Ensaios clínicos, movimentos sociais e bioativismos: notas para uma (outra) genealogia do sistema brasileiro de ética em pesquisa11A pesquisa que fundamenta este ensaio foi financiada com recursos do Programa Nacional de Pós-Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PNPD/CAPES).

Rosana Castro Sobre o autor

Resumo

Parte significativa da literatura sobre a gênese das instituições brasileiras voltadas à regulamentação ética de práticas de pesquisa científica envolvendo seres humanos costuma remontar a eventos internacionais, a exemplo dos ocorridos durante e após a Segunda Guerra Mundial, como disparadores de uma consciência ética global da qual o Brasil teria tomado parte. A partir de revisão de literatura e recurso de abordagem genealógica, investiga-se como certos eventos ocorridos no nosso país, como a atuação de movimentos sociais frente aos ensaios clínicos com Norplant, nos anos 1980, e com antirretrovirais (ARV), nos anos 1990, são fundamentais para a compreensão de distintos momentos de institucionalização da ética em pesquisa no Brasil e suas respectivas orientações políticas. Com base na reconstrução desses episódios, argumenta-se que os conteúdos particulares das agendas públicas sobre as práticas científicas biomédicas se ancoraram em contextos específicos de contestação, cujas demandas políticas foram agenciadas em termos notadamente éticos. A configuração histórica da ética em pesquisa no Brasil conjuga sujeitos, fatores e lutas políticas que lhe conferem um caráter dinâmico, cuja compreensão demanda levar em conta a atuação de movimentos sociais com relação à regulamentação dos ensaios clínicos.

Palavras-chave:
Ética em Pesquisa; Movimentos Sociais; Ativismo Social; Tecnologia Biomédica; Ciência, Tecnologia e Sociedade

Introdução

Criados em 1996, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) a ela vinculados dividem-se entre atribuições de regulamentação, revisão, gestão, fiscalização e educação relacionadas à condução ética de pesquisas científicas envolvendo seres humanos no país (Brasil, 1996BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no 196, de 10 de outubro de 1996. Diário Oficial da União . Brasília, DF, 10 out. 1996. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1996/res0196_10_10_1996.html >. Acesso em: 21 dez. 2021.
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). Em seus 25 anos de existência, foram realizados diversos balanços críticos do Sistema CEP/Conep, atentando para questões persistentes ou emergentes que demandavam atenção das autoridades e do público em geral (Marques Filho, 2007MARQUES FILHO, J. Ética em Pesquisa: Dez Anos da Resolução CNS 196/96. Revista Brasileira de Reumatologia, São Paulo, v. 47, n. 1, p. 2-3, 2007.; Novoa, 2014NOVOA, P. O que muda na Ética em Pesquisa no Brasil: Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Einstein, São Paulo, v. 12, n. 1, p. vii-x, 2014.; Amorim, 2019AMORIM, K. P. C. Ética em pesquisa no Sistema CEP-CONEP brasileiro: reflexões necessárias. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 1033-1040, 2019.).22Para revisões críticas do Sistema CEP/Conep, ver Fleischer e Schuch (2010); Sarti e Duarte (2013); Sarti et al. (2017). O objetivo deste artigo, no entanto, é distinto: propor uma genealogia do Sistema CEP/Conep que, colocando narrativas canônicas de sua construção provisoriamente em suspenso, reconstitui alguns fios de sua história a partir de disputas, tensões e conflitos relacionados à regulação institucional de ensaios clínicos, com foco nas iniciativas protagonizadas por movimentos sociais e organizações da sociedade civil.

A literatura histórica sobre a constituição da ética em pesquisa no Brasil costuma relacionar sua gênese a uma série de fluxos, que ignora a participação dos movimentos sociais e os contextos de conflito nos momentos de sua institucionalização. Atribui-se a promulgação da primeira resolução relativa ao tema, em 1988, a eventos como o acompanhamento de tendências internacionais de regulamentação das práticas científicas (Guilhem; Greco, 2008GUILHEM, D.; GRECO, D. A Resolução 196/1996 e o Sistema CEP/Conep. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais. Brasília, DF: Letras Livres, 2008. p. 87-122. ), iniciativas médicas impulsionadas pela identificação de um vácuo normativo sobre as pesquisas clínicas (Hossne et al., 2008HOSSNE, W.; VIEIRA, S.; FREITAS, C. Committees for Ethics in Research Involving Human Subjects. Journal International de Bioéthique, Paris, v. 19, n. 1-2, p. 131-141, 2008.), demandas de pesquisadores por respaldo jurídico para atividades da indústria farmacêutica ou mesmo requisições vindas de órgãos de vigilância sanitária (Freitas, 2006FREITAS, C. O sistema de avaliação da ética em pesquisa no Brasil: estudo dos conhecimentos e práticas de lideranças de Comitês de Ética em Pesquisa. 2006. Tese (Doutorado em Medicina Preventiva) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. ). Em todas essas frentes, é evidente o silêncio a respeito das ações de grupos de pacientes, movimentos sociais e ativistas como vetores da construção de uma agenda pública de ética em pesquisa, constituída a partir de situações locais e politicamente articuladas em termos éticos.

Por outro lado, a literatura destaca que, desde 1988, a regulamentação ética em pesquisas científicas é realizada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). Criado em 1937, com finalidades consultivas e assessoras do chefe do então Ministério da Saúde e Educação, durante o processo de redemocratização o CNS passou gradativamente a se constituir como arena de encontros e embates entre diferentes atores sociais, garantindo a participação de grupos, instituições, organizações e movimentos sociais e sindicais (Côrtes et al., 2009CÔRTES, S.V. et al. Conselho Nacional de Saúde: histórico, papel institucional e atores estatais e societais. In: CÔRTES, S. V. (Org.). Participação e saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009. p. 41-71. ). A partir dos anos 1990, o CNS e os conselhos estaduais e municipais de saúde assumiram caráter deliberativo, e a representação de usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) passou a ser “paritária em relação ao conjunto dos demais segmentos” (Brasil, 1990BRASIL. Lei n° 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diretoria de Orçamento, Finanças e Contabilidade, Brasília, DF, 28 dez. 1990 Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8142.htm >. Acesso em: 21 dez. 2021.
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), cabendo-lhe, portanto, metade dos assentos nessas instâncias.

Nesse contexto, no qual o CNS se tornou um espaço de participação social, diversas análises chamaram atenção para a inserção dos órgãos de ética em pesquisa junto ao controle social como marca distintiva do sistema ético-regulatório brasileiro (Freitas; Hossne, 2002FREITAS, C.; HOSSNE, W. O papel dos Comitês de Ética em Pesquisa na proteção do ser humano. Bioética , Brasília, DF, v. 10, n. 2, p. 129-146, 2002.; Guilhem; Diniz, 2008GUILHEM, D.; DINIZ, D. O que é ética em Pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 2008. ). Entretanto, costuma-se apontar as insuficiências e limitações da Resolução 01/88, bem como a baixa adesão de órgãos de pesquisa ao documento, como os motivos fundamentais de sua revisão e substituição pela Resolução 196/1996 (Freitas, 2006FREITAS, C. O sistema de avaliação da ética em pesquisa no Brasil: estudo dos conhecimentos e práticas de lideranças de Comitês de Ética em Pesquisa. 2006. Tese (Doutorado em Medicina Preventiva) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. ; Guilhem; Greco, 2008GUILHEM, D.; GRECO, D. A Resolução 196/1996 e o Sistema CEP/Conep. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais. Brasília, DF: Letras Livres, 2008. p. 87-122. ) - em detrimento das articulações de movimentos sociais para construção de uma agenda de ética em pesquisa. Tanto em 1988 quanto em 1996, estavam em cena no país intensos debates públicos acerca da regulação de ensaios clínicos envolvendo contraceptivos e antirretrovirais, respectivamente, protagonizados por movimentos sociais e organizações de pacientes e que colocaram em cena diversas demandas relativas às práticas científicas (Pimentel et al. 2017PIMENTEL, A. et al. A breve vida do Norplant no Brasil: controvérsias e reagregações entre ciência, sociedade e Estado. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 43-52, 2017.; Oliveira, 2001OLIVEIRA, M. A. Tecnociência, ativismo e política do tratamento da Aids. 2001. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. ).

