergiram os princípios da segurança da intervenção, dos custos econômicos e do direito à saúde. Em relação às estratégias discursivas utilizadas, os principais elementos invocados no debate da política intersetorial de saúde foram o princípio da incerteza, criando-se falsas categorias científicas a fim de sobrevalorizar os efeitos desfavoráveis e sustentar a implementação de medidas individualizantes; e os princípios morais que definem diferentes tipos de bens econômicos e dimensões de liberdade associadas ao exercício de direitos.

Palavras-chave:
Política Pública; Política de Saúde; Fluoretação da Água

Introdução

Determinantes de saúde correspondem a uma variedade de condições ambientais, econômicas, sociais e pessoais que agem como causadoras do estado de saúde dos indivíduos e das populações. Essa expressão entrou para o glossário da Saúde Pública em decorrência do conceito ampliado de saúde, entre outras noções, que foram desenvolvidas do ponto de vista teórico, em resposta à consciência cada vez mais crescente relacionada às limitações dos serviços de saúde para enfrentar o envelhecimento populacional e o aumento da morbimortalidade associada às doenças não transmissíveis (WHO, 1998WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Health promotion glossary. Genebra, 1998. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2MA0KuM >. Acesso em: 20 out. 2018.
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).

Estratégias governamentais para melhorar os níveis de saúde das populações por meio de ação coordenada entre o setor saúde e os demais setores de ação estatal têm recebido grande atenção nos últimos anos, e uma variedade de iniciativas de políticas intersetoriais abrangendo aspectos como moradia, água, alimentação, trabalho, entre outros, tem sido implementada (Freiler et al., 2013FREILER, A. et al. Glossary for the implementation of Health in All Policies (HiAP). Journal of Epidemiology and Community Health, Londres, v. 67, n. 12, p. 1068-1072, 2013.; WHO, 2011WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Intersectoral action on health: a path for policy-makers to implement effective and sustainable action on health. Kobe, 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Qqz4cR >. Acesso em: 20 out. 2018.
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).

Essas iniciativas envolvem um processo político complexo que inclui atores pertencentes a diferentes setores em torno de um problema relacionado à saúde que exige a articulação de um conjunto de estratégias e atividades compartilhadas. Tal arranjo entre os setores enfrenta importantes barreiras relacionadas aos diferentes princípios políticos e valores morais, às agendas conflitantes, à competição por recursos, às evidências e à pressão de grupos de influência, entre outros aspectos (Howlett; Ramesh; Perl, 2013HOWLETT, M.; RAMESH, M.; PERL, A. O contexto da política pública. In: HOWLETT, M.; RAMESH, M.; PERL, A. Política pública: seus ciclos e subsistemas: abordagem integral. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 57-71.).

Dependendo do contexto e do processo político, a confluência de determinados interesses privados pode desmontar regulamentos públicos relacionados à saúde, à segurança e ao meio ambiente. Uma das estratégias utilizadas é a exploração da incerteza científica, colocando em dúvida a qualidade da evidência existente com o propósito de atrasar ou amenizar a ação regulatória e interditar a discussão de valores e prioridades sociais (Hoppin; Clapp, 2005HOPPIN, P. J.; CLAPP, R. Science and regulation: current impasse and future solutions. American Journal of Public Health, Washington, DC, v. 95, p. S8-S12, 2005. Suplemento 1.).

Apesar da consciência crescente da importância da compreensão dos condicionantes que levam à tomada de decisão em relação às políticas que têm por base as estratégias de saúde pública, tem sido constatado ausência de estudos que se debrucem sobre questões do processo e contexto político (Burchett et al., 2012BURCHETT, H. E. et al. National decision-making on adopting new vaccines: a systematic review. Health Policy and Planning, Oxford, v. 27, p. ii62-ii76, 2012. Suplemento 2.), incluindo as estratégias e táticas utilizadas pelas partes interessadas (Hoppin; Clapp, 2005HOPPIN, P. J.; CLAPP, R. Science and regulation: current impasse and future solutions. American Journal of Public Health, Washington, DC, v. 95, p. S8-S12, 2005. Suplemento 1.).

