Prevenção de “brincadeiras perigosas” na internet: experiência da atuação do Instituto DimiCuida em ambientes digitais11Pesquisa realizado com o apoio do CNPq (Proc. 409048/2018-6)

Suely Deslandes Tiago Coutinho Sobre os autores

Resumo

As “brincadeiras perigosas” (“desafios online”) fazem parte da cultura digital, atraindo milhares de crianças e adolescentes e causando severos danos à saúde. Este artigo buscou analisar a experiência do Instituto DimiCuida (IDC), em Fortaleza (CE), ação pioneira de prevenção de desafios online danosos à saúde, que se disseminam em diferentes ambientes da Web 2.0. O estudo teve como objetivos específicos analisar a emergência do Instituto; identificar os principais parceiros envolvidos, os ambientes digitais e analógicos onde atuam; além de entender as estratégias de prevenção desenvolvidas. Trata-se de um estudo de caso baseado em análise documental. O acervo, extraído de diversas plataformas digitais, foi processado com o Atlas Ti e submetido à análise temática. O IDC emerge da ressignificação existencial e política de uma experiência de luto e tem como característica enfatizar alternativas às atividades online, tendo como foco central a escola e seus agentes. Por se tratar de um campo em construção e sem referência precedente de atuação, a prevenção realizada nos ambientes digitais pouco explora a linguagem e recursos da internet, aposta no controle parental e pouco leva em consideração as experiências de corpo e as performances identitárias envolvidas nos desafios.

Palavras-chave:
Internet; Violência Autoinfligida; Crianças e Adolescentes; Prevenção; Jogos de sufocação.

Introdução

As “brincadeiras perigosas” ou, em sua descrição êmica, “desafios online” constituem um tipo bastante específico de conteúdo digital que tem atraído cada vez mais a atenção de jovens e adolescentes nas redes sociais. Muitas vezes apresentados como uma forma de brincadeira ou jogo, os desafios são veiculados por vídeos geralmente hospedados no YouTube, embora apareçam também em outras plataformas. Os desafios podem envolver a realização de uma tarefa inusitada, como mergulhar a cabeça num saco cheio de carvão, ou repulsiva, como ingerir grandes doses de canela. Há ainda aquelas consideradas ilegais, como depredar e saquear a própria escola, mas são os desafios perigosos que ganham maior reconhecimento no espaço digital.

A literatura retrata esses jogos e desafios, vividos por várias gerações antes do advento da internet, como “esportes radicais”, competições que por vezes envolvem violências e outras práticas que permitem aos adolescentes e jovens mostrar coragem, irreverência e vivenciar experiências arriscadas que seriam repreendidas pelos adultos. Tais experiências sensório-corporais se alinham, na perspectiva de uma sociologia do corpo, à busca da construção identitária dos mais jovens, do autoconhecimento do corpo e das suas emoções (Le Breton, 2012LE BRETON, D. Sociologia do corpo. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.). Essas práticas revelam a impossibilidade de uma sociedade na qual os riscos sejam plenamente controlados pelas instituições e agentes que lidam com os adolescentes (Le Breton, 2000LE BRETON, D. Passions du risque. Paris: Métailié, 2000., 2010LE BRETON, D. Le goût de la syncope : les jeux d’étranglement. Adolescence, Paris, v. 282, n. 2, p. 379-391. 2010. DOI: 10.3917/ado.072.0379.
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).

Pesquisas recentes (Deslandes et al., 2021DESLANDES, S. F. et al. Online challenges among children and adolescents: Self-inflicted harm and social media strategies. Salud Colectiva, Lanús, v. 16, p. e3264, 2020. DOI: 10.18294/sc.2020.3264
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; Miranda; Miranda, 2021MIRANDA, L. M. F.; MIRANDA, L. L. Risco-espetáculo: novas modalidades do risco na era digital. Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 12, n. 1, p. 141-155, 2021.) identificaram dezenas de desafios disseminados no YouTube, bastante populares entre crianças e adolescentes, cuja execução online constitui uma estratégia midiática voltada ao propósito de se tornar uma celebridade entre seus pares, ainda que às custas de danos potenciais à saúde. O principal objetivo é convocar a participação e adesão da audiência por meio da realização de tarefas que podem levar a autolesões, lesões a terceiros e, em alguns casos, a óbitos, dependendo da proposta do desafio. Dentre esses, os “jogos de asfixia” se destacam duplamente: primeiro por seu enorme potencial lesivo, podendo ser letais ou causar danos cerebrais temporários ou permanentes; e segundo por produzirem efeitos corporais intensos similares àqueles decorrentes do consumo de substâncias psicoativas, o que torna essa modalidade especialmente atrativa, pois supostamente permitiria experiências de alteração de consciência sem que fosse preciso enfrentar os rótulos morais e sanções sociais de usuários de drogas (Lindsey et al., 2019LINDSEY, M. A. et al. Trends of Suicidal Behaviors Among High School Students in the United States: 1991-2017. Pediatrics, Elk Grove Village, v. 144, n. 5, p. e20191187, 2019. DOI: 10.1542/peds.2019-1187
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; Guilheri; Andronikof; Yazigi, 2017GUILHERI J.; ANDRONIKOF, A.; YAZIGI, L. “Brincadeira do desmaio”: uma nova moda mortal entre crianças e adolescentes. Características psicofisiológicas, comportamentais e epidemiologia dos ‘jogos de asfixia’. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, p. 867-878, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017223.14532016
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). Apesar de afetar a saúde física e emocional de crianças e adolescentes, o tema ainda é pouco estudado no campo da saúde.