Em vista desses eventos, proponho neste artigo a construção de notas para uma (outra) genealogia, que incorpore elementos que pouco emergem como componentes de sua fundação e fundamentação ético-política. Serão revisitados dois episódios históricos fundamentais na construção de instâncias regulatórias de ética em pesquisa no Brasil, com foco nos esforços de organizações da sociedade civil para mobilização de uma agenda pública e política voltada à regulamentação de pesquisas com humanos. Com a finalidade de atualizar esse enfoque, discuto brevemente um contexto mais recente, no qual ficou explícito o engajamento de grupos de pessoas com doenças raras na discussão do processo de revisão da Resolução 196/1996 e de publicação de sua substituta, a Resolução 466/2021 (Brasil, 2012BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União . Brasília, DF, 12 dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2021.
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), atualmente vigente. Nesse panorama, serão feitas aproximações analíticas de modos distintos de enquadramento dos ensaios clínicos e de engajamento de grupos da sociedade civil em discussões sobre as práticas científicas e dos respectivos sentidos de ética agenciados nessas situações.

A propósito de uma genealogia

As notas genealógicas deste trabalho se apoiam nas reflexões de Michel Foucault (2008aFOUCAULT, M. Genealogia e Poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008a. p. 167-177. , 2008bFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2008b. p. 15-37. ) em termos estratégicos e metodológicos, considerando como a genealogia pode se desenvolver como tática para desmobilização de discursos hegemônicos e as maneiras com que seus procedimentos podem ser acionados pragmaticamente. Segundo Foucault, uma genealogia distingue-se de proposições historicizantes unificadoras ou essencializantes, por ele denominadas de “pesquisa da ‘origem’” (2008bFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2008b. p. 15-37. , p. 16). Ao empreender uma genealogia, recusam-se as escavações em busca de um gene primordial que resguarde em si o desenvolvimento necessário de acontecimentos futuros, uma explicação fundamental ou metafísica dos eventos ou um sujeito transcendental do qual emanariam valores, tendências ou inclinações universais. Ao contrário disso, buscam-se os acidentes, as irrupções e as descontinuidades, em cujo começo o que se encontra não é uma essência intocada, mas “é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (Foucault, 2008bFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2008b. p. 15-37. , p. 18).

Em sua proposta genealógica, Foucault articula duas noções de Friedrich Nietzsche: proveniência e emergência. Enquanto a primeira designa um tipo de pesquisa que, segundo Foucault, “não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo” (2008bFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2008b. p. 15-37. , p. 21); a emergência sinaliza “a entrada em cena das forças; é sua interrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro, cada uma com seu vigor e sua própria juventude” (2008bFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2008b. p. 15-37. , p. 24). Ao se aproximar desses dois elementos, a genealogia põe em suspensão os discursos edificados acerca de um objeto para lançar atenção para a conjugação particular de forças e dispositivos em disputa em um contexto particular. “A genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo causal das dominações” (2008bFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2008b. p. 15-37. , p. 23).

Foucault destaca, ainda, uma dimensão política da genealogia, relacionada à sua mobilização como método. Se, em termos sincrônicos, ela é “meticulosa e pacientemente documentária” (2008bFOUCAULT, M. Nietzsche, a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal , 2008b. p. 15-37. , p. 15), implicando o levantamento de uma série de fontes e registros; diacronicamente, a recuperação histórica das lutas de forças constituiu-se, sobretudo nos anos 1950 e 1960, numa estratégia para enfrentamento de hegemonias epistêmicas e institucionais dos campos médico, judiciário e acadêmico no contexto francês. Segundo o autor, naquele contexto de “insurreição dos saberes dominados”33Saberes dominados são aqueles considerados “desqualificados” ou “abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade”, notadamente aqueles advindos “do psiquiatrizado, do doente, do enfermeiro, do médico paralelo e marginal em relação ao saber médico, do delinquente, etc.” (Foucault, 2008a, p. 170). (2008aFOUCAULT, M. Genealogia e Poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008a. p. 167-177. , p. 170), pesquisas genealógicas deram sustentação a uma série de “ofensivas dispersas e descontínuas” (2008aFOUCAULT, M. Genealogia e Poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008a. p. 167-177. , p. 168), processo que, por sua vez, permitiu a reemergência da genealogia como atividade que, ao “ativar saberes locais descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretendia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns” (Foucault, 2008aFOUCAULT, M. Genealogia e Poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008a. p. 167-177. , p. 171), articula uma série de relações que “permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais” (Foucault, 2008aFOUCAULT, M. Genealogia e Poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008a. p. 167-177. , p. 171).

Acompanhando esta proposta genealógica, neste trabalho serão realizados dois movimentos inter-relacionados. Primeiramente, serão revisadas fontes e registros documentais oficiais, artigos acadêmicos, relatórios públicos e publicações jornalísticas para delineamento das lutas de forças envolvendo a realização de ensaios clínicos específicos nos momentos em que se avizinhava a institucionalização do campo da ética em pesquisa no Brasil. Entretanto, menos que tomá-los como eventos que carregavam o germe de um debate ético sobre as práticas científicas, procura-se compreender como os atores nele envolvidos articularam, em termos éticos, os enfrentamentos acerca das práticas experimentais. Serão, ainda, salientados os conteúdos específicos das agendas de ética em pesquisa articuladas por movimentos sociais e bioativistas,44Aproximo aqui a noção de bioativismo a de ativismo biossocial de Valle (2015), que aponta para biossocialidades articuladas na produção de identidades baseadas no compartilhamento de mutações genéticas ou diagnósticos (Rabinow, 1999), e, sobretudo, para processos de luta por direitos a partir desses vínculos. no campo de relações que passaram a compartilhar com cientistas, laboratórios farmacêuticos, autoridades médicas e gestores públicos.

Serão descritos dois ensaios clínicos. O primeiro deles diz respeito à pesquisa com o implante contraceptivo Norplant, realizada nos anos 1980, em que na descrição serão exploradas suas correlações com a publicação da primeira normativa sobre ética em pesquisa do país - a Resolução 01/88 (Brasil, 1988BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no 1, de 14 de junho de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 jun. 1988. Disponível em: <Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1988/Reso01.doc >. Acesso em: 5 jan. 2022.
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). O segundo estudo, denominado Protocolo 028, voltou-se à investigação da segurança e eficácia do Indinavir, antirretroviral desenvolvido nos anos 1990. Sua realização foi interrompida em meio a embates entre cientistas e bioativistas do campo HIV/AIDS, sendo este um dos primeiros atos oficiais da então recém-fundada Conep, em 1996. Ao retomar esses momentos, estamos diante não somente da discussão dos principais documentos de regulamentação ética do Brasil, mas da presença de uma série de debates públicos, científicos e econômicos sobre a regulação das práticas científicas, o papel do Estado e os direitos dos cidadãos.

