Vulnerabilidade e saúde de mulheres quilombolas em uma área de mineração na Amazônia

Veridiana Barreto do Nascimento Ana Carolina Vitorio Arantes Luciana Gonçalves de Carvalho Sobre os autores

Resumo

O conceito de vulnerabilidade considera diferentes fatores que concorrem para a exposição de indivíduos e grupos a processos de adoecimento. Neste estudo, o referido conceito foi utilizado com o objetivo de avaliar a situação da saúde de 139 mulheres residentes em oito comunidades quilombolas, localizadas em uma área de exploração mineral, nas margens do Rio Trombetas, em Oriximiná (PA). O estudo serviu-se de entrevistas individuais semiestruturadas para coleta de dados, os quais foram submetidos a uma abordagem quantitativa e analisados por meio de estatística descritiva. Embora as comunidades quilombolas sejam historicamente vulneráveis, os dados evidenciaram que as mulheres são ainda mais fragilizadas por fatores individuais, sociais e programáticos que se revelam nas dificuldades de acesso à educação, à informação, ao trabalho, à renda e à saúde. Elas necessitam, portanto, de políticas públicas especialmente adequadas à sua condição de gênero e ao seu perfil sociocultural.

Palavras-chave:
Saúde da Mulher; Análise de Vulnerabilidade; Comunidades Quilombolas; Saúde da População Quilombola

Introdução

O conceito de vulnerabilidade tornou-se importante no campo da saúde pública por permitir interpretar a ocorrência de doenças transmissíveis a partir de abordagens alternativas àquelas centradas no conceito de risco, próprio da epidemiologia, e àquelas baseadas em perspectivas individualizantes das doenças (Oviedo; Czeresnia, 2015OVIEDO, R. A. M.; CZERESNIA, D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface, Botucatu, v. 19, n. 53, p. 237-249, 2015. DOI:10.1590/1807-57622014.0436
https://doi.org/10.1590/1807-57622014.04...
; Sanchez, 2015SANCHEZ, A. I. M. Pode o conceito de vulnerabilidade apoiar a construção do conhecimento em Saúde Coletiva? Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, 2006. DOI:10.1590/S1413-81232007000200007
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200700...
). Sua utilização, sobretudo no estudo de infecções sexualmente transmissíveis, mostra-se especialmente eficaz por denotar indicadores de iniquidades sociais e desigualdades de gênero, raça e classe, que constituem relevantes fatores de exposição ao adoecimento (Andrade, J., 2017ANDRADE, J. et al. Vulnerabilidade de idosos a infecções sexualmente transmissíveis. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 10, n. 30, p. 8-15, 2017. DOI:10.1590/1982-0194201700003
https://doi.org/10.1590/1982-01942017000...
; Guilhem; Azevedo, 2008GUILHEM, D.; AZEVEDO, A. F. Bioética e gênero: moralidades e vulnerabilidade feminina no contexto da Aids. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 16, n. 2, p. 229-240, 2008.).

Compreendida por Oviedo e Czeresnia (2015OVIEDO, R. A. M.; CZERESNIA, D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface, Botucatu, v. 19, n. 53, p. 237-249, 2015. DOI:10.1590/1807-57622014.0436
https://doi.org/10.1590/1807-57622014.04...
, p. 238) como uma “dimensão ontológica constitutiva e constituinte da vida humana”, a vulnerabilidade caracteriza-se como um estado que compromete, temporária ou permanentemente, a capacidade de decisão e ação de indivíduos ou grupos de indivíduos, expondo-os a doenças e outros danos em decorrência dessa condição (Guerrero, 2010GUERRERO, A. F. H. Situação nutricional de populações remanescentes de quilombos do município de Santarém - Pará, Brasil. 2010. Tese (Doutorado em Ciências) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2010.). Diversos fatores geográficos, econômicos, ambientais, sociais, culturais e políticos, contudo, ultrapassam a dimensão individual e convergem para a determinação da vulnerabilidade, atuando nos planos social e programático.

Neste sentido, escolhas e comportamentos individuais, sistemas morais e tradições culturais, políticas públicas e programas governamentais, entre outros elementos, concorrem em diferentes planos para a saúde dos indivíduos e grupos de indivíduos. Em outras palavras, a vulnerabilidade está intimamente ligada às condições de vida de uma população e reflete as desigualdades sociais existentes em seu interior (Garcia et al., 2008GARCIA, S. et al. Práticas sexuais e vulnerabilidades ao HIV/aids no contexto brasileiro: considerações sobre as desigualdades de gênero, raça e geração no enfrentamento da epidemia. In: MIRANDA-RIBEIRO P.; SIMÃO, A. B. (Org.). Qualificando os números: estudos sobre saúde sexual e reprodutiva no Brasil. Belo Horizonte: ABEP/UNFPA, 2008. p. 417-447.; Oliveira et al., 2015OLIVEIRA, E. F. et al. Promovendo saúde em comunidades vulneráveis: tecnologias sociais na redução da pobreza e desenvolvimento sustentável. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 36, p. 200-206, 2015. DOI:10.1590/1983-1447.2015.esp.56705
https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.e...
; Taquetti, 2010TAQUETTI, C. L. A gestão das políticas de juventude: o caso de Vitória, 2005-2010. 2010. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Universidade Federal do Espírito Santo, 2010.).

Neste estudo, o conceito de vulnerabilidade foi adotado para avaliar as condições de saúde de mulheres quilombolas residentes em oito comunidades localizadas nas margens do rio Trombetas, no município de Oriximiná, noroeste do Pará. Trata-se de um grupo social historicamente marginalizado cuja trajetória remete ao passado colonial e escravocrata do Brasil. Especificamente nessa região, a ocupação quilombola remonta à fuga de propriedades rurais do interior da Amazônia paraense onde africanos e seus descendentes foram sistematicamente escravizados até o final do século XIX (Funes, 2000FUNES, E. Comunidades remanescentes dos mocambos do Alto Trombetas. Fortaleza: Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas, 2000.; Salles, 2005SALLES, V. O negro no Pará: sob o regime da escravidão. Belém: Instituto de Artes do Pará, 2005.). Essa população vive, basicamente, de atividades agroextrativistas desenvolvidas em bases familiares e tradicionais, e resta, até hoje, insuficientemente assistida por políticas de saúde, educação, habitação, saneamento, comunicação, trabalho e renda.