Os desafios de sufocação apresentam ampla disseminação no mundo digital, e são realizados por milhares de jovens seguidores (Defenderfer; Austin; Davies, 2016DEFENDERFER, E. K.; AUSTIN J. E.; DAVIES W. H. The Choking Game on YouTube: An Update. Global Pediatric Health, Thousand Oaks, v. 16, n. 3, p. 2333794X15622333. DOI: 10.1177/2333794X15622333
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; Linkletter; Gordon, Dooley; 2010LINKLETTER, M.; GORDON, K.; DOOLEY, J. The Choking Game and YouTube: A Dangerous Combination. Clinical Pediatrics , Thousand Oaks, v. 49, n. 3, p. 274-279, 2010. DOI: 10.1177/0009922809339203
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). Em contrapartida, há diversos conteúdos feitos por profissionais e instituições direcionados à prevenção de tais práticas, trazendo informações e exemplos de histórias de vidas que foram marcadas negativamente pelos danos causados pelos desafios. Além disso, esses materiais chamam a atenção dos pais para os riscos da falta de controle do conteúdo consumido por seus filhos na internet.

A partir dos anos de 1990, o tema do controle parental em relação à internet ganhou destaque com a Convenção dos Direitos da Criança (ONU; Unicef, 1990UNICEF - FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA. Convenção sobre os Direitos da Criança. New York. Disponível em: Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-da-crianca . Acesso em: 27 abr. 2017.
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). Prevaleceu, então, a concepção de que é responsabilidade parental orientar e monitorar crianças e adolescentes em relação ao uso da internet para qualquer finalidade até que atinjam a maioridade. Assim, o exercício do controle parental ganha destaque ao ser considerado prática fundamental na mediação do acesso à internet por crianças e adolescentes. Adotando um tom mais conciliador do que o termo “controle” sugere, por outro lado, a literatura que aborda o assunto também utiliza a categoria “mediação parental”. Em um levantamento realizado por Grizólio e Scorsolini-Comin (2020GRIZÓLIO, T. C.; SCORSOLINI-COMIN, F. Como a mediação parental tem orientado o uso de internet do público infanto-juvenil? Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 24, p. e217310, 2020. DOI: 10.1590/2175-35392020217310
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), percebeu-se que não há um consenso quanto aos modelos de mediação, havendo uma diversidade considerável de terminologias: “monitoramento”, “qualidade de comunicação”, “mediação restritiva”, “mediação autoritária, autoritativa e estilo laissez-faire”, “mediação ativa”, “supervisão”, entre outros. Dessa forma, a mediação ao acesso à internet suscita muito mais dúvidas do que certezas na forma de orientar crianças e adolescentes.

A ideia de que a internet apresenta muitas oportunidades para o desenvolvimento de jovens, ao mesmo tempo em que representa riscos e danos potenciais, reúne um conjunto de instituições que têm como pauta a defesa por uma realidade online mais segura e livre de violências. Partindo desse contexto, este artigo objetiva empreender uma análise exploratória sobre a experiência do Instituto DimiCuida (IDC), ação pioneira de prevenção aos desafios online com potencial de causar danos à saúde. O estudo teve como objetivos específicos analisar a emergência do Instituto, identificar os principais parceiros envolvidos, os ambientes digitais e analógicos onde atuam e as estratégias de prevenção desenvolvidas. Acreditamos que esta pesquisa possa contribuir no aprimoramento de iniciativas que utilizam espaços digitais para a prevenção de fenômenos semelhantes envolvendo crianças e adolescentes.

Metodologia

A pesquisa foi conduzida a partir da perspectiva do estudo caso, que permite a produção de inferências sobre certas práticas sociais à luz da análise da história e das experiências dos atores. Trabalhamos com um caso único selecionado não só a partir do seu interesse intrínseco (a especificidade de sua atuação), mas também por representar interesse instrumental, pois sua análise permite induções e insights que podem ser utilizados em outras atuações institucionais semelhantes (Stake, 2000STAKE, D. Case Study. In: DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. Handbook of qualitative research. 2. ed. London: Sage, 2000. p. 435-454.).

Tomamos como foco o IDC por sua atuação pioneira no Brasil no que concerne à prevenção de desafios de sufocação, sendo a instituição que mais produziu conteúdos com esse tema. A estratégia adotada para identificar e analisar as conexões e o material produzido por essa rede foi composta por duas etapas e articulou métodos diversos.

Na primeira etapa, foi realizado um mapeamento dos ambientes digitais do IDC hospedados no Facebook, Instagram e YouTube, identificando seus parceiros. Trabalhamos com a descrição da “rede centrada no ego” a partir da síntese de Recuero (2020RECUERO, R. Redes sociais na internet. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2020., p. 70): “aquela que parte de um nó determinado e, a partir das conexões deste em um determinado grau de separação, a rede é traçada”, sendo os números de graus de separação entre os atores dessa rede (distância entre o ator central e os demais) definida pelo pesquisador. Assim, não incluímos as conexões entre os parceiros no segundo nível (parceiros dos parceiros), tampouco a reciprocidade das interações nesse nível.

Os sites das instituições parceiras foram visitados, e foi verificada a existência de novos elementos nessa rede, isto é, profissionais e organizações que apoiavam e ajudavam a disseminar os conteúdos gerados. Entendemos como principais parceiros os perfis que curtem, compartilham ou comentam o material produzido no site do IDC.

A fim de construir a visualização das conexões com os parceiros, foi utilizado o software colaborativo DRAW (para editoração eletrônica e construção de desenho vetorial), multiplataforma de código aberto que tem como principal característica os conectores versáteis entre as figuras, disponíveis em uma gama de estilos de linha que facilitam a construção de diagramas.