O estudo do Norplant: transição democrática, movimentos feministas e o papel do Estado

O Norplant foi desenvolvido pelo Population Council, instituição fundada pela Fundação Rockfeller em 1952, tendo seus estudos iniciados nos anos 1970 como parte de um esforço internacional pelo desenvolvimento de tecnologias voltadas ao controle populacional em países então chamados de “Terceiro Mundo” (Manica, 2009MANICA, D. T. Contracepção, natureza e cultura: embates e sentidos na etnografia de uma trajetória. 2009. Tese (Doutorado em Antropologia) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2009. ).55Nos anos 1990, o uso do Norplant foi estendido para o controle de natalidade de mulheres negras nos Estados Unidos, sobretudo as residentes em periferias urbanas (Roberts, 2017). Trata-se de um implante contraceptivo composto por seis hastes que, inseridas subcutaneamente por meio de procedimento cirúrgico, liberam lentamente o hormônio levonorgestrel e inibem a gestação por até cinco anos. Em 1980, o Norplant foi registrado e foram iniciados estudos clínicos “expandidos” ou “pré-introdutórios” em países como Estados Unidos, Finlândia, Indonésia, Índia, Chile e Brasil, tendo menos o objetivo de investigação de sua segurança e eficácia do que divulgar o implante no meio médico-científico, treinar profissionais para manuseá-lo, verificar sua efetividade e aceitabilidade junto às usuárias e preparar sua introdução em programas de planejamento familiar (Reis, 1990REIS, A. R. Norplant in Brazil: implantation strategy in the guise of scientific research. Journal of Feminist Analysis, v. 3, n. 2, 1990.; Corrêa, 1994CORRÊA, S. O Norplant nos anos 90: as peças que faltam. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, p. 86-98, 1994.; Pimentel et al., 2017PIMENTEL, A. et al. A breve vida do Norplant no Brasil: controvérsias e reagregações entre ciência, sociedade e Estado. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 43-52, 2017.).

O estudo no Brasil foi iniciado em 1984, sob coordenação do médico Aníbal Faúndes, pesquisador do Centro de Pesquisa e Controle das Doenças Materno-Infantis de Campinas (Cemicamp) (Pimentel et al., 2017PIMENTEL, A. et al. A breve vida do Norplant no Brasil: controvérsias e reagregações entre ciência, sociedade e Estado. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 43-52, 2017.). Entretanto, uma série de eventos confluíram para sua interrupção no início de 1986, dos quais serão destacados aqueles que, ao apontarem críticas a certas tecnologias contraceptivas, concorreram para o adensamento de uma agenda relacionada à regulamentação de pesquisas científicas. Naquele período, ganharam relevo diversas estratégias de combate às políticas de controle populacional, em especial aquelas capitaneadas por organismos internacionais; e críticas às políticas nacionais de saúde que pouco garantiam o acesso das mulheres a tecnologias contraceptivas. Em 1986, por exemplo, grupos de feministas negras do estado de São Paulo denunciavam “os interesses de governos e agências internacionais de controle da natalidade da população negra através da indução do uso indiscriminado de anticoncepcionais, especialmente a laqueadura” (Geledés, 1991GELEDÉS, INSTITUTO DA MULHER NEGRA. Esterilização: impunidade ou regulamentação? São Paulo: Geledés - Instituto da Mulher Negra, 1991., p. 9).

Adicionalmente, no contexto de maior participação de organizações civis em instâncias de tomada de decisão no poder executivo, formou-se a Comissão de Estudos dos Direitos da Reprodução Humana (CEDRH) no âmbito do Ministério da Saúde, em 1985. Tal grupo, formado por representantes de Ministérios da Educação, das Relações Exteriores e da Previdência Social, contava também com membros do Conselho Federal de Medicina e do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, representantes de grupos feministas e parlamentares (Reis, 1990REIS, A. R. Norplant in Brazil: implantation strategy in the guise of scientific research. Journal of Feminist Analysis, v. 3, n. 2, 1990.). Logo após sua fundação, a CEDRH deliberou uma revisão do estudo do Norplant, provocada por denúncias acerca das pesquisas em curso no país e, com base em seu relatório, foi realizada sua suspensão pela Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde (Dimed), em janeiro de 1986 (Pimentel et al., 2017PIMENTEL, A. et al. A breve vida do Norplant no Brasil: controvérsias e reagregações entre ciência, sociedade e Estado. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 43-52, 2017.). As investigações acerca do estudo, bem como a decisão pela interrupção, estavam diretamente associadas à ação dos movimentos feministas. Conforme relatou Suely Rozenfeld, que ocupava o cargo de diretora da Dimed naquele momento: “Quando assumi, em 1985, uma médica sanitarista, feminista, Ana Regina Reis, enviou um sinal de alerta sobre a necessidade de nos debruçarmos sobre o assunto” (Zorzanelli, 2018ZORZANELLI, R. Entrevista de Suely Rozenfeld à Physis. Physis, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. e280111, 2018., p. 4).

As denúncias acerca dos procedimentos do estudo do Norplant contemplavam uma série de elementos técnicos, materiais, científicos, operacionais e de gênero, cujo conteúdo assumiu, de forma paulatina, feições nominalmente éticas nos discursos e práticas de ativistas, gestores públicos, pesquisadores e médicos do campo da saúde pública. Tal processo torna-se evidente quando levamos em conta o conteúdo dos relatórios e estudos acerca do Norplant, notadamente aqueles produzidos pelo CFM e por pesquisadoras feministas, em contraste com as normativas para realização de pesquisas experimentais terapêuticas vigentes naquele momento: a Resolução Normativa 1/1978 do CNS (Brasil, 1978BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução Normativa no 1/78. Diário Oficial da União Brasília, DF, 3 ago. 1978.) e a Portaria no 16, publicada em 1981 pela Divisão Nacional de Vigilância Sanitária de Medicamentos do Ministério da Saúde (Brasil, 1981BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 16, de 27 de novembro de 1981. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 14 dez. 1981.).

Após a suspensão da autorização da pesquisa, o CFM emitiu um parecer a pedido da Dimed, no qual identificou que as pesquisas haviam sido iniciadas sem solicitação da “devida autorização” por parte da Dimed e da Comissão de Ética do Cemicamp, além da ausência de previsão de assistência e acompanhamento e o aumento significativo da quantidade de centros de pesquisa e de mulheres na amostra (de 7 para 18 e de 2000 para 3103, respectivamente) (CFM, 1986). O relatório produzido pelo Ministério da Saúde, por sua vez, identificou que “diversas mulheres não sabiam que estavam participando de uma pesquisa e que o método era distribuído como uma forma alternativa de contracepção; as clínicas não preenchiam os critérios para participação nos testes e muito frequentemente o método era imposto às mulheres” (Grupo de Trabalho do Ministério da Saúde, 1987 apudReis, 1990REIS, A. R. Norplant in Brazil: implantation strategy in the guise of scientific research. Journal of Feminist Analysis, v. 3, n. 2, 1990., p. 3). As próprias especificidades materiais do Norplant foram questionadas em termos éticos, considerando que, na medida em que mulheres cisgênero seriam as usuárias dos implantes, “as características técnicas e não-técnicas do método favorecem situações de abuso” (Corrêa, 1994CORRÊA, S. O Norplant nos anos 90: as peças que faltam. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, p. 86-98, 1994., p. 89).

