Sem “Loas” na juventude e aposentadoria em risco: uma autoetnografia sobre o ativismo por direitos em HIV/aids11O termo "Loas" do título em português faz um jogo de palavras com o acrônimo da Lei Orgânica de Assistência Social, conhecida como "Loas", e a palavra "loas", que significa "louvor", "apreço" e "simpatia".

Carolina Iara de Oliveira Arlene Ricoldi Sobre os autores

Resumo

Este artigo busca contar as narrativas de jovens que nasceram com HIV apresentadas em rodas de conversa de um Grupo de Trabalho sobre Transmissão Vertical do HIV e JuventudesREDE de Jovens São Paulo Positivo. Ata da 2ª reunião do Grupo de Trabalho sobre Transmissão Vertical e Juventudes. São Paulo, 31 maio 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.facebook.com/notes/3720943314635566/ >. Acesso em: 22 mai. 2021.
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. Os temas abordados dizem respeito à empregabilidade e benefícios sociais, bem como analisam a perda de aposentadorias por Pessoas Vivendo com HIV/aids (PVHA) no período de 2016 a 2019. O método utilizado para esta pesquisa qualitativa é a autoetnografia de uma ativista travesti negra e intersexo, além da análise documental de atas, notícias, memórias de reuniões, anotações pessoais e legislações, tendo como escolha conceitual de análise a interseccionalidade.

Palavras-chave:
Interseccionalidade; HIV; Ativismo; Direitos; Empregabilidade

Introdução

O HIV é o vírus da imunodeficiência humana, causador da aids (síndrome da imunodeficiência adquirida), patologia que ataca o sistema imunológico, que é o responsável por defender o organismo de doenças - é o que diz o portal do Departamento de Doenças Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) do Ministério da Saúde brasileiro. No Brasil, a resposta à epidemia teve início em 1983, primeiramente em São Paulo, com a criação do primeiro serviço especializado no atendimento à aids, denominado Programa Estadual de DST22DST: Doença Sexualmente Transmissível, termo que aos poucos vem sendo substituído por Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST)./Aids de São Paulo - segundo dados do portal desta instituição -, e depois formou-se o Programa Brasileiro de Aids.

A epidemia de aids teve uma transformação no Brasil a partir de 1996. Com a chegada da Terapia Antirretroviral (TAR)33A TAR consiste em fármacos, popularmente nomeados “coquetéis”, que conseguem suprimir a quantidade de HIV no organismo e impedir que o HIV desenvolva sintomas e culmine no estágio de aids (Tancredi, 2010). e o acesso universal ao tratamento disponibilizado a todas as Pessoas Vivendo com HIV/aids (PVHA), elas conseguiram ter uma expectativa de vida muito maior. Eu mesma uso essas medicações desde 2014, portanto, já me enquadro como alguém com infecção crônica. Assim, as PVHA deixaram de ser aposentadas ou de receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC)44Trata-se de benefício de assistência social, no valor de um salário mínimo mensal, pago a idosos (acima de 65 anos) ou pessoas de qualquer idade com deficiência que impossibilite o próprio sustento. Para recebê-lo, é necessário comprovar renda familiar per capita menor que 1/4 do salário mínimo. É preciso passar por avaliação médica e social pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Não é necessária a contribuição ao INSS, pois é benefício de natureza assistencial. Os beneficiários do BPC também podem receber descontos nas tarifas de energia elétrica (Tarifa Social de Energia) (Brasil, 2019b). da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), que são direitos e benefícios do sistema de seguridade social, uma vez que já estariam aptas ao trabalho.

Mesmo com todo esse avanço na implantação do tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), há ainda desigualdades raciais e de gênero que impactam a epidemia no país. Com relação à raça, podemos observar os dados apresentados pelo Ministério da Saúde em um boletim epidemiológico de 2020: do total de 342.459 casos registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) entre 2007 e junho de 2020, 50,7% ocorreram entre negros (pretos, 10,7%, e pardos, 40,0%) e 40,1% entre brancos. Entre os homens, 41,7% dos casos ocorreram entre brancos e 49,2% entre negros (pretos, 9,8%, e pardos, 39,4%); entre as mulheres, a desigualdade na infecção entre brancas e negras é maior: 36,6% dos casos se deram entre brancas e 54,3% entre negras - pretas, 12,9%, e pardas, 41,4% (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim epidemiológico. HIV/Aids 2020. Brasília, DF, n. esp., dez. 2020. Disponível em: <Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/boletim-epidemiologico-hivaids-2020 >. Acesso em: 25 abr. 2021.
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).

Com relação à mortalidade por aids, essa iniquidade racial e de gênero é maior. Dos 10.565 óbitos notificados em 2019, 61,7% foram de pessoas negras, sendo que as mulheres negras apresentaram maior percentual: 62,1% das mortes de mulheres. O boletim ainda nos informa que entre 2009 e 2019, verificou-se queda de 21,0% na proporção de óbitos de pessoas brancas e crescimento de 19,3% na proporção de óbitos de pessoas negras. Esses dados nos demonstram que há maior vulnerabilidade da população negra (em especial das mulheres negras) em relação à epidemia.

Além disso, a questão do trabalho e renda também deve ser considerada na epidemia. A estimativa é que de 60 a 70% da população que vive com HIV esteja fora do mercado de trabalho formal, segundo informações divulgadas em uma reunião interministerial de 2016 entre os Ministérios da Saúde, do Trabalho e da Previdência Social (BRASIL, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. TELELAB. Inserção de pessoas vivendo com HIV é tema de reunião interministerial. Brasília, DF, 21 fev. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://telelab.aids.gov.br/index.php/2013-11-14-17-44-09/item/373-insercao-de-pessoas-vivendo-com-hiv-aids-no-mercado-de-trabalho-e-tema-de-reuniao-interministerial >. Acesso em: 1 ago. 2021.
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). Nos últimos quatro anos, a previdência e a assistência social se tornaram demandas políticas importantes para as PVHA, por conta da perda tanto do BPC por adolescentes e jovens adultos (sobretudo as(os) nascidas(os) com HIV) como das aposentadorias de idosos vivendo com HIV obtidas antes da existência da terapia anti-HIV.

Em 2016 iniciou-se um processo de verificação de fraudes com o intuito de reduzir gastos com a previdência. Nesse processo, PVHA que viviam com benefícios e aposentadorias por invalidez, algumas há mais de duas décadas, foram “desaposentadas” pela avaliação de que estariam aptas ao trabalho (direitos da pessoa..., 2019DIREITOS da pessoa com HIV: Entenda a aposentadoria por invalidez e o que fazer caso tenha perdido o benefício. Agência de Notícias da Aids, São Paulo, 14 mar. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://agenciaaids.com.br/noticia/direitos-da-pessoa-com-hiv-entenda-a-aposentadoria-por-invalidez-e-o-que-fazer-caso-tenha-perdido-o-beneficio/ >. Acesso em: 30 mar. 2020.
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). Ao mesmo tempo, jovens e crianças nascidos com HIV, ainda que tendo direito ao BPC, passaram a enfrentar dificuldades para obtê-lo que se tornaram crescentes com o processo de revisão do benefício, bem como quem já o tinha encarou a insegurança de perdê-lo.