Na segunda etapa da pesquisa, foi feita a extração de conteúdos e a análise qualitativa das estratégias propostas para a prevenção dos jogos de sufocação veiculadas pelo IDC e por seus parceiros diretos. O acervo foi extraído manualmente das plataformas Facebook, Instagram e YouTube ao longo do primeiro semestre de 2019. As capturas foram feitas no formato .jpeg e armazenadas em pastas, cada uma nomeada de acordo com a plataforma da qual o material foi coletado. Além dessas imagens foram inseridos outros itens, como vídeos e textos.

Essa etapa contou com o apoio funcional de um software de pesquisa qualitativa, o Atlas Ti, desenvolvido para o processamento de dados qualitativos e bastante utilizado por pesquisadores pelas suas funcionalidades e compatibilidade com arquivos e plataformas digitais. Em um primeiro momento, foram identificados 301 itens em diversos formatos de arquivos. Após triagem desse material, observou-se que havia uma quantidade expressiva de itens repetidos, pois a mesma postagem era realizada em diferentes plataformas digitais. Assim, optou-se por aquelas com maior alcance, ou seja, as mais curtidas, compartilhadas ou repostadas, excluindo-se as postagens idênticas. O acervo final correspondeu a 212 arquivos em formato de texto, imagem e vídeo.

O material foi transcrito e codificado por dois pesquisadores de forma independente e classificado em dois eixos temáticos com quatro categorias capazes de agrupar os conteúdos. Cada material classificado poderia ser inserido em mais de um eixo temático (Quadro 1). As passagens que podiam conter identificação de profissionais ou instituições foram tarjadas.

Quadro 1
Distribuição do acervo em eixos temáticos, categorias e subcategorias

Aos dados qualitativos aplicou-se a análise temática proposta por Mieles Barrera, Tonon e Alvarado Salgado (2012MIELES BARRERA, M. D.; TONON G.; ALVARADO SALGADO, S. V. Investigación cualitativa: el análisis temático para el tratamiento de la información desde el enfoque de la fenomenología social. Universitas Humanística, Bogotá, DC, n. 74, p. 195-225, 2012.), que reconhece que as experiências relatadas manifestam estruturas de relevância de significados, atribuídos pelos sujeitos, que podem ser explicitadas pela interpretação em ordenamentos e tipologias. O processo de análise se guiou por três postulados metodológicos: o de consistência lógica, que se evidencia na clareza teórico-metodológica do estudo e na acuidade de suas categorias; o da interpretação subjetiva, que defende o foco da análise enquanto significado que o ator tem da ação; e o postulado da adequação, que busca como horizonte a coerência entre as tipificações do pesquisador e os sentidos atribuídos pelos sujeitos. Foram empreendidas sucessivas leituras do acervo para familiarização com o texto, seguida pela identificação de temas, codificação dos conteúdos, agrupamentos e produção de relatório descritivo e, finalmente, produção de inferências interpretativas.

Após a realização da análise, nossas interpretações foram submetidas ao grupo de gestores e profissionais do IDC, que validaram as inferências produzidas.

Resultados

Organizamos os resultados a partir de uma sequência que se inicia com a história e o ethos do IDC, descreve e analisa as redes de parcerias do Instituto e por fim apresenta suas principais estratégias de atuação, destacando também as ações de alguns de seus parceiros.

Instituto DimiCuida, ação especializada, profissional e de testemunho: o luto como contexto de ressignificação

O IDC foi criado em 2014, em Fortaleza, após um jovem de 16 anos perder a vida praticando o jogo do desmaio pela internet. Seus pais, no processo de vivência do luto, conheceram outras famílias que haviam passado pela mesma perda. Assim, estabeleceram-se laços com duas instituições internacionais - a americana Erik’s Cause e a francesa Association des parentes d’Enfants Accidentés par Strangulation (Apeas) - fundadas por pais cujos filhos também morreram dessa forma. Desde então, essas instituições se dedicam a sensibilizar sobre o tema e empreender ações de prevenção. Posteriormente, o IDC ganhou uma condução profissional, com uma pequena equipe contando com psicóloga, educador e consultoria jurídica.

Assim, num percurso que parte da dor e do luto ressignificados pela reconstrução de uma narrativa de preservação da memória dos filhos, o IDC se estabeleceu como a primeira organização brasileira dedicada ao tema das brincadeiras perigosas na internet. Suas linhas de atuação declaradas são: i) pesquisas e estudos envolvendo profissionais qualificados ligados à área de saúde, educação e segurança; ii) troca de informações e experiências com entidades semelhantes no Brasil e no mundo; iii) prevenção voltada para profissionais das áreas de educação, saúde, segurança pública e pais; iv) trabalho de prevenção para crianças e adolescentes com metodologia qualificada; e iv) esclarecimento e apoio às famílias que viveram problemas similares.