Além do contexto histórico de marginalização, na década de 1970 as comunidades quilombolas da região foram surpreendidas pela instalação de uma mineradora na área em que habitavam. Com apoio do governo brasileiro, a Mineração Rio do Norte (MRN) implantou, em plena floresta, uma complexa planta industrial, conectando dezenas de minas a um porto fluvial que é a principal porta de entrada para a Vila de Porto Trombetas, cuja inauguração ocorreu em 1976 junto ao primeiro embarque de bauxita para o exterior. A referida vila é, de fato, uma company town restrita aos funcionários e convidados da MRN, dotada de hospital, saneamento, escola, banco, comércio, clube, bares, igrejas e serviços de limpeza e segurança privada, entre outros (Cumbuca Norte, 2016CUMBUCA NORTE. Estudo do componente quilombola das comunidades localizadas no entorno da Mineração Rio do Norte. Santarém, 2016.). Sua infraestrutura é, ainda hoje, muito superior a de várias cidades da região do Baixo Amazonas, onde está inserida.

Em quatro décadas a MRN tornou-se uma das maiores produtoras de bauxita no mundo, atraindo para Porto Trombetas e adjacências inúmeros trabalhadores - homens, na maioria - oriundos de diversas cidades do Pará, de outros estados brasileiros e até de outros países. Em contrapartida, os impactos socioambientais cumulativos da atividade minerária têm agravado significativamente a histórica vulnerabilidade das comunidades quilombolas e produzido mudanças em seus modos de vida, inclusive com reflexos na saúde dos indivíduos, como atestam estudos realizados na região.

O Estudo do Componente Quilombola (ECQ) realizado em 2016, no âmbito do licenciamento ambiental de novas minas de bauxita na região, registrou entre os principais impactos negativos da mineração o aumento no índice de ocorrência de doenças, cuja significância foi considerada muito alta (Cumbuca Norte, 2016CUMBUCA NORTE. Estudo do componente quilombola das comunidades localizadas no entorno da Mineração Rio do Norte. Santarém, 2016.). A diversidade de moléstias que as comunidades associam à atividade da mineradora também é significativa: aids e outras infecções sexualmente transmissíveis, obesidade, câncer, coceiras na pele, hipertensão, problemas respiratórios, alergias, infecções urinárias, gastrite e infecções intestinais, entre outras.

Em estudo posteriormente realizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo, focalizando especificamente a interação água-mineração que envolve da exploração da jazida ao beneficiamento do minério, L. Andrade (2018ANDRADE, L. M. M. Antes a água era cristalina, pura e sadia: percepções quilombolas e ribeirinhas dos impactos e riscos da mineração em Oriximiná, Pará. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2018.) corroborou os registros do ECQ em relação às condições de saúde da população local. A autora apontou que, na percepção dos quilombolas, a poluição da água e do ar, decorrente da mineração, provoca doenças que “não existiam antes” (Andrade, L., 2018ANDRADE, L. M. M. Antes a água era cristalina, pura e sadia: percepções quilombolas e ribeirinhas dos impactos e riscos da mineração em Oriximiná, Pará. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2018., p. 38).

Esta pesquisa também atesta que, no estreito convívio com as rotinas da mineração, a suscetibilidade das comunidades quilombolas pesquisadas, particularmente das mulheres, é agudizada pelas restrições de acesso a conhecimentos, meios e serviços de atenção e assistência em saúde que compõem dinâmicas estruturais de exclusão desse segmento social das políticas públicas de educação, habitação, emprego e renda. Muito embora a disponibilização de serviços de saúde por meio de projetos nas comunidades e de atendimentos emergenciais nas instalações hospitalares da MRN contribua para suprir algumas das necessidades dos quilombolas, a eles resta, em regra, o difícil e insuficiente recurso aos serviços públicos de saúde oferecidos na sede municipal de Oriximiná (Castro, 2019CASTRO, N. J. C. Medicina popular e desenvolvimento regional: registros e reflexões a partir da Princesa do Trombetas. 2019. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Socioambiental)- Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.).

Segundo Fidelis (2019FIDELIS, J. C. “Tratamento diferenciado”: sobre reconhecimento e consideração em torno do sistema biomédico no Alto Trombetas. 2019. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.), a recente ampliação do acesso de membros de certas comunidades quilombolas a alguns serviços de saúde mantidos pela MRN na vila de Porto Trombetas resulta de reivindicações que ganharam fôlego após a publicação, em 2017, dos relatórios técnicos de identificação e delimitação dos territórios Alto Trombetas I e II. A publicação desses relatórios constituiu um avanço significativo no processo de reconhecimento do direito territorial daquelas comunidades e lhes deu mais poder de negociação com a empresa, sobretudo, no âmbito de processos de licenciamento ambiental. A qualidade dos atendimentos ofertados nas comunidades, contudo, é alvo frequente de reclamações. Seu foco restrito à prevenção, a inexistência de tratamentos especializados e até práticas de discriminação racial foram queixas constatadas por Fidelis (2019FIDELIS, J. C. “Tratamento diferenciado”: sobre reconhecimento e consideração em torno do sistema biomédico no Alto Trombetas. 2019. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.), sobretudo entre as mulheres.

Nesse contexto, supondo que as quilombolas apresentem maior vulnerabilidade ao adoecimento, este estudo busca avaliar as condições de saúde de mulheres de oito comunidades da região do Trombetas. Desse modo, o estudo questiona: quais são e como se traduzem as vulnerabilidades das mulheres quilombolas que vivem nas margens do Rio Trombetas, em Oriximiná (PA)?

Metodologia

Local de estudo

A trajetória de ocupação negra em Oriximiná iniciou-se no século XIX, a partir de sucessivas fugas de africanos escravizados em fazendas situadas na calha do rio Amazonas (Acevedo; Castro, 1998ACEVEDO, R; CASTRO, E. Negros do Trombetas: guardiões das matas e dos rios. Belém: Cejup; Ufpa-Naea, 1998.; Funes, 2000FUNES, E. Comunidades remanescentes dos mocambos do Alto Trombetas. Fortaleza: Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas, 2000.). O alto curso do rio Trombetas, que atravessa aquele município de norte a sul, assim como de outros afluentes da margem esquerda do Amazonas, tornou- se destino privilegiado dos negros que buscavam liberdade nas matas da região, devido a características geográficas particulares e à rede de colaboração constituída com povos indígenas que a habitavam.

