Plataformas digitais de entrega de alimentação: condições de trabalho e riscos para a saúde

Pamela Tamara Gomes de Oliveira José Roque Junges Sobre os autores

Resumo

O isolamento social provocado pela pandemia do covid-19 acelerou um processo que já estava em curso: a plataformização da economia. Uma das aplicações presentes nesse processo foi a distribuição de comida por motoboys, ocasionando uma transformação radical das condições de trabalho, que necessita ser investigada. O objetivo desta pesquisa foi discutir essas condições e os riscos que representam para a saúde do trabalhador. 14 entregadores de alimentos foram entrevistados, suas falas foram gravadas e transcritas para análise temática, obtendo dois principais resultados: a precarização das condições de trabalho e a vulneração da saúde. A plataforma promete independência e autonomia quanto ao trabalho, mas, ao mesmo tempo, cria insegurança, não garantindo nenhuma proteção trabalhista nem subsistência financeira estável, por não assegurar os meios para o trabalho. Por outro lado, essa precarização do trabalho produz riscos para a saúde. Essa situação demanda uma discussão sobre o amparo legal dos direitos e a proteção da saúde desses trabalhadores.

Palavras-chave:
Plataforma Digital; Condições de Trabalho; Direitos Trabalhistas; Saúde do Trabalhador

Introdução

O distanciamento social provocado pela pandemia do covid-19 acelerou um processo já em curso: a plataformização da economia. Muitas atividades continuaram a funcionar remotamente, através de plataformas digitais, provocando mudanças radicais nas condições de trabalho (Englert; Woodcock; Cant, 2020ENGLERT, S.; WOODCOCK, J.; CANT, C. Digital Workerism: technology, platforms and the circulation of workers Struggles. Communication, Capitalism & Critique, Paderborn, v. 18, n. 1, p. 132-145, 2020. DOI: 10.31269/triplec.v18i1.1133
https://doi.org/10.31269/triplec.v18i1.1...
; Grohmann, 2020GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: entre dataficação, financeirização e racionalidade neoliberal. Revista Eptic, v. 22, n. 1, p. 106-122, 2020.).

Dados apontam para esse crescimento em vários países e continentes. Em 2018, 36% de todos os trabalhadores dos Estados Unidos tinham trabalhos alternativos (Freni-Sterrantino; Salerno, 2021FRENI-STERRANTINO, A.; SALERNO, V. A Plea for the Need to investigate the Health Effects of Gig-Economy. Frontiers in Public Health, Bethesda, v. 9, n. 638767, 2021. DOI: 10.3389/fpubh.2021.638767
https://doi.org/10.3389/fpubh.2021.63876...
), na França representavam 1% do emprego total (Apouey et al., 2020APOUEY, B. et al. Gig Workers during the COVID-19 Crisis in France: Financial Precarity and Mental Well-Being. Journal of Urban Health, Berlin, v. 97, p. 776-795, 2020. DOI: 10.1007/s11524-020-00480-4
https://doi.org/10.1007/s11524-020-00480...
), 4,4% da população da Grã-Bretanha já prestou serviços às plataformas (Christie; Ward, 2019CHRISTIE, N.; WARD, H. The health and safety risks for people who drive for work in the gig economy. Journal of Transport & Health, Amsterdam, v. 13 p. 115-127, 2019. DOI: 10.1016/j.jth.2019.02.007
https://doi.org/10.1016/j.jth.2019.02.00...
), enquanto na Europa chegava ao percentual de 11% (Freni-Sterrantino; Salerno, 2021FRENI-STERRANTINO, A.; SALERNO, V. A Plea for the Need to investigate the Health Effects of Gig-Economy. Frontiers in Public Health, Bethesda, v. 9, n. 638767, 2021. DOI: 10.3389/fpubh.2021.638767
https://doi.org/10.3389/fpubh.2021.63876...
). Em 2019, o número de trabalhadores nas plataformas atingiu 93 milhões no mundo todo (OIT, 2019OIT - ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalhar num planeta mais quente: o impacto do stress térmico na produtividade do trabalho e no trabalho digno. Genebra, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_771469.pdf >. Acesso em: 1 maio 2021.
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
). Na América Latina, em 2020, 27,7% apareciam como trabalhadores independentes e sem qualificação, categoria em que estão incluídos os empregos plataformizados (CEPAL, 2020CEPAL - Comisión Económica para América Latina y el Caribe. Anuario Estadistico de América Latina y el Caribe, 2020. Santiago, 2021.).

Um dos setores atingidos pela plataformização foi o dos restaurantes, que tiveram que se adaptar ao contexto do distanciamento social provocado pela pandemia. Isso significou a informatização do pedido através de aplicativo de celular e a contratação de trabalhadores freelancers, por plataformas, para levar esse alimento até a casa dos clientes. O aplicativo digital mais usado para essa finalidade, no Brasil, é o Ifood (Canaltech, 2021).

