Saúde ambiental: a profissão de catador de materiais recicláveis com abordagem do estudo teórico crítico

Environmental health: the profession of recyclable material collector with a critical theoretical study approach

Rejeane da Conceição Cristina Marchi Aída Cristina do Nascimento Silva Sobre os autores

Resumo

Sabendo que a Epistemologia é o estudo da ciência com implicações sobre as teorias do conhecimento, este artigo não pretende entrar em seu mérito puramente conceitual, mas conjeturar e apresentar os caminhos da ciência, a partir de uma abordagem crítica em torno da Saúde Ambiental, com suas repercussões na profissão de catador. Na tentativa de transcrever os caminhos da ciência com relação ao tema proposto, este estudo tem como objetivo relacionar a problemática dos resíduos sólidos urbanos com a profissão de catador de materiais recicláveis, focando na saúde ambiental e no uso da abordagem do estudo teórico crítico através de uma revisão da literatura. Entende-se que é necessário questionar os caminhos que levam a profissão de catador de materiais recicláveis a não ser protagonista das possíveis soluções do acúmulo dos resíduos sólidos urbanos, proporcionando o enfrentamento das questões econômicas, políticas e tecnológicas pouco eficazes.

Palavras-chave:
Saúde e Meio Ambiente; Saúde Ambiental; Epistemologia Crítica; Catador de Materiais Recicláveis

Abstract

Knowing that epistemology means studying science with a view to its implications for theories of knowledge, this study aims not to enter into its purely conceptual merits but rather to conjecture and show scientific paths from a critical approach to environmental health with its repercussions for waste pickers. In an attempt to transcribe the paths of science regarding the proposed theme, this study aims to relate the problem of urban solid waste with the recyclable material collector profession, focusing on environmental health via a critical theoretical study of literature review. We understand that we need to question the paths leading the recyclable material collector profession toward a leading role in the possible solutions for the accumulation of urban solid waste, confronting ineffective economic, political, and technological issues.

Keywords:
Health and Environment; Environmental Health; Critical Epistemology; Recyclable Material Collector

Introdução

O estudo teórico crítico difundido por Habermas promove questionamentos sobre a responsabilidade social dos cientistas, além de levar a reflexões sobre a produção do conhecimento científico atrelado às relações de poder; “fato que levou o homem a dominar a natureza (...) de modo perverso sob a forma de destruição ecológica e submissão da própria espécie humana” (Sá, 2003SÁ, J. M. A importância da crítica epistemológica na produção do conhecimento científico. Anais de Filosofia, São João del-Rei, n. 10. p. 33-66, 2003. Disponível em <Disponível em https://ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/anaisdefilosofia/GERALDO.PDF >. Acesso em: 10 nov. 2020.
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, p. 34).

Esse tipo de abordagem científica faz parte de um conjunto de teorias defendida por filósofos que compõem o estudo da ciência através da epistemologia. De maneira específica, o estudo crítico não propõe atitudes generalistas em torno das relações entre ciência-homem-natureza, tão pouco traz resoluções de todas as questões da ciência versus tecnologias, mas objetiva desenvolver um discurso dialógico entre os principais problemas científicos que relacionam o conhecimento com as relações de poder, dependendo do contexto histórico e social vivido e do impacto negativo ou positivo direto no meio-ambiente (Tesser, 1994TESSER, G. J. Principais linhas epistemológicas contemporâneas. Educar em Revista, Curitiba, n. 10, 1994. DOI: 10.1590/0104-4060.131
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).

A ambivalência da ciência começou a ser questionada antes de Habermas propagar os conceitos da epistemologia crítica, com a necessidade de investigar as consequências das teorias já empregadas como absolutas no âmbito dos ecossistemas e da saúde humana, em que soluções técnico-científicas surgem com a mesma intensidade da fluidez do capitalismo, sem preocupação sobre as implicações a longo prazo das escolhas e definições cientificas (Sá, 2003SÁ, J. M. A importância da crítica epistemológica na produção do conhecimento científico. Anais de Filosofia, São João del-Rei, n. 10. p. 33-66, 2003. Disponível em <Disponível em https://ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/anaisdefilosofia/GERALDO.PDF >. Acesso em: 10 nov. 2020.
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).

A teoria do pensamento crítico analisa que o conhecimento deve ser alcançado de maneira interdisciplinar, e a proposta do conhecimento sobre Saúde Ambiental tem o objetivo de equilibrar as necessidades humanas, exposição dos riscos, preservação dos ecossistemas e sugestões de novas maneiras de pensar, resultando na perspectiva de que o humano não deve ser visto como o oposto do natural (Augusto, et al. 2003AUGUSTO, L.G.S; et al. Saúde e ambiente: uma reflexão da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva -ABRASCO. Revista Brasileira de Epidemiologia, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, 2003. DOI: 10.1590/S1415-790X2003000200003
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).