Com o apoio dos nativos, os africanos e seus descendentes formaram os então chamados mocambos em áreas de florestas densas, terras férteis e águas piscosas, relativamente protegidos por cachoeiras e lajeiros que dificultavam as expedições de recaptura. Nesses espaços desenvolveram um modo de vida relativamente autônomo, fundado, basicamente, no extrativismo e na agricultura para autoconsumo e troca com comerciantes locais, além dos próprios indígenas (Funes, 2000FUNES, E. Comunidades remanescentes dos mocambos do Alto Trombetas. Fortaleza: Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas, 2000.).

Ao longo do século XX, após a abolição da escravidão, grande parte da população dos mocambos “baixou” para áreas de mais fácil acesso e próximas aos núcleos urbanos, onde sua produção era comercializada. Dispersando-se em toda a Bacia do Trombetas, os negros formaram diversos núcleos de povoação, os quais, a partir dos anos 1980-1990, organizaram-se de maneira associativa na forma de 37 comunidades autodenominadas quilombolas. Distribuídas em oito territórios, essas comunidades somam, atualmente, cerca de 10 mil indivíduos (Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2020COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Quilombolas de Oriximiná. São Paulo, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://cpisp.org.br/quilombolas-em-oriximina/ >. Acesso em: 4 jan. 2021.
https://cpisp.org.br/quilombolas-em-orix...
).

Oito comunidades, pertencentes a três territórios quilombolas, foram delimitadas para realização deste estudo devido à sua proximidade de Porto Trombetas (Figura 1). Nelas vivem 378 famílias, com o número médio de seis membros cada, representando uma população total estimada de 2.268 pessoas (Quadro 1).

Figura 1
Mapa da região do Rio Trombetas

Quadro 1
Caracterização das comunidades, Rio Trombetas (Pará)

O acesso às comunidades é feito exclusivamente por via fluvial. Desde a sede municipal de Oriximiná se utilizam pequenas embarcações comunitárias ou particulares. As viagens duram de cinco a oito horas, considerando-se a mais próxima e a mais distante da cidade. Consequentemente, o deslocamento para busca de serviços básicos implica o dispêndio de tempo e recursos financeiros consideráveis.

Tal fator, acrescido da inexistência de Unidades Básicas de Saúde (UBS) nos territórios, priva a maior parte da população quilombola de atendimentos regulares em saúde. É o uso de plantas, baseado em conhecimentos tradicionais, seu mais usual e importante recurso para a manutenção do bem- estar e para a cura de enfermidades comuns como resfriados, diarreias, febres, feridas e dores localizadas. Igualmente importante é o recurso a especialistas locais como puxadores e benzedeiras. A busca pelo sistema oficial de saúde, portanto, é evitada tanto quanto possível, assim como o uso de medicamentos industrializados.

A infraestrutura das comunidades é mínima. Desprovidas de sistema de fornecimento de energia elétrica, elas utilizam geradores movidos a óleo diesel, que são acionados por cerca de três horas durante a noite, ou por mais tempo em datas comemorativas e dias de reunião de moradores. A água que consomem é retirada diretamente de rios, lagos e igarapés, manualmente ou através de microssistemas comunitários, e é tratada com fervura e/ou hipoclorito, quando esse produto é fornecido por Agentes Comunitários de Saúde (ACS).

Cada território possui apenas uma escola de ensino fundamental, o que obriga os jovens a migrarem para Oriximiná ou outras cidades maiores para cursarem o nível médio. Como a migração dos filhos exige arcar com custos de vida na cidade, essa não é uma opção para a maioria das famílias quilombolas. Nesse cenário, a falta de perspectiva de aprofundamento dos estudos e de oportunidades para qualificação profissional tende a afastar jovens da escola e a direcioná-los aos trabalhos tradicionalmente desenvolvidos nas comunidades ou, como vem ocorrendo mais recentemente, à mineração e à exploração madeireira.

As mais relevantes atividades econômicas tradicionais são a agricultura, a produção de farinha de mandioca e o extrativismo de produtos florestais não madeireiros, em especial a castanha-do-Pará, cuja venda se reverte em renda monetária. A pesca e a caça são realizadas exclusivamente para consumo próprio, constituindo indispensáveis fontes de proteína na alimentação das famílias quilombolas. Além dessas práticas produtivas, o trabalho assalariado e a prestação de serviços temporários autônomos ou por intermédio de cooperativas têm se tornado cada vez mais comuns. No Território Quilombola (TQ) Boa Vista, por exemplo, quase toda família tem pelo menos um membro que trabalha na mineração. Já no TQ Trombetas, empresas ocupam diversos moradores em atividades de manejo, extração e venda de madeira.

Como ocorre nas zonas rurais, a prevalente divisão sexual do trabalho atribui aos homens os serviços considerados “pesados”, seja em atividades tradicionais, seja nas empresas mineradora e madeireira. Assim, eles trabalham no roçado, nas caçadas, nas minas, no corte de madeiras e nas áreas de reflorestamento.

As mulheres, por sua vez, dedicam- se principalmente ao trabalho doméstico, à manutenção da roça e à pesca para consumo da família. Quando se lançam ao mercado de trabalho são geralmente absorvidas na prestação de serviços gerais, de jardinagem e de limpeza, tanto nas instalações da empresa quanto nas casas de funcionários de médio e alto escalão (Maini, 2018MAINI, M. F. F. Os impactos da Coopermoura na comunidade de remanescentes de quilombo do Moura sob a perspectiva das mulheres. 2018. Dissertação (Mestrado em Ciências da Sociedade) - Instituto de Ciências da Sociedade, Universidade Federal do Oeste do Pará, Santarém, 2018.). Por fim, embora o tema não seja abertamente tratado nas comunidades, algumas mulheres atuam como profissionais do sexo na Vila Paraíso, que fica nas proximidades de Porto Trombetas e é frequentada por trabalhadores da mineradora (Madeira-Filho , 2012MADEIRA-FILHO, W. et al. Retorno à vila Paraíso: memórias, processos de territorialização e gestão de espaços de prostituição no Brega 45, no Rio Trombetas, em Oriximiná (PA). Confluências, Niterói, v. 14, n. 1, p. 218-236, 2012. DOI:10.22409/conflu14i1.p312
https://doi.org/10.22409/conflu14i1.p312...
). Também conhecida como Brega 45, a vila normalmente é associada ao aumento de casos de gravidez indesejada e infecções sexualmente transmissíveis na região.