Aplicativos de entregas, no Brasil, concentravam cerca de 172 mil entregadores até 2019 (Lara; Braga; Ribeiro, 2020LARA, B.; BRAGA, N.; RIBEIRO, P. V. Parceria de risco, The Intercept, [s.l.], 2020. Disponível em: <Disponível em: https://theintercept.com/2020/03/23/coronavirus-aplicativos-entrega-comida-ifood-uber-loggi/ >. Acesso em: 1 maio 2021.
https://theintercept.com/2020/03/23/coro...
). No primeiro semestre de 2020, já eram 645 mil (Magalhães, 2020MAGALHÃES, A. L. 10 aplicativos para pedir comida pelo celular. Canaltech, São Paulo, 7 jan. 2021. Disponível em: Disponível em: https://canaltech.com.br/apps/aplicativos-pedir-comida-celular . Acesso em: 1 nov. 2021.
https://canaltech.com.br/apps/aplicativo...
). Entregadores relatam que, antes da pandemia, o quilômetro rodado custava um preço 600% maior do que atualmente, em contrapartida, a carga horária trabalhada chegou a dobrar (A greve…, 2020A GREVE dos entregadores e uma nova forma de organização na luta dos trabalhadores. Entrevista especial com Sidnei Machado. Entrevistado: Sidnei Machado. Entrevistador: João Vitor Santos. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, 8 jul. 2020. Notícia. Disponível em: <Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/600717-a-greve-dos-entregadores-e-uma-nova-forma-de-organizacao-na-luta-dos-trabalhadores-entrevista-especial-com-sidnei-machado >. Acesso em: 1 jul. 2020.
http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/...
).

Nos países ricos, o crescimento da Gig Economy foi interpretado como uma ameaça às relações formais de emprego, devido à fragmentação e precarização do trabalho (Wood et al., 2019WOOD, A. et al. Good gig, bad gig: autonomy and algorithmic control in the global gig economy. Work, Employment and Society, Durham, v. 33, n. 1, p. 56-75, 2019. DOI: 10.1177/0950017018785616
https://doi.org/10.1177/0950017018785616...
). No Brasil, o emprego informal e a sua consequente fragmentação sempre foram uma constante (Abílio; Grohmann; Weiss, 2021ABÍLIO, L.; GROHMANN, R.; WEISS, H. C. Struggles of delivery workers in Brazil: working conditions and collective organization during the pandemic. Journal of Labor and Society, New York, v. 24, n. 4, p. 598-616, 2021. DOI: 10.1163/24714607-bja10012
https://doi.org/10.1163/24714607-bja1001...
). Trata-se de ver como a plataformização das relações de trabalho trouxe novos elementos para essa precarização (Bajwa et al., 2018BAJWA, U. et al. The health of workers in the global gig economy. Globalization and Health, Berlin, v. 14, n. 124, 2018. DOI: 10.1186/s12992-018-0444-8
https://doi.org/10.1186/s12992-018-0444-...
).

A complexidade das novas relações laborais mediadas pelas plataformas digitais permite levantar diversas questões, entre elas: quais são as condições do trabalho dos entregadores e como estas condições significam um risco para a saúde do entregador?

O objetivo da pesquisa foi analisar essas duas questões em relação aos entregadores de alimentos.

Metodologia

A pesquisa tem caráter descritivo exploratório, com abordagem qualitativa. Os dados foram produzidos a partir de entrevistas semiestruturadas com entregadores do aplicativo Ifood. A escolha dos entrevistados ocorreu pelo método bola de neve (Flick, 2009FLICK, U. Amostragem, seleção e acesso. In: FLICK, U. Desenho da pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009, p. 43-55.). Os participantes foram recrutados na cidade de São Leopoldo, localizada na região metropolitana de Porto Alegre, com 238.648 habitantes, salário médio mensal de três salários mínimos, assim como 66.699 pessoas ocupadas com emprego formal (28,2%) (IBGE, 2020aIBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. São Leopoldo: população no último censo [ 2010]. Rio de Janeiro, 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/sao-leopoldo/panorama >. Acesso em: 1 maio 2021.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/sa...
).

Os participantes foram selecionados da seguinte forma: o primeiro foi conhecido a partir de um pedido de pizza por aplicativo, esse, por sua vez, indicou outro entregador e assim por diante, até a saturação dos dados. A entrevista semiestruturada teve como roteiro: Qual atividade exercia antes de baixar o aplicativo? Por que entrou neste tipo de atividade? Como é a rotina de trabalho? Quais são as vantagens e desvantagens e os riscos e as inseguranças desse tipo de atividade?

As entrevistas não foram feitas durante a entrega, mas em um ambiente controlado, com uso de máscara, respeitando o distanciamento recomendado pela OMS e com verificação da temperatura, medidas básicas de segurança durante a pandemia. Eles foram entrevistados no segundo semestre de 2020, depois da assinatura do TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), seguindo o roteiro. A pesquisa foi aprovada pelo CEP (Comitê de ética e pesquisa) da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) sob o CAAE 91002918.5.000.5344 e com o Número do Parecer 2.724.272.

O Ifood é uma marca brasileira criada em maio de 2011, na cidade de São Paulo, presente em mais de 200 cidades do Brasil. A plataforma tem mais de 6,2 milhões de pedidos mensais, assim como 5,1 milhões de usuários ativos. Também é possível acessá-la no México, na Colômbia e na Argentina (Ifood…, 2019IFOOD: a maior plataforma de delivery do Brasil. Cotidianum, [s.l.], 2019. Disponível em: <Disponível em: https://cotidianum.com.br/ifood-a-maior-plataforma-de-delivery-do-brasil.html >. Acesso em: 1 abr. 2021.
https://cotidianum.com.br/ifood-a-maior-...
).