Acompanhei algumas dessas lutas como ativista do movimento social de aids, das quais duas são destacadas neste artigo: jovens beneficiários de BPC, participantes do Grupo de Trabalho (GT) de Transmissão Vertical do HIV55O termo “transmissão vertical” diz respeito ao contágio do HIV no momento do parto, mas comumente também engloba as PVHA que se infectaram na infância. Para se referir à esta população, também podemos usar a expressão “pessoas nascidas com HIV” e Juventudes da Rede de Jovens São Paulo Positivo (RJSP+) e do Centro de Referência e Treinamento (CRT) em DST/aids de São Paulo; e no caso das desaposentações, por meio do Coletivo Loka de Efavirenz66Disponível em: <https://www.facebook.com/LokadeEfavirenz/>. Acesso em: 8 abr. 2020.,77Efavirenz é um medicamento antirretroviral, que foi medicação protocolar para o tratamento anti-HIV logo após o diagnóstico da maioria das PVHA brasileiras até início de 2019. Seu uso foi suspenso por efeitos colaterais relacionados ao sistema nervoso e a sofrimentos psíquicos em alguns pacientes. (TESTA et. al., 2009)., do qual também faço parte, que recebeu vários pedidos de ajuda para a divulgação de atos políticos, abaixo-assinados e mobilizações do ciberativismo.

Neste artigo, busco vocalizar essas lutas sob minha perspectiva, de ativista, socialista, pessoa negra, travesti, intersexo e que vive com HIV/aids, além de trabalhadora da saúde pública e pesquisadora. Pretendo contar rapidamente, por meio de um tratamento etnográfico de minhas andanças e dos relatos que testemunhei no ativismo em HIV/aids relacionados a essa temática e, com o auxílio de registros espontâneos, não intencionais, de relatórios de eventos, atas, anotações em papéis kraft pelos jovens em rodas de conversa, anotações em meus cadernos pessoais, de conversas com pessoas com quem convivi na época e que ainda me são muito próximas e, obviamente, minha própria memória.

Para além desta introdução, na primeira parte do texto exploro minhas escolhas conceituais e metodológicas, com o auxílio da etnografia e do conceito da interseccionalidade aplicado à epidemia de aids. Logo em seguida, o texto se encaminha para a análise das percepções das e dos jovens (com faixa etária de 18 a 29 anos) com as(os) quais atuei como ativista entre 2016 e 2019, e suas trajetórias com a epidemia de aids e as relações com trabalho, emprego e renda; ao final dessa seção, explano o que acompanhei sobre a perda das aposentadorias por algumas PVHA.

As escolhas metodológicas e conceituais

Essa é a escrita de uma vivência atravessada por opressões de gênero, de raça e de classe social, e também de ativismo político, especialmente em movimentos sociais e correntes socialistas de partidos de esquerda. Para esse relato, faço uso livremente de referenciais que partem: (1) da etnografia e da autoetnografia (Ellis; Adams; Bochner, 2011ELLIS, C.; ADAMS, T. E.; BOCHNER, A. P. Autoethnography: an overview. Historical Social Research, Colônia, v. 36, n. 4, p. 273290, 2011. DOI: 10.12759/hsr.36.2011.4.273-290
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; Geertz, 2008GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.; Williams, 2011WILLIAMS, R. Base e superestrutura na teoria da cultura marxista. In: WILLIAMS, R. Cultura e Materialismo. Tradução de André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.); (2) da perspectiva da interseccionalidade, nascida do feminismo negro e da análise segundo a qual os marcadores de raça, gênero e classe social são fundamentais e indissociáveis para entender as dinâmicas sociais (Collins, 2017COLLINS, P. H. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Revista Parágrafo, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 617, 2017.; Davis, 2017DAVIS, A. Mulheres, cultura e política. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2017.; Gonzalez, 1979GONZALEZ, L. A juventude negra brasileira e a questão do desemprego. In: Conferência Anual do African Heritage Studies Association, 2., 1979, Pittsburgh. Resumos [...]. East Point: AHSA, 1979. Disponível em: <Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/gonzalez/1979/04/28.pdf >. Acesso em: 22 maio 2021.
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; Hirata, 2014HIRATA, H. Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 6173, 2014. DOI: 10.1590/S0103-20702014000100005
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); e (3) do estigma da aids (Goffman, 1981GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Mathias Lambert. 4. ed. São Paulo: LTC, 1981.; Parker; Aggleton, 2001PARKER, R.; AGGLETON, P. Estigma, discriminação e Aids. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, 2001. (Coleção ABIA, Cidadania e Direitos, n. 1).).

Segundo Geertz (1973), etnografia é uma descrição densa, detalhada, de uma cultura, a partir da experiência e, sobretudo, da interpretação daquele que está em campo fazendo a observação participante. O antropólogo tem uma noção semiótica de cultura; nesse sentido, etnografia como descrição densa interpretativa é, portanto, “algo construído, algo modelado” pelo(a) antropólogo(a), uma espécie de ficção, sobretudo quando se fala de uma cultura da qual o(a) pesquisador(a) não é nativo(a).

Já a autoetnografia, segundo Ellis, Adams e Bochner (2011ELLIS, C.; ADAMS, T. E.; BOCHNER, A. P. Autoethnography: an overview. Historical Social Research, Colônia, v. 36, n. 4, p. 273290, 2011. DOI: 10.12759/hsr.36.2011.4.273-290
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), além de buscar uma descrição densa porque também é etnografia, procura elaborar descrições estéticas e evocativas da experiência pessoal e interpessoal no campo. Isso pode ser alcançado através de experiência cultural em determinado grupo ou território, evidenciada por notas de campo, entrevistas, artefatos, memórias pessoais; posteriormente, comunica-se tudo isso por meio de uma narrativa autoral e pessoal. Nessa história narrativa, o pesquisador também é personagem e faz parte da trama com sua experiência pessoal e sentimentos, de certo modo, afeta e é afetado pela cultura que conta, sendo ou não “nativo”. Por esse motivo, optei pela autoetnografia como método para contar essa experiência.

A autoetnografia é, portanto, a combinação das características de autobiografia e etnografia; como tal, não basta ao etnógrafo apenas contar suas experiências pessoais em campo, mas é necessário também analisá-las culturalmente (e historicamente). Nesse ínterim, podemos dizer que autoetnografia é processo (de investigação e análise) e ao mesmo tempo produto (de narração das experiências e escolhas teóricas da autora) (Ellis; Adams; Bochner, 2011ELLIS, C.; ADAMS, T. E.; BOCHNER, A. P. Autoethnography: an overview. Historical Social Research, Colônia, v. 36, n. 4, p. 273290, 2011. DOI: 10.12759/hsr.36.2011.4.273-290
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).

Acrescento como pano de fundo que, dentro da cultura, há também disputas por poder e dominação, principalmente nas sociedades capitalistas. É o que aponta Raymond Williams (2011WILLIAMS, R. Base e superestrutura na teoria da cultura marxista. In: WILLIAMS, R. Cultura e Materialismo. Tradução de André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.) ao afirmar que existe hegemonia dos setores dominantes da sociedade (sobretudo das elites econômicas) na estrutura, nas instituições e nos diversos instrumentos de socialização que atuam na formação de costumes, do senso-comum, de signos e símbolos, visando perpetuar o status quo - as classes sociais e as estruturas de poder. Porém, essa relação não é estática.

No meu caso, eu era “nativa” em certa medida por viver com HIV, mas além de pertencer à população que teve transmissão sexual do HIV e ter outras relações com a epidemia, não participava das rodas de conversa com a finalidade de fazer etnografia. Eu fazia as anotações para relatoria, atas e uso pessoal somente para utilização no movimento social, na produção de conteúdo nas mídias sociais da RJSP+ e para pensar no projeto de mestrado que apresentaria, no ano subsequente, sobre empregabilidade de pessoas negras que vivem com HIV/aids. Portanto, a autoetnografia emergiu depois, de forma “acidental”, pois a observação participante não foi feita na posição de pesquisadora, e sim de facilitadora daquelas rodas de conversa; agora, aprofundo aquelas vivências a partir de minha memória, das anotações em caderno e de documentos públicos.