Nesse contexto de contestação das práticas científicas, era ambíguo o respaldo oferecido pelas regulamentações vigentes para proteção das mulheres envolvidas nos estudos. A Resolução Normativa 1/1978, por exemplo, voltava-se principalmente ao estabelecimento de “uma sistemática da experimentação terapêutica” para subsidiar o processo de análise de registro de medicamentos, reservando para os “aspectos éticos” apenas as seguintes linhas: “configuram a obediência ao estatuído na declaração de Helsinki, na qual, para as pesquisas terapêuticas, segundo o critério do pesquisador o consentimento do paciente poderá ser obtido de modo verbal ou por escrito, quando julgado conveniente” (Brasil, 1978BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução Normativa no 1/78. Diário Oficial da União Brasília, DF, 3 ago. 1978., p. 16748 - grifos nossos). Assim, o documento facultava ao pesquisador a obtenção do consentimento dos sujeitos de pesquisa, sem qualquer menção à prestação prévia de informações acerca da pesquisa aos envolvidos.66Enquanto a Resolução Normativa 1/1978 estabelecia que ensaios clínicos deveriam ser submetidos à autorização da Câmara de Medicamentos do CNS, o CFM reconhecia que “não é usual que pesquisadores universitários informem a DIMED de suas pesquisas” (CFM, 1986, p. 2). Assim, embora houvesse dispositivos legais para que o governo regulasse pesquisas científicas, pesquisadores aparentemente não tinham clareza sobre o órgão específico ao qual deveriam submeter seus protocolos.

Nesse mesmo sentido, embora enumere considerações aos “riscos eventualmente envolvidos em novos procedimentos terapêuticos” e “os deveres éticos por parte de médico assistente e dos laboratórios produtores de novos medicamentos”, a Portaria no 16 da Dimed (Brasil, 1981BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 16, de 27 de novembro de 1981. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 14 dez. 1981.) estabeleceu no “Termo de Conhecimento de Risco” uma série de medidas cujo objeto focava, sobretudo, na isenção de responsabilidade dos órgãos públicos em casos de efeitos deletérios de usos de tecnologias experimentais ou sem registro no país. Quatro itens do documento estavam voltados à declaração dos sujeitos de que estavam “cientes” de que o produto utilizado não contava com avaliação ou recomendação do governo brasileiro; não havia certezas sobre relações risco-benefício; e o utilizavam por vontade própria. A portaria previa, ainda, que “o médico que aplica esta medicação ou novo método é responsável e o laboratório produtor é co-responsável pela medicação, estando a União isenta de responsabilidade por danos que possam ocorrer ao paciente decorrentes do uso do produto ou método terapêutico aplicado” (Brasil, 1981BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 16, de 27 de novembro de 1981. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 14 dez. 1981., p. 23746 - grifos nossos).

Nesse contexto, os movimentos sociais feministas, incluindo os protagonizados por mulheres negras, produziram uma agenda relativa à regulamentação de pesquisas clínicas no país, com destaque para aquelas envolvendo tecnologias reprodutivas e contraceptivos. Seu conteúdo ético diz respeito menos a insuficiências da legislação ou sua afronta por cientistas que a um conjunto de propostas relacionadas à interposição de mecanismos de controle governamental e social das práticas científicas, com vistas a conter abusos e garantir a participação social. Elementos fundamentais desta agenda encontram-se colocados, por exemplo, no relatório da Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher (CNSDM), realizada entre 10 e 13 de outubro de 1986, sob os auspícios da VIII Conferência Nacional de Saúde. Na seção “Direitos da reprodução humana”, constam reivindicações como:

Investimento em pesquisas sobre os métodos contraceptivos da medicina popular e alternativa; controle das pesquisas em seres humanos, para que mulheres do Terceiro Mundo não continuem servindo de cobaias; dotação de recursos para a SNVS, através da DIMED (órgão governamental encarregado da vigilância sobre medicamentos e desenvolvimento de pesquisas, com normas já estabelecidas a respeito), no sentido de que possa fazer cumprir a lei [...].

Todos os programas de pesquisa com mulheres ou homens a serem realizadas na esfera acadêmica, bem como nos serviços de saúde, deverão ser discutidas e aprovadas pelos órgãos competentes, ouvidas as entidades representativas dos profissionais de saúde e segmentos organizados da sociedade civil (Brasil, 1987CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE E DIREITOS DA MULHER. Relatório Final. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1987., p. 13).77No relatório, constam ainda demandas de “veto à participação de pessoas comprometidas com as práticas controlistas como representantes do Brasil em organismos internacionais”, sendo Elsimar Coutinho e Aníbal Faúndes citados nominalmente (Brasil, 1987, p. 13); e avaliação de pesquisas em reprodução humana, tanto aquelas em andamento quanto as canceladas (Brasil, 1987, p. 14).

Alguns desses elementos foram contemplados ambígua e assimetricamente na Resolução 01/88 do CNS, considerada a primeira resolução sobre ética em pesquisa em saúde publicada no Brasil.88A Resolução 01/88 revogou e substituiu a Resolução Normativa 1/78 e a Portaria no 16 de 1981. A resolução instituiu o “Consentimento Pós-Informação”, que detalhava uma série de informações e garantias aos sujeitos de pesquisa, e estabeleceu uma seção de regras para pesquisas em mulheres em idade fértil, gestantes e durante o trabalho de parto, puerpério e lactação. Questões acerca da contracepção, entretanto, não foram diretamente elencadas. Ademais, estabeleceu-se que somente era necessário “dar ciência” à Divisão Nacional de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde e à instituição de saúde onde se realiza a pesquisa, cabendo aprovação do Comitê de Ética da unidade antes da realização das pesquisas (Brasil, 1988BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no 1, de 14 de junho de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 jun. 1988. Disponível em: <Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/1988/Reso01.doc >. Acesso em: 5 jan. 2022.
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). Apesar das limitações em termos regulatórios, a partir de múltiplas ações com fins ao encerramento do ensaio clínico com o Norplant e proposição de uma série de questionamentos acerca das práticas científicas, os movimentos feministas estabeleceram uma agenda pública sobre ética em pesquisa por meio do qual “o isolamento científico foi quebrado” (Barroso e Corrêa, 1990 apudCorrêa, 1994CORRÊA, S. O Norplant nos anos 90: as peças que faltam. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, p. 86-98, 1994., p. 86).

Protocolo 028: ciência contestada, bioativismo e acesso a tratamento

A eficácia da Resolução 01/88 durante o período em que esteve vigente foi bastante limitada, tendo sido criados poucos Comitês de Ética para avaliação de pesquisas (Francisconi et al., 1995FRANCISCONI, C. F. et al. Comitês de Ética em Pesquisa: Levantamento de 26 hospitais brasileiros. Bioética, Brasília, DF, v. 3, n. 1, p. 61-67, 1995.). O próprio CNS avaliou que a normativa de 1988 não era aplicada, por discordância ou desconhecimento da comunidade científica e dificuldades operacionais e técnicas das instituições responsáveis por abrigarem os comitês (Conep, 1998COMISSÃO NACIONAL DE ÉTICA EM PESQUISA - CONEP. Cadernos de Ética em Pesquisa - no 1. Brasília, DF, 1998.). Segundo parte significativa da literatura, esses fatores, associados ao aumento da participação de cientistas brasileiros em projetos internacionais (Freitas, 2006FREITAS, C. O sistema de avaliação da ética em pesquisa no Brasil: estudo dos conhecimentos e práticas de lideranças de Comitês de Ética em Pesquisa. 2006. Tese (Doutorado em Medicina Preventiva) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. ) e a persistência de denúncias sobre pesquisas envolvendo contraceptivos (Hardy et al., 2004HARDY, E. et al. Comitês de Ética em Pesquisa: adequação à Resolução 196/96. Revista Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 50, n. 4, p. 457-462, 2004.), impulsionaram um amplo e complexo processo de revisão e substituição do documento. Em 1995, um grupo de trabalho99O GT contou representantes do CFM, Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, Organização dos Advogados do Brasil, Associação Brasileira da Indústria de Equipamentos Médico-Odontológicos, Secretaria de Vigilância Sanitária do MS e membros de ONGs de pacientes, dentre outras instituições. foi criado pelo CNS e seus membros se responsabilizaram por atividades como: envio da Resolução 01/88 para cerca de 30.000 pessoas e instituições dos campos da saúde e da educação, consultando-lhes sobre quaisquer comentários e sugestões para a construção de uma nova normativa; análise e sistematização das 119 respostas recebidas; levantamento de guias éticos de 18 países; realização de seminários e palestras; e apresentação de uma minuta de resolução no I Congresso Brasileiro de Bioética (Hossne et al., 2008HOSSNE, W.; VIEIRA, S.; FREITAS, C. Committees for Ethics in Research Involving Human Subjects. Journal International de Bioéthique, Paris, v. 19, n. 1-2, p. 131-141, 2008.). Ao final dos trabalhos do GT, em outubro de 1996, foi publicada a célebre Resolução 196/1996 (Brasil, 1996BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no 196, de 10 de outubro de 1996. Diário Oficial da União . Brasília, DF, 10 out. 1996. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1996/res0196_10_10_1996.html >. Acesso em: 21 dez. 2021.
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), que substituiu a Resolução 01/88.