Coleta e análise de dados

Este estudo adotou metodologia exploratória, descritiva, prospectiva, transversal, com abordagem quantitativa e foi realizado com 139 mulheres contatadas com auxílio de cinco ACS e líderes comunitários, que também prestaram apoio logístico durante a pesquisa de campo. Os critérios de seleção das participantes da pesquisa foram: ter residência permanente nas comunidades supracitadas e estar na faixa de 15 a 55 anos conforme acordo prévio com a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (Arqmo) e os líderes locais.

Atendendo à Resolução CNS n. 466/2012, o estudo foi apreciado e aprovado por Comitê de Ética e Pesquisa (CEP). Um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi assinado por todas as participantes, sendo que, no caso das menores de 18 anos, ele foi assinado por pais/responsáveis e acrescido de um Termo de Assentimento, firmado pelas próprias adolescentes.

A pesquisa de campo foi desenvolvida em duas etapas, ambas em outubro de 2016. Primeiro, envolveu a realização de reuniões com os colaboradores do trabalho e as mulheres por eles indicadas, visando à apresentação da proposta, seus objetivos, possíveis riscos e benefícios. As reuniões aconteceram em barracões comunitários, salões de igrejas e escolas e duraram de 20 a 30 minutos.

Na etapa seguinte ocorreram as visitas domiciliárias para aplicação de um formulário composto por 56 questões fechadas e abertas, cujos objetivos eram caracterizar o perfil socioeconômico do grupo e identificar vulnerabilidades do sistema de saúde local. Todas as visitas foram acompanhadas por ACS ou líder local, mas os formulários foram aplicados individualmente e em locais escolhidos pelas participantes, dentro ou fora da residência, onde a interlocução pudesse ocorrer de forma reservada, deixando-as à vontade para responder às questões.

Os dados obtidos em campo foram armazenados em planilha Excel e transferidos aos programas SPSS versão 20 e Bioestat versão 5.3 para tratamento estatístico. Os resultados foram descritos por meio de frequência absoluta e relativa, sendo que frequência relativa considerou ponderação amostral.

Resultados e discussão

A amostra compreendeu 139 mulheres quilombolas, com os resultados estratificados segundo as faixas etárias: 16-20 anos; 21-30 anos, 31-40 anos, 41-50 anos de 51-60 anos e distribuídas por território da seguinte forma: 44 (31,7%) no TQ Boa Vista; 16 (11,6%) no TQ Água Fria; e 79 (56,7%) no TQ Trombetas. A idade média das participantes foi de 30 anos (dp=10,31), considerando variações de 16 a 55 anos. Na faixa de 21 a 30 anos, de jovens adultas, enquadraram-se 51 mulheres (36,8%). Elas compõem o grupo majoritário de entrevistadas de 115 (82,7%) mulheres com idades de até 40 anos, portanto em fase de alta fertilidade.

Em relação à cor/raça, 88 mulheres autodeclararam-se pretas (63,3%) e 51 (36,7%) pardas, corroborando dados relativos à trajetória de ocupação negra e de afirmação étnica na região (Tabela 1).

Tabela 1
Características demográficas de mulheres quilombolas, Rio Trombetas (Pará), 2016

Quanto à escolaridade, 48 (34,5%) possuíam o ensino fundamental completo e 43 (30,9%) o ensino médio completo. As mulheres acima de 41 anos apresentaram os menores níveis de instrução, o que condiz com a tardia instalação de unidades escolares nas comunidades. Apenas seis (4,3%), que tinham entre 21 e 50 anos, haviam cursado ensino superior, no âmbito do Plano Nacional de Formação de Professores (Parfor), implementado em 2009 pelo Ministério da Educação para fornecer aprimoramento a docentes em exercício na rede pública de educação básica (Tabela 1). A baixa escolaridade é um traço comum nas comunidades quilombolas do Pará, uma vez que a maioria delas dispõe no máximo do ensino de nível fundamental e muitas turmas funcionam em formato modular.

No que se refere ao estado civil das participantes da pesquisa, 96 (69,1%) eram casadas ou viviam em união estável; 39 (28,0%) eram solteiras e 4 (2,9%) eram separadas (Tabela 1). A prevalência das primeiras tem raízes profundas na cultura, na economia e no modo de vida quilombola, no qual a família constitui-se como unidade produtiva fundamental. A propósito, nas comunidades da região, é muito comum que os casamentos aconteçam antes da maioridade das mulheres e que elas se relacionem com homens mais velhos, capazes de prover alguma renda oriunda de roça própria, do trabalho assalariado ou mesmo de aposentadoria.

Para descrever as condições de vida das entrevistadas cruzaram-se dados relativos à renda, à moradia e ao acesso à água (Tabela 2). O grupo majoritário foi formado por 86 (61,9%) mulheres que não exerciam atividade remunerada nem auferiam renda monetária regularmente. Seu sustento era provido pelo companheiro ou, eventualmente, advinha da realização de serviços gerais na Vila de Porto Trombetas, da comercialização de produtos agrícolas ou, ainda, de artesanato. Nesse grupo, 26 (30,2%) moravam em casa de alvenaria; 51 (59,3%) em casa de madeira; e 9 (10,5%) em casa de palha. Quanto à água, 26 (30,2%) retiravam-na diretamente do rio; 51 (59,3%) eram servidas por microssistema comunitário; e 9 (10,5%) dispunham de poço.

Tabela 2
Condições de trabalho de mulheres quilombolas, Rio Trombetas (Pará), 2016

Apenas 53 (38,1%) mulheres afirmaram realizar atividades remuneradas. Quanto à renda mensal individual, 32 (60,4%) delas recebiam menos de um salário-mínimo vigente na época; 19 (35,8%) recebiam de um a dois salários; e só 2 (3,8%) recebiam mais que dois salários. Nesse grupo de mulheres, 36 (67,9%) residiam em casa de alvenaria, enquanto 17 (32,1%) tinham casas de madeira; 34 (64,2%) consumiam água distribuída por microssistema comunitário; e 19 (35,8%) dispunham de poço particular (Tabela 2).