Nas últimas décadas, uma das formas de mobilização que ganhou bastante visibilidade e provocou a emergência de uma nova subjetividade política foram os movimentos ligados às vítimas de violência (Fassin; Rechtman, 2007FASSIN, D.; RECHTMAN, R. L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris: Flammarion, 2007.). A produção científica sobre os diversos tipos de ativismo e movimentos sociais na contemporaneidade tem apontado para um processo de individualização das causas coletivas que se difundiram e se multiplicaram pelo mundo. Essa literatura enfatiza que o corpo tem sido utilizado como fonte de identificação das causas/mobilizações que caracterizam os ativismos ligados à vitimização (Mahoney, 1994MAHONEY, M. R. Victimization or Oppression? Women’s Lives, Violence, and Agency. In: FINEMAN, M. A. (Ed.). The Public Nature of Private Violence: The Discovery of Domestic Abuse. New York: Routledge, 1994. p. 59-92.; Janoff-Bulman, 1985JANOFF-BULMAN, C. The Aftermath of Victimization: Rebuilding Shattered Assumptions. In: FIGLEY, C. R. (Ed.). Trauma and Its Wake. Volume 1. New York: Brunner/Mazel, 1985. p. 15-33.).

De acordo com o texto From Pain to Power: Crime Victims Take Action (U.S. Department of Justice, 2007U.S. DEPARTMENT OF JUSTICE. From Pain to Power: Crime Victims Take Action. Washington, DC, 1998.), os movimentos pelos direitos civis, direitos dos idosos, bem-estar, proteção ambiental e pesquisa e tratamento da AIDS nos EUA foram liderados por aqueles diretamente afetados. O documento afirma que cada um desses movimentos surgiu de condições de vitimização e de negligência, perseguição ou marginalização. Em todos os casos, o envolvimento de indivíduos vitimizados legitimava a causa.

No livro L’Empire du traumatisme : Enquête sur la condition de victime, Fassin e Rechtman (2007FASSIN, D.; RECHTMAN, R. L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris: Flammarion, 2007.) propõem que o uso do termo “trauma” não é um dado, mas uma construção:

é o produto da mobilização dos atores, profissionais de saúde mental, defensores das vítimas em particular; e de forma mais ampla, uma reestruturação das bases cognitivas e morais de nossas sociedades, colocando em jogo a relação com o infortúnio, a memória, a subjetividade. (Fassin; Rechtman, 2007FASSIN, D.; RECHTMAN, R. L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris: Flammarion, 2007., p. 3, tradução nossa)

Assim, a condição de vítima assume na contemporaneidade um importante papel de produtor de subjetividade. Partindo das ideias de Fassin e Rechtman (2007FASSIN, D.; RECHTMAN, R. L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris: Flammarion, 2007.), Sarti (2011SARTI, C. A vítima como figura contemporânea. Caderno CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 51-61, 2011. DOI: 10.1590/S0103-49792011000100004
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) afirma que a construção da pessoa como vítima no mundo contemporâneo é pensada como forma de conferir reconhecimento social ao sofrimento, circunscrevendo-o e dando-lhe inteligibilidade.

No Brasil, estudos corroboram a produção de um ativismo das vítimas (Araújo,2019ARAÚJO, V. Mães da resistência: um olhar sobre o papel do racismo no processo de adoecimento de mães militantes que perderam seus filhos para a violência de Estado. 2019. (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2019.). Pessoas que perderam parentes de forma violenta (violência policial, urbana, no trânsito, violências autoinfligidas etc.) são capazes de transformar o que seria uma perda da esfera privada numa causa pública ao lutar por espaço nas agendas de políticas públicas, visando a produção de campanhas, restituição de direitos, mudança na legislação, entre outras demandas.

Instituições como o IDC atuam, portanto, na interseção entre a perspectiva de um ativismo (orientado pelo compromisso ético-ideológico com uma causa) e a atuação para a prevenção (guiada por estratégias que utilizam um saber profissional).

As redes de proteção às “brincadeiras perigosas” online

Partindo das relações de afinidade e aproximação do IDC com outros agentes nas principais plataformas digitais, buscamos visualizar as conexões com os diferentes atores nessa rede de prevenção às brincadeiras perigosas. No diagrama da Figura 1 há dois níveis de conexões: o nível 1 corresponde aos parceiros diretos do IDC e o nível 2 aos parceiros indiretos (parceiros dos parceiros).

Figura 1
Rede de parceiros do IDC

Como pode ser observado no diagrama, o IDC possui poucos parceiros diretos, com baixo grau de conexão (Recuero, 2020RECUERO, R. Redes sociais na internet. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2020.). Todavia, alguns desses estão conectados a redes maiores e mais complexas, permitindo interações de aproximação e, assim, uma expansão de laços associativos. Mais uma vez se evidencia o que Granovetter (1973GRANOVETTER, M. S. The strength of weak ties. American Journal of Sociology, v. 78, Chicago, n. 6, p. 1930-1938, 1973.) aponta como a força dos laços fracos, laços com menor vinculação capazes de conectar diferentes grupos, ampliando redes de relações, oportunidades e pertencimento. As conexões com a ChildFund Brasil, SaferNet e Nethics Educação Digital permitem ao IDC acesso potencial a pelo menos 60 outros parceiros, instituições nacionais e internacionais.

Desse conjunto, observam-se pautas convergentes à atuação do IDC: (1) atuação voltada para o uso ético e seguro da internet por meio da perspectiva da educação digital (SaferNet; Nethics; Ética, Segurança, Saúde e Educação [E.S.S.E] Mundo Digital; Janus - Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação); (2) ativismo em torno da prevenção dos jogos perigosos, deflagrado por experiências de luto (Apeas e Erik’s Cause); (3) atuação jurídica visando a responsabilização de plataformas digitais pela disseminação de conteúdos perigosos/violentos envolvendo crianças e adolescentes (Opice Blum Advocacia); e (4) prevenção da violência contra crianças, especialmente no âmbito familiar (ChildFund)

Observamos outros parceiros (sobretudo órgãos públicos do seu estado de origem) que não agem diretamente em suas redes digitais, mas desenvolvem atuações conjuntas.