Para ingressar como entregador no aplicativo, exige-se: (1) motocicleta (carteira de habilitação e os documentos do veículo) ou bicicleta; (2) smartphone com sistema operacional Android; (3) um pacote de internet móvel e GPS; e (4) concordar com os termos e condições de uso, nos quais está explicitado que a empresa não se responsabiliza por nenhum acidente ou contratempo durante a entrega e não fornece nenhum material, como a bag (mochila térmica), jaqueta reflexiva e/ou itens de segurança (Ifood, 2020IFOOD. Termos e condições de uso ifood para entregadores. São Paulo, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://entregador.ifood.com.br/wp-content/uploads/2023/02/Termo-de-uso.pdf >. Acesso em: 1 maio 2021.
https://entregador.ifood.com.br/wp-conte...
).

Foi utilizada análise temática para interpretar os dados, método utilizado para identificar e relatar seus padrões. A pesquisa possui, também, caráter realista, pois relata experiências e significados de seus participantes, dando voz a eles. Caracteriza-se, também, pelo construcionismo, por entender que essas experiências são operantes dentro da sociedade, construindo significados. Ela compreende diferentes etapas: Etapa 1: Familiarização com os dados; Etapa 2: Geração de códigos iniciais; Etapa 3: Sintetização de temas pelo agrupamento de temas potenciais; Etapa 4: Revisão de temas, relacionando-os com corpus de dados e gerando um mapa temático da análise; Etapa 5: Definição e nomeação de temas, refinando seus detalhes; e Etapa 6: Produção do relatório (Souza, 2019SOUZA, L. K. Pesquisa com análise qualitativa de dados: conhecendo a Análise Temática. Arquivos brasileiros de psicologia, Rio de Janeiro, v. 71, n. 2, p. 51-67, 2019. DOI: 10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.51-67
https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2...
).

Resultados e discussão

Foram entrevistadas 14 pessoas que trabalham para o aplicativo Ifood como entregadores, 13 eram homens (92%) e apenas uma mulher (8%). Segundo observação, oito eram negros - inclusive a mulher - e os outros seis eram brancos. A maioria eram jovens com idade entre 20 e 30 anos (63%), em segundo lugar vinha aqueles com idade entre 30 e 40 anos (21%), apenas um possuía mais de 50 anos (8%) e um era menor de idade (8%). Os entrevistados refletem evidências encontradas em outras pesquisas: predomínio de homens jovens entre 20 e 40 anos (Cepal, 2020bCEPAL - Comisión Económica para América Latina y el Caribe. Anuario Estadistico de América Latina y el Caribe, 2020. Santiago, 2021.; Christie; Ward, 2019CHRISTIE, N.; WARD, H. The health and safety risks for people who drive for work in the gig economy. Journal of Transport & Health, Amsterdam, v. 13 p. 115-127, 2019. DOI: 10.1016/j.jth.2019.02.007
https://doi.org/10.1016/j.jth.2019.02.00...
; Tran; Sokas, 2017TRAN, M.; SOKAS, R. The gig economy and contingent work: an occupational health assessment. Journal of Occupational Environment Medicine, Philadelphia, v. 59, n. 4, p. e63-e66, 2017. DOI: 10.1097/JOM.0000000000000977
https://doi.org/10.1097/JOM.000000000000...
). Todos dirigiam motocicletas, exceto o menor de idade, que fazia as entregas de bicicleta, quebrando as regras do aplicativo, que permite apenas maiores de idade. Suas falas serão citadas pela letra E seguida do número do entrevistado.

A partir das análises, chegou-se a dois resultados: precarização das condições de trabalho e vulneração da saúde.

Precarização das condições de trabalho

É possível identificar que a principal motivação para trabalharem com aplicativos é o desemprego. Essa constatação fica clara nas falas dos entregadores, entre elas: “começou a pandemia e fui demitido, foi a única forma que achei de ganhar dinheiro” (E13) e “por causa da pandemia deu uma baixada no rendimento do trabalho, foi a única opção que eu tive na verdade” (E5).

Essa “nova modalidade de emprego” atrai quem tem baixa ou nenhuma outra fonte de renda (Apouey et al., 2020APOUEY, B. et al. Gig Workers during the COVID-19 Crisis in France: Financial Precarity and Mental Well-Being. Journal of Urban Health, Berlin, v. 97, p. 776-795, 2020. DOI: 10.1007/s11524-020-00480-4
https://doi.org/10.1007/s11524-020-00480...
). A pandemia adensou o desemprego no Brasil, em 2019 a taxa de desemprego era de 11,9% (OIT, 2019OIT - ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalhar num planeta mais quente: o impacto do stress térmico na produtividade do trabalho e no trabalho digno. Genebra, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_771469.pdf >. Acesso em: 1 maio 2021.
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
), dado que no primeiro trimestre de 2021 chegou a 14,7% (IBGE, 2020bIBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desemprego. Rio de Janeiro, 2020b. Disponível em: <Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php >. Acesso em: 1 maio 2021.
https://www.ibge.gov.br/explica/desempre...
).