Entre os parâmetros elencados para caracterização do perfil socioeconômico das mulheres participantes da pesquisa, destacam-se: a) a afirmação da negritude como critério de identificação e pertencimento étnico-racial, condizente com a trajetória de ocupação e a organização social quilombola em Oriximiná; b) o baixo nível de escolaridade, relacionado à insuficiência de serviços de educação nos quilombos; e c) a exclusão do mercado de trabalho e a baixa renda monetária percebida pelas mulheres, acentuando a dependência econômica do parceiro.

Os dois últimos fatores estão fortemente interligados e contribuem para aumentar a vulnerabilidade individual e social das mulheres ao adoecimento, aprofundando desigualdades de gênero nos quilombos. Por outro lado, aspectos estruturais do município de Oriximiná e particularmente do rio Trombetas expressam condições geográficas, sociais, econômicas e políticas específicas que concorrem para caracterizar a vulnerabilidade programática da população quilombola como um todo e das mulheres, de maneira mais acentuada, como, em regra, ocorre no Brasil (Silva, 2011SILVA, M. J. G. A vulnerabilidade programática ao HIV/AIDS em comunidades remanescentes de Quilombos no Brasil. 2011. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2011.).

Destacadamente, a precariedade de atendimento e assistência em saúde nos TQ Boa Vista, Água Fria e Trombetas corrobora um quadro que é rotineiro nas comunidades quilombolas do Pará (Cavalcante, 2011CAVALCANTE, I. M. S. Acesso e acessibilidade aos serviços de saúde em três quilombos na Amazônia paraense: um olhar antropológico. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde e Sociedade) - Programa de Pós-Graduação em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2011.). Das oito comunidades abrangidas no estudo, nem uma delas tinha UBS, embora cinco fossem atendidas por um ACS - o que não se afasta muito da proporção de 57,0% daquelas que, em todo o estado, contam com o serviço de ACS (Oshai; Silva, 2013OSHAI, C. M. A.; SILVA, H. P. A PNAB e o acesso à saúde em populações quilombolas. In: CONGRESSO DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE, 12, 2013, Belém. Anais [...] Belém: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 2013. p. 1426.). A ausência de UBS (até mesmo de ACS) sinaliza a situação de acentuada vulnerabilidade programática da população quilombola, recorrentemente negligenciada nas políticas públicas de saúde (Guerrero, 2015).

Dadas as condições locais e o vigor das tradições culturais, a conduta mais frequente das mulheres, quando adoecem, é o uso de remédios caseiros. Como é usual em comunidades negras rurais, elas se tratam preferencialmente com preparos à base de cascas, raízes, folhas e óleos (vegetais ou animais) cuja produção é fundamentada em conhecimentos passados de geração a geração (Sales; Albuquerque; Cavalcanti, 2009SALES, G. P. S.; ALBUQUERQUE, H. N.; CAVALCANTE, M. L. F. Estudo do uso de plantas medicinais pela comunidade quilombola Senhor do Bonfim - Areia-PB. Revista de Biologia e Ciências da Terra, Campina Grande, n. 1, p. 31-36, 2009.). Com efeito, essa é a opção de 81 (58,3%) entrevistadas, enquanto o recurso ao hospital e à farmácia é acionado por 51 (35,7%) e 7 (5,0%) mulheres, respectivamente (Tabela 3).

Tabela 3
Atividades educativas de prevenção de doenças desenvolvidas nas comunidades quilombolas, Rio Trombetas (Pará), 2016

A baixa procura por unidades do sistema oficial de saúde é, em parte, explicada por características geográficas da Bacia do Trombetas, as quais, de modo geral, identificam o Norte do Brasil, concentrando nessa região as proporções mais baixas de uso de serviços de saúde no país (Stopa ., 2013STOPA, S. R. et al. Acesso e uso de serviços de saúde pela população brasileira, Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, p. 1-11, 2017. DOI:10.1590/S1518-8787.2017051000074
https://doi.org/10.1590/S1518-8787.20170...
). Por exemplo, para chegar a um hospital a partir do rio Trombetas é preciso deslocar-se até Porto Trombetas ou até a cidade de Oriximiná, o que requer empreender viagens longas, desgastantes e custosas. Para tanto, 59 (42,4%) mulheres usam o barco da comunidade; 43 (30,9%) usam rabeta própria; e 21 (15,2%) o barco da família (Tabela 3).

Por força de condicionantes ambientais da mineração, as quilombolas do TQ Boa Vista são cadastradas como usuárias no hospital da MRN, todavia essa opção não está disponível para as moradoras de todas as comunidades do entorno da empresa, exceto em casos de urgência e emergência. Nessas ocasiões específicas, o quadro da paciente pode ser estabilizado no hospital de Porto Trombetas, porém a continuidade do tratamento deve ser dada no hospital municipal de Oriximiná, o que demanda às enfermas e a seus eventuais acompanhantes recursos para o deslocamento. Levando em conta a geografia regional, Castro (2019CASTRO, N. J. C. Medicina popular e desenvolvimento regional: registros e reflexões a partir da Princesa do Trombetas. 2019. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Socioambiental)- Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.) destaca que os custos com combustível para embarcação, alimentação, alojamento e transporte na cidade não são compatíveis com as posses de grande parte das famílias quilombolas, dada sua situação de vulnerabilidade social. Logo, não é raro que os tratamentos sejam descontinuados.

Nesse cenário, ações de prevenção são importantes para melhoria das condições de saúde da população quilombola. Geralmente, porém, elas são realizadas na forma de palestras e não parecem ser muito atraentes às mulheres. Entre as entrevistadas, apenas 68 (48,9%) participaram de alguma ação desse tipo. Segundo 56 (82,3%), a oferta dessas atividades é anual e realizada de maneira itinerante. Os palestrantes são principalmente profissionais de enfermagem atuantes em Oriximiná, como declararam 25 (36,8%) mulheres; ACS, como disseram outras 17 (25,0%); e estagiários de cursos técnicos, segundo 26 (38,2%) mulheres (Tabela 3).

Diante do exposto, aventa-se a pertinência de investir em ações de prevenção baseadas em metodologias diversificadas e emancipatórias que considerem os conhecimentos tradicionais das comunidades quilombolas e dispensem especial atenção às formas mais adequadas de abordar as mulheres, com o objetivo de estimular seu protagonismo no desenvolvimento de estratégias individuais e coletivas de cuidado com a saúde, diminuindo assim a vulnerabilidade individual dessas mulheres.