Entretanto, os estudos sobre a Saúde Ambiental destacam reflexões além das expectativas puramente biológicas, associadas à necessidade de se ir além da transmissão de conceitos vinculados aos riscos ambientais que impactam a saúde da sociedade, incluindo sobretudo, de forma mais intensa, os grupos de indivíduos com características de maior vulnerabilidade.11BRITO, P. D et al. Riscos ocupacionais em idosos, catadores de materiais recicláveis, no Distrito Federal, Brasil. SciELO Preprints. Disponível em: <https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/3034>. Acesso em: 9 mar. 2022.

Diante do exposto, a exploração de bens ou recursos naturais, realizada historicamente no Brasil como manobras para conquista de territórios econômicos, está intrinsecamente relacionada com as categorias da saúde coletiva, da saúde ambiental e da saúde do trabalhador. Tais categorias emergem da necessidade de compreender as implicações das alterações no meio-ambiente com os impactos na saúde dos indivíduos (Fernandes; Sampaio, 2008FERNANDES, V.; SAMPAIO, C.A.C. Problemática ambiental ou problemática socioambiental? A natureza da relação sociedade/meio ambiente. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, n. 18, p. 87-94, 2008. DOI: 10.5380/dma.v18i0.13427
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).

Uma das respostas ao desenvolvimento populacional constante, juntamente ao crescimento das cidades, é o acúmulo de resíduos sólidos urbanos (RSU), com o colapso dos espaços físicos para armazenamento e indícios de poluição severa do solo em outros locais usados como depósito para descarte. Secundário a essa problemática, emerge no Brasil a prática do reciclar, com o número exponente de catadores de materiais recicláveis informais na década de 80, seguido do aumento dessa ocupação nos anos 90, atrelado principalmente ao crescimento do desemprego em nível nacional (Fonseca, et. al, 2013FONSECA, M. D. et al. Os riscos relacionados ao ambiente e à atividade de coleta de resíduos sólidos urbanos. Revista Verde de Agroecologia e Desenvolvimento Sustentável, Pombal, v. 8, n. 5, p. 96-100, 2013. Disponível em <Disponível em https://www.gvaa.com.br/revista/index.php/RVADS/article/view/1978 >. Acesso em: 10 abr. 2020.
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).

Os catadores de materiais recicláveis são trabalhadores expostos continuamente aos riscos à saúde gerados por problemas secundários das relações homem-natureza. Sua estratégia de sobrevivência é resultado da tecnologia do reciclar como alternativa ambientalmente eficaz, capaz de diminuir os impactos negativos do acúmulo de resíduos sólidos no meio-ambiente. Contudo, essa prática ainda encontra barreiras pelo insucesso das fiscalizações diante da necessidade legal em acabar com os lixões no Brasil e da aceitabilidade ambiental dos aterros sanitários como tecnologia ideal (Siqueira; Moraes, 2009SIQUEIRA, M. M.; MORAES, M. da S. Saúde coletiva, resíduos sólidos urbanos e catadores de lixo. Ciências e Saúde Coletiva, São Paulo, v. 14, n. 6, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000600018
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; Fonseca, et. al, 2013FONSECA, M. D. et al. Os riscos relacionados ao ambiente e à atividade de coleta de resíduos sólidos urbanos. Revista Verde de Agroecologia e Desenvolvimento Sustentável, Pombal, v. 8, n. 5, p. 96-100, 2013. Disponível em <Disponível em https://www.gvaa.com.br/revista/index.php/RVADS/article/view/1978 >. Acesso em: 10 abr. 2020.
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). O serviço realizado por catadores latino-americanos como uma alternativa ambientalmente eficaz é referenciado na pesquisa sobre as oportunidades e os desafios sobre a gestão de resíduos e a inclusão social de catadores, com foco na América Latina, desenvolvida por Marello e Helwege (2014MARELLO, M; HELWEGE, A. Solid Waste Management and Social Inclusion of Wastepickers: Opportunities and Challenges. Boston: GEGI Working Paper, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.bu.edu/pardeeschool/files/2014/11/Social-Inclusion-Working-Paper.pdf . Acesso em: 8 abr. 2022.
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). O estudo assevera que esses trabalhadores são os principais responsáveis pelo retorno de materiais recicláveis à cadeia produtiva em países em desenvolvimento, e assegura que “ ... catadores reciclam muito mais material do que o setor formal de gestão de resíduos ” (Marello; Helwege, 2014MARELLO, M; HELWEGE, A. Solid Waste Management and Social Inclusion of Wastepickers: Opportunities and Challenges. Boston: GEGI Working Paper, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.bu.edu/pardeeschool/files/2014/11/Social-Inclusion-Working-Paper.pdf . Acesso em: 8 abr. 2022.
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, p. 6).