A autoetnografia, segundo Magalhães (2018MAGALHÃES, C. E. A. de. Autoetnografia em contexto pedagógico: entrevista e reunião como lócus de investigação. Veredas Temática, Juiz de Fora, v. 22, n. 1, 2018.), permite ao pesquisador o envolvimento e a transposição para seu estudo de suas experiências emocionais. A etnografia, que consiste na observação participante do pesquisador no quotidiano dos sujeitos e do universo estudado, para essa autora, deve ser uma autoetnografia, porque não há como analisar a cultura de um povo, do outro ou até mesmo a própria vida (se esta for o sujeito do estudo) sem influência da percepção do pesquisador e de sua vivência ou visão de mundo. “Enquanto a pesquisa positivista busca a impessoalidade [...], a pesquisa qualitativa autoetnográfica sublinha a importância da experiência pessoal do pesquisador como forma de construção do conhecimento nos estudos socioculturais [...]” (Magalhães, 2018MAGALHÃES, C. E. A. de. Autoetnografia em contexto pedagógico: entrevista e reunião como lócus de investigação. Veredas Temática, Juiz de Fora, v. 22, n. 1, 2018.).

Versiani (2002VERSIANI, D. B. Autoetnografia: uma alternativa conceitual. Letras de Hoje, [s.l.], v. 37, n. 4, 2002.) diz que a autoetnografia é “uma alternativa conceitual útil a pesquisadores da cultura preocupados em superar [...] o caráter processual e intersubjetivo destas construções discursivas” (p. 68-71), uma conduta de mostrar o próprio ponto de vista e a interpretação do etnógrafo sobre a cultura e os acontecimentos, evitando o essencialismo e o universalismo na criação de um “sujeito ideal” e, ao mesmo tempo, de um cientista neutro, afastado da realidade do outro que é “objeto de estudo”.

Interseccionalidade

Além do impacto biológico que o HIV e a aids podem causar, caso não se dê o acesso ao tratamento adequado e condições de vida minimamente dignas à pessoa infectada, também podem ocorrer implicações sociais devido ao estigma e à discriminação. Uma dessas implicações pode ser descrita como o que vários autores chamam de construção da identidade do corpo estigmatizado, do doente, que se mostra como um potencial vetor (criminalizado) de uma enfermidade incurável, no caso a aids. Tal preconceito pode se imiscuir em questões de sexualidade, racismo, desigualdade social e machismo (Ferreira; Figueiredo, 2006FERREIRA, R. C. M; FIGUEIREDO, M. A. C. Reinserção no mercado de trabalho. Barreiras e silêncio no enfrentamento da exclusão por pessoas com HIV/AIDS. Revista Medicina, Ribeirão Preto, v. 39, n. 4, p. 591600, 2006. DOI: 10.11606/issn.2176-7262.v39i4p591-600
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; Perrusi; Franch, 2012PERRUSI, A.; FRANCH, M. Carne com carne: gestão do risco e HIV/Aids em casais sorodiscordantes no Estado da Paraíba. Política & trabalho, João Pessoa, n. 37, p. 179200, 2012.).

Hirata aponta o pioneirismo da utilização do termo “interseccionalidade” stricto sensu nos trabalhos de Kimberlé Crenshaw. O termo engloba a análise da relação entre opressões de gênero, raça e classe social, ou da diferenciação social, e remonta “[...] ao movimento do final dos anos de 1970 conhecido como Black Feminism [...] cuja crítica coletiva se voltou de maneira radical contra o feminismo branco, de classe média, heteronormativo” (Hirata, 2014HIRATA, H. Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo social, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 6173, 2014. DOI: 10.1590/S0103-20702014000100005
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, p.62).

Seguindo o caminho apontado por Helena Hirata em relação ao feminismo negro, podemos destacar a presença da interseccionalidade no trabalho de Angela Davis mesmo antes da utilização desse termo para definir tal forma de análise, abordando a inter-relação entre a exploração nas relações de trabalho e de classe com as diferentes opressões, sobretudo o racismo e o sexismo. No próprio título do livro, publicado originalmente em 1981 - Mulheres, raça e classe -, já está inscrita essa ideia, assim a crítica à eleição de apenas uma opressão, circunscrita a uma realidade específica (no caso, o sexismo enfrentado por mulheres brancas de classe média), para universalizar toda a categoria “mulher”, ignorando as realidades da população negra e do que Davis chama de minorias étnicas.

Lélia Gonzalez, por sua vez, abordou essa temática no contexto brasileiro. Segundo a autora, há no Brasil uma divisão racial e de gênero no trabalho (Gonzalez, 1979GONZALEZ, L. A juventude negra brasileira e a questão do desemprego. In: Conferência Anual do African Heritage Studies Association, 2., 1979, Pittsburgh. Resumos [...]. East Point: AHSA, 1979. Disponível em: <Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/gonzalez/1979/04/28.pdf >. Acesso em: 22 maio 2021.
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) que faz com que enquanto os melhores cargos sejam ocupados pelos homens brancos, para a população negra seja delegada a base piramidal: os trabalhos precários ou o próprio desemprego. As mulheres negras sofrem ainda mais com tal situação, numa tripla opressão.

Patricia Hill Collins (2017COLLINS, P. H. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Revista Parágrafo, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 617, 2017.) entende a interseccionalidade como uma categoria que sintetiza raça, classe e gênero num conceito só, mas que não pode ser somente analítica. A autora acredita numa prática política da interseccionalidade que vise a justiça social e sirva de instrumento para a emancipação coletiva e individual. Nessa perspectiva, suas maiores críticas são ao que chama de “traduções imperfeitas do termo”, surgido nos movimentos sociais, pela academia, que tentou e ainda tenta retratar a interseccionalidade como algo adaptável ao neoliberalismo ou como uma perspectiva analítica apartada da política, quase contemplativa. Analisar o todo social das opressões, num sistema capitalista, deve servir de algo para a transformação social. Nesse aspecto, Collins, que considero mais moderada, vai ao encontro de Davis, declaradamente comunista: interseccionalidade é, essencialmente, uma análise que sirva para a luta pela liberdade.

Por que falar de tudo isso ao se abordar a questão da aids? É possível encontrar pistas de tais motivos no livro Mulheres, cultura e política, publicado originalmente em 1989, no qual Angela Davis aponta que as mulheres negras e latinas seriam “desproporcionalmente vitimizadas pela aids” (2017DAVIS, A. Mulheres, cultura e política. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 23). A autora defende a emergência de se criar um fundo financeiro para o enfrentamento da doença (à época ainda com poucos avanços científicos), além da inclusão dessa pauta na agenda do movimento de mulheres negras e a total oposição a “todos os casos em que o teste de aids e a quarentena sejam impostos de modo repressivo e obrigatório, bem como a manipulações homofóbicas da crise da aids” (Davis, 2017DAVIS, A. Mulheres, cultura e política. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 23).