Evitando uma historicização restrita a uma insuficiência de adesão à Resolução 01/88 e a uma necessidade “natural” de atualização, evocam-se nesta seção os processos associados ao estudo clínico iniciado no Brasil, em 1994, com o antirretroviral Indinavir (MK-639) como fundamentais para compreensão do contexto no qual novos elementos políticos emergiram na cena pública nacional e concorreram para a elaboração de uma nova normativa ética. O fármaco, produzido pela farmacêutica Merck Sharpe & Dohme (MSD), fazia parte de um estudo clínico de fase III conhecido como “Protocolo 028” (Oliveira, 2001OLIVEIRA, M. A. Tecnociência, ativismo e política do tratamento da Aids. 2001. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. ). O contexto no qual o estudo foi recebido era complexo - com o avanço da epidemia de HIV no Brasil nos anos 1980 e com as parcas políticas públicas de saúde em vigor, grupos de ativistas se formaram e estabeleceram uma série de práticas coletivas de saúde e bioativismo,1010Para um panorama sobre ativismos relacionados à história da AIDS no Brasil, ver Longhi, Franch e Neves (2015). como ajuda mútua, trocas de experiências, produção de expertise no cuidado, contato com médicos de diferentes especialidades e estabelecimento de conexões com movimentos internacionais (Bastos, 2002BASTOS, C. Ciência, poder e acção: respostas à Sida. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002. ; Valle, 2015VALLE, C. Biosocial activism, identities and citizenship: making up ‘people living with AIDS’ in Brazil. Vibrant, Brasília, DF, v. 12, n. 2, p. 27-70, 2015.).1111A escassa assistência para pessoas com HIV naquele momento se relaciona à negligência vetorizada pela associação estigmatizante do contágio com a homossexualidade. Por outro lado, nesse contexto de complexa luta por direitos, o bioativismo HIV/AIDS brasileiro, como em outros países, foi protagonizado por gays e lésbicas (Longhi, Franch e Neves, 2015; Valle, 2015).

O Protocolo 028 foi iniciado no Brasil em 1994, com perspectivas de recrutamento de adultos soropositivos para HIV-1 na cidade de São Paulo. O estudo foi recebido com entusiasmo por algumas organizações de pessoas com HIV, como o Grupo Pela Vidda, que, em 1995, demandou publicamente à MSD que os critérios de inclusão no estudo fossem ampliados. Naquele momento, o estudo foi absorvido como uma opção de tratamento e de assistência diferenciada, em contraste com as dificuldades de acesso a tratamento nos serviços públicos e privados de saúde (Oliveira, 2001OLIVEIRA, M. A. Tecnociência, ativismo e política do tratamento da Aids. 2001. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. ). Por outro lado, os próprios pesquisadores brasileiros responsáveis pelo protocolo sinalizaram ter dificuldades para incluir sujeitos na pesquisa, diante dos critérios de inclusão de sujeitos sem manifestações sintomáticas e “virgens de tratamento” (Folha de S. Paulo, 1995FOLHA DE S. PAULO. Falta de voluntários atrasa pesquisa de Aids. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 jun. 1995. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/7/17/cotidiano/27.html >. Acesso em: 10 jan. 2022.
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). O entusiasmo inicial dos ativistas do campo HIV/AIDS se arrefeceu, entretanto, quando mudanças no cenário científico internacional sobre antirretrovirais foram identificadas como elementos que punham o desenho e a eticidade do estudo em suspeição.

O Protocolo 028 estava organizado em três braços experimentais paralelos, nos quais a distribuição dos sujeitos de pesquisa era randomizada e duplo-cega, ou seja, nem eles próprios e nem a equipe de pesquisa sabiam em qual grupo seriam alocados. Em um braço, os sujeitos recebiam o Indinavir e a Zidovudina (AZT) e nos outros dois, esses mesmos medicamentos eram administrados isoladamente. Quando, no final de 1995, foram publicados resultados de estudos que indicavam superioridade terapêutica de antirretrovirais combinados quando comparados com o uso isolado do AZT, bioativistas brasileiros passaram a reivindicar junto à MSD e aos pesquisadores que o Protocolo 028 fosse alterado (Oliveira, 2001OLIVEIRA, M. A. Tecnociência, ativismo e política do tratamento da Aids. 2001. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. ). Sob consideração de que a manutenção de monoterapias nos grupos da pesquisa seria antiética, os bioativistas pressionaram a empresa e conseguiram que o desenho da pesquisa passasse a incluir mais um antirretroviral, o 3TC, em dois braços da pesquisa (Scheffer, 2000SCHEFFER, M. Tecnologia, aids e ética em pesquisa. Interface, Botucatu, v. 4, n. 6, p. 173-176, 2000.).

A empresa, contudo, recusou-se a alterar o braço de administração do Indinavir isolado, adicionando nele um placebo, de modo a garantir o regime duplo-cego da pesquisa. A MSD e os pesquisadores brasileiros responsáveis pelo estudo resistiram à adição de um antirretroviral nesse braço da pesquisa, sob alegações de prejuízo à metodologia do ensaio e ausência de evidências suficientes para o uso combinado de antirretrovirais (Folha de S. Paulo, 1996FOLHA DE S. PAULO. Terapia com 1 só remédio é condenada por médicos. Folha de S. Paulo , São Paulo, 4 ago. 1996. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/8/04/cotidiano/32.html >. Acesso em: 10 jan. 2022.
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). Dos quase mil sujeitos do estudo, cerca de 300 foram mantidos em regime monoterapêutico (Oliveira, 2001OLIVEIRA, M. A. Tecnociência, ativismo e política do tratamento da Aids. 2001. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. ). Diante do impasse, debates se acirraram rapidamente: pesquisadores rebatiam as críticas, afirmando que “questões ético-científicas visavam atingir a competência e a probidade de pesquisadores brasileiros” e que o estudo não continha incorreções, pois seu protocolo e termo de consentimento haviam sido aprovados pelas instâncias cabíveis e todos os pacientes assinaram o documento (Motti, 1996MOTTI, Eduardo. Aids: ilusão e ignorância. Folha de S. Paulo , São Paulo, 5 mar. 1996. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/05/cotidiano/13.html >. Acesso em: 10 jan. 2022.
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). Bioativistas, por outro lado, insistiam na antieticidade de manter centenas de pessoas em subtratamento. Ao mesmo tempo, representantes desses grupos participavam do processo de construção da normativa ética que em breve seria publicada, junto a outros movimentos sociais na saúde (Scheffer, 1999SCHEFFER, M. A experiência dos usuários: um depoimento. In: CARNEIRO, F. (Org.). A moralidade dos atos científicos: questões emergentes da experiência dos Comitês de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p. 109-113. , 1996SCHEFFER, M. Aids: o direito de saber. Folha de S. Paulo , São Paulo, 13 mar. 1996. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/3/13/cotidiano/15.html >. Acesso em: 10 jan. 2022.
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).1212Segundo Oliveira (2001), debates éticos haviam sido levantados por ONGs AIDS entre 1991 e 1992, no contexto da controvérsia envolvendo a participação do Brasil em ensaios clínicos com vacinas anti-HIV.