No que tange à realização de consultas médicas, as participantes da pesquisa foram indagadas se buscaram assistência para resolução de algum problema de saúde nos seis meses que antecederam as entrevistas. Apenas 51 (36,7%) mulheres responderam afirmativamente à questão, sendo que 45 (88,2%) relataram ter tido dificuldade de obter atendimento. Entre elas, 44 (86,3%) se dirigiram ao serviço público de saúde na cidade de Oriximiná, e 35 (68,6%) o fizeram em situações de urgência (Tabela 4).

Tabela 4
Tipo de assistência à saúde de mulheres quilombolas, Rio Trombetas (Pará), 2016

Os dados evidenciam a dificuldade enfrentada pela população pesquisada para ter acesso a serviços de saúde em geral. Associado à baixa resolubilidade dos problemas, esse fator constitui um dos componentes mais relevantes da vulnerabilidade das comunidades quilombolas aos processos de adoecimento e suas consequências (Garcia et al., 2008GARCIA, S. et al. Práticas sexuais e vulnerabilidades ao HIV/aids no contexto brasileiro: considerações sobre as desigualdades de gênero, raça e geração no enfrentamento da epidemia. In: MIRANDA-RIBEIRO P.; SIMÃO, A. B. (Org.). Qualificando os números: estudos sobre saúde sexual e reprodutiva no Brasil. Belo Horizonte: ABEP/UNFPA, 2008. p. 417-447.). Sem a oferta de atenção básica nas comunidades e o redimensionamento dos serviços disponíveis na cidade, as quilombolas, que são historicamente marginalizadas e culturalmente discriminadas, tendem a permanecer excluídas do sistema oficial de saúde (Cavalcante, 2011CAVALCANTE, I. M. S. Acesso e acessibilidade aos serviços de saúde em três quilombos na Amazônia paraense: um olhar antropológico. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde e Sociedade) - Programa de Pós-Graduação em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2011.).

A baixa resolubilidade dos problemas de saúde pode estar relacionada à morosidade e/ou à insuficiência dos serviços de diagnóstico, os quais são fundamentais para a definição de tratamentos adequados e atempados (Santos, 2016SANTOS, N. J. S. Mulher e negra: dupla vulnerabilidade às DST/HIV/Aids. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 602-618, 2016. DOI:10.1590/S0104-129020162627
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201626...
). Nesse aspecto, o estudo indicou que entre as entrevistadas 103 (74,1%) mulheres fizeram exames de saúde em alguma oportunidade na vida. No entanto, considerando apenas os três anos que antecederam a pesquisa, o número caiu para 70 (67,9%). Do total, 88 (85,4%) mulheres submeteram-se a exames em uma UBS da cidade de Oriximiná; 4 (3,9%) fizeram no âmbito de ações de saúde no TQ; e 11 (10,7%) buscam serviços particulares para realizá-los (Tabela 4).

No que tange às doenças mais comuns entre as mulheres entrevistadas, 107 (74,8%) delas destacaram afecções do sistema tegumentar como coceiras e feridas na pele. Em seguida, gripes e pneumonias foram relatadas por 86 (61,9%) mulheres. Problemas ginecológicos, dores no corpo e doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, foram citadas em menores proporções (Tabela 5).

Tabela 5
Problemas de saúde mais comuns relatados pelas mulheres quilombolas, Rio Trombetas (Pará), 2016

Considerando a atuação da mineradora de bauxita no entorno das comunidades, estima-se que os problemas de pele e respiratórios possam estar associados à poluição da água e do ar por resíduos das atividades de lavagem, secagem e transporte do minério. Tal quadro é agravado na comunidade Boa Vista, mais próxima do porto da mineradora, onde quilombolas entrevistados por L. Andrade (2018ANDRADE, L. M. M. Antes a água era cristalina, pura e sadia: percepções quilombolas e ribeirinhas dos impactos e riscos da mineração em Oriximiná, Pará. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2018.) alegam que antes da chegada da MRN as águas do rio Trombetas e do igarapé Água Fria eram limpas e sadias, mas atualmente são sujas e provocam doenças.

Segundo a autora, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que é responsável pelo licenciamento ambiental do empreendimento, chegou a notificar a empresa de que a poluição nos cursos d’água utilizados pela comunidade Boa Vista atingira níveis capazes de causar danos à saúde dos quilombolas (Andrade, L., 2018ANDRADE, L. M. M. Antes a água era cristalina, pura e sadia: percepções quilombolas e ribeirinhas dos impactos e riscos da mineração em Oriximiná, Pará. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2018.). Com efeito, a crescente dificuldade de acesso à água potável tem sido apontada por eles como um dos principais impactos negativos da mineração (Cumbuca Norte, 2016CUMBUCA NORTE. Estudo do componente quilombola das comunidades localizadas no entorno da Mineração Rio do Norte. Santarém, 2016.). Diante disso, grande parte dos moradores deixou de recorrer às fontes naturais e passou a buscar água nas bicas disponíveis na Vila de Porto Trombetas, utilizando garrafas plásticas (recicladas). As mulheres, em especial, relatam que assim como as crianças, que brincam no rio e nos igarapés, costumam ser mais afetadas por doenças transmitidas pela água, devido às atividades cotidianas de lavar roupas, coletar e usar o líquido para cozinhar (Cumbuca Norte, 2016CUMBUCA NORTE. Estudo do componente quilombola das comunidades localizadas no entorno da Mineração Rio do Norte. Santarém, 2016.).

O conjunto de fatores identificados na pesquisa converge para a acentuação da vulnerabilidade das mulheres quilombolas na dimensão programática. Em primeiro lugar, é notória a carência de serviços de atenção básica à saúde nos territórios pesquisados, caracterizada pela inexistência de UBS e pela insuficiência do atendimento prestado pelos ACS. Somada à distância dos centros urbanos, que concentram os serviços públicos, tal situação implica em significativas dificuldades de acesso à saúde, as quais se traduzem em reiterada negação de um direito constitucional à população quilombola da região do rio Trombetas que permanece afastada de hospitais, farmácias e outros equipamentos e serviços de saúde.