Cabe salientar aqui o entendimento de Verena Stolcke (1991STOLCKE, V. Sexo está para gênero assim como raça para etnicidade?. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 20, p. 101119, 1991.) de que a interligação de raça, gênero e classe na sociedade burguesa capitalista não pode ser tomada como uma “adição” ou “sobreposição” de opressões de viés ideológico e econômico, mas sim como estruturas concomitantes e simultâneas que se retroalimentam. Não há como pensar em estruturação de classes trabalhadoras (e suas frações mais ou menos precarizadas) sem analisar o histórico de racialização, sobretudo das ex-colônias, além do papel do gênero para a reprodução social da vida - e consequentemente do trabalho. Além disso, é fundamental, para um sistema de desigualdade social, que tais iniquidades econômicas sejam legitimadas por ideologias biologizantes, seja através da ideia de “raça” como categoria de inferiorização, seja pela ideia de “gênero” segundo a qual as mulheres teriam diferenças inatas aos homens que, por exemplo, as deixariam menos produtivas ou tornariam necessário o controle sobre seus corpos para a reprodução da força de trabalho ou do sistema de heranças. Nesse sentido, não é possível pensar um modelo explicativo como raça + classe + gênero, mas sim num encontro das três estruturas cujo funcionamento é interligado.

Levando em consideração a questão socioeconômica da precariedade de vida nos países periféricos e semiperiféricos do capitalismo, há certa obviedade de que os adoecimentos e epidemias tenham maiores e mais graves proporções nesses locais e que estejam majoritariamente relacionados a doenças tratáveis. O desafio então é deslocar essa perspectiva exclusivista sobre renda e classe social - ou “fatores de vulnerabilidade” - para inserir o debate sobre gênero, raça e racismo no adoecimento, na morte por aids e no desemprego das PVHA.

Estigma da aids

Segundo Goffman (1981GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Mathias Lambert. 4. ed. São Paulo: LTC, 1981.), na Grécia Antiga, a ideia de “estigma” estava relacionada a marcas corporais usadas para identificar pessoas como escravas ou outras categorias de inferiorização. Essa “marca” social caracteriza a pessoa por uma diferença indesejável, que eram principalmente relacionadas a aspectos físicos ou de saúde do indivíduo (por exemplo, Goffman cita pessoas com deficiência ou sofrimentos psíquicos), ou mesmo a condutas morais consideradas “desviantes” (como a homossexualidade). O estigma, portanto, seria a raiz, a marca da discriminação e da categorização de várias diferenças.

De acordo com Parker e Aggleton (2001PARKER, R.; AGGLETON, P. Estigma, discriminação e Aids. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, 2001. (Coleção ABIA, Cidadania e Direitos, n. 1).), o estigma é contextual, empregado estrategicamente, histórico e produtor e reprodutor de iniquidades sociais. Com relação ao HIV/aids, se desdobra em estigmatização e discriminação, desencadeando reações sociais negativas que não se dão de forma exclusiva, haja vista que o risco de contágio por IST já despertava, antes, o sentido de “punição divina” pelo pecado sexual, ou mesmo o isolamento das pessoas infectadas por medo de disseminação da doença.

Algumas ideias poderosas acerca da aids foram mobilizadas pela sociedade para legitimar a estigmatização, que para Parker e Aggleton (2001PARKER, R.; AGGLETON, P. Estigma, discriminação e Aids. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, 2001. (Coleção ABIA, Cidadania e Direitos, n. 1)., p. 19) se dividem em: aids vista como morte; aids como punição (moral); aids como horror; aids como guerra (combate à aids); aids como crime (em relação a inocentes e culpados pela transmissão); aids enquanto vergonha; e aids como “o Outro” (no qual a aids é vista como algo que aflige os que estão à parte).

Já para Anselmo Alós (2019ÓS, A. P. Corpo infectado/corpus infectado: Aids, narrativa e metáforas oportunistas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 3, p. 111, 2019. DOI: 10.1590/1806-9584-2019v27n357771
https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v2...
, p. 2), uma ilustração dos aspectos de estigma da aids é associação com a morte e o sofrimento, como acontece na foto de David Kirby, ativista vivendo com HIV tirada por Therese Frary na qual o paciente de aids agoniza em fase terminal rodeado por sua família que nada pode fazer a não ser sofrer com sua iminente morte, tal como na famosa Pietá. O autor constata, analisando a produção literária de ficção sobre a aids, que o principal mote desses textos são a morte e o amor, e em geral, esse último aparece relacionado à perda do afeto. Tudo isso corrobora para uma imagem de extrema dor e perda de complexidade nas subjetividades das pessoas vivendo com HIV/aids (Alós, 2019ÓS, A. P. Corpo infectado/corpus infectado: Aids, narrativa e metáforas oportunistas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 3, p. 111, 2019. DOI: 10.1590/1806-9584-2019v27n357771
https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v2...
, p. 5).

Além dessas ideias legitimadoras da estigmatização, Parker e Aggleton (2001PARKER, R.; AGGLETON, P. Estigma, discriminação e Aids. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, 2001. (Coleção ABIA, Cidadania e Direitos, n. 1)., p. 20) destacam que o estigma da aids não funciona sem outros fatores de desigualdade e exclusão anteriormente existentes na sociedade e na cultura, o que, em certa medida, vai ao encontro da discussão feita anteriormente sobre “interseccionalidade”, embora os autores não utilizem esse termo. Segundo Parker e Aggleton, quatro eixos de estigma se mostram bastante presentes nas respostas à epidemia de aids no mundo todo, a saber: “(1) estigma em relação à sexualidade; (2) estigma em relação ao gênero; (3) estigma em relação à raça ou etnia; e (4) estigma em relação à pobreza ou à marginalização econômica” (Parker; Aggleton, 2001PARKER, R.; AGGLETON, P. Estigma, discriminação e Aids. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, 2001. (Coleção ABIA, Cidadania e Direitos, n. 1)., p. 20).

Tendo em vista esses desdobramentos do estigma da aids, as trajetórias narradas por jovens que nasceram com HIV (justamente numa época anterior aos medicamentos anti-HIV) estão permeadas por seus impactos, que se aliam aos aspectos das opressões de gênero, raça e classe.

Experiência ativista e pautas de acesso ao trabalho e previdência de PVHA

Começo esta seção contando sobre o Curso de Participação Juvenil e Ativismo em Direitos Humanos e HIV/aids no Estado de São Paulo, feito pela RJSP+ em parceria com o CRT DST/aids de São Paulo. Foi nesse curso que nasceram dois fenômenos que considero importantes, tanto para minha vida em particular como para o ativismo em HIV/aids com as juventudes: o nascimento do Coletivo Loka de Efavirenz, do qual faço parte atualmente junto a mais 13 integrantes, que se destacou no ativismo digital na temática, e a sinalização de construir o GT sobre Transmissão Vertical do HIV e JuventudesREDE de Jovens São Paulo Positivo. Ata da 2ª reunião do Grupo de Trabalho sobre Transmissão Vertical e Juventudes. São Paulo, 31 maio 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.facebook.com/notes/3720943314635566/ >. Acesso em: 22 mai. 2021.
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dentro do CRT DST/aids de São Paulo, através da RJSP+.

Segundo uma memória da segunda reunião, realizada em 31 de maio de 2017, o GT de Transmissão Vertical e JuventudesREDE de Jovens São Paulo Positivo. Ata da 2ª reunião do Grupo de Trabalho sobre Transmissão Vertical e Juventudes. São Paulo, 31 maio 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.facebook.com/notes/3720943314635566/ >. Acesso em: 22 mai. 2021.
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nasceu a partir de uma mesa de discussão do Curso de Participação Juvenil de 2016. Dessa mesa participaram as históricas ativistas Nair Brito88Nair Brito é ativista do movimento social de aids, professora, e uma das pioneiras em receber o tratamento antirretroviral no Brasil, tendo empreendido uma luta jurídica e de intensa mobilização militante na década de 1990. e Micaela Cyrino99Micaela Cyrino é ativista negra nascida com HIV e artista plástica. Tem uma importância histórica no movimento de juventudes que vive com HIV/Aids, sendo uma das fundadoras da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens vivendo com HIV/Aids (RNAJVHA). Tem trabalhos renomados, como a performance “Cura”, além de ter coordenado o I Seminário Regional de Transmissão Vertical e Infecção do HIV na Adolescência. e o médico sanitarista Paulo Roberto Teixeira. Assim, a criação do GT pela RJSP+ se arranjou como uma iniciativa da sociedade civil que convidou o Programa Estadual de DST/aids, as organizações não governamentais (ONG) que trabalham em São Paulo com jovens nascidos com HIV e a sociedade em geral.