As contendas atingiram seu ponto mais elevado quando a pesquisa foi denunciada por bioativistas à recém-fundada Conep, no segundo semestre de 1996. A comissão acolheu a denúncia e designou como relatora a médica Fátima Oliveira, integrante dos movimentos negro e feminista, que havia integrado o GT de elaboração da Resolução 196/1996 como representante da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos. Conforme detalhado pela própria ativista em sua coluna no jornal O Tempo (Oliveira, 2014aOLIVEIRA, F. Os bastidores da Resolução 196/1996 e as cobaias humanas. O Tempo, Contagem, 9 dez. 2014a. Disponível em: <Disponível em: https://www.otempo.com.br/opiniao/fatima-oliveira/os-bastidores-da-resolucao-196-1996-e-as-cobaias-humanas-1.958599 >. Acesso em: 28 jul. 2020.
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), seu parecer foi o primeiro jamais emitido pela Conep e recomendava o encerramento do Protocolo 028: “Em março de 1996, a monoterapia com AZT foi abolida da rede pública, mas a pesquisa insistia nela!” (Oliveira, 2014aOLIVEIRA, F. Os bastidores da Resolução 196/1996 e as cobaias humanas. O Tempo, Contagem, 9 dez. 2014a. Disponível em: <Disponível em: https://www.otempo.com.br/opiniao/fatima-oliveira/os-bastidores-da-resolucao-196-1996-e-as-cobaias-humanas-1.958599 >. Acesso em: 28 jul. 2020.
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).1313Fátima Oliveira detalhou que ela e sua família foram ameaçadas em telefonemas anônimos e que chegou a receber uma tentativa de suborno durante a elaboração de seu parecer (Oliveira, 2014a). O documento foi aprovado por unanimidade em 7 de dezembro de 1996; entretanto, por vias não esclarecidas, chegou às mãos do laboratório antes de ser divulgado. Segundo a médica, seu parecer foi “vazado”, como um estratagema da empresa para “blindar as ações do laboratório na Bolsa” (Oliveira, 2014aOLIVEIRA, F. Os bastidores da Resolução 196/1996 e as cobaias humanas. O Tempo, Contagem, 9 dez. 2014a. Disponível em: <Disponível em: https://www.otempo.com.br/opiniao/fatima-oliveira/os-bastidores-da-resolucao-196-1996-e-as-cobaias-humanas-1.958599 >. Acesso em: 28 jul. 2020.
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). Na imprensa nacional, noticiou-se, em março de 1997, que o estudo havia sido encerrado pela própria MSD, após recomendação de um comitê de ética contratado pela empresa (Pivetta, 1997PIVETTA, M. Comitê de ética suspende pesquisa de Aids. Folha de S. Paulo , São Paulo, 22 mar. 1997. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/3/22/cotidiano/1.html >. Acesso em: 10 jan. 2022.
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).

A Resolução 196/1996 e o trabalho da Conep foram recebidos positivamente como sinal de que instituições públicas estavam atentas a condutas abusivas por parte de cientistas e empresas farmacêuticas. Para ativistas, a publicação da Resolução 196/1996 estabelecia um novo tempo na regulamentação das atividades científicas, no qual o Brasil deixava de ser “terra de ninguém” (Oliveira, 2014bOLIVEIRA, F. Tributo ao Adib Jatene, um humanista de muitos dons. O Tempo , Contagem, 18 nov. 2014b. Disponível em: <Disponível em: https://www.otempo.com.br/opiniao/fatima-oliveira/tributo-ao-dr-adib-jatene-um-humanista-de-muitos-dons-1.948850 >. Acesso em: 28 jul. 2020.
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), e inaugurava uma “nova cultura ética” (Scheffer, 1999SCHEFFER, M. A experiência dos usuários: um depoimento. In: CARNEIRO, F. (Org.). A moralidade dos atos científicos: questões emergentes da experiência dos Comitês de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p. 109-113. , p. 2). Esta tinha como alguns de seus componentes fundamentais, notadamente presentes na Resolução 196/1996, elementos levantados por bioativistas, como a garantia de que sujeitos de pesquisa recebessem o melhor tratamento disponível durante os estudos; que o projeto de pesquisa fosse analisado por um CEP com participação de representantes dos sujeitos do estudo; e que os benefícios da pesquisa se tornassem disponíveis no sistema de saúde brasileiro e não somente no país de origem dos patrocinadores (Scheffer, 2000SCHEFFER, M. Tecnologia, aids e ética em pesquisa. Interface, Botucatu, v. 4, n. 6, p. 173-176, 2000.).

Limites éticos, responsabilização do Estado e direito à saúde

O debate nacional sobre ética em pesquisa deflagrado no contexto da redemocratização não se deu em um completo vácuo normativo e nem por uma busca tautológica por proposição de parâmetros éticos para as práticas científicas. Ao contrário, normativas vigentes nos fins dos anos 1970 e início dos anos 1980 sinalizam que alguma atenção à regulamentação das práticas científicas do campo biomédico já ocorria em âmbito governamental, embora fossem, aparentemente, limitadas em sua implementação. As condutas científicas de estudos com o Norplant e o Protocolo 028 primavam pela determinação dos parâmetros científicos e de assistência pelos próprios laboratórios patrocinadores e pesquisadores locais. Com efeito, os procedimentos de pesquisa não eram frequentemente acompanhados ou supervisionados por instâncias governamentais ou de controle social, e cientistas demonstraram resistência nos momentos de contestação, alegando haver limitações indevidas ou “patrulhamento” à liberdade científica (Folha de S. Paulo, 1997FOLHA DE S. PAULO. Infectologista vê “patrulha científica”. Folha de S. Paulo , São Paulo, 22 mar. 1997. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/3/22/cotidiano/3.html >. Acesso em: 22 mar. 1997.
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; Pimentel et al., 2017PIMENTEL, A. et al. A breve vida do Norplant no Brasil: controvérsias e reagregações entre ciência, sociedade e Estado. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 43-52, 2017.).