Essa precarização, possibilitada pela plataformização do trabalho e ocasionada pelo desemprego, permite uma análise na perspectiva racial, porque atinge especialmente jovens sobrantes do mercado de trabalho, principalmente negros, que vivem um processo de vulneração social acrescida pelo fator racial, como aparece na identificação dos próprios entrevistados - mais da metade são negros (Gouveia, 2019GOUVEIA, F. P. S. Faces da precarização do mundo do trabalho e a juventude sobrante. Estudos IAT, Salvador, v. 4, n. 1, p. 124-137, 2019.; Antunes, 2020ANTUNES, R. Qual é o futuro do trabalho na Era Digital? Laborare, Campinas, v. 3, n. 4, p. 6-14, 2020. DOI: 10.33637/2595-847x.2020-46
https://doi.org/10.33637/2595-847x.2020-...
).

Além da premência da necessidade ocasionada pelo desemprego, os entregadores reproduzem o discurso da autonomia promovido pela empresa como justificativa. Eles expressam a sensação de independência e neutralidade do aplicativo: “tu podes fazer teu próprio horário[…] estás livre[…] termina tua entrega e desliga e vai embora e loga a hora que quer trabalhar[...]” (E10); “Entrei no Ifood pra não ter um chefe mandando em mim, que fique pegando no pé toda hora[…]” (E11)

No entanto, por trás dessa aparente “autonomia”, existe uma estratégia de monitoramento, um aprofundamento do controle (Ivanova et al., 2018IVANOVA, M. et al. Foodora and Deliveroo: the app as a boss? Control and autonomy in app-based management - the case of food delivery riders. Working Paper Forschungs Förderung, Düsseldorf, n. 107, 2018.) e uma precarização do trabalho pela falta de benefícios (Muntaner, 2018MUNTANER, C. Digital Platforms, Gig Economy, Precarious Employment, and the Invisible Hand of Social Class. International Journal of Health Services, Toronto, v. 48, n. 4, p. 597-600, 2018. DOI: 10.1177/0020731418801413
https://doi.org/10.1177/0020731418801413...
).

O conceito de “independência e flexibilidade” prometido pela plataforma não se cumpre, porque as tarefas são definidas pelo algoritmo, constantemente reprogramado visando o alcance das metas da empresa. Um exemplo são as promoções, pelas quais os entregadores ganham gratificações por alcançar metas estabelecidas pelo algoritmo, em alguns casos, isso gera exclusão quando o objetivo não é alcançado (Kalil, 2019KALIL, R. B. Capitalismo de plataforma e Direito do trabalho: Crowdwork e trabalho sob demanda por meio de aplicativos. Tese (Doutorado em Direito do Trabalho e da Seguridade Social) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.). Além disso, os termos e condições de uso do aplicativo podem ser modificados a qualquer momento pela plataforma, sem aviso prévio (Kaine; Josserand, 2019KAINE, S.; JOSSERAND, E. The organization and experience of work in the gig economy. Journal of Industrial Relations. Austrália, v. 61, n. 4, p. 479-501, 2019. DOI: 10.1177/0022185619865480
https://doi.org/10.1177/0022185619865480...
).

A possibilidade da flexibilidade de horário aumenta a motivação e a performance, porque o gerenciamento do trabalho é passado ao entregador. Contudo, esse gerenciamento autônomo é monitorado por algoritmos que caracterizam a gestão das plataformas digitais, sendo iniciados logo após o cadastro do trabalhador na plataforma, que precisa ser aprovado antes do início das entregas: “estragou meu outro telefone e tive que baixar de novo, mas está demorando para aprovar o cadastro, já faz uma semana” (E1); “o meu cadastro foi logo, o de outros foi difícil, o meu não deu uma semana” (E8).

O algoritmo é uma unidade básica de computação, utilizada para resolução de problemas, ou seja, é um conjunto automático de instruções que vão sendo adaptadas e aperfeiçoadas. As plataformas gerenciam seus trabalhadores usando algoritmos que envolvem um conjunto de critérios pré-definidos para processar instruções, a fim de encontrar um caminho de solução e de comando, porém, tais informações tornam-se uma “caixa-preta”, pois seu conteúdo não é divulgado (Grohmann, 2020GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: entre dataficação, financeirização e racionalidade neoliberal. Revista Eptic, v. 22, n. 1, p. 106-122, 2020.).

Um aspecto importante do processo de precarização são as duas categorias de trabalhadores: o chamado trabalhador “nuvem”, que está livre para baixar o aplicativo, ficando disponível para entregas no horário que desejar; e uma categoria fixa, chamada de “operador logístico” (OL). Segundo os entregadores, a plataforma precisa garantir entregas, quando for solicitada, não importando a distância, localização ou quantidade a ser entregue, pois o aplicativo vende a ideia de que é onipresente, exigindo a existência de uma categoria com escalas fixas de horários, turnos e dias. “Existem duas categorias de aplicativo, existe OL e existe nuvem, nuvem é autônomo, OL tem compromisso com Ifood, esse sim tem que cumprir horário e jornada de trabalho com dias trabalhados” (E6)

Entre os entrevistados, oito eram “nuvem” (57%) e seis eram “OL” (43%).