Entende-se que, através da reflexão sob a luz do estudo teórico crítico, é possível considerar a importância dos determinantes ambientais, sociais e de saúde que, em conjunto com tecnologias interdisciplinares, convergem para a prática dos conceitos sobre saúde ambiental, principalmente quando analisamos o ambiente onde estão inseridos os catadores de materiais recicláveis. Portanto, o estudo crítico promove a discussão sobre os caminhos escolhidos para a diminuição dos impactos gerados pelo acúmulo de resíduos sólidos urbanos, especialmente em países de poder econômico desfavorável e com problemas sociais associados ao crescimento urbano; e também sobre como os catadores podem ser beneficiados com o trabalho que desenvolvem, através da valorização social e proteção à saúde (Junges; Zoboli; 2012JUNGES, J. R; ZOBOLI, E. L. C. P. Bioética e saúde coletiva: convergências epistemológicas. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 1049-1060, 2012. DOI: 10.1590/S1413-81232012000400026
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).

Na tentativa de transcrever os caminhos da ciência com relação ao tema proposto, este estudo tem o objetivo de relacionar a problemática dos RSU com a profissão de catador de materiais recicláveis, com foco na saúde ambiental, usando a abordagem do estudo teórico crítico.

Referencial teórico

Nos primórdios da civilização nômade, a geração de resíduos não era um problema que impactava populações, tampouco afetava negativamente a natureza, tudo fazia parte de um processo biológico natural. Porém, com a organização populacional urbana, o desenvolvimento das cidades e o alto consumo das populações, os resíduos sólidos se tornaram um problema gerador de impacto à saúde, confirmado com o surgimento de doenças com características epidêmicas relacionadas a vetores como: roedores e patógenos encontrados em resíduos descartados inadequadamente próximos aos centros urbanos (Oliveira, 2011OLIVEIRA, D. A. L. Percepção de riscos ocupacionais em catadores de materiais recicláveis: Estudo em uma Cooperativa em Salvador-Bahia. 2011. 174 f. Dissertação (Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho) - Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011. Disponível em <Disponível em https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/31820/1/cd-disserta%c3%a7%c3%a3o.pdf >. Acesso em: 13 dez. 2020.
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; Silva, 2014SILVA, A.C.N. Resíduos de serviços de saúde & saúde pública: conceito, regulamentação e tratamento prévio. Salvador: Edufba, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/17157 >. Acesso em: 25 mar.2019.
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).

Resíduos sólidos urbanos, profissão de catador e a saúde ambiental

Historicamente, a profissão de catador é reconhecida como um serviço direcionado a pessoas menos favorecidas, como negros em época de escravidão, que eram os responsáveis pela limpeza em áreas nobres das cidades, principalmente em períodos que antecediam festividades culturais e religiosas. O objetivo desse trabalho em época escravagista era coletar os dejetos acumulados e levar para locais distantes da visão dos mais ricos (Dias et al, 2009DIAS, E.C. et al. Saúde ambiental e saúde do trabalhador na atenção primária à saúde, no SUS: oportunidades e desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de janeiro, v. 14, n. 6, p. 2061-2070, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000600013
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).

Contudo, quando se busca lembrar a imagem de catadores de materiais recicláveis no Brasil, a igura de homens usando instrumentos de tração - como carroças -, coletando papel, plástico e vidro pelas ruas é mais atual, embora ainda carregada de conotações negativas que contribuem para a exclusão social, tal qual no tempo escravagista, já que a manipulação de resíduos descartados está associada a marginalização e uso de materiais sem valor (Dias et al, 2009DIAS, E.C. et al. Saúde ambiental e saúde do trabalhador na atenção primária à saúde, no SUS: oportunidades e desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de janeiro, v. 14, n. 6, p. 2061-2070, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000600013
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).

Para compreensão das categorias relacionadas à profissão de catador e suas associações com a saúde ambiental, é necessário definir (Quadro 1) a classificação dos resíduos de acordo com a forma que estão inseridos no contexto urbano.

Quadro 1
Conceitos e definições sobre resíduos sólidos

Comparadas a outras profissões que envolvem insalubridade, a atividade de catação ainda permanece carregada de fatores que a expõe ao preconceito, entre eles: baixo rendimento financeiro e alto risco ocupacional, com comprometimento importante à saúde dos trabalhadores (Oliveira, 2011OLIVEIRA, D. A. L. Percepção de riscos ocupacionais em catadores de materiais recicláveis: Estudo em uma Cooperativa em Salvador-Bahia. 2011. 174 f. Dissertação (Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho) - Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011. Disponível em <Disponível em https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/31820/1/cd-disserta%c3%a7%c3%a3o.pdf >. Acesso em: 13 dez. 2020.
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). O relatório publicado pelo Departamento de Ciência e Inovação da África do Sul considera como importante o papel desempenhado por catadores de recicláveis no sistema de gestão de resíduos e reciclagem do país e declara que, embora historicamente os catadores tenham sido desprezados e tratados como incômodos e criminosos, cada vez mais o governo, a indústria e os cidadãos sul-africanos estão reconhecendo e valorizando as contribuições destes trabalhadores para o aumento da vida útil dos aterros sanitários e para alimentar a indústria de reciclagem (Samson et al., 2020SAMSON, M et al. Lessons from Waste Picker Integration Initiatives: Development of Evidence Based Guidelines to Integrate Waste Pickers into South African Municipal Waste Management System. Johannesburg: Wits University; Department of Science and Innovation, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://wasteroadmap.co.za/wp-content/uploads/2020/03/1-Wits_Final_Report_Johannesburg-Technical-Report.pdf >. Acesso em: 9 abr. 2022.
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).