Uma das mais significativas demandas políticas mobilizadas por movimentos feministas nos anos 1980, em torno de pesquisas clínicas, era a de implicação do Estado brasileiro nos processos científicos, fato que confrontava as ambiguidades entre os mecanismos previstos nos dispositivos legais vigentes (Brasil, 1978BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução Normativa no 1/78. Diário Oficial da União Brasília, DF, 3 ago. 1978.; Brasil, 1981BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria no 16, de 27 de novembro de 1981. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 14 dez. 1981.). Ao procurar designar um papel para o Estado na supervisão, autorização e fiscalização das práticas experimentais médicas, configurou-se uma agenda ética cujo propósito fundamental era o de coibir condutas abusivas e afirmar os direitos de mulheres em um contexto de políticas diversas de controle populacional. Em meio a um intenso debate sobre planejamento familiar e direitos sexuais e reprodutivos, imprimiu-se colateralmente uma agenda de ética em pesquisa dentro de um conjunto amplo de lutas feministas e antirracistas dos movimentos sociais. Na CNDSM, assim constava dentre as reivindicações relativas à “identidade da mulher negra”: “Que seja proibida qualquer forma de intervenção controlista, distribuição indiscriminada de anticoncepcionais, experiências com mulheres e esterilização cirúrgica, feminina ou masculina, visando limitar o número de filhos da raça negra” (Brasil, 1987CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE E DIREITOS DA MULHER. Relatório Final. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1987., p. 31 - grifos nossos). Além disso, tais grupos lutaram para que representantes de movimentos de mulheres tomassem assento nos processos decisórios envolvendo pesquisas científicas, sobretudo aquelas relacionadas a processos reprodutivos e contraceptivos. Nesse contexto, a construção de uma agenda ética mostra-se indissociada de lutas sociais contra o racismo e o sexismo no contexto médico-científico.

Já em meados dos anos 1990, as pautas políticas articuladas a partir de pesquisas envolvendo pessoas com HIV retomavam não somente o papel do Estado e a participação social na regulação das atividades de pesquisa clínica, como reforçavam a atenção sobre questões envolvendo assimetrias geopolíticas e econômicas entre o Brasil e países de origem dos ensaios clínicos multicêntricos, o uso de tecnologias subótimas em estudos controlados e as perspectivas de acesso a tratamento durante e ao término das pesquisas. Assim, além de propor barreiras a práticas indevidas, estabeleceu-se também uma agenda propositiva sobre o tema, sob a rubrica da ética em pesquisa. Tanto na década de 1980 quanto na seguinte, os desfechos dos episódios que ganharam maior repercussão sinalizam que a ideia crítica de fundo nas ações aqui analisadas era de que: “em matéria de pesquisa clínica, o Brasil é terra de ninguém. Laboratórios ditam as regras e testam o que querem, em quem bem entendem, com a conivência dos mais renomados profissionais e instituições” (Scheffer, 1997SCHEFFER, M. O quinto elemento e o homem nu. Boletim ABIA, Rio de Janeiro, n. 35, p. 18-19, 1997. , p. 18). A associação entre a institucionalização da ética na pesquisa e estabelecimento de limites a práticas abusivas emergiram, assim, como marcas fundamentais dos contextos de publicação da Resolução 01/88 e da criação do Sistema CEP/Conep.

Após a publicação da Resolução 196/1996, a adesão de cientistas brasileiros às previsões da normativa e a criação de CEPs em instituições diversas apenas cresceu. Atualmente, o Brasil tem CEPs em todos os estados, contabilizados mais de 860 ao final de 2021.1414COMISSÃO NACIONAL DE ÉTICA EM PESQUISA - CONEP. Comitês de Ética em Pesquisa no Brasil. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/comites-de-etica-em-pesquisa-conep?view=default>. Acesso em 17 jan 2022. Esse cenário, contudo, não se configurou livre de tensões: questões como o tempo para emissão dos pareceres, a necessidade de avaliação ética adicional de pesquisas clínicas internacionais pela Conep e os impactos dos processos regulatórios sobre o afluxo de ensaios clínicos para o Brasil foram problematizados por pesquisadores e empresas farmacêuticas ao longo das décadas seguintes (Castro, 2020CASTRO, R. Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. São Paulo: Hucitec, 2020.). Além disso, o fato de o documento regulamentar quaisquer tipos de pesquisas, apesar de se basear notadamente no universo da biomedicina, mobilizou amplas e pertinentes críticas de pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais (Duarte, 2015DUARTE, L. F. D. A ética em pesquisa nas Ciências Humanas e o imperialismo bioético no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, v. 3, n. 5, p. 31-52, 2015.).

Quando a Resolução 196/1996 foi revisada e substituída pela Resolução 466/2012 (Brasil, 2012BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no 466, de 12 de dezembro de 2012. Diário Oficial da União . Brasília, DF, 12 dez. 2012. Disponível em: <Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2021.
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes...
), o contexto de debates permitiu visibilizar, ainda, uma série de críticas interpostas por pessoas com doenças raras, que entendiam que a garantia de acesso ao tratamento pós-estudo preconizada pelo CNS afugentava estudos clínicos envolvendo possíveis terapias para esses grupos (Castro, 2018CASTRO, R. Pesquisa clínicas, ética e direito à saúde: práticas emergentes de bioativismo científico no Brasil. Vivência, [S.l.], v. 1, n. 51, p. 50-72, 2018.). Salientaram-se, assim, novos sentidos de ética em pesquisa, nos quais a proteção não estava necessariamente vinculada ao impedimento de abusos por parte de cientistas e empresas farmacêuticas, mas à defesa de melhores condições regulatórias que garantissem o afluxo de ensaios clínicos e, consequentemente, a participação de pessoas com doenças raras em estudos com tratamentos experimentais. A normativa de 2012 demarcou, nesse contexto, a emergência de novos elementos que orientam as práticas da Conep, complexificando-se o entendimento da comissão sobre seu papel de regulamentação ética com a ideia de fomento à atividade científica no país como forma de proteção dos interesses de participantes de pesquisa em busca de tratamentos (Castro, 2020CASTRO, R. Economias políticas da doença e da saúde: uma etnografia da experimentação farmacêutica. São Paulo: Hucitec, 2020.).

Nas notas genealógicas aqui propostas, denota-se como diversos aspectos participaram da constituição de uma agenda pública de movimentos sociais nos anos 1980 e 1990 em torno da regulamentação institucionalizada das práticas biomédicas. Nem todos os elementos foram igualmente contemplados nas normativas publicadas nessas décadas, o que sinaliza a complexidade das correlações de forças presentes na elaboração desses documentos e explicita que as demandas sociais em torno do assunto extrapolaram os termos previstos nas resoluções do CNS. As resoluções não são, portanto, resultantes diretos de valores ou disposições éticas intrínsecas ou automaticamente adquiridas a partir de diálogos internacionais; nem tampouco efeitos imediatos das ações de ativistas brasileiras(os). As ações desses grupos e os eventos particulares que ocorrem no cenário nacional devem, no entanto, ser levados em conta em esforços de historicização da história da ética em pesquisa no Brasil.

Considerações finais

Em outubro de 2021, o Sistema CEP/Conep completou 25 anos. Apesar da data marcante, o aniversário do sistema sobreveio de modo relativamente discreto, diante do contexto em que foi celebrado. O país ainda vivia sob a sombra das perdas irreparáveis pela pandemia de covid-19, embora, em outubro de 2021, a vacinação estivesse avançando mais efetivamente, ao contrário dos primeiros meses daquele ano. Adicionalmente, no decorrer dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito instalada para investigar crimes cometidos pelo Governo Federal no contexto da pandemia, fatos imprevistos vieram a público: casos escabrosos de realização de experimentos farmacêuticos em hospitalizados com covid-19, em diversas vezes sem seu consentimento ou mesmo conhecimento. O debate sobre ética em pesquisa tomou então as atenções da sociedade de um modo geral e determinadas práticas biomédicas foram foco de atenção crítica.