A atuação digital e os conteúdos produzidos pelo IDC e seus parceiros

Tanto no Facebook quanto no Instagram observamos baixo alcance e volume das publicações produzidas pelo IDC. As publicações que apresentaram maior disseminação foram aquelas que compartilharam links de vídeos produzidos por emissoras de televisão ou por outro grande veículo de comunicação. Cada conteúdo de prevenção dificilmente atingia a marca de 15 curtidas ou visualizações e raramente recebia algum comentário. Nota-se que há pouca interação digital, ou seja, predomina um uso de disseminação de informação e não de formação de laços associativos.

Após análise dos ambientes digitais do IDC, percebemos que os parceiros e “seguidores” não estabeleciam interações de rede propriamente dita. Quando um conteúdo era postado em alguma das principais plataformas digitais, esse não criava um vínculo forte com outros perfis por meio de compartilhamentos, comentários ou curtidas.

Dentre as plataformas utilizadas pelo IDC, a performance no Youtube foi melhor, com boa marca de inscritos, mas ainda com número modesto de visualizações (Quadro 2).

Quadro 2
Performance do IDC nas redes sociais, 2018/2019

Em contraposição a essa dinâmica mais restrita temos a SaferNet, uma das parceiras do IDC que possui publicações de grande alcance, com mais de 100 mil visualizações. Porém, é importante lembrar que a SaferNet trata de segurança na internet de um ponto de vista muito mais amplo e diversificado, incluindo, além dos desafios online, temas como racismo, pedofilia, preconceito de gênero e muitos outros.

O conteúdo produzido pelo IDC tem como marca explicar com detalhes o que são os desafios online e como evitá-los. Numa estratégia de sensibilização mais ampliada, as informações são apresentadas com uma linguagem simples e direta e, na maioria das vezes, acompanhadas de imagens que ilustram a mensagem transmitida. O mapeamento revelou que a maior parte desse conteúdo é direcionado aos pais e principalmente aos educadores. A linguagem formal predomina nas publicações e os recursos algoritmos são muito pouco explorados (stories, lives, novos aplicativos etc.). As temáticas trabalhadas nos indicam que essa rede pouco direciona o seu conteúdo para aqueles que consomem os desafios, ou seja, as crianças e os adolescentes.

Nos conteúdos produzidos existe ainda uma grande preocupação com o uso abusivo da internet por jovens. Em diversas postagens, alerta-se sobre a preocupação que os pais devem ter quando seus filhos ficam muito tempo conectados à rede. As mensagens reforçam a ideia de que a internet é um espaço de risco e que deve ser acessada e experienciada sob a supervisão de um adulto. Enfatiza-se com certa constância que até nos momentos de diversão, como em um jogo ou em uma rede social, o usuário pode estar correndo algum perigo, mesmo inconscientemente.

Algumas publicações estimulam os pais a utilizarem aplicativos e ferramentas que permitem o monitoramento da navegação feita pelos filhos. Em várias postagens são apresentadas as vantagens dos softwares de controle parental como forma de evitar formas de violência e demais perigos. De forma geral, a ideia é que a gestão dos riscos da internet cabe principalmente aos pais, que precisam investir mais em letramento digital e ter apoio para saber buscar, baixar e usar aplicativos e dispositivos do controle de acesso a certos conteúdos. Reconhecendo que crianças e adolescentes entendem mais de tecnologia que os pais, as mensagens postadas revelam um tom didático ao transmitir os detalhes operacionais de tais aplicativos.

Apesar da importância do uso dessas estratégias, como se observa na postagem da Figura 2, o conteúdo enfatiza que “nada substitui o diálogo”, ou seja, se reconhecem os limites de uma ação meramente tecnológica de controle.

Figura 2
Postagem IDC no Facebook, 14 de junho de 2018.

O principal argumento que corrobora com a tese de que a internet é um ambiente inseguro e de vulnerabilidade para esse público consistem nas experiências pessoais de vidas que foram perdidas em decorrência dos desafios. No conteúdo produzido por essa rede de parceiros (em especial pelo IDC, Erik’s Cause e Apeas), os exemplos de trajetórias de vidas que foram marcadas por perdas são constantemente lembrados. Ao longo da realização desta pesquisa, o caso que mais sensibilizou a rede relacionada ao IDC foi o de uma menina de 7 anos que morreu após se submeter a um desafio proposto por youtubers, que consistia na aplicação de desodorante aerossol na boca. Poucos minutos após inalar uma grande quantidade do spray ela sofreu uma parada cardíaca. Parentes da menina e amigos da família postaram diversos apelos nas redes sociais, pedindo a atenção de pais e responsáveis para os riscos trazidos por esse e outros desafios que circulam nas plataformas digitais, reforçando ainda mais a associação entre perigo e internet.

Uma característica marcante da linha de atuação do IDC nos ambientes digitais é que o material publicado convida constantemente seu público a sair da internet e buscar formas analógicas de prevenção por meio de palestras, cursos e oficinas presenciais. O IDC promove vários encontros com alunos, pais e especialistas para debater o tema em conversas e atividades lúdicas. Pode-se observar, ainda, que essa rede de prevenção tem como uma de suas metas e expertise capacitar profissionais da educação no combate aos danos que tais brincadeiras podem trazer.