Nesse GT, em conjunto com a ativista e pesquisadora Lili Nascimento1010Lili Nascimento é ativista negra, artista plástica, estudante de Psicologia e nascida com HIV. Esteve à frente da Rede de Jovens SP+,foi secretária da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens vivendo com HIV/Aids e hoje integra o coletivo Loka de Efavirenz além de realizar pesquisas sobre infância e medicalização da aids., estivemos à frente tanto da coordenação das reuniões como de um circuito de rodas de conversa nas ONG/aids, intitulado “Papo Reto sobre jujubas, Efavirenz, chás e outras neuras”, realizado entre junho e novembro de 2017 em duas ONG que atendem jovens que vivem com HIV/aids. Na época, a formação do grupo chegou a ser noticiada pela Agência de Notícias da aids em artigo de Daiane Bonfim (2017BONFIM, D. Rede de Jovens SP+ e CRT-SP iniciam GT sobre transmissão vertical do HIV e juventudes. Agência de Notícias da Aids, São Paulo, 19 abr. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://agenciaaids.com.br/noticia/rede-de-jovens-sp-e-crt-sp-iniciam-gt-sobre-transmissao-vertical-do-hiv-e-juventudes/ >. Acesso em: 25 mai. 2021.
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).

Nesses encontros, feitos em parceria com o CRT DST/aids de São Paulo, sempre contávamos com a participação de Analice Oliveira, assistente social do programa de IST/aids e companheira de lutas dos movimentos sociais de grande importância para a Rede de Jovens SP+, e de algum outro profissional de saúde solicitado pelos jovens que tivesse com eles algum vínculo, fossem do CRT ou outros serviços de saúde. O intuito era fazer um levantamento das necessidades desses jovens e, nas conversas, a perda de BPC ou do Loas, como costumam falar, assim como as dificuldades com os efeitos colaterais advindos do uso longevo de antirretrovirais foram apontados com frequência. A inserção no mercado de trabalho também se mostra bem difícil para quem lida com o estigma da aids, defasagens educacionais e necessidade de tratamento crônico.

Nesse sentido, na segunda roda de conversa, realizada na ONG I1111Para garantir a confidencialidade das identidades das e dos participantes das rodas de conversa, não revelo os nomes das instituições para evitar possíveis associações por parte de leitores que poderiam conhecer a elas e seus assistidos, haja vista que o movimento de aids é composto por muita gente que se conhece. Serão denominadas, portanto, de ONG I e ONG II. com aproximadamente 20 jovens em julho de 2017, lembro-me do depoimento de um jovem rapaz, negro, que vou chamar pelo nome fictício de Júlio, que trabalhava com música e confidenciou o quanto era difícil a adesão ao tratamento devido à falta de oportunidades “na quebrada” - ou seja, no bairro onde vivia, uma região periférica da zona sul da capital paulista -, e que ter nascido com HIV era um agravante. Júlio tinha aproximadamente 20 anos, se declarava heterossexual e, nos anos 1990, perdeu os pais para a epidemia de aids. Havia passado muitos anos num abrigo para crianças e adolescentes que vivem com HIV. Suas preocupações com relação à sobrevivência financeira - e, portanto, à classe social -, assim como com o racismo, eram pungentes.

O estudo de Oliveira, Negra e Nogueira-Martins (2012OLIVEIRA, L. L.; NEGRA, M. D.; NOGUEIRA-MARTINS, M. C. F. Projetos de vida de adultos jovens portadores de HIV por transmissão vertical: estudo exploratório com usuários de um ambulatório de infectologia. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 928939, 2012. DOI: 10.1590/S0104-12902012000400012
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), que entrevistou 18 jovens nascidos com HIV usuários de um ambulatório de infectologia sobre seus projetos de vida, também apontou a dificuldade de adesão ao tratamento como preponderante e registrou estratégias usadas pelos jovens para driblar a sensação ruim de tomar o remédio, ou mesmo confissões de períodos em que ficaram sem o uso contínuo da medicação.

Uma fala de Júlio detalha mais sobre suas inquietações: “Com o Loas era mais fácil, você tinha o básico pra não passar fome. Mas muita gente sai do abrigo [para crianças e adolescentes vivendo com HIV] aos 18, e hoje em dia não tem mais Loas” (Júlio). Ele disserta sobre sua ligação com a cultura hip-hop e acaba também trazendo um testemunho étnico: “eu sou preto, e sou seguido pela polícia se eles cismam... tenho dificuldade de manter os empregos que arranjei, porque qualquer consulta o chefe já pesa, e viver só de arte não é nada fácil, principalmente pra preto” (Júlio). Sua narrativa também era de perdas, referindo-se à lembrança de amigos negros falecidos em decorrência da aids.

Uma jovem branca e heterossexual que vou chamar de Larissa, moradora da zona noroeste de São Paulo, que na época ia para as reuniões com seu filho ainda bebê fazendo uso de transporte público, demonstrou com muita clareza a dificuldade de adesão ao medicamento. Relatava muito cansaço de ter de lidar com uma infecção crônica desde a infância, ter perdido os pais, ter de enxergar no próprio rosto a lipodistrofia1212Trata-se da redistribuição de gordura corporal de forma atípica em decorrência de algumas medicações anti-HIV, que podem ocasionar incômodos - inclusive estéticos - aos usuários da TAR (Coura; Guerra; Neri, 2011). e a dificuldade de elaborar um plano de vida a longo prazo. Além disso, sofria sintomas físicos, como vômitos e náuseas ao tomar suas medicações, e mesmo com acompanhamento de profissionais de saúde, não conseguiu aderir a esse tratamento. Posteriormente, ela teve complicações em decorrência da aids e veio a falecer.

Essa jovem, que sonhava em ter uma criança e viveu em sua gestação o momento de maior adesão ao tratamento antirretroviral para que seu filho nascesse sem o HIV, me disse uma frase impactante: “Eu só aderi à vida pelo meu filho, mas me preocupo muito com o que meus amigos vão comer, ou se vão trabalhar” (Larissa). Lembro-me que perguntei se ela própria não queria fazer uma faculdade, trabalhar em alguma profissão específica: “Eu tô estudando pro mestrado em Ciências Sociais”, lembro de ter dito. Ela me respondeu com uma tranquilidade perturbadora: “a gente não foi criada pra isso, não”. Também havia perdido o Loas e vivia de ajuda familiar, já que por sua saúde debilitada, não conseguia emprego. Larissa acompanhou todas as rodas de conversas nas duas ONG.