Como o processo de tomada de decisão no campo das políticas públicas é complexo e os tomadores de decisão sofrem múltiplas influências em torno de diferentes alternativas de políticas, investigar os valores subjacentes às estratégias discursivas presentes no debate de uma política intersetorial de saúde pode contribuir para decisões mais transparentes que reflitam uma consideração equilibrada e informada envolvendo os aspectos mais relevantes.

O objetivo foi identificar os princípios invocados numa política intersetorial de saúde, examinando a tramitação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei de revogação da fluoretação da água no Brasil.

Métodos

Realizou-se um estudo descritivo por meio de pesquisa documental, tomando como caso o Projeto de Lei (PL) nº 510/2003 apresentado na Câmara dos Deputados do Congresso Nacional do Brasil. Este caso foi selecionado por pleitear a revogação da Lei nº 6.050, de 24 de maio de 1974, que “dispõe sobre a fluoretação da água em sistemas de abastecimento quando existir estação de tratamento”, uma importante tecnologia de saúde pública recomendada por eminentes instituições científicas, sanitárias e profissionais ao redor do mundo em decorrência de sua efetividade e segurança (Kumar, 2008KUMAR, J. V. Is water fluoridation still necessary? Advances in Dental Research, Thousand Oaks, v. 20, n. 1, p. 8-12, 2008.). Embora presente em mais de 25 países no mundo, a maioria da população com acesso ao benefício residia nos EUA (US-DHHSF, 2015US-DHHSF - U.S. DEPARTMENT OF HEALTH AND HUMAN SERVICES FEDERAL. Panel on community water fluoridation: U.S. Public Health Service recommendation for fluoride concentration in drinking water for the prevention of dental caries. Public Health Reports, Thousand Oaks, v. 130, n. 4, p. 318-331, 2015.), Brasil (Frazão; Narvai, 2017FRAZÃO, P.; NARVAI, P. C. Water fluoridation in Brazilian cities at the first decade of the 21st century. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, p. 1-11, 2017.) e Austrália (Manton et al., 2018MANTON, D. J. et al. Australia’s oral health tracker: technical paper 2018-02, Australian Health Policy Collaboration, Victoria University, Melbourne, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2SywKDo >. Acesso em: 10 nov. 2018.
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), países populosos em que mais da metade dos habitantes estavam cobertos pela medida na primeira década do século XXI.

De modo similar a muitos países, o Brasil é uma democracia capitalista multipartidária. Em 2008, cerca de 80% da população tinha acesso à água tratada e 75% acesso à fluoretação (Frazão; Narvai, 2017FRAZÃO, P.; NARVAI, P. C. Water fluoridation in Brazilian cities at the first decade of the 21st century. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, p. 1-11, 2017.). Embora o país tenha experimentado uma fase de crescimento e redução de desigualdades, sua posição no ranking dos indicadores sociais se mantém muito aquém em relação à sua posição no ranking dos indicadores econômicos: em 2016, o Brasil ocupava a 9ª posição em relação à renda nacional bruta e a 90ª em relação à expectativa de vida ao nascer (World Bank, 2018WORLD BANK. Data and statistics. 2018. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/39eANuJ >. Acesso em: 10 nov. 2018.
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).

As fontes documentais foram o sítio eletrônico e o Diário Oficial da Câmara dos Deputados, do Poder Executivo e o Jornal do Conselho Federal de Odontologia. Áudios, textos de discursos proferidos, atas das reuniões ordinárias das comissões, pareceres técnicos e notícias em veículos de divulgação de entidades profissionais gerados durante a tramitação do PL (entre 2003 e 2004) foram utilizados para compor o material da pesquisa, buscando-se identificar os conteúdos e núcleos de sentido relativos ao debate da proposição segundo as ideias, princípios e instituições subjacentes, conforme acepção de North (1991NORTH, D. C. Institutions. Journal of Economic Perspectives, Nashville, v. 5, n. 1, p. 97-112, 1991.), a fim de permitir a interpretação do contexto conflitivo presente nos posicionamentos com base no institucionalismo histórico, um referencial teórico que privilegia na compreensão da realidade, o modo como as instituições funcionam e exercem influência sobre os comportamentos individuais, coletivos e sobre a tomada de decisão ao longo do tempo (Lima; Machado; Gerassi, 2015LIMA, L. D.; MACHADO, C. V.; GERASSI, C. D. O neoinstitucionalismo e a análise de políticas públicas de saúde: contribuições para uma reflexão crítica. In: MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. Caminhos para análise das políticas de saúde. Porto Alegre: Rede Unida, 2015. p. 181-219.).