No conteúdo analisado, é bastante recorrente a menção à escola como sendo um contraponto analógico ao perigo que a internet pode trazer à criança e ao adolescente (Figura 3). Boa parte do material de divulgação destacava a importância da informação transmitida por especialistas nesse espaço de convívio. A referência aos pedagogos e psicólogos era recorrente no acervo analisado, seja na produção de conteúdo e na condução de cursos e palestras, seja na divulgação desses encontros. Os conteúdos produzidos por esses profissionais acabam funcionando discursivamente como fonte de verdade científica em contraposição às possíveis inverdades que a internet pode trazer. O item mais recorrente nas publicações foi o termo “palestra e prevenção às brincadeiras perigosas na escola”, que esteve entre as postagens mais curtidas e comentadas da rede de prevenção. Em alguns casos, grandes meios de comunicação foram utilizados para promover eventos presenciais nas escolas cearenses, trazendo um maior alcance para a divulgação.

Figura 3
Postagem IDC no Facebook, 14 de dezembro de 2018.

A análise do acervo revelou quatro tipos de estratégias para evitar o engajamento aos desafios: a música, o teatro, os esportes e a alimentação. A musicoterapia é disponibilizada em cursos e oficinas com músicos e terapeutas, visando estimular atividades ligadas à criatividade, o que diminuiria o uso excessivo da internet. Outra forma de enfrentamento seria o teatro. Os encontros buscam estimular a sociabilidade e sua relação com o outro: nas postagens sobre tais atividades, é possível observar que o trabalho é feito com o jovem com o intuito de “religá-lo” ao seu corpo. Menos frequentes, as oficinas e cursos voltados para os esportes e para a alimentação também recebem atenção do IDC, tendo como meta minimizar o tempo de exposição às redes sociais.

Paralelamente ao conteúdo produzido para as principais plataformas da Web 2.0, essa rede de prevenção aos desafios online tem como uma de suas formas de atuação a produção de conteúdo analógico, como livros, cartilhas e relatórios impressos, que geralmente são divulgados no ambiente presencial da escola. Um exemplo desse tipo de material que foi amplamente difundido nos ambientes digitais foi o livro Tem perigo no ar, publicado pelo IDC e lançado em diversas cidades do Brasil. De acordo com as publicações online, o livro é voltado para crianças de 5 a 11 anos e mostra de forma lúdica como o cérebro precisa de oxigênio para funcionar bem. Esse material tem como principal objetivo alertar crianças e adultos sobre o perigo das brincadeiras que envolvem a sufocação. Assim, observa-se mais uma vez que na rede digital de prevenção aos possíveis danos que os desafios online podem trazer, o conteúdo analógico assume uma importância fundamental.

Tendo como principal objetivo dificultar o acesso do adolescente ao conteúdo violento/perigoso, há uma grande preocupação em relação aos recursos jurídicos que podem ser acionados. Encontros e palestras com juristas e advogados são promovidos para debater sobre a legislação relativa às práticas digitais e como essa pode ser utilizada por pais e educadores para os vídeos que estimulam a violência a si e a terceiros serem retirados das plataformas. Os debates na época apontavam os esforços e a parceria com o YouTube para esse fim. Ao contrário de pedagogos e psicólogos, que são parte constitutiva dessa rede de prevenção, os advogados e juristas apresentam-se como consultores que assessoram as ações de prevenção. Todavia, não se observou uma ação de advocacia em torno de formulação de políticas para o controle dessas plataformas.

O acervo analisado demostrou grande afinidade entre as redes de prevenção aos desafios e de prevenção ao suicídio. A morte pela prática de um desafio - por mais que se reconheça o caráter coletivo dessas brincadeiras e a quantidade de pessoas envolvidas, mesmo de forma digital - é, na grande maioria das vezes, considerada um ato suicida. Assim, em diversos eventos presenciais e publicações, o tema da prevenção ao suicídio era abordado por psicólogos e pedagogos com formação técnica sobre o tema.

Discussão

Após a pandemia de covid-19, a internet tornou-se uma ferramenta fundamental da gestão do cotidiano na contemporaneidade. A literatura que aborda o consumo feito por jovens e adolescentes nessa rede mundial aponta tensão entre um caráter positivo e um outro, negativo, que medeiam essas novas relações. Por um lado, um conjunto de autores (Arab; Diaz, 2015ARAB, E.; DÍAZ, A. Impacto de las redes sociales e internet en la adolescencia: Aspectos positivos y negativos. Revista Médica Clínica Las Condes, Amsterdam, v. 26, n. 1, p. 7-13, 2015. DOI: 10.1016/j.rmclc.2014.12.001
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; Simões, 2010SIMÕES, J. Oportunidades e riscos no uso da internet por crianças e jovens: algumas conclusões do projecto EU Kids online. Média & Jornalismo, Lisboa, v. 9, n. 1, p. 49-62, 2010.). chama atenção para as oportunidades que a internet pode trazer, tais como aprendizagem educativa e literacia digital, participação e empenhamento cívico, criatividade, autoexpressão e identidade e ligações sociais, socialização, entretenimento, desenvolvimento de habilidades e motivação para a aprendizagem. Por outro lado, são trazidos para o debate aspectos negativos associados, como os riscos de danos comerciais, assédios sexuais, violências e ataque à valores, além do distanciamento afetivo e da perda de capacidade auditiva.