A ONG II nos proporcionou a realização de três encontros em que houve depoimentos também emblemáticos sobre as condições e aspirações desses jovens. Diferente da outra instituição, a ONG II não havia sido uma creche, mas nasceu dentro dos corredores da pediatria de um hospital paulistano e acabara se expandindo, adquirindo sede própria e corpo administrativo autônomo ao do hospital. As principais atividades promovidas pela ONG II eram, além de teatro, dança, artes visuais, música e assistência em geral, palestras nas escolas para fomentar a prevenção e educação sexual, bem como a visita a serviços de saúde para acolhimento de outros jovens que viviam com HIV. Nessa ONG, as e os jovens eram também muito ligados à conscientização de adolescentes nas escolas públicas e a coletivos juvenis de cultura.

Num papel kraft elaborado na primeira reunião, na qual lembro da presença de aproximadamente 15 jovens, há os dizeres “estigma” e “não fomos criados para a vida”. Lembro-me de um dos depoimento mais emocionantes, de uma jovem negra que chamarei de Cláudia. Mulher bissexual, vivia numa cidade da região metropolitana de São Paulo, em um bairro periférico e pobre, porém numa casa “de três cômodos, boa” (Cláudia). Ela tinha cerca de 19 anos à época, sua fonte de renda era vinculada aos serviços que prestava na ONG II e vivia uma dificuldade crônica de conseguir empregos em outras empresas. Essa preocupação sobre a posição na classe social e empregabilidade se fundia aos medos do machismo, da solidão afetiva (dilemas do marcador “gênero”) e de relatos de estigma da aids. Nesse aspecto, essas opressões se fundiam.

Cláudia tinha um histórico de dificuldade de adesão aos medicamentos, assim como já havia presenciado a morte de colegas na infância e na adolescência, além de relatar dificuldades cotidianas com efeitos colaterais dos antigos medicamentos e lembranças de discriminação:

Quando eu era pequena, aids era morte. E eu fui criada para a morte, não acreditavam que eu ia ficar viva. Daí a vida na escola era mais difícil, o aprendizado era muito pior, e eu sinto um buraco no meu aprendizado. Meu rosto tem marcas [da lipodistrofia] por causa dos remédios, e tudo isso é muito difícil. E na hora de conseguir emprego é muito difícil, primeiro porque o ensino falta, e às vezes, você até começa a trabalhar, mas nas primeiras consultas com o infecto[logista] o patrão já não te quer mais. E como não tem mais Loas, como fazer? E também muita gente saiu dos abrigos com uma mão na frente e outra atrás. (Cláudia)

A declaração de Cláudia vai ao encontro do que Oliveira, Negra e Nogueira-Martins (2012OLIVEIRA, L. L.; NEGRA, M. D.; NOGUEIRA-MARTINS, M. C. F. Projetos de vida de adultos jovens portadores de HIV por transmissão vertical: estudo exploratório com usuários de um ambulatório de infectologia. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 928939, 2012. DOI: 10.1590/S0104-12902012000400012
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) apresentam: os jovens continuam com seus projetos de vida em construção e reconstrução, no entanto, são de uma geração crescida com a perspectiva de morte devido à falta de tratamentos eficazes nos anos 1980 e 1990.

Destaco também o testemunho de um jovem negro, que chamo de Tales, que se declarava heterossexual. Ele trouxe a informação de que a paternidade e a música negra, em específico o hip-hop, “o salvaram”, mas “ter que se virar sem o Loas desde os 18, e agora com um filho saudável, é coisa pra quem é ‘vida louca’, ainda mais sendo preto. E a gente sabe que ainda tem essa coisa né, de preconceito [racial]” (Tales). Tales estava numa relação estável com uma jovem sorodiscordante (sem HIV), e seu filho havia nascido pouco tempo antes.

A paternidade, para Tales, tinha uma importância muito grande, pois, segundo seus relatos, sua educação e socialização se deram em boa parte num abrigo para crianças e adolescentes vivendo com HIV. Ele relata a convivência com a morte de amigos na infância e adolescência. “Ser pai de um moleque sem HIV pra mim é maravilhoso, ainda mais sabendo que ele vai ter família”, comenta. A manutenção financeira da própria vida e de sua família são desafios para esse jovem negro que nasceu e vive com HIV, e ambas as preocupações apresentadas em seu relato apontam para a interconexão, sinergia dos marcadores sociais da diferença, ou interseccionalidade.

Outra participante foi Natália, uma jovem negra, lésbica, que vivia numa casa de alvenaria, num bairro periférico de São Paulo com histórico de ocupações de terra por movimentos sociais de moradia. Na época ela estava perto de completar 20 anos e relatou uma situação de conflito com sua médica. A profissional de saúde que acompanhou a epidemia de aids desde seu início lhe disse que ter HIV, naquele momento, era só “tomar um remedinho”, e que ela deveria agradecer a existência das medicações em vez de reclamar de tomar as pílulas diárias:

Agradecer o quê? Ter remédio não me enche a minha barriga, nem me dá conforto na mente. Eu que não me vire para fazer um monte de bicos e ter comida pra ver se não acabo igual o Santiago*, que foi morar numa ocupação precária nesses prédios do centro e tomou água suja, sem conseguir tomar remédio porque vomitava, não conseguia... Fora que eu me incomodo de ser seguida nas lojas, ouvir em entrevista de emprego que não sou do perfil da empresa, tudo porque eu sou preta e sapatão. (Natália)

Novamente a preocupação com a empregabilidade e a renda se mescla com moradia, gênero, sexualidade e raça, conforme o esquema apresentado por Parker e Aggleton (2001PARKER, R.; AGGLETON, P. Estigma, discriminação e Aids. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, 2001. (Coleção ABIA, Cidadania e Direitos, n. 1).) sobre como o estigma da aids se mescla com opressões já existentes nas sociedades.

Santiago*, citado por Natália, era um jovem negro, heterossexual, que havia perdido os pais nos anos 1990 e fora educado por parentes, mas se mantinha afastado deles no período mais próximo ao da coleta dos registros. Era amigo de Natália e dos demais presentes na roda de conversa. Ativista e assistido pela ONG II, acabou morrendo por complicações em decorrência da aids após viver, durante algum período, em condições de moradia muito precárias, numa ocupação de um prédio abandonado na região central da cidade onde, conforme relatos, pode ter ingerido água contaminada. A menção a esse rapaz era algo que causava bastante comoção.

Desses encontros, do “Papo reto” e das reuniões do GT de Transmissão Vertical e JuventudesREDE de Jovens São Paulo Positivo. Ata da 2ª reunião do Grupo de Trabalho sobre Transmissão Vertical e Juventudes. São Paulo, 31 maio 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.facebook.com/notes/3720943314635566/ >. Acesso em: 22 mai. 2021.
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nasceu a construção para o I Seminário Regional de Transmissão Vertical e Infecção do HIV na Adolescência, realizado em 2018, cuja carta política apresenta como demanda importante o restabelecimento do BPC para jovens que nasceram com HIV em situação de pobreza e vulnerabilidade, assim como leis de fomento à empregabilidade e acesso à educação - para além das demandas mais específicas de melhorias no atendimento dos serviços de saúde (CARTA... , 2018Carta Política do I Seminário Regional de Transmissão Vertical e Infecção do HIV na Adolescência - sudeste. São Paulo, 23 set. 2018. Disponível em: <Disponível em: http://abiaids.org.br/wp-content/uploads/2018/10/2018-carta-do-seminario-jovens-e-HIV.pdf >. Acesso em: 10 jun. 2021.
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).

Gostaria de destacar, como travesti, a ausência de pessoas transgêneras dentre as(os) participantes dessas rodas de conversa, algo mais comum na minha trajetória com juventudes que vivem com HIV, mas que se infectaram pela via sexual. Isso é algo a ser investigado em estudos futuros. Outra população que também não tive a oportunidade de ver nessas instituições foram as pessoas em situação de rua ou em ocupações urbanas muito precárias, com a única exceção na história de Santiago.