Para os entregadores, a escala de trabalho dos “OL” é feita aleatoriamente. Como os motoristas têm “obrigação” com o aplicativo, são cobrados no horário de seus turnos, se o entregador está na escala do almoço (das 11 horas às 15 horas), às 11 horas da manhã fica disponível automaticamente na plataforma. Caso o entregador não esteja pronto, pode acionar 20 minutos de intervalo - tempo total concedido por turno pela plataforma. Dependendo da escala, o aplicativo faz o login do trabalhador automaticamente no início do turno e o desconecta no final, impedindo-o de ficar off-line durante o turno. Caso não esteja acessível durante o horário, é considerado “uma falta”. O mesmo acontece se o telefone estiver desligado no início do turno. “...a hora que eles precisarem, tem que estar disponível...” (E4),...obrigado a ficar disponível naquele turno...” (E5)

A maioria dos OL entrevistados (70%) faz três turnos por dia: almoço, café da tarde e jantar, seis dias por semana. Os três turnos somam 11 horas de trabalho ao dia, das 11 às 23 horas, descontando 1 hora de intervalo (20 minutos de cada turno), totalizando uma jornada de trabalho de 66 horas semanais. O regime CLT (Consolidação das Leis de Trabalho), no entanto, determina 44 horas semanais como máximo para ficar à disposição da empresa.

Os entregadores ficam sabendo da sua escala uma vez por mês, através da plataforma, o contato é feito quando são anunciados os horários de trabalho do próximo mês.

Diante da pergunta da entrevistadora: “Então tu tens chefe?”, o Entrevistado 3 respondeu: “Sim, mas eu não vejo ele, mora em Porto Alegre. Ele é o responsável por fazer as escalas” (E3)

Mesmo que não percebido pelos entregadores, a escala “aleatória” é definida pela gestão algorítmica que rastreia e avalia constantemente o comportamento e o desempenho de trabalhadores, com decisões automáticas a que eles não têm acesso.

Ao contrário do “OL”, o “nuvem” não tem horário previamente determinado para ficar disponível. Apesar de poderem entrar a qualquer horário, é melhor que estejam disponíveis no horário de funcionamento dos restaurantes, caso contrário pode não haver nenhuma entrega para fazerem. Para os “nuvem”, a rotina de trabalho depende de a plataforma ser a única fonte de renda ou uma fonte extra, quem depende exclusivamente dela passa mais tempo disponível.

Caso sejam multiplicadas as 12 horas diárias, sem os intervalos nos turnos (“nuvem” não tem essa opção), pelos seis dias de semana, totalizam-se 72 horas de jornada de trabalho semanal. Essa é a modalidade mais explorada da plataforma. Foram encontrados resultados semelhantes com carga horária de até 78 horas semanais (Wood et al., 2019WOOD, A. et al. Good gig, bad gig: autonomy and algorithmic control in the global gig economy. Work, Employment and Society, Durham, v. 33, n. 1, p. 56-75, 2019. DOI: 10.1177/0950017018785616
https://doi.org/10.1177/0950017018785616...
). “A gente trabalha das onze às onze, três turnos direto, almoço, café e janta…” (E12);minha rotina é logar as dez e meia da manhã e ficar até as onze e meia (da noite) …” (E7).

Diante da pergunta: “Por que a plataforma prefere entregadores OL, aos quais são destinadas mais corridas em vez dos entregadores “nuvem”?”, um deles respondeu:

O Ifood vai chamar primeiro quem tem escore alto, ele (“nuvem”) vai estar aqui, mas só vai chamar ele se não tiver ninguém aqui com escore melhor que o dele, mesmo que eu vou lá entregue e esteja voltando para cá, ao invés de chamar ele (“nuvem”) que já está parado, vão chamar eu porque meu escore é maior… (E4).

Score é uma classificação de pontuação que os entregadores recebiam, com avaliações feitas pelos clientes. Anteriormente era pedido aos clientes que atribuíssem de uma a cinco estrelas, em que uma representava uma entrega ruim e cinco, ótima. Para aumentar o score, é preciso ter boa conduta com o cliente. Além disso, os motoristas são constantemente sujeitos pela plataforma a bonificações de diversas naturezas, como indicar amigo para ser entregador ou fazer determinado número de corridas ao dia, aumentando, assim, as chances de ser avaliado e ter o score aumentado.

Ademais, a plataforma pune os entregadores com bloqueios, da noite para o dia ficam impossibilitados de trabalhar sem saber o porquê:

Fui bloqueado 48 horas […] (E7)

Fiz tudo direitinho, mas me bloquearam no final do expediente por 48 horas, alegando que um cliente não recebeu um pedido (E6)

Se o cliente diz que não entregaste um pedido ou dono do restaurante diz que foste mal-educado, eles não dizem muito... falam em extravio de pedido, ficas bloqueado (E9)

Esses bloqueios acometeram três dos entrevistados, no entanto, foram relatados também casos que aconteceram com seus colegas. Esse é um dos maiores medos dos entregadores, por não saberem exatamente qual a causa dos bloqueios. O receio é agravado por não possuírem “carteira assinada”, sem aviso prévio, podem ser banidos da plataforma. “Você nunca sabe o que pode acontecer com você, se um cliente falar que não recebeu, mesmo que você entregou...” (E7); “nós não temos direito de defesa é o que o cliente disse” (E6).