No contexto em que a internet é caracterizada pela tensão “oportunidade versus risco”, o IDC surge como centro de uma rede produtora de conteúdo contra os danos que os desafios online podem trazer. As brincadeiras perigosas, especialmente os jogos de sufocação, existem há algumas décadas e sempre foram motivo de preocupação entre pais e educadores (Bada; Clayton, 2020BADA, M.; CLAYTON R. Online Suicide Games: A Form of Digital Self-harm or A Myth? In: ANNUAL REVIEW OF CYBERTHERAPY AND TELEMEDICINE, 17., 2019, San Diego. Proceedings CYPSY24. San Diego: Interactive Media Institute. p. 25-30. DOI: 10.48550/arXiv.2012.00530
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). Porém, com a criação do YouTube em 2005, foi possível que milhões de jovens assistissem a vídeos que propagavam e banalizavam esse tipo de comportamento (Miranda; Miranda, 2021MIRANDA, L. M. F.; MIRANDA, L. L. Risco-espetáculo: novas modalidades do risco na era digital. Revista de Psicologia, Fortaleza, v. 12, n. 1, p. 141-155, 2021.; Linkletter; Gordon; Dooley, 2010LINKLETTER, M.; GORDON, K.; DOOLEY, J. The Choking Game and YouTube: A Dangerous Combination. Clinical Pediatrics , Thousand Oaks, v. 49, n. 3, p. 274-279, 2010. DOI: 10.1177/0009922809339203
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). Logo, não é à toa que a atuação/ativismo do IDC emerge de uma situação de perda familiar e da ressignificação (Fassin; Rechtman, 2007FASSIN, D.; RECHTMAN, R. L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris: Flammarion, 2007.; Sarti, 2011SARTI, C. A vítima como figura contemporânea. Caderno CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 51-61, 2011. DOI: 10.1590/S0103-49792011000100004
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).

O IDC constitui uma organização não governamental (ONG) de pequeno porte, com limitações orçamentárias e limitado grupo de profissionais contratados, o que restringe em certa medida a abrangência de suas atividades. Todavia, se distancia do modelo voluntarista e religioso que predomina em grande parte das organizações do terceiro setor (Cazzolato, 2009CAZZOLATO, N. K. As dificuldades de gestão das Organizações Não-Governamentais. ReFAE, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 66-81. 2009. DOI: 10.15603/2176-9583/refae.v1n1p66-81
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): suas ações são embasadas em alguns dos saberes científicos hegemônicos da gestão das infâncias contemporâneas, a psicologia e a pedagogia.

O material produzido pelo IDC apresenta um baixo engajamento em comparação aos desafios online, mas conta com uma grande variedade de atores que compartilham, curtem e comentam o conteúdo. De acordo com Granovetter (1973GRANOVETTER, M. S. The strength of weak ties. American Journal of Sociology, v. 78, Chicago, n. 6, p. 1930-1938, 1973.), os chamados laços fracos são fundamentais para a disseminação da inovação, por serem redes constituídas de indivíduos com experiências e formações diversas. Eles são importantes porque nos conectam a vários outros grupos, rompendo a configuração de “ilhas isoladas”, dos clusters, e assumindo a configuração de rede social. Observa-se, portanto, que o IDC tem um potencial espaço de expansão, que se cria a partir de esforços de maior conectividade com os parceiros de seus parceiros, adensando sua própria rede (Recuero, 2020RECUERO, R. Redes sociais na internet. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2020.).

Por tratar-se de um campo em construção e sem referência precedente de atuação, a prevenção às brincadeiras perigosas realizada nos ambientes digitais ainda traz uma forte influência dos espaços presenciais. Ao longo da pesquisa, observamos que uma das soluções encontradas para evitar os perigos da internet foi desenvolver atividades presenciais que atraíssem a atenção do público mais suscetível ao risco. O acervo nos mostrou que a escola é um dos principais espaços explorados por essa forma de prevenção. A tentativa é de tirar a criança da frente do computador e convidá-la para a sociabilidade presencial.

A forte ligação do conteúdo de prevenção com a comunidade escolar coloca um paradoxo bastante discutido com a chegada da Web 2.0. Ao insistir na divisão online versus off-line como se o espaço off-line remetesse diretamente à escola e à segurança garantida por especialistas (professores, pedagogos e psicólogos), enquanto a internet seria o espaço inseguro com inúmeros danos potenciais, esse conteúdo de prevenção encontra alguns limites na forma de comunicação. Como já afirmado anteriormente (Deslandes et al. 2021DESLANDES, S. F. et al. Online challenges among children and adolescents: Self-inflicted harm and social media strategies. Salud Colectiva, Lanús, v. 16, p. e3264, 2020. DOI: 10.18294/sc.2020.3264
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), a tecnologia foi definitivamente incorporada e corporificada em nossas vidas cotidianas. Como sintetiza Hine (2015HINE, C. Ethnography for the internet: embedded, embodied and everyday. London: Routledge, 2015. DOI: 10.4324/9781003085348
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, p. 15), ela é “embedded, embodied, and everyday”, ou seja, incorporado, corporificado e cotidiano. Qualquer binarismo entre real/virtual, digital/analógico perde seu sentido a partir do momento em que os smartphones, tablets e relógios incorporaram os aplicativos, algoritmos digitais que presentificam as diferentes plataformas nos dispositivos móveis. Assim, a ideia de oferecer atividades analógicas em substituição à internet pode hoje ser ineficaz dada a imprecisão das fronteiras entre o online e o off-line. Atualmente não é mais possível sair da internet, ainda que isso envolva riscos. É preciso levar em conta que a própria cultura lúdica migrou para a “digitalidade” (Fortuna, 2014FORTUNA, T. R. Cultura lúdica e comportamento infantil na era digital. Jornal da Universidade - UFRGS, Porto Alegre, ano XII, n. 39, p. 20-23, 2014.) e que lá jovens encontram importante espaço de experimentação corporal e identitária (Fassin; Rechtman, 2007FASSIN, D.; RECHTMAN, R. L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris: Flammarion, 2007.).