Nesse sentido, partiu-se da premissa de que os valores instituídos exercem importante impacto na modelação de restrições e de oportunidades que vão se manifestar no debate das políticas públicas direcionando o caminho a ser seguido na tomada de decisão de uma determinada política pública (Hall; Taylor, 2003HALL, P. A.; TAYLOR, R. C. R. As três versões do neoinstitucionalismo. Lua Nova, São Paulo, n. 58, p. 193-223, 2003.; North, 1991NORTH, D. C. Institutions. Journal of Economic Perspectives, Nashville, v. 5, n. 1, p. 97-112, 1991.).

Resultados

Conforme o Quadro 1, o PL tramitou durante 13 meses. De acordo com o Regimento Interno, foi apresentado à Mesa Diretora do Congresso Nacional, numerado e despachado para a Comissão de Seguridade Social e da Família, onde foi rejeitado em 8/10/2003 por unanimidade. Após ser pautado pela Comissão de Minas e Energia e pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação, foi aberto prazo para recurso contra o arquivamento. O PL foi arquivado em 14/04/2004. Três deputados de partidos distintos, órgãos do Poder Executivo federal e de agências reguladoras e entidades representativas da saúde pública/coletiva, da engenharia sanitária, da categoria odontológica e das empresas de saneamento participaram diretamente do debate.

Quadro 1
Tramitação do Projeto de Lei

No Quadro 2, encontram-se os excertos do material documental resultante da tramitação do PL, destacando-se os núcleos de sentido das narrativas apresentadas pelos principais atores durante o processo. Enquanto numa ponta do debate observou-se a estratégia de sublinhar possíveis malefícios (envenenamento, osteoporose, câncer) decorrentes da medida, os custos injustificados e a defesa do acesso ao fluoreto somente por meio de uma abordagem individualizante em consultório odontológico, na outra ponta foi reiterada a força das evidências científicas existentes a favor da política pública, suas vantagens econômicas e sua compatibilidade com diretrizes de saúde previstas na Constituição de 1988. Frente ao conteúdo apresentado, alguns princípios subjacentes que centraram o debate da política pública intersetorial foram destacados para a próxima seção, entre os quais a segurança da intervenção de saúde pública, os custos econômicos envolvidos e a relação entre a liberdade individual e o direito à saúde.

Quadro 2
Excertos das narrativas do material documental resultantes da tramitação do Projeto de Lei segundo a data, o ator e o documento

Discussão

Princípios invocados no debate de uma política intersetorial de saúde foram identificados por meio do presente estudo. Essa política consiste em uma ação intencional que visa manter ou alcançar um determinado nível de saúde na população, seja por meio da promoção da saúde ou da prevenção de doenças, seja por meio da oferta de determinados serviços e programas de saúde. Essa ação é, geralmente, instituída por meio de dispositivo normativo que pode abranger desde leis mais gerais, que regulam um país ou região, até normas mais específicas, de âmbito local e organizacional.

A principal contribuição do caso examinado foi mostrar que, a despeito do complexo governamental dispor de autoridade para aprovar ou vetar a aplicação de medidas que têm efeitos sobre a saúde da população, em países de regime democrático, lideranças políticas e representações da sociedade têm papel importante nesse âmbito, apoiando-se, entre outros, em diferentes interesses comunitários, de identidade e de mercado ligados a determinados princípios. A extensão e o grau de qualquer intervenção em saúde pública são sustentados nesses regimes ao longo do tempo, conforme a força da autoridade social ou cultural e o nível de mobilização dos indivíduos e organizações que aspiram ou que resistem ao dispositivo normativo. Numa expressão-chave, a implementação e a manutenção ou interrupção de tais intervenções dependem, em última instância, das relações Estado-sociedade. Em tempos de aceleradas transformações e crescentes desafios, conhecer esses princípios é tarefa crucial dos profissionais de saúde pública (Hunter, 2010HUNTER, D. J. Meeting the public health challenge in the age of austerity. Journal of Public Health, Oxford, v. 32, n. 3, p. 309, 2010.).