Em contraponto às propostas teóricas dos documentos oficiais, elaborados nas conferências internacionais que discutem a temática da reciclagem, a engrenagem do “metabolismo social” segue girando em fluxo da retirada de matéria prima e energia dos ecossistemas, justificada pela manutenção da sobrevivência da sociedade urbana. Porém, atrelados ao metabolismo social surgem os “conflitos ambientais”, com riscos para a saúde das populações, em destaque aos catadores de materiais recicláveis, historicamente expostos a fatores de injustiças sociais. Tais elementos socioambientais sofrem alterações contínuas em decorrência de decisões como ampliação de complexos portuários; desmatamento para a expansão do agronegócio e complexos pecuários; e desapropriação das populações de seus territórios para a criação de espaços urbanos caóticos e sem infraestrutura, refletindo na produção de rejeitos industriais perigosos a saúde, favorecendo mudanças climáticas e culminando em problemas de destinação final dos resíduos sólidos urbanos (Franco, 2002).

Deus, Luca e Clarke (2004DEUS, A. B. S; LUCA, S. J; CLARKE, R. T. Índice de impacto dos resíduos sólidos urbanos na saúde pública (IIRSP): metodologia e aplicação. Engenharia Sanitária e Ambiental, Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 329-334, 2004. DOI: 10.1590/S1413-41522004000400010
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) afirmam que as implicações dos conflitos de injustiças sociais e relações econômicas de poder possuem reflexo na profissão de catadores de materiais recicláveis. Esses autores, assim como Rigotto (2003RIGOTTO, R. M. Saúde Ambiental e Saúde dos Trabalhadores: uma aproximação promissora entre o Verde e o Vermelho. Revista Brasileira de Epidemiologia , São Paulo, v. 6, n. 4, p. 388-404, 2003. DOI: 10.1590/S1415-790X2003000400013
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); Siqueira e Moraes (2009SIQUEIRA, M. M.; MORAES, M. da S. Saúde coletiva, resíduos sólidos urbanos e catadores de lixo. Ciências e Saúde Coletiva, São Paulo, v. 14, n. 6, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000600018
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, apontam para a invisibilidade dos profissionais de catação, mesmo essa atividade sendo considerada importante para a mitigação do acúmulo de resíduos sólidos urbanos, sugerindo que a profissão de catador, com seus impactos positivos para os ecossistemas, não é vista como a alternativa ideal para essa problemática, culminando em injustiça social e concluindo que as relações de poder despertam interesses capitalistas e políticos, que decidem sobre essas alternativas conforme o contexto histórico vivido.

Apesar de muitos estarem organizados em cooperativas, os catadores de resíduos sólidos urbanos são excluídos pela atividade que desempenham. Visto que tais dejetos são considerados, por muitos autores, um problema de saúde pública, é necessário um olhar mais apurado para essa classe de trabalhadores que vive entre o descarte e o reuso, estando assim em atividade insalubre num grau máximo (Associação Brasileira De Normas Técnicas, 2018).

Para atenuar os fatores de risco inseridos nas esferas da Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador que pratica manuseio de resíduos sólidos urbanos, alguns gestores ambientais defendem o uso da tecnologia estrutural resultante da mudança de lixões para aterros sanitários. Os lixões são locais usados para descartes de resíduos sem medidas de controle das operações e sem nenhuma estratégia de proteção ao meio ambiente; ao contrário dos aterros, que consistem em local específico para destinação dos resíduos e que realizam o controle dos impactos gerados ao ambiente e a saúde (Abrelpe, 2018ABRELPE - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS ESPECIAIS. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, 2017. São Paulo, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://belasites.com.br/clientes/abrelpe/site/wp-content/uploads/2018/09/SITE_grappa_panoramaAbrelpe_ago_v4.pdf >. Acesso em: 15 maio 2019.
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).

Contudo, os aterros sanitários não alcançam os objetivos e diretrizes sinalizados na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) de 2 de agosto de 2010/Lei nº 12.305 (Brasil, 2010BRASIL. Lei Federal nº 12.305 de 2 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 ago. 2010.), que dispõe, entre outros pontos, sobre as ações de saneamento básico que visam adequar o gerenciamento dos resíduos de forma segura para proteção à saúde pública e do meio-ambiente, além de incentivar a inclusão socioeconômica de catadores de matérias recicláveis, denominados por muitos autores como “agentes ambientais” (Oliveira, 2011OLIVEIRA, D. A. L. Percepção de riscos ocupacionais em catadores de materiais recicláveis: Estudo em uma Cooperativa em Salvador-Bahia. 2011. 174 f. Dissertação (Mestrado em Saúde, Ambiente e Trabalho) - Faculdade de Medicina da Bahia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011. Disponível em <Disponível em https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/31820/1/cd-disserta%c3%a7%c3%a3o.pdf >. Acesso em: 13 dez. 2020.
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).