Em segundo lugar, a indisponibilidade de recursos essenciais ao diagnóstico precoce de doenças favorece o agravamento de quadros que de outra forma poderiam ser mais facilmente controlados. Contribui, assim, para a baixa resolubilidade dos problemas de saúde entre a população quilombola. A dificuldade de agendar exames, a morosidade da emissão de resultados e a falta de especialistas para analisá- los estão entre os fatores que concorrem para a ineficácia de tratamentos adotados.

A prevenção, que poderia representar um eixo potente de intervenção nesse cenário, acaba por abranger ações pouco atraentes e eficazes, quase sempre executadas na forma de palestras, que são ministradas por profissionais oriundos da cidade de Oriximiná e provavelmente pouco conhecem a realidade, o modo de vida e a cultura das comunidades quilombolas.

Paradoxalmente, apesar de constituir a principal e mais utilizada estratégia local de saúde, o amplo acervo de conhecimentos tradicionais associados a recursos naturais aplicáveis à manutenção do bem-estar e à cura de enfermidades é recorrentemente ignorado nas ações que se destinam às comunidades. Dessa maneira, o potencial endógeno dos territórios quilombolas para o desenvolvimento de práticas individuais e coletivas de saúde é pouco explorado, quer no âmbito da prevenção, quer no que se refere ao diagnóstico e ao tratamento de doenças.

Em relação a todos os aspectos apontados, a situação nos TQ Boa Vista, Água Fria e Trombetas não difere muito da que Cavalcante (2011CAVALCANTE, I. M. S. Acesso e acessibilidade aos serviços de saúde em três quilombos na Amazônia paraense: um olhar antropológico. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde e Sociedade) - Programa de Pós-Graduação em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2011.) registrou na maioria das comunidades quilombolas da Amazônia paraense, onde os serviços de saúde se aglomeram nas cidades grandes, restando à sua população a destinação de campanhas ou ações esporádicas, em cujo escopo o levantamento das necessidades é feito por gestores e não por usuários. Entretanto, algumas características próprias da região do rio Trombetas agudizam a vulnerabilidade das comunidades pesquisadas.

Destacadamente, os danos ambientais provocados direta ou indiretamente pelas atividades minerárias desenvolvidas no entorno dos referidos territórios quilombolas constituem inegáveis ameaças à saúde de seus moradores. Conforme demonstrado, os incontornáveis contatos frequentes com a água e o ar poluídos por resíduos de bauxita afetam os sistemas tegumentar e respiratório, estando relacionados às doenças mais comumente identificadas entre as mulheres entrevistadas. Nesse sentido, a insuficiência das políticas de saúde é majorada pela ineficácia da política ambiental em mitigar efeitos prejudiciais da mineração, de modo a acentuar ainda mais a vulnerabilidade programática da população quilombola da região do rio Trombetas.

Considerações finais

As comunidades quilombolas compõem uma parcela da sociedade brasileira, cujas oportunidades de educação, trabalho e saúde são historicamente restritas, o que as coloca em um estado contínuo de vulnerabilidade (Silva, 2011SILVA, M. J. G. A vulnerabilidade programática ao HIV/AIDS em comunidades remanescentes de Quilombos no Brasil. 2011. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2011.). Na Amazônia, a suscetibilidade dessas comunidades é agravada pelas dimensões e feições geográficas da região, que impõem longos deslocamentos aos moradores de áreas rurais e ribeirinhas até os núcleos urbanos onde se concentram os serviços e equipamentos públicos (Cavalcante, 2011CAVALCANTE, I. M. S. Acesso e acessibilidade aos serviços de saúde em três quilombos na Amazônia paraense: um olhar antropológico. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde e Sociedade) - Programa de Pós-Graduação em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2011.; Guerrero, 2016; Oshai; Silva, 2013OSHAI, C. M. A.; SILVA, H. P. A PNAB e o acesso à saúde em populações quilombolas. In: CONGRESSO DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE, 12, 2013, Belém. Anais [...] Belém: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 2013. p. 1426.). Dessa maneira, tais comunidades tendem a permanecer às margens dos processos inclusivos da realidade sanitária do país.

Na região do rio Trombetas, distante da sede municipal de Oriximiná e afetada por quatro décadas de exploração mineral, as comunidades quilombolas são afetadas por fatores de vulnerabilidade em três dimensões: individual, social e programático. Contribuem significativamente para a determinação do aumento da fragilidade dessa população as suas precárias condições de vida, trabalho e moradia, sempre associadas à ausência ou à insuficiência de políticas públicas que contemplem suas necessidades. Como não dispõem de serviços de saúde nos próprios territórios, os quilombolas dependem da assistência prestada nas instalações da MRN, em situações de emergência, e dos serviços ofertados regularmente na cidade de Oriximiná, que são de difícil e custoso acesso e têm baixa resolubilidade. Ademais, ações de promoção à saúde e prevenção de doenças, embora realizadas nos territórios quilombolas, são esporádicas e pouco eficientes.

No caso específico das mulheres, a vulnerabilidade ao adoecimento é acentuada nas três dimensões supracitadas, em todas as comunidades quilombolas pesquisadas. Na dimensão individual, o baixo grau de escolaridade e o acesso restrito à informação especializada sobre saúde dificultam a incorporação de conhecimentos e atitudes de prevenção nas ações cotidianas. Na dimensão social, a histórica desigualdade de gênero agudiza, para as mulheres, as precárias condições de vida das famílias quilombolas, uma vez que, em comparação aos homens, elas têm ainda menos acesso a oportunidades de trabalho e renda, e, consequentemente, menos poder de decisão. Já na dimensão programática, a ausência e/ou a inefetividade das políticas públicas de saúde atuam para reforçar a dependência das mulheres em relação aos homens, à mineradora e aos serviços prestados em Oriximiná.

Nesse contexto, é notória a necessidade de novas políticas públicas apropriadas ao ambiente geográfico em que vivem as mulheres quilombolas do Trombetas, à sua condição de gênero e ao seu perfil étnico- cultural, quesitos esses que têm sido recorrentemente negligenciados nas ações de saúde realizadas nas comunidades estudadas. Além de assegurar, com regularidade, oportunidades de atenção e assistência de saúde a essas mulheres, tais políticas devem contemplar atividades de promoção e prevenção de saúde específicas para o público em questão.