Como toda política pública, o ajuste da concentração de fluoreto dos sistemas de abastecimento de água também expressa uma forma de regulação dessas relações e envolve múltiplos interesses e valores. No presente caso, destacaram-se a segurança da intervenção de saúde pública, os custos econômicos envolvidos e a relação entre a liberdade individual e o direito à saúde.

De modo análogo à fluoretação da água, várias políticas públicas têm sido objeto de debates em relação à segurança da intervenção, entre as quais, a iodação do sal de cozinha (Pearce; Andersson; Zimmermann, 2013PEARCE, E. N.; ANDERSSON, M.; ZIMMERMANN, M. B. Global iodine nutrition: where do we stand in 2013? Thyroid, Larchmont, v. 23, n. 5, p. 523-528, 2013.), a imunização (Burchett et al., 2012BURCHETT, H. E. et al. National decision-making on adopting new vaccines: a systematic review. Health Policy and Planning, Oxford, v. 27, p. ii62-ii76, 2012. Suplemento 2.) e até mesmo a cloração da água de abastecimento público (Gopal et al., 2007GOPAL, K. et al. Chlorination by products, their toxicodynamics and removal from drinking water. Journal of Hazardous Materials, Amsterdã, v. 140, n. 1-2, p. 1-6, 2007.).

No presente estudo, a segurança da intervenção foi colocada em questão recorrendo-se ao artifício de associar uma tecnologia de saúde pública a um problema que afeta algumas regiões do planeta cujas populações dependem de fontes de água com fluoreto de ocorrência natural em níveis muito elevados e impróprios para a saúde humana (Quadro 2). Sem a identificação dos aspectos distintivos que caracterizam cada situação, o interlocutor pode ficar confuso. Trata-se de um artifício por meio do qual contextos específicos de uma situação são misturados em outra completamente distinta. Conhecimentos oriundos de pesquisas robustas fora de seu contexto original podem mais facilmente ser deslocados para o terreno da ciência provisória a fim de explorar fontes de incerteza, sobrevalorizar variações experimentais ou epidemiológicas insignificantes, enfraquecer os significados dos resultados e disseminar dúvidas sobre a segurança da intervenção. Alguns especialistas têm chamado atenção para o enfoque desproporcional com que os resultados podem ser interpretados, demonstrando a falta de entendimento do método científico (Freeze; Lehr, 2009FREEZE, R. A.; LEHR, J. H. The fluoride wars: how a modest public health measure became America’s longest-running political melodrama. Hoboken: John Wiley and Sons, 2009.).

Essa estratégia narrativa tem sido documentada em determinados casos em que organizações financiadas pela indústria desafiaram evidências robustas que demonstravam ligações entre exposição e doença em humanos. Interesses não explícitos poderiam manipular a ciência e criar falsas categorias a fim de influenciar decisões que afetam a vida de toda a população que depende de políticas intersetoriais (Hoppin; Clapp, 2005HOPPIN, P. J.; CLAPP, R. Science and regulation: current impasse and future solutions. American Journal of Public Health, Washington, DC, v. 95, p. S8-S12, 2005. Suplemento 1.).

Em relação à fluoretação da água de abastecimento, o debate tende a assumir uma forma bipolar, tratando a política intersetorial ora como uma vantagem reconhecida pela sua força enquanto medida preventiva de saúde, ora como uma desvantagem, alegando-se que seria um poluente tóxico para o corpo humano e ecossistema (Mendoza, 2011MENDOZA, R. L. Flouride-treated water and the problem of merit goods. Water Policy, Hoboken, v. 13, n. 1, p. 38-52, 2011.). O exame das revisões sistemáticas publicadas entre os anos 2000 e 2009 mostrou que a fluoretação da água entre 0,6 e 0,9 mg F/L é efetiva para prevenção da cárie e segura para a saúde humana, sendo a fluorose uma alteração caracterizada pela hipomineralização do esmalte dentário, o único efeito indesejável decorrente da medida (Frazão; Perez; Cury, 2011FRAZÃO, P.; PERES, M. A.; CURY, J. Drinking water quality and fluoride concentration. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 45, n. 5, p. 964-973, 2011.).