Não ter direito à voz foi o motivo dos entrevistados não participarem das manifestações ocorridas em 2020, por medo de represálias ou por não poderem perder o pagamento advindo de um dia de trabalho. “A corda rebenta sempre no lado mais fraco, não adianta, os motoboys fazem a greve, mas não tem ninguém para brigar por nós, não adianta vai ser sempre a mesma coisa” (E13).

A maioria dos participantes não citou nenhuma melhoria em relação às condições de trabalho após a greve. Os que citaram mudanças disseram que houve apenas a implementação de reconhecimento facial antes de iniciar o turno de trabalho.

O capital gasto pelos entregadores para poder trabalhar não tem comparação com o passado, até mesmo criando dívidas para alguns: “tive que fazer investimento no telefone também para poder trabalhar” (E11)

Os itens utilizados para fazer as entregas são: moto (ou bicicleta), celular e pacote de internet. Alguns adicionavam o capacete, o carregador e a jaqueta refletiva. Todos os entregadores têm plena consciência que as boas condições de trabalho dependem deles mesmo - como o bom funcionamento da moto, a bateria no telefone e o pacote de internet. A mochila com a logo da plataforma para carregar o alimento não é fornecida logo que o motorista inicia sua atividade no aplicativo, apenas pode ser trocada, caso a atual esteja deformada. O motorista arca com todos os custos do procedimento de entrega. “A gente tem que arcar com os gastos, manutenção, gasolina, pneu, alimentação” (E12); “Tudo sai do nosso bolso...” (E8).

Os trabalhadores conseguem captar a exploração que sofrem ao se referirem às desvantagens desse tipo de trabalho: “A desvantagem é que tu deixas de viver” (E12); “...eu não tenho noção de tempo, para mim todo dia é final de semana, parece o mesmo dia, trabalho quase todo dia” (E8).

Todos esses aspectos da relação laboral mediada pelas plataformas digitais - contexto de desemprego, a ilusão da autonomia, a necessidade de arcar com os custos dos meios para a realização do trabalho, a definição dos escores de avaliação por critérios algoritmizados e, por fim, a criação de duas categorias de trabalhadores - apontam para o processo de precarização das condições de trabalho.

O trabalho de plataforma remove a relação social e humana do processo de produção: o contato com o líder. Porém, mesmo que isso anule os efeitos negativos de uma liderança abusiva, também anula os efeitos positivos de um líder fornecedor de apoio, orientação e construtor de um sentido sobre a significância do trabalho (Keith; Harms; Long, 2020KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being. London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018...
).

Não ter a garantia de uma renda fixa faz desaparecer a clássica relação entre o pagamento e as horas trabalhadas, porque, no caso do trabalho plataformizado, para ganhar uma renda condizente com seu custo de vida, o entregador se submete a longas jornadas de trabalho (Wood et al., 2019WOOD, A. et al. Good gig, bad gig: autonomy and algorithmic control in the global gig economy. Work, Employment and Society, Durham, v. 33, n. 1, p. 56-75, 2019. DOI: 10.1177/0950017018785616
https://doi.org/10.1177/0950017018785616...
). No Brasil, cerca de 3,8 milhões de pessoas usam os aplicativos como principal fonte de renda (Brasil, 2020BRASIL. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD). Brasília, DF, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?edicao=32275&t=resultados . Acesso em: 1 maio 2021.
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
). Porém, quando os entregadores possuem outra fonte de renda, a narrativa é diferente, comparada a daqueles que se sentiram pressionados a trabalhar na plataforma por falta de emprego ou necessidade econômica, pois trabalhando com carga horária menor, tendem a ter resultados mais positivos, já que decidiram entrar voluntariamente (Keith; Harms; Long, 2020KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being. London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018...
).

Além de não serem limitadas pelo tempo de horas de trabalho, essas relações sofrem a gestão algorítmica que controla o comportamento dos entregadores, permitindo automatização das decisões que aparentam neutralidade e objetividade, mas são atravessadas por gamificação criptografada pelos algoritmos (Grohmann, 2020GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: entre dataficação, financeirização e racionalidade neoliberal. Revista Eptic, v. 22, n. 1, p. 106-122, 2020.).