A problemática dos resíduos sólidos urbanos aumenta os fatores de risco para problemas de Saúde Pública e, portanto, para a Saúde Coletiva. Com isso, busca-se compreender a relação conflituosa entre as perspectivas da Saúde Ambiental frente aos riscos enfrentados pelos catadores durante a atividade que desempenham.

Sabe-se que a problemática dos resíduos sólidos urbanos emerge dos padrões de desenvolvimento que aumentam a exploração da natureza e causam o seu acúmulo. Como solução para essa questão, surge a prática do reciclar com a inclusão dos profissionais de catação de materiais recicláveis, as etapas dessa ocupação consistem em: coletar, transportar, triar, armazenar e beneficiar a reutilização contribuindo para as indústrias, governo (em todas as esferas) e principalmente para o meio ambiente (ABRELPE, 2018ABRELPE - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS ESPECIAIS. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, 2017. São Paulo, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://belasites.com.br/clientes/abrelpe/site/wp-content/uploads/2018/09/SITE_grappa_panoramaAbrelpe_ago_v4.pdf >. Acesso em: 15 maio 2019.
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).

Pressupostos básicos do estudo teórico crítico sobre a relação da saúde ambiental com a profissão de catador

Documentos históricos que tratam sobre o futuro do meio ambiente e suas relações com os seres humanos ganharam importância significativa após a sua divulgação em conferências internacionais, a exemplo do relatório Only One Earth, elaborado por René Dubos e apresentado na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano em 1972, e o relatório Nosso Futuro Comum, escrito por Gro Harlem Brundtlande e bastante discutido na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, mais conhecida como Rio-92 ou Eco-92. Dentre esses documentos, destaca- se Nosso Futuro Comum, em que um dos principais aspectos é a repetição da palavra “saúde”, o que reflete a importância desse termo e suas relações com os ecossistemas (Veiga, 2020VEIGA, J. L. Saúde e sustentabilidade. Estudos avançados, São Paulo, v. 34, n. 99, 2020. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.018
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).

Ao longo do período evolutivo e civilizatório, os cuidados específicos durante o processo de adoecimento sempre passaram por indivíduos responsáveis, seja por seu esclarecimento ou proposta de cura dos agravos, sendo assim, os demais sujeitos seguem as recomendações aplicadas, sem promover questionamentos e ações de caráter preventivo. Atualmente, esse processo tenta incluir, além de saberes biológicos voltados para o raciocínio terapêutico, a atuação de outros atores responsáveis pelo seu próprio bem estar, considerando outros determinantes, como estilo de vida, contexto social e contexto ambiental (Sbissa; Schneider; Sbissa; 2011SBISSA, P. P.B; SCHNEIDER, D. R; SBISSA, A.S. Caracterização do desenvolvimento epistemológico da saúde e das práticas complementares. Arquivos Catarinenses de Medicina, Florianópolis, v. 40, n. 2, 2011. Disponível em < Disponível em http://www.acm.org.br/revista/pdf/artigos/871.pdf >. Acesso em: 20 abr. 2020.
http://www.acm.org.br/revista/pdf/artigo...
).

Segundo Veiga (2020VEIGA, J. L. Saúde e sustentabilidade. Estudos avançados, São Paulo, v. 34, n. 99, 2020. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.018
https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020....
) o ser humano é um ser voltado para o risco, este gerado pelo conhecimento, que surge porque o indivíduo busca na natureza recursos para atender as suas necessidades, modificando os ecossistemas e, neste processo, promovendo os conhecidos riscos tecnológicos. Souza (2018) e Veiga (2020VEIGA, J. L. Saúde e sustentabilidade. Estudos avançados, São Paulo, v. 34, n. 99, 2020. DOI: 10.1590/s0103-4014.2020.3499.018
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) destacam que o conhecimento disseminado em meio aos problemas ambientais relacionados com a saúde é limitado a verdades de características ocidentais defasadas, o que propõe uma discussão crítica sobre a importância em inferir saberes diferentes, com o objetivo de apresentar soluções práticas para problemas instalados a longo prazo.

Seguindo essa mesma linha histórica que desenha os caminhos que relacionam ambiente e saúde, verifica-se que, apesar da atividade de catação ter seus primeiros registros ainda no século XIX, é a partir das alterações no setor produtivo e pela questão do desemprego estrutural no Brasil que o trabalho vai se apresentar como uma alternativa, incorporando aquelas pessoas que não conseguem se inserir ou reinserir no mercado de trabalho formal, tendo em vista que, mesmo após o reconhecimento do trabalho de catador como profissão, as condições de vida e trabalho desses profissionais não passaram por grandes mudanças (Souza, 2018).

Essa perspectiva aponta para os avanços já alcançados como a Política Nacional dos Resíduos Sólidos, que insere os catadores no contexto legal, e com a regulamentação da profissão de catador na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Esses progressos, porém, não são o suficiente para destacá- los no processo de sustentabilidade entre saúde e trabalho, que diminuem os impactos ambientais relacionados com o seu estilo de vida atual.