E as aposentadorias?

Com relação ao drama das desaposentações no “pente-fino” do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), meu primeiro contato com a narrativa ocorreu no final de 2017, por meio de Analice Oliveira, que é assistente social do CRT e muito parceira das ações da RJSP+. Relatou-me casos de pessoas com doenças crônicas graves, aposentadas por invalidez pelo INSS, que estavam perdendo seus benefícios. Pouco depois, um ativista entrou em contato comigo por meio de redes sociais. Paulo (nome fictício), poeta e músico que estava na faixa etária dos 60 anos, queria relatar o drama de seu companheiro, que vivia há muitos anos com HIV e que havia perdido a aposentadoria por invalidez. O contato, que se deu em razão do meu ativismo no Coletivo Loka de Efavirenz, tinham como motivação o desejo de realizar uma campanha com abaixo-assinado no portal “Petição Pública” e publicações nas redes para a sensibilização de ativistas sobre o drama das pessoas que ficaram muitos anos fora do mercado de trabalho e que fizeram uso de medicações de uma outra época do TAR, as quais causavam efeitos colaterais muito mais danosos e permanentes. O cônjuge de Paulo, por exemplo, possuía problemas ósseos e lipodistrofia de forma significativa, condições que foram ignoradas no processo pericial do INSS, segundo o que me foi relatado.

Conversei com integrantes da Loka de Efavirenz para explorar o tratamento dispensado pela mídia, ao longo dos anos, à epidemia de aids e seus desdobramentos, e como a imprensa estava abordando as perdas dessas aposentadorias. O coletivo Loka de Efavirenz, além de se pautar no ativismo digital para a denúncia da retirada das aposentadorias, também decidiu levar a pauta do emprego e da previdência social (colando-a na realidade das juventudes) - através da participação de alguns de seus membros, em concomitância com a RJSP+ - para espaços de ativismos da juventude vivendo com HIV. O principal deles foi, notadamente, o I Seminário Regional de Transmissão Vertical e Infecção do HIV na Adolescência, realizado em setembro de 2018.

Em setembro de 2019, outro espaço importante para as juventudes foi a disputa sobre a ideia de que o emprego e a previdência social são cruciais para a vida das PVHA. No I Encontro Estadual de Juventudes e HIV/Aids do CRT DST/Aids de São PauloREDE DE JOVENS SÃO PAULO POSITIVO. Carta política dos jovens no I Encontro Estadual Juventudes e HIV/Aids do CRT DST/Aids de São Paulo. Fórum das ONG/Aids do estado de São Paulo, São Paulo, 12 set. 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.forumaidssp.org.br/noticia.php?id=114&carta-politica-dos-jovens-no-i-encontro-estadual-juventudes-e-hivaids-do-crt-dstaids-de-sao-paulo >. Acesso em: 1 jun. 2021.
http://www.forumaidssp.org.br/noticia.ph...
, essas pautas retornam ao foco por meio da Carta Política dos 50 jovens que vivem com HIV/aids, cujos itens 4 e 26 das reivindicações demandavam a aprovação do Projeto de Lei nº 8400/2017, protocolado pelo deputado federal Pompeo de Mattos (PDT-RS), que concederia redução na contribuição previdenciária às empresas que contratassem PVHA. Em meados de 2019, os casos ganham destaque na mídia. Um dos principais artigos que denunciam essa retirada das aposentadorias foi publicado no portal on-line da BBC Brasil, cuja manchete questiona: “‘Quem vai querer um funcionário com HIV?’, diz homem que perdeu aposentadoria após 13 anos” (Alegretti, 2019ALEGRETTI, L. ‘Quem vai querer um funcionário com HIV?’, diz homem que perdeu aposentadoria após 13 anos. BBC News Brasil, Londres, 29 jul. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49132695 >. Acesso em: 1 jun. 2021
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). A reportagem trazia o drama vivido por PVHA que corriam o risco de perder sua fonte de renda com a operação “pente-fino” do INSS, que colocava em xeque os benefícios previdenciários de 59,5 mil pessoas que vivem com HIV/aids e teve êxito na extinção de aposentadorias e auxílios-doença em vários casos.

Em outra notícia, veiculada pelo portal Projeto Colabora, relata-se que uma única ONG, o Grupo Pela Vida, recebeu demanda de cerca de 60 casos de pessoas que perderam suas aposentadorias (Vieira, 2009VIEIRA, M. Portadores de HIV perdem aposentadoria após pente-fino do INSS. Projeto Colabora, Rio de Janeiro, 15 jan. 2009. Disponível em: <Disponível em: https://projetocolabora.com.br/ods3/portadores-de-hiv-perdem-aposentadoria-apos-pente-fino-do-inss/ >. Acesso em: 20 mar. 2020.
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). Em geral são indivíduos que tiveram consequências permanentes de uma outra época da epidemia de aids, com doenças oportunistas mais agudas, como a lipodistrofia, problemas renais crônicos, além do próprio impacto do estigma social.

Para fazer frente a esse drama das pessoas já desaposentadas e frear o risco de perda dos benefícios para quem ainda os têm, outras importantes organizações do movimento social de aids1313São elas: Fórum das ONGs/Aids do Estado de São Paulo (FOAESP), a Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV/Aids (RNP+), a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), a Articulação Nacional de Aids (ANAIDS) e a Articulação Nacional de Saúde e Direitos Humanos (ANSDH). se articularam com diferentes atores do Estado e da sociedade civil para reverter a perda dessas aposentadorias. Um trabalho de defesa foi articulado por essas organizações com diferentes partidos políticos e mandatos, além de campanhas de denúncia nas redes sociais.

Destaco a intensa ação de advocacy do ativista Renato da Mata, da Articulação Nacional de Saúde e Direitos Humanos (ANSDH), para a aprovação da Lei nº 13.847/2019 (BRASIL, 2019aBRASIL. Lei n. 13.847, de 24 de julho de 2019. Altera a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, para dispensar de reavaliação pericial a pessoa com HIV/Aids aposentada por invalidez. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 jun. 2019, Seção 1, p. 2. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13847.htm . Acesso em: 10 out. 2019.
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), que dispensa de perícias os aposentados por HIV/aids, também batizada de “Lei Renato da Matta”, sancionada pelo Congresso Nacional após o veto do presidente Jair Bolsonaro. A lei, após muitas movimentações para sua aprovação, conseguiu impedir que as mais de 59 mil PVHA aposentadas não perdessem seus benefícios. Entretanto, não conseguiu resolver o “limbo jurídico” das pessoas que tiveram seus benefícios suspensos pelo pente-fino até então: a lei não é retroativa, portanto, cada um(a) dos(as) prejudicados(as) tiveram que mover processos judiciais individuais por advogados e defensores públicos. Os movimentos sociais tiveram papel central, prestando assessoria jurídica e mediando o trabalho com defensores públicos, no sentido de reverter as decisões periciais do INSS. Assim, o problema das desaposentadorias ainda se mantém.

Considerações finais

Tanto no caso das perdas de aposentadorias pelos mais velhos quanto nos de jovens que nasceram com HIV/aids e perderam BPC sem nenhuma política que os assista na inserção no mercado de trabalho, pode-se perceber algo em comum: o desmonte dos direitos ligados ao trabalho e à seguridade social engendrado pelo capitalismo neoliberal e o recrudescimento de políticas de redução de gastos sociais e da ação do Estado, fazendo com que a adesão ao tratamento e a saúde integral dessas pessoas sejam prejudicadas pela falta de renda.