Efeitos indesejáveis em algum grau podem estar presentes em qualquer política pública de saúde. Uma das estratégias discursivas utilizadas por determinados agentes econômicos é a sobrevalorização dos aspectos desfavoráveis de uma política intersetorial, a fim de favorecer a instituição de medidas individualizantes que possam ser transformadas em mercadoria.

Como existe uma forte tendência de supor que a solução primária dos problemas de saúde envolve assistência médica individual, os formuladores de políticas geralmente focam em medidas para amenizar as barreiras de acesso financeiro e geográfico a serviços pessoais de saúde dos grupos populacionais mais vulneráveis. Dependendo da viabilidade econômica, da extensão e da profundidade, esta abordagem pode produzir ganhos de saúde, mas, de modo geral, negligencia as principais causas sociais e econômicas da vulnerabilidade e das desigualdades em saúde. Embora o acesso à assistência individual seja um componente necessário, ações intersetoriais junto aos determinantes de saúde são essenciais para elevar os níveis de saúde da população (Lantz; Lichtenstein; Pollack, 2007LANTZ, P. M.; LICHTENSTEIN, R. L.; POLLACK, H. A. Health policy approaches to population health: the limits of medicalization. Health Affairs, Bethesda, v. 26, n. 5, p. 1253-1257, 2007.).

Assim, toda atenção deveria estar concentrada nos dados e informações trazidos ao debate e no impacto que a interrupção de determinada política de saúde poderia gerar na população ou na parcela que dela mais se beneficia. Esse aspecto fica mais visível quando é colocada a ideia de que a fluoretação da água seria economicamente inviável, trazendo um ônus ao poder público, cujos recursos poderiam ser direcionados para outras ações. Essa estratégia narrativa se apoia na defesa de que as ações preventivas usando fluoreto deveriam ser de cunho individual e clínico, ou seja, os indivíduos deveriam ter acesso a aplicações tópicas de flúor e procedimentos concernentes à orientação de higiene bucal por meio da consulta odontológica. Assim, subjacente ao argumento da proposição contrária à fluoretação, estaria a ideia de transformar um bem semipúblico, como a água de abastecimento ajustada para fins de prevenção de cárie dentária, que propicia acesso ao fluoreto a todas as famílias que fazem uso da rede de tratamento, de uma forma bastante custo-efetiva (Ran; Chattopadhyay; Force, 2016RAN, T.; CHATTOPADHYAY, S. K.; FORCE, C. P. S. T. Economic evaluation of community water fluoridation: a community guide systematic review. American Journal of Preventive Medicine, Amsterdã, v. 50, n. 6, p. 790-796, 2016.), em um bem cujo acesso dependeria de consultas odontológicas.

Ao contrário dos bens privativos, como um carro que é pago por um único consumidor, excluindo outros de usufruírem dele, a fluoretação da água de abastecimento pode ser considerada um bem semipúblico, pois os custos de provimento para um consumidor adicional são insignificantes (os custos adicionais para novas moradias abastecidas são desprezíveis) e nenhum indivíduo é excluído do seu consumo, sendo que alguns inclusive podem fazer uso sem pagar por ele (Mendoza, 2011MENDOZA, R. L. Flouride-treated water and the problem of merit goods. Water Policy, Hoboken, v. 13, n. 1, p. 38-52, 2011.).