Para Porto, Fimanore e Rocha (2008), a epistemologia crítica questiona a produção de conhecimento como verdade absoluta. A proposta desta pesquisa viabiliza a discussão sobre a necessidade de promover maior protagonismo dos catadores de materiais recicláveis, visto que seu trabalho mitiga a problemática dos resíduos sólidos urbanos e promove solução socioambiental adequada, além de sugerir novas formas de pensar, estimuladas pelo estudo teórico crítico que, diante de afirmações, conceitos e definições, ainda questiona: Por que os catadores de materiais recicláveis ainda são excluídos pela atividade que desempenham?

Apesar do reconhecimento legal, essas atividades são permeadas pelo preconceito e pela discriminação. Arantes e Borges (2013ARANTES, B. O; BORGES, L O. Catadores de materiais recicláveis: cadeia produtiva e precariedade. Arquivos Brasileiros de Psicologia., Rio de Janeiro, v. 65, n. 3, p. 319- 337, 2013. Disponível em: <Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672013000300002 >. Acesso em: 31 mar. 2022.
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) asseguram que não existem estatísticas precisas sobre a atividade de catação no mercado de trabalho, fato causado pela falta de registro e pelo caráter itinerante da atividade desses trabalhadores; assinalam que a maioria deles são mulheres e possuem baixa escolaridade; relatam a forma preconceituosa que a sociedade considera a atividade e seus executores; e como os resíduos são considerados ameaçadores. Logo, o contato com esse material estigmatiza aqueles que o manejam. Apontam que a sociedade considera os que sobrevivem do que é descartado por ela igualmente descartáveis.

Conforme abordam Porto, Pacheco e Leroy (2013PORTO, M. F. T.; PACHECO, T.; LEROY, J.P. (Org.). Injustiça ambiental e saúde no Brasil: o Mapa de Conflitos. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2013.), o reconhecimento da necessidade de questionar formas de tecnologias e discutir teorias de maneira mais horizontal, com base nos estudos epistemológicos críticos, implicam em:

(…) novas formas de se produzir conhecimentos, presentes na ideia de uma ecologia dos saberes e de uma nova sociologia da emergência, as quais têm como desafio central traduzir as novas condições de pluralidades políticas e epistemológicas na reinvenção solidária de um mundo em transformação (Porto; Pacheco; Leroy, 2013PORTO, M. F. T.; PACHECO, T.; LEROY, J.P. (Org.). Injustiça ambiental e saúde no Brasil: o Mapa de Conflitos. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2013., p. 112).

Essa proposta sugere a aceitação dos limites das áreas de conhecimento que não devem ser analisadas separadamente e sim em contribuição com um objetivo comum, que deveria ser a elaboração de ações decisórias e políticas públicas responsáveis por aplicar, de maneira mais efetiva, as “estratégias de visibilização das vozes ocultas de populações afetadas na sua condição humana diante de conflitos ambientais que as vulnerabilizam (Porto, 2011PORTO, M. F. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 93, p. 31-58, 2011., p. 37).”

Metodologia

Trata-se de uma revisão descritiva da literatura acerca do tema, utilizando documentos técnicos, normativos e científicos, com abordagem teórica a partir da crítica. Para o desenvolvimento desse trabalho, a coleta de dados ocorreu no intervalo compreendido entre abril e outubro de 2020, em bancos de dados disponibilizados de maneira online em bibliotecas virtuais - no portal da Scientific Eletronic Library Online (SCIELO), no Pubmed e nas bases de dados da Elsevier SciVerse, ScienceDirect, SciVerse Scopus -, usando os seguintes descritores: saúde e meio ambiente, saúde ambiental, relações epistemológicas, catador de materiais recicláveis e políticas públicas ambientais. Foram selecionadas publicações sem recorte temporal, por se tratar de um estudo com análise de contexto histórico, para tanto, a seleção dos estudos foi realizada com base na relação com o tema proposto e incluídos artigos científicos, dissertações, teses, documentos e relatórios oficiais. A análise foi realizada por meio de leitura exploratória e crítica, com exclusão de trabalhos sem relação com o tema ou não disponíveis na íntegra.

Resultados e discussão

A Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) confirma que o comprometimento com a qualidade de vida de uma comunidade contribui para a estratégia das cidades saudáveis, proposta difundida juntamente com a proposição de reunir ações regidas pelo governo municipal, políticas públicas locais de apoio e promoção da saúde com participação da sociedade civil, com o objetivo de minimizar as mazelas encontradas nos territórios em resposta ao comportamento humano que modifica os ecossistemas, entre elas, a questão do esgotamento de áreas direcionadas ao descarte final dos resíduos sólidos urbanos (OPAS, 2000OPAS - ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD. La salud y el ambiente en el desarrollo sostenible. Washington, DC: OPS; 2000.).

Para abrangência do conhecimento teórico voltado para essa temática, é necessário contextualizar os grandes eventos nacionais e internacionais que contribuíram para a importância da difusão dos conceitos que regem a categoria da Saúde Ambiental (Quadro 2).