Isso implica, por sua vez, em formular mecanismos social e culturalmente adequados para estimular o envolvimento das mulheres quilombolas em práticas que contribuam para reduzir suas vulnerabilidades aos processos de adoecimento. Neste sentido, é extremamente relevante inserir profissionais de saúde capacitados nas comunidades do Trombetas para, junto a elas, através de uma escuta sensível, formular ações nas quais essas mulheres sejam protagonistas de sua saúde, fortalecendo práticas de saúde inerentes à sua realidade e capazes de reduzir suas vulnerabilidades.

Referências

  • ACEVEDO, R; CASTRO, E. Negros do Trombetas: guardiões das matas e dos rios. Belém: Cejup; Ufpa-Naea, 1998.
  • ANDRADE, J. et al. Vulnerabilidade de idosos a infecções sexualmente transmissíveis. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 10, n. 30, p. 8-15, 2017. DOI:10.1590/1982-0194201700003
    » https://doi.org/10.1590/1982-0194201700003
  • ANDRADE, L. M. M. Antes a água era cristalina, pura e sadia: percepções quilombolas e ribeirinhas dos impactos e riscos da mineração em Oriximiná, Pará. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2018.
  • ANDRADE, L. M. M. Terras quilombolas em Oriximiná: pressões e ameaças. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2011.
  • CASTRO, N. J. C. Medicina popular e desenvolvimento regional: registros e reflexões a partir da Princesa do Trombetas. 2019. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Socioambiental)- Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.
  • CAVALCANTE, I. M. S. Acesso e acessibilidade aos serviços de saúde em três quilombos na Amazônia paraense: um olhar antropológico. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde e Sociedade) - Programa de Pós-Graduação em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2011.
  • COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. Quilombolas de Oriximiná. São Paulo, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://cpisp.org.br/quilombolas-em-oriximina/ >. Acesso em: 4 jan. 2021.
    » https://cpisp.org.br/quilombolas-em-oriximina/
  • CUMBUCA NORTE. Estudo do componente quilombola das comunidades localizadas no entorno da Mineração Rio do Norte. Santarém, 2016.
  • FIDELIS, J. C. “Tratamento diferenciado”: sobre reconhecimento e consideração em torno do sistema biomédico no Alto Trombetas. 2019. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2019.
  • FUNES, E. Comunidades remanescentes dos mocambos do Alto Trombetas. Fortaleza: Projeto Manejo dos Territórios Quilombolas, 2000.
  • GARCIA, S. et al. Práticas sexuais e vulnerabilidades ao HIV/aids no contexto brasileiro: considerações sobre as desigualdades de gênero, raça e geração no enfrentamento da epidemia. In: MIRANDA-RIBEIRO P.; SIMÃO, A. B. (Org.). Qualificando os números: estudos sobre saúde sexual e reprodutiva no Brasil. Belo Horizonte: ABEP/UNFPA, 2008. p. 417-447.
  • GUERRERO, A. F. H. Situação nutricional de populações remanescentes de quilombos do município de Santarém - Pará, Brasil. 2010. Tese (Doutorado em Ciências) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2010.
  • GUILHEM, D.; AZEVEDO, A. F. Bioética e gênero: moralidades e vulnerabilidade feminina no contexto da Aids. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 16, n. 2, p. 229-240, 2008.
  • MADEIRA-FILHO, W. et al. Retorno à vila Paraíso: memórias, processos de territorialização e gestão de espaços de prostituição no Brega 45, no Rio Trombetas, em Oriximiná (PA). Confluências, Niterói, v. 14, n. 1, p. 218-236, 2012. DOI:10.22409/conflu14i1.p312
    » https://doi.org/10.22409/conflu14i1.p312
  • MAINI, M. F. F. Os impactos da Coopermoura na comunidade de remanescentes de quilombo do Moura sob a perspectiva das mulheres. 2018. Dissertação (Mestrado em Ciências da Sociedade) - Instituto de Ciências da Sociedade, Universidade Federal do Oeste do Pará, Santarém, 2018.
  • OLIVEIRA, E. F. et al. Promovendo saúde em comunidades vulneráveis: tecnologias sociais na redução da pobreza e desenvolvimento sustentável. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 36, p. 200-206, 2015. DOI:10.1590/1983-1447.2015.esp.56705
    » https://doi.org/10.1590/1983-1447.2015.esp.56705
  • OSHAI, C. M. A.; SILVA, H. P. A PNAB e o acesso à saúde em populações quilombolas. In: CONGRESSO DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE, 12, 2013, Belém. Anais [...] Belém: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 2013. p. 1426.
  • OVIEDO, R. A. M.; CZERESNIA, D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface, Botucatu, v. 19, n. 53, p. 237-249, 2015. DOI:10.1590/1807-57622014.0436
    » https://doi.org/10.1590/1807-57622014.0436
  • SALES, G. P. S.; ALBUQUERQUE, H. N.; CAVALCANTE, M. L. F. Estudo do uso de plantas medicinais pela comunidade quilombola Senhor do Bonfim - Areia-PB. Revista de Biologia e Ciências da Terra, Campina Grande, n. 1, p. 31-36, 2009.
  • SALLES, V. O negro no Pará: sob o regime da escravidão. Belém: Instituto de Artes do Pará, 2005.
  • SANCHEZ, A. I. M. Pode o conceito de vulnerabilidade apoiar a construção do conhecimento em Saúde Coletiva? Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, 2006. DOI:10.1590/S1413-81232007000200007
    » https://doi.org/10.1590/S1413-81232007000200007
  • SANTOS, N. J. S. Mulher e negra: dupla vulnerabilidade às DST/HIV/Aids. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 602-618, 2016. DOI:10.1590/S0104-129020162627
    » https://doi.org/10.1590/S0104-129020162627
  • SILVA, M. J. G. A vulnerabilidade programática ao HIV/AIDS em comunidades remanescentes de Quilombos no Brasil. 2011. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2011.
  • STOPA, S. R. et al. Acesso e uso de serviços de saúde pela população brasileira, Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, p. 1-11, 2017. DOI:10.1590/S1518-8787.2017051000074
    » https://doi.org/10.1590/S1518-8787.2017051000074
  • TAQUETTI, C. L. A gestão das políticas de juventude: o caso de Vitória, 2005-2010. 2010. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Universidade Federal do Espírito Santo, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2022
  • Revisado
    01 Abr 2022
  • Aceito
    28 Maio 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br