Na plataforma, os entregadores estão sujeitos aos preconceitos de raça, gênero e religião por parte dos clientes (Bajwa et al., 2018BAJWA, U. et al. The health of workers in the global gig economy. Globalization and Health, Berlin, v. 14, n. 124, 2018. DOI: 10.1186/s12992-018-0444-8
https://doi.org/10.1186/s12992-018-0444-...
), porque a satisfação do cliente rege a avaliação online do entregador, portanto aqueles com reputação baixa recebem menor renda (Wood et al., 2019WOOD, A. et al. Good gig, bad gig: autonomy and algorithmic control in the global gig economy. Work, Employment and Society, Durham, v. 33, n. 1, p. 56-75, 2019. DOI: 10.1177/0950017018785616
https://doi.org/10.1177/0950017018785616...
). É uma busca incessante por novas entregas e críticas positivas (Keith; Harms; Long, 2020KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being. London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018...
), implicando falta de autonomia do entregador, combinada com níveis elevados de intensidade de trabalho (Wood et al, 2019WOOD, A. et al. Good gig, bad gig: autonomy and algorithmic control in the global gig economy. Work, Employment and Society, Durham, v. 33, n. 1, p. 56-75, 2019. DOI: 10.1177/0950017018785616
https://doi.org/10.1177/0950017018785616...
). A classificação dos entregadores por escores determina a precarização, porque eles não têm nenhum controle dos critérios de avaliação, nem como acessá-los.

A distinção entre entregadores de escore alto e de escore baixo provoca uma separação entre eles, colocando-os em competição direta uns com os outros, ao invés de se tratarem como colegas de trabalho (Tran; Sokas, 2017TRAN, M.; SOKAS, R. The gig economy and contingent work: an occupational health assessment. Journal of Occupational Environment Medicine, Philadelphia, v. 59, n. 4, p. e63-e66, 2017. DOI: 10.1097/JOM.0000000000000977
https://doi.org/10.1097/JOM.000000000000...
), passam a se ver como rivais e ameaças em potencial (Keith; Harms; Long, 2020KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being. London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018...
). Trata-se de uma desmobilização da força de trabalho: tarefas unitárias pequenas e mal remuneradas, ofertadas de forma competitiva a trabalhadores fragmentados, anunciadas como fornecedoras de flexibilidade e liberdade (Kaine; Josserand, 2019KAINE, S.; JOSSERAND, E. The organization and experience of work in the gig economy. Journal of Industrial Relations. Austrália, v. 61, n. 4, p. 479-501, 2019. DOI: 10.1177/0022185619865480
https://doi.org/10.1177/0022185619865480...
).

Entretanto, o núcleo da precarização é que os entregadores, além da mão de obra, fornecem também as ferramentas ou equipamentos para trabalhar (Kaine; Josserand, 2019KAINE, S.; JOSSERAND, E. The organization and experience of work in the gig economy. Journal of Industrial Relations. Austrália, v. 61, n. 4, p. 479-501, 2019. DOI: 10.1177/0022185619865480
https://doi.org/10.1177/0022185619865480...
). Além disso, a plataforma não concede nenhuma proteção trabalhista, como aposentadoria e salário mínimo. O risco da operação, inclusive o econômico, é transferido para o entregador (Bajwa et al., 2018BAJWA, U. et al. The health of workers in the global gig economy. Globalization and Health, Berlin, v. 14, n. 124, 2018. DOI: 10.1186/s12992-018-0444-8
https://doi.org/10.1186/s12992-018-0444-...
; Keith; Harms; Long, 2020KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being. London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018...
).

A insegurança econômica é vivenciada diariamente, pois não podem prever o faturamento do dia, e acrescida aos riscos econômicos repassados aos entregadores, numa situação potencialmente precária para eles (Keith; Harms; Long, 2020KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being. London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018...
). Sem garantias quanto à remuneração e horas de trabalho, dependentes da gestão algorítmica, cujos critérios de avaliação não são claros, origina-se um aprofundamento dos mecanismos de exploração do trabalho, devido a sua desvalorização, expressa pelo aumento das longas jornadas de trabalho (Abílio; Grohmann; Weiss, 2021ABÍLIO, L.; GROHMANN, R.; WEISS, H. C. Struggles of delivery workers in Brazil: working conditions and collective organization during the pandemic. Journal of Labor and Society, New York, v. 24, n. 4, p. 598-616, 2021. DOI: 10.1163/24714607-bja10012
https://doi.org/10.1163/24714607-bja1001...
).

A vulnerabilidade das condições de trabalho, provocada pela situação de desemprego e possibilitada pela terceirização e intensificação dos processos de trabalho, ocasiona a flexibilização dos direitos laborais, produzindo insegurança e riscos para a saúde, graças à perda de identidade individual e coletiva dos trabalhadores, devido a fragilização das suas organizações reivindicativas (Abílio; Grohmann; Weiss, 2021ABÍLIO, L.; GROHMANN, R.; WEISS, H. C. Struggles of delivery workers in Brazil: working conditions and collective organization during the pandemic. Journal of Labor and Society, New York, v. 24, n. 4, p. 598-616, 2021. DOI: 10.1163/24714607-bja10012
https://doi.org/10.1163/24714607-bja1001...
).

Vulneração da saúde

Analisando as falas dos entregadores entrevistados, foram identificados riscos físicos e psicossociais. Esses riscos estão associados a ter a rua como local de trabalho. “Estar na rua, é estar arriscando tudo” (E2)

Quando a rua é o ambiente de trabalho, os entregadores ficam à mercê do clima, porque não há um espaço protegido para esperar a solicitação da entrega. Climas extremos, como tempestades - responsáveis por fazer com que dirijam molhados -, são experiências desagradáveis: “Andar molhado, mesmo com capa de chuva o dia inteiro a gente se molha” (E3); “cliente demora para atender o portão, fica decidindo quem vai na chuva, sendo que já está se molhando...” (E9).