Desse modo, os desafios online tornam-se experiências digitais de marcação identitária por explorarem uma das principais características da sociabilidade digital, a hiperexposição. Na pretensão de ser amado, apreciado e aplaudido, os indivíduos estariam submetidos ao que Sibilia (2008SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2008.) chamou de “tiranias da visibilidade”, tendo que estilizar e cultivar suas imagens aos moldes de personagens da mídia audiovisual. Observa-se que a sociabilidade mediada pelo mundo digital depende da forma que o “eu” irá se apresentar aos “outros”, os quais se presentificam de diversas maneiras no discurso construído por esse “eu” digital.

A sociabilidade digital evoca uma forma bastante particular de corporalidade, que é constantemente construída e mediada pelo mundo online. Quanto mais perigoso e mais danoso ao corpo for o desafio, maior é a chance desse material se tornar mais popular (Deslandes et al., 2020DESLANDES, S. F. et al. Online challenges among children and adolescents: Self-inflicted harm and social media strategies. Salud Colectiva, Lanús, v. 16, p. e3264, 2020. DOI: 10.18294/sc.2020.3264
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).

Um outro ponto explorado por essa forma de prevenção e amplamente discutido na literatura sobre os desafios online nos remete ao conceito de technopanic, uma fobia da tecnologia. Esse sentimento pode ser observado quando há uma certa amplificação dos riscos, reais ou não, que a tecnologia pode trazer (Bada; Clayton, 2020BADA, M.; CLAYTON R. Online Suicide Games: A Form of Digital Self-harm or A Myth? In: ANNUAL REVIEW OF CYBERTHERAPY AND TELEMEDICINE, 17., 2019, San Diego. Proceedings CYPSY24. San Diego: Interactive Media Institute. p. 25-30. DOI: 10.48550/arXiv.2012.00530
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).

Ao propor o controle parental como uma medida de prevenção aos riscos dos desafios online, observamos um outro paradoxo. Mesmo reconhecendo que a internet é um meio da sociabilidade contemporânea e levando em consideração que pais e filhos possuem letramentos digitais diferentes, na prática, uma ação autodidata dos pais não é solução para o impasse.

Ao entender letramento digital como o conhecimento necessário para saber manusear os recursos tecnológicos para a leitura e escrita no meio digital e participar das práticas sociais dessa cultura (Ribeiro; Freitas, 2011RIBEIRO, M. H.; FREITAS, M. T. A. Letramento digital: um desafio contemporâneo para a educação. Educação & Tecnologia, Belo Horizonte, v. 16, n. 3, p. 59-73, 2011.), pode-se afirmar que crianças e adolescentes são “nativos digitais”, nasceram e foram socializados na cultura digital. Já seus pais foram alfabetizados digitalmente após passar boa parte da vida em um mundo com dispositivos e lógicas analógicos.

Nesse sentido, coloca-se em questão a efetividade do controle parental no universo digital, tendo em vista que aquele que é controlado entende muito mais do ambiente do que o controlador. O paradoxo entre letramentos digitais de pais e filhos pode levar a uma falsa sensação de segurança e de controle das atitudes de crianças e adolescentes.

Deve-se ressaltar ainda que a atuação analógica é muito importante na prevenção dos possíveis danos que os desafios online podem trazer, desde que seja complementar à atuação digital. Isso se dá primeiro porque há inúmeros recursos a explorar, segundo porque é no espaço digital que as crianças se expõem aos riscos; logo, é ali que devem se encontrar os recursos de prevenção. E, para que essa complementariedade seja eficaz, é preciso que o conteúdo digital seja atrativo para o seu público-alvo, com temporalidade e linguagem compatíveis à experiência digital que possuem. É necessária uma educação digital que discuta o tempo de exposição, circulação nos sites, adesão às brincadeiras e que seja constantemente suportada pelo diálogo parental - considerando que sempre haverá transgressões.

Dessa maneira, parece importante apostar num letramento digital que dê ênfase à criatividade e à emancipação dos indivíduos (Maidel; Vieira, 2015MAIDEL, S.; VIEIRA, M. L. Mediação parental do uso da internet pelas crianças. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 21, n. 2, p. 293-313, 2015. DOI: 10.5752/P.1678-9523.2015V21N2P292
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; Ribeiro; Freitas, 2011RIBEIRO, M. H.; FREITAS, M. T. A. Letramento digital: um desafio contemporâneo para a educação. Educação & Tecnologia, Belo Horizonte, v. 16, n. 3, p. 59-73, 2011.) como forma de prevenção a práticas na internet que causem danos à saúde.

Conclui-se que a análise da experiência do IDC permite ampliar a reflexão para outras instituições que se dedicam à prevenção de violências autoinfligidas e as demais produzidas ou disseminadas em ambientes digitais. Boa parte das instituições de prevenção que concentram seu nicho de atuação nos espaços institucionais (escola, serviços de saúde etc.) se veem desafiadas a atuar na internet e dominar sua estética, linguagem, cultura de uso e lógicas interacionais. Além disso, elas contam ainda com desigual letramento digital, inclusive de seus próprios profissionais e de seus interlocutores (pais, educadores, profissionais de saúde). Nesse sentido, mostra-se estratégico investir em parcerias com atores que tenham tais competências e possam auxiliar na definição de ações adequadas à expressão digital, bem como aproveitar seus recursos. Por fim, deve-se notar que, além dos profissionais da área de tecnologias da informação e de comunicação, as próprias crianças e adolescentes podem ser parceiros extremamente hábeis nesse sentido.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2022
  • Aceito
    30 Mar 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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