É ainda mais preocupante, numa realidade assolada pela crise sanitária da pandemia da covid-19, pensar qual será e se haverá política pública para esses grupos, que são vulneráveis em maior medida que a população em geral. O governo atual, como se sabe, tem como projeto a redução dos gastos públicos e do Estado. Como será mantida a estrutura de prevenção e tratamento da aids e demais IST e hepatites virais durante e após a crise sanitária? Só conseguiremos de fato responder à aids se partirmos da noção revolucionária de transformação e liberdade ampla e indivisível, de Angela Davis e Patricia Hill Collins, e com uma lógica de ampliação dos direitos sociais e do trabalho, e não de desmonte de direitos e diminuição do Estado.

Referências

  • ALEGRETTI, L. ‘Quem vai querer um funcionário com HIV?’, diz homem que perdeu aposentadoria após 13 anos. BBC News Brasil, Londres, 29 jul. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49132695 >. Acesso em: 1 jun. 2021
    » https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49132695
  • ÓS, A. P. Corpo infectado/corpus infectado: Aids, narrativa e metáforas oportunistas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 3, p. 111, 2019. DOI: 10.1590/1806-9584-2019v27n357771
    » https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n357771
  • BONFIM, D. Rede de Jovens SP+ e CRT-SP iniciam GT sobre transmissão vertical do HIV e juventudes. Agência de Notícias da Aids, São Paulo, 19 abr. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://agenciaaids.com.br/noticia/rede-de-jovens-sp-e-crt-sp-iniciam-gt-sobre-transmissao-vertical-do-hiv-e-juventudes/ >. Acesso em: 25 mai. 2021.
    » https://agenciaaids.com.br/noticia/rede-de-jovens-sp-e-crt-sp-iniciam-gt-sobre-transmissao-vertical-do-hiv-e-juventudes/
  • BRASIL. Lei n. 13.847, de 24 de julho de 2019. Altera a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, para dispensar de reavaliação pericial a pessoa com HIV/Aids aposentada por invalidez. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 jun. 2019, Seção 1, p. 2. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13847.htm Acesso em: 10 out. 2019.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13847.htm
  • Brasil. Ministério da Cidadania. Benefício de Prestação Continuada (BPC). Governo Federal, Brasília, DF, 25 nov. 2019b. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes-e-programas/assistencia-social/beneficios-assistenciais-1/beneficio-assistencial-ao-idoso-e-a-pessoa-com-deficiencia-bpc >. Acesso em: 13 out. 2020.
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  • WILLIAMS, R. Base e superestrutura na teoria da cultura marxista. In: WILLIAMS, R. Cultura e Materialismo. Tradução de André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

  • 1
    O termo "Loas" do título em português faz um jogo de palavras com o acrônimo da Lei Orgânica de Assistência Social, conhecida como "Loas", e a palavra "loas", que significa "louvor", "apreço" e "simpatia".
  • 2
    DST: Doença Sexualmente Transmissível, termo que aos poucos vem sendo substituído por Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST).
  • 3
    A TAR consiste em fármacos, popularmente nomeados “coquetéis”, que conseguem suprimir a quantidade de HIV no organismo e impedir que o HIV desenvolva sintomas e culmine no estágio de aids (Tancredi, 2010TANCREDI, M. V. Sobrevida de pacientes com HIV e AIDS nas eras pré e pós terapia antirretroviral de alta potência. 2010. 140 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.).
  • 4
    Trata-se de benefício de assistência social, no valor de um salário mínimo mensal, pago a idosos (acima de 65 anos) ou pessoas de qualquer idade com deficiência que impossibilite o próprio sustento. Para recebê-lo, é necessário comprovar renda familiar per capita menor que 1/4 do salário mínimo. É preciso passar por avaliação médica e social pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Não é necessária a contribuição ao INSS, pois é benefício de natureza assistencial. Os beneficiários do BPC também podem receber descontos nas tarifas de energia elétrica (Tarifa Social de Energia) (Brasil, 2019bBrasil. Ministério da Cidadania. Benefício de Prestação Continuada (BPC). Governo Federal, Brasília, DF, 25 nov. 2019b. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes-e-programas/assistencia-social/beneficios-assistenciais-1/beneficio-assistencial-ao-idoso-e-a-pessoa-com-deficiencia-bpc >. Acesso em: 13 out. 2020.
    https://www.gov.br/cidadania/pt-br/acoes...
    ).
  • 5
    O termo “transmissão vertical” diz respeito ao contágio do HIV no momento do parto, mas comumente também engloba as PVHA que se infectaram na infância. Para se referir à esta população, também podemos usar a expressão “pessoas nascidas com HIV”
  • 6
    Disponível em: <https://www.facebook.com/LokadeEfavirenz/>. Acesso em: 8 abr. 2020.
  • 7
    Efavirenz é um medicamento antirretroviral, que foi medicação protocolar para o tratamento anti-HIV logo após o diagnóstico da maioria das PVHA brasileiras até início de 2019. Seu uso foi suspenso por efeitos colaterais relacionados ao sistema nervoso e a sofrimentos psíquicos em alguns pacientes. (TESTA et. al., 2009TESTA, E. C. et al. Análise das reações adversas ao Efavirenz em pacientes do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas/FIOCRUZ. Revista Brasileira de Farmácia, Rio de Janeiro, v. 90, n. 1, p. 8185, 2009.).
  • 8
    Nair Brito é ativista do movimento social de aids, professora, e uma das pioneiras em receber o tratamento antirretroviral no Brasil, tendo empreendido uma luta jurídica e de intensa mobilização militante na década de 1990.
  • 9
    Micaela Cyrino é ativista negra nascida com HIV e artista plástica. Tem uma importância histórica no movimento de juventudes que vive com HIV/Aids, sendo uma das fundadoras da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens vivendo com HIV/Aids (RNAJVHA). Tem trabalhos renomados, como a performance “Cura”, além de ter coordenado o I Seminário Regional de Transmissão Vertical e Infecção do HIV na Adolescência.
  • 10
    Lili Nascimento é ativista negra, artista plástica, estudante de Psicologia e nascida com HIV. Esteve à frente da Rede de Jovens SP+,foi secretária da Rede Nacional de Adolescentes e Jovens vivendo com HIV/Aids e hoje integra o coletivo Loka de Efavirenz além de realizar pesquisas sobre infância e medicalização da aids.
  • 11
    Para garantir a confidencialidade das identidades das e dos participantes das rodas de conversa, não revelo os nomes das instituições para evitar possíveis associações por parte de leitores que poderiam conhecer a elas e seus assistidos, haja vista que o movimento de aids é composto por muita gente que se conhece. Serão denominadas, portanto, de ONG I e ONG II.
  • 12
    Trata-se da redistribuição de gordura corporal de forma atípica em decorrência de algumas medicações anti-HIV, que podem ocasionar incômodos - inclusive estéticos - aos usuários da TAR (Coura; Guerra; Neri, 2011COURA, C. F.; GUERRA, V. R.; NERI, L. C. L. Lipodistrofia em crianças infectadas com HIV sob terapia anti-retroviral: o desafio do século XXI. Pediatria, São Paulo, v. 33, n. 1, p. 4551, 2011.).
  • 13
    São elas: Fórum das ONGs/Aids do Estado de São Paulo (FOAESP), a Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV/Aids (RNP+), a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), a Articulação Nacional de Aids (ANAIDS) e a Articulação Nacional de Saúde e Direitos Humanos (ANSDH).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2021
  • Revisado
    22 Jun 2021
  • Aceito
    03 Ago 2021
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br