A questão econômica também importa no debate de outras políticas intersetoriais, como a imunização (Burchett et al., 2012BURCHETT, H. E. et al. National decision-making on adopting new vaccines: a systematic review. Health Policy and Planning, Oxford, v. 27, p. ii62-ii76, 2012. Suplemento 2.; Tapia-Conyer et al., 2013TAPIA-CONYER, R. et al. Strengthening vaccination policies in Latin America: an evidence-based approach. Vaccine, Amsterdã, v. 31, n. 37, p. 3826-3833, 2013.), o enriquecimento de alimentos com vitamina A (Jallier et al., 2013JALLIER, V. et al. The global, centralized approach of the GAIN Premix Facility has made oil fortification in Indonesia more affordable. Food and Nutrition Bulletin, Thousand Oaks, v. 34, n. 2, p. S43-S49, 2013. Suplemento 1.) e a iodação do sal de cozinha (Pearce; Andersson; Zimmermann, 2013PEARCE, E. N.; ANDERSSON, M.; ZIMMERMANN, M. B. Global iodine nutrition: where do we stand in 2013? Thyroid, Larchmont, v. 23, n. 5, p. 523-528, 2013.). Enquanto, nesses casos, todo o esforço tem sido no sentido de encontrar fontes de financiamento para expandir a cobertura dessas políticas, no caso da proposta de revogação da fluoretação da água, a intenção era condicionar o acesso ao poder de compra de cada um, ou seja, a capacidade de acesso aos bens de consumo num ambiente de negócios, ignorando as evidências acerca do custo-benefício da política de saúde pública. Cerca de 32 dólares por habitante foram economizados devido à fluoretação nos EUA em 2013 (O’Connell et al., 2016O’CONNELL, J. et al. Costs and savings associated with community water fluoridation in the United States. Health Affairs, Bethesda, v. 35, n. 12, p. 2224-2232, 2016.). No Brasil, os custos da fluoretação também são extremamente baixos comparados a qualquer outra alternativa de intervenção (Frias et al., 2006FRIAS, A. C. et al. Custo da fluoretação das águas de abastecimento público: estudo de caso: município de São Paulo, Brasil, período de 1985-2003. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 6, p. 1237-1246, 2006.; Martinez et al., 2013MARTINEZ, E. H. S. et al. Per capita cost of fluoridating the public water supply in a large municipality. Revista Gaúcha de Odontologia, Campinas, v. 61, n. 4, p. 549-556, 2013.).

Essa estratégia narrativa relaciona-se com o princípio do direito à saúde. Enquanto num polo do debate esse princípio é traduzido como direito individual de acesso a serviços odontológicos para aplicações de flúor de forma controlada em nível ambulatorial, no outro polo predominam valores ligados ao conceito ampliado de saúde e suas implicações no direito à saúde, sustentando a abrangência e a efetividade da estratégia de saúde pública, inclusive para diminuir a necessidade da assistência odontológica ambulatorial.

Desse modo, subjacente à defesa da liberdade individual, estaria a opção pela promoção de políticas de liberalização econômica que favoreceriam a acumulação de riquezas e a concentração da apropriação de bens cujo efeito é o aprofundamento da desigualdade social, e pela negação da saúde enquanto uma esfera para o exercício de direitos.

O debate parece refletir a disputa entre as duas concepções de liberdade. De um lado, o conceito negativo de liberdade que é associado aos direitos civis e ao liberalismo clássico, ou seja, à noção de que o Estado não deve interferir na liberdade e propriedade dos cidadãos, cujos interesses devem ser considerados legítimos desde que não ameacem os direitos de outros cidadãos. E, de outro lado, o conceito positivo de liberdade associado aos direitos políticos e sociais, a liberdade de participar do governo, deliberar e fiscalizar a alocação do recurso público (Bresser-Pereira, 2002BRESSER-PEREIRA, L. C. Citizenship and res publica: the emergence of republican rights. Citizenship Studies, Londres, v. 6, n. 2, p. 145-164, 2002.).

Para alguns atores políticos, essas concepções se rivalizam, enquanto para outros se complementam. Aqueles que as posicionam em polos opostos consideram os direitos individuais mais importantes do que os direitos políticos e sociais, como se o cidadão liberal que protege seus próprios interesses e o cidadão republicano que protege os interesses gerais não representassem duas dimensões interdependentes do mesmo estatuto. Na concepção mais extrema, não se reconhece que os direitos individuais só podem ser garantidos dentro de uma sociedade em que a ação coletiva é eficaz na criação de instituições liberais e democráticas que asseguram tanto sua aplicação quanto os direitos coletivos, que também são direitos de cada cidadão individual.

Nessa visão bipolar, as políticas intersetoriais de saúde são falsamente retratadas como uma escolha entre a responsabilidade individual versus a restrição de liberdade. As consequências para a saúde da população decorrentes da omissão das autoridades sanitárias não são vistas como uma opção regulatória. É como se a ausência de um local de trabalho livre de cigarro não fosse considerada uma decisão política que engendra maior exposição do trabalhador a agentes cancerígenos e risco aumentado de doença miocárdica aguda (Chokshi; Stine, 2013CHOKSHI, D. A.; STINE, N. W. Reconsidering the politics of public health. JAMA, Chicago, v. 310, n. 10, p. 1025-1026, 2013.).