Quadro 2
Grandes marcos que contribuíram para a categoria Saúde Ambiental

A relação entre Saúde Coletiva, Ambiental e do Trabalhador merece destaque por seu paradigma, que infere um fator de ordenação científica cabível com a reflexão proposta pelo estudo teórico crítico e promove diálogo direto com a problemática dos resíduos sólidos urbanos, estimulando a discussão necessária sobre a profissão de catadores de materiais recicláveis.

Segundo Tesser (1994TESSER, G. J. Principais linhas epistemológicas contemporâneas. Educar em Revista, Curitiba, n. 10, 1994. DOI: 10.1590/0104-4060.131
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), o processo de compreensão científica que envolve os paradigmas foi discutido por muitos filósofos ao longo dos anos, incluindo Habenas (teoria epistemológica crítica). Essa compreensão está amplamente associada à reflexão sobre as estruturas e ordenamentos instituídos, por muito tempo, na área da saúde e promove questionamentos sobre a autonomia e repercussões de cada esfera, incluindo o problema dos RSU direcionados para a saúde de populações trabalhadoras na atividade de catação, além de promover o seguinte questionamento: Como a esfera da saúde ambiental promove proteção e promoção a saúde dos catadores de materiais recicláveis?

A análise da profissão de catador inserida na saúde ambiental, a partir de perspectivas da epistemologia crítica, sugere novas categorias que estão atreladas a problemática, como o enfrentamento de questões socioambientais complexas e a vulnerabilidade de determinada população. Essa proposta sugere a aceitação dos limites das áreas de conhecimento que não devem ser analisadas separadamente, mas em contribuição com um objetivo comum, que deveria ser a elaboração de ações decisórias e políticas públicas que apliquem de maneira mais efetiva as “[…] estratégias de visibilização das vozes ocultas de populações afetadas na sua condição humana diante de conflitos ambientais que as vulnerabilizam.” (Porto, 2011PORTO, M. F. Complexidade, processos de vulnerabilização e justiça ambiental: um ensaio de epistemologia política. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 93, p. 31-58, 2011., p. 37).

É importante destacar que o campo da saúde ambiental no Brasil não deve ser limitado apenas ao que trata de saneamento básico e doenças infectocontagiosas, mas também discutir segmentos sociais que envolvam elementos do trabalho, do ambiente e da saúde, esperando como resultado a melhora da qualidade de vida da população de maneira linear. Porém, autores como Rigotto (2003RIGOTTO, R. M. Saúde Ambiental e Saúde dos Trabalhadores: uma aproximação promissora entre o Verde e o Vermelho. Revista Brasileira de Epidemiologia , São Paulo, v. 6, n. 4, p. 388-404, 2003. DOI: 10.1590/S1415-790X2003000400013
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); Siqueira e Moraes (2009SIQUEIRA, M. M.; MORAES, M. da S. Saúde coletiva, resíduos sólidos urbanos e catadores de lixo. Ciências e Saúde Coletiva, São Paulo, v. 14, n. 6, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000600018
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) informam que essa tentativa multidisciplinar é dificultada pelo padrão societário atual, que possui conflitos de injustiças sociais e relações econômicas de poder.

Atrelada às relações ambientais, políticas, econômicas e sociais vivenciadas pelos catadores estão as questões da saúde ambiental, já que, como afirmam Gouveia (2012GOUVEIA, N. Resíduos sólidos urbanos: impactos socioambientais e perspectiva de manejo sustentável com inclusão social. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 17, n. 6, p. 1503-1510, 2012. DOI: 10.1590/S1413-81232012000600014
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), se os resíduos sólidos promovem situações de riscos à saúde pública, os trabalhadores que manipulam esses materiais estão expostos e inseridos na discussão da saúde ambiental e do trabalhador.

Os cuidados com a saúde ambiental vão além dos riscos relacionados à saúde física na busca pela ausência da doença, também ocorre a necessidade de discutir e aprimorar os cuidados com o meio ambiente onde estão inseridos os indivíduos, incluindo os espaços das atividades laborais, o que causa desdobramentos para a saúde dos trabalhadores. A pesquisa de Sánchez, Sánchez e Muñoz (2017SÁNCHEZ, A.M; SÁNCHEZ, S. J; MUÑOZ, D. R. Riesgos laborales en las empresas de residuos sólidos en Andalucía: una perspectiva de género. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 3, p. 798-810, 2017. DOI: 10.1590/S0104-12902017162878
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) analisou os fatores de risco a que estão expostos os trabalhadores nas empresas de resíduos sólidos urbanos, considerando as medidas preventivas em setores que já apresentavam trabalhadores enfermos.