Novos elementos passaram a permear questões atinentes ao campo da ética em pesquisa, como a circulação de fake news, o uso de medicamentos cientificamente ineficazes em estudos clínicos e o papel do Sistema CEP/Conep na fiscalização de pesquisas médicas. A consideração, portanto, dos modos com que conjunturas políticas, sociais, econômicas e sanitárias atualizam a ética em pesquisa e suas questões e prioridades é fundamental. Neste ensaio, procurou-se salientar episódios que denotam o histórico brasileiro de participação dos movimentos sociais nesse campo, articulando-se criticamente para garantia de direitos e reforço do papel do Estado e da sociedade civil na regulamentação das práticas científicas. Nesse cenário pandêmico, em que pesquisas clínicas assumiram lugar de destaque na vida nacional, mostra-se a especial relevância de recordar e atualizar esse registro brasileiro de lutas sociais em torno da ética em pesquisa, articuladas à defesa do direito à saúde.

Agradecimentos

Meus agradecimentos a Rogerio Azize pelos diversos diálogos acerca do material elaborado neste artigo; à Marisol Marini, Sandra Ávila e Maria Luiza Marcelino pelo diálogo acerca de versão anterior deste trabalho, apresentada no seminário “Corpo, Saúde e Materialidades”, realizado em 15 de setembro de 2021; e à turma do curso “Medicamentos, Ciências e Ativismos”, realizado em 2021 no Instituto de Medicina Social, pelas discussões estimulantes que incentivaram a elaboração deste artigo.

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  • ZORZANELLI, R. Entrevista de Suely Rozenfeld à Physis. Physis, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. e280111, 2018.

  • 1
    A pesquisa que fundamenta este ensaio foi financiada com recursos do Programa Nacional de Pós-Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PNPD/CAPES).
  • 2
    Para revisões críticas do Sistema CEP/Conep, ver Fleischer e Schuch (2010)FLEISCHER, S.; SCHUCH, P. (Org.). Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília, DF: LetrasLivres: Editora UnB, 2010.; Sarti e Duarte (2013)SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. Antropologia e ética: desafios para a regulamentação. Brasília, DF: ABA , 2013.; Sarti et al. (2017)SARTI, C. et al. Avanços da Resolução 510/2016 e impasses do Sistema CEP/Conep. Mundaú, Maceió, n. 2, p. 8-21, 2017..
  • 3
    Saberes dominados são aqueles considerados “desqualificados” ou “abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade”, notadamente aqueles advindos “do psiquiatrizado, do doente, do enfermeiro, do médico paralelo e marginal em relação ao saber médico, do delinquente, etc.” (Foucault, 2008aFOUCAULT, M. Genealogia e Poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 25. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008a. p. 167-177. , p. 170).
  • 4
    Aproximo aqui a noção de bioativismo a de ativismo biossocial de Valle (2015)VALLE, C. Biosocial activism, identities and citizenship: making up ‘people living with AIDS’ in Brazil. Vibrant, Brasília, DF, v. 12, n. 2, p. 27-70, 2015., que aponta para biossocialidades articuladas na produção de identidades baseadas no compartilhamento de mutações genéticas ou diagnósticos (Rabinow, 1999RABINOW, P. Artificialidade e Iluminismo: da sociobiologia à biossocialidade. In: Antropologia da Razão. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 1999, p. 135-157.), e, sobretudo, para processos de luta por direitos a partir desses vínculos.
  • 5
    Nos anos 1990, o uso do Norplant foi estendido para o controle de natalidade de mulheres negras nos Estados Unidos, sobretudo as residentes em periferias urbanas (Roberts, 2017ROBERTS, D. Killing the black body: race, reproduction, and the meaning of liberty. New York: Vintage Books, 2017. ).
  • 6
    Enquanto a Resolução Normativa 1/1978 estabelecia que ensaios clínicos deveriam ser submetidos à autorização da Câmara de Medicamentos do CNS, o CFM reconhecia que “não é usual que pesquisadores universitários informem a DIMED de suas pesquisas” (CFM, 1986, p. 2). Assim, embora houvesse dispositivos legais para que o governo regulasse pesquisas científicas, pesquisadores aparentemente não tinham clareza sobre o órgão específico ao qual deveriam submeter seus protocolos.
  • 7
    No relatório, constam ainda demandas de “veto à participação de pessoas comprometidas com as práticas controlistas como representantes do Brasil em organismos internacionais”, sendo Elsimar Coutinho e Aníbal Faúndes citados nominalmente (Brasil, 1987CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE E DIREITOS DA MULHER. Relatório Final. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1987., p. 13); e avaliação de pesquisas em reprodução humana, tanto aquelas em andamento quanto as canceladas (Brasil, 1987CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE E DIREITOS DA MULHER. Relatório Final. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1987., p. 14).
  • 8
    A Resolução 01/88 revogou e substituiu a Resolução Normativa 1/78 e a Portaria no 16 de 1981.
  • 9
    O GT contou representantes do CFM, Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, Organização dos Advogados do Brasil, Associação Brasileira da Indústria de Equipamentos Médico-Odontológicos, Secretaria de Vigilância Sanitária do MS e membros de ONGs de pacientes, dentre outras instituições.
  • 10
    Para um panorama sobre ativismos relacionados à história da AIDS no Brasil, ver Longhi, Franch e Neves (2015)LONGHI, M; FRANCH, M; NEVES, E. Novos cenários, velhas questões: aids e cidadania no Brasil. In: FRANCH, M.; ANDRADE, M.; AMORIM, L. (Org.). Antropologia em novos campos de atuação: debates e tensões.Brasília, DF: ABA, 2015, p. 175-199..
  • 11
    A escassa assistência para pessoas com HIV naquele momento se relaciona à negligência vetorizada pela associação estigmatizante do contágio com a homossexualidade. Por outro lado, nesse contexto de complexa luta por direitos, o bioativismo HIV/AIDS brasileiro, como em outros países, foi protagonizado por gays e lésbicas (Longhi, Franch e Neves, 2015LONGHI, M; FRANCH, M; NEVES, E. Novos cenários, velhas questões: aids e cidadania no Brasil. In: FRANCH, M.; ANDRADE, M.; AMORIM, L. (Org.). Antropologia em novos campos de atuação: debates e tensões.Brasília, DF: ABA, 2015, p. 175-199.; Valle, 2015VALLE, C. Biosocial activism, identities and citizenship: making up ‘people living with AIDS’ in Brazil. Vibrant, Brasília, DF, v. 12, n. 2, p. 27-70, 2015.).
  • 12
    Segundo Oliveira (2001)OLIVEIRA, M. A. Tecnociência, ativismo e política do tratamento da Aids. 2001. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. , debates éticos haviam sido levantados por ONGs AIDS entre 1991 e 1992, no contexto da controvérsia envolvendo a participação do Brasil em ensaios clínicos com vacinas anti-HIV.
  • 13
    Fátima Oliveira detalhou que ela e sua família foram ameaçadas em telefonemas anônimos e que chegou a receber uma tentativa de suborno durante a elaboração de seu parecer (Oliveira, 2014aOLIVEIRA, F. Os bastidores da Resolução 196/1996 e as cobaias humanas. O Tempo, Contagem, 9 dez. 2014a. Disponível em: <Disponível em: https://www.otempo.com.br/opiniao/fatima-oliveira/os-bastidores-da-resolucao-196-1996-e-as-cobaias-humanas-1.958599 >. Acesso em: 28 jul. 2020.
    https://www.otempo.com.br/opiniao/fatima...
    ).
  • 14
    COMISSÃO NACIONAL DE ÉTICA EM PESQUISA - CONEP. Comitês de Ética em Pesquisa no Brasil. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/comites-de-etica-em-pesquisa-conep?view=default>. Acesso em 17 jan 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2022
  • Revisado
    06 Maio 2022
  • Aceito
    24 Maio 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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