Superar essa visão bipolar e reconhecer que são igualmente necessários tanto os direitos que protegem os cidadãos contra um Estado poderoso quanto os direitos que protegem o Estado contra os cidadãos poderosos é uma tarefa crucial para as lideranças sanitárias no importante e legítimo debate sobre o papel apropriado das abordagens regulatórias para melhorar a saúde das populações. Por abranger ambas as dimensões, a Declaração Universal dos Direitos Humanos constitui-se num importante instrumento para orientar tais decisões.

Nos Estados Unidos, onde mais de 70% da população é beneficiada pela política pública, processos judiciais nas cortes americanas de apelação para a interrupção da medida têm sido negados por várias razões, entre as quais por se justificar que os estatutos para a instituição da fluoretação são exercícios válidos de regulação estatal. Direitos privativos não são absolutos e devem ser modulados em nome de objetivos coletivos legitimamente adquiridos e relacionados aos meios de aplicação da lei (Mendoza, 2011MENDOZA, R. L. Flouride-treated water and the problem of merit goods. Water Policy, Hoboken, v. 13, n. 1, p. 38-52, 2011.).

Numa visão na qual os direitos se complementam, a fluoretação não violaria direitos individuais de escolha por se tratar de um elemento que naturalmente está presente nos mananciais superficiais e subterrâneos. A água, ao ser captada e tratada, tem seu teor ajustado para a concentração considerada ótima na prevenção da cárie dentária em níveis inferiores ao valor máximo permitido do ponto de vista da sua potabilidade. Não promover o ajuste, ao contrário, pode significar aumento do risco de novas lesões de cárie dentária, principalmente entre os segmentos sociais mais numerosos e de piores condições socioeconômicas. Valores concernentes ao direito coletivo impulsionariam a aprovação de normas em favor dos segmentos sociais mais numerosos, excluídos e de piores condições socioeconômicas. Por se constituir em uma medida de saúde pública segura, barata, efetiva e abrangente, sua implementação deveria expressar a decisão coletiva associada ao exercício do direito à saúde enquanto um direito humano universal.

Neste estudo, foram identificados e discutidos três princípios colocados no debate de uma política pública intersetorial a partir da investigação da tramitação do PL 510/2003, que propunha a revogação da fluoretação da água no Brasil. Embora os limites entre o fenômeno e o contexto não estejam claramente definidos, e o delineamento não permita a generalização das conclusões, admite-se que o estudo possa ser útil para a compreensão do cenário de tensões e disputas em torno dos valores que envolvem iniciativas de políticas intersetoriais de saúde em países de democracia capitalista multipartidária.

Em relação às estratégias discursivas utilizadas, pode-se concluir, com base nos resultados apresentados, que o princípio da incerteza - criando-se falsas categorias científicas a fim de sobrevalorizar os efeitos desfavoráveis e sustentar a implementação de medidas individualizantes - e os princípios morais - que definem diferentes tipos de bens econômicos e dimensões de liberdade associadas ao exercício de direitos - foram os principais elementos invocados no debate da política intersetorial de saúde.

Referências

  • BRESSER-PEREIRA, L. C. Citizenship and res publica: the emergence of republican rights. Citizenship Studies, Londres, v. 6, n. 2, p. 145-164, 2002.
  • BURCHETT, H. E. et al. National decision-making on adopting new vaccines: a systematic review. Health Policy and Planning, Oxford, v. 27, p. ii62-ii76, 2012. Suplemento 2.
  • CHOKSHI, D. A.; STINE, N. W. Reconsidering the politics of public health. JAMA, Chicago, v. 310, n. 10, p. 1025-1026, 2013.
  • FRAZÃO, P.; NARVAI, P. C. Water fluoridation in Brazilian cities at the first decade of the 21st century. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, p. 1-11, 2017.
  • FRAZÃO, P.; PERES, M. A.; CURY, J. Drinking water quality and fluoride concentration. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 45, n. 5, p. 964-973, 2011.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2019
  • Aceito
    10 Set 2019
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br