Em análise aos riscos para a saúde do trabalhador dentro de ambientes direcionados para a atividade de catação, Mastrangelo e Schamber (2019MASTRANGELO A; SCHAMBER P. Salud ocupacional en dos centros de clasificación y acopio de materiales reciclables en el Área Metropolitana de Buenos Aires, Argentina, 2015. Salud Colectiva, Buenos Aires, v. 15, 2019. DOI: 10.18294/sc.2019.1348
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) afirmam que a solução para a diminuição dos riscos ocupacionais aos catadores de materiais recicláveis necessita de estudos, de forma que haja: elaboração de modelos dos processos de trabalho durante sua atividade, medidas de segurança para evitar acidentes, equipamentos ergonomicamente adequados para evitar desgastes físicos e controle severo contra a reprodução de vetores causadores de doenças e comumente encontrados em materiais como papel, papelão, plástico e vidros acumulados. No mesmo estudo, Mastrangelo e Schamber (2019MASTRANGELO A; SCHAMBER P. Salud ocupacional en dos centros de clasificación y acopio de materiales reciclables en el Área Metropolitana de Buenos Aires, Argentina, 2015. Salud Colectiva, Buenos Aires, v. 15, 2019. DOI: 10.18294/sc.2019.1348
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) ainda concordam com Sánchez, Sánchez e Muñoz (2017SÁNCHEZ, A.M; SÁNCHEZ, S. J; MUÑOZ, D. R. Riesgos laborales en las empresas de residuos sólidos en Andalucía: una perspectiva de género. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 3, p. 798-810, 2017. DOI: 10.1590/S0104-12902017162878
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) sobre a importância da atuação das políticas públicas que estabelecem medidas de proteção, visando não somente a saúde do trabalhador, mas a saúde em nível ambiental.

Medidas para elaboração de documentos normativos e direcionados para adequação de espaços de trabalho, envolvendo a manipulação de resíduos sólidos, também ganharam destaque no estudo de Farreras e Huanca (2019), com a elaboração de uma lista de sugestões com o objetivo de mitigar os riscos para saúde de trabalhadores catadores de materiais recicláveis, criando medidas para melhorar a gestão dos resíduos sólidos urbanos e usando políticas públicas que agreguem a saúde ambiental associada à saúde do trabalhador. Além disso, este estudo sinaliza a necessidade da participação dessa categoria como atores principais nas decisões sobre como devem ser priorizadas as medidas mitigadoras, com base em suas principais queixas de saúde.

Considerações finais

O estudo baseado na epistemologia crítica usa como ferramenta o conhecimento interdisciplinar, em que a análise das categorias examinadas promove diálogo linear na busca por ciência, isso considerando e examinando teorias existentes com o objetivo de questionar as hipóteses científicas e contribuir para o conhecimento avançado. Além disso, promove a discussão sobre as contradições que emergem a partir da produção científica contínua.

Esse estudo objetivou relacionar a problemática dos resíduos sólidos urbanos com a profissão de catador de materiais recicláveis, focando na saúde ambiental com o uso da linha de estudo da epistemologia crítica, e encontrou diversos autores que apontam a saúde ambiental como a categoria teórica que antecede o estudo sobre a saúde dos trabalhadores, em especial dos catadores de materiais recicláveis sujeitados diariamente a riscos ocupacionais por manipularem resíduos que podem gerar agravos à sua saúde física, psíquica e social. Autores que analisam essa temática promovem uma discussão bastante vasta, pois os riscos ocupacionais relacionados a esses trabalhadores envolvem, primeiramente, a falta de clareza e definição dos indicadores da saúde ambiental que atuam no bem estar e na qualidade de vida, inclusive da população trabalhadora; e também em sua exposição aos fatores respiratórios, químicos, biológicos e musculoesqueléticos vivenciados durante os processos de trabalho.

Com base no olhar da epistemologia crítica, entende-se que, apesar de serem citados na literatura e em documentos oficiais como classe trabalhadora de relevância socioambiental, esses trabalhadores não estão inseridos na prática do reciclar como alternativa socioambiental eficaz. Ainda é possível encontrar barreiras políticas e econômicas que usam antigas tecnologias em detrimento do apoio à sustentabilidade econômica das cooperativas de catadores de resíduos sólidos.

Uma das tecnologias mais destacadas atualmente são os aterros sanitários em substituição aos lixões, com o devido reconhecimento desse avanço tecnológico como estratégia de preservação dos ecossistemas, mas com vida útil limitada e com necessidade de evitar sua sobrecarga, buscando opções que agreguem diminuição do acúmulo em demasia dos resíduos sólidos urbanos, com oportunidade social aos trabalhadores que já desempenham a prática do reciclar, porém de maneira desorganizada.

A análise baseada no estudo teórico crítico possibilita o questionamento sobre os caminhos que levam a profissão de catador de materiais recicláveis a não ser protagonista das possíveis soluções do acúmulo dos resíduos sólidos urbanos, proporcionando o enfrentamento das questões econômicas e políticas que afirmam escolhas teóricas e tecnológicas pouco eficazes, traçando o contexto histórico em que esses trabalhadores estão inseridos e como protege-los dos riscos gerados por essa ocupação, usando critérios estabelecidos e pautados nos conceitos mais atuais sobre a saúde ambiental.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Abr 2022
  • Revisado
    26 Abr 2022
  • Aceito
    18 Maio 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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