A rua como local de trabalho se mostra prejudicial, pois na ausência de um ponto físico de trabalho, perde-se o efeito protetor de um abrigo (Tran; Sokas, 2017TRAN, M.; SOKAS, R. The gig economy and contingent work: an occupational health assessment. Journal of Occupational Environment Medicine, Philadelphia, v. 59, n. 4, p. e63-e66, 2017. DOI: 10.1097/JOM.0000000000000977
https://doi.org/10.1097/JOM.000000000000...
), o que pode provocar stress térmico devido ao calor excessivo (OIT, 2019OIT - ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalhar num planeta mais quente: o impacto do stress térmico na produtividade do trabalho e no trabalho digno. Genebra, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_771469.pdf >. Acesso em: 1 maio 2021.
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public...
).

Tendo a rua como local de trabalho, a motocicleta é considerada o meio de produção, portanto, qualquer acidente de trânsito deveria ser considerado um acidente de trabalho, a plataforma, porém, não se responsabiliza por isso (Apouey et al., 2020APOUEY, B. et al. Gig Workers during the COVID-19 Crisis in France: Financial Precarity and Mental Well-Being. Journal of Urban Health, Berlin, v. 97, p. 776-795, 2020. DOI: 10.1007/s11524-020-00480-4
https://doi.org/10.1007/s11524-020-00480...
). A pressão para ir mais rápido é constante, sendo comum ouvir frases como “quanto mais rápido, mais entregas, maior a remuneração”, dessa forma, trabalhadores assumem riscos por melhor remuneração. Entregadores desrespeitam os limites de velocidade e atravessam sinais vermelhos para economizar tempo, porque ir mais rápido é sinônimo de maior renda, tornando esse ato um comportamento endêmico (Christie; Ward, 2019CHRISTIE, N.; WARD, H. The health and safety risks for people who drive for work in the gig economy. Journal of Transport & Health, Amsterdam, v. 13 p. 115-127, 2019. DOI: 10.1016/j.jth.2019.02.007
https://doi.org/10.1016/j.jth.2019.02.00...
).

Os participantes da pesquisa relataram que o restaurante extrapola o tempo estipulado pelo aplicativo no preparo do alimento, jogando para o motorista a obrigação de entregar no tempo estipulado, obrigando-o a um aumento de velocidade e abrindo a possibilidade de acidente. “A gente está sempre com pressa porque quando pega corrida tem três, quatro minutos para chegar na casa do cliente” (E4); “se eu pegar vamos supor uma corrida para entregar na rua tal, são dois minutos que dão e tem três sinaleiras…” (E13)

Além da pressa, outro grande vilão que pode provocar acidentes de trânsito é o celular, ferramenta tão importante quanto a moto para fazer a entrega. “Hoje, o uso do celular é frequente, tanto para quem anda de moto e quem anda de carro, gerando bastante acidente, se caio estou fodido…” (E8)

O aplicativo emite sons e falas que distraem durante o trajeto. Inclusive, quando são geradas novas entregas, há emissão de alertas até o entregador aceitá-las ou recusá-las, além de servir como GPS, o que pode induzir a erros (Christie; Ward, 2019CHRISTIE, N.; WARD, H. The health and safety risks for people who drive for work in the gig economy. Journal of Transport & Health, Amsterdam, v. 13 p. 115-127, 2019. DOI: 10.1016/j.jth.2019.02.007
https://doi.org/10.1016/j.jth.2019.02.00...
). Além disso, a plataforma estimula entregas mais rápidas e sem pausas para aumentar o escore de avaliação, facilitando a ocorrência de acidentes (Garben, 2019GARBEN, S. The regulatory challenge of occupational safety and health in the online platform economy. Social security and the digital economy. International Social Security Review, Hoboken, v. 72, n. 3, p. 95-112, 2019. DOI: 10.1111/issr.12215
https://doi.org/10.1111/issr.12215...
).

Outro contexto de vulneração na saúde foi a pandemia. Com o contato direto com pessoas, os entregadores estão constantemente expostos ao vírus sars-cov-2. Trabalhar fora de casa aumenta o risco de exposição, o que produz estresse ou ansiedade. Apouey et al. (2020APOUEY, B. et al. Gig Workers during the COVID-19 Crisis in France: Financial Precarity and Mental Well-Being. Journal of Urban Health, Berlin, v. 97, p. 776-795, 2020. DOI: 10.1007/s11524-020-00480-4
https://doi.org/10.1007/s11524-020-00480...
) descobriram que os trabalhadores de entrega de alimentos eram muito mais propensos do que outros trabalhadores precários a continuar trabalhando durante a pandemia, submetendo-se a riscos. O motivo apontado por Wood et al. (2019WOOD, A. et al. Good gig, bad gig: autonomy and algorithmic control in the global gig economy. Work, Employment and Society, Durham, v. 33, n. 1, p. 56-75, 2019. DOI: 10.1177/0950017018785616
https://doi.org/10.1177/0950017018785616...
) é o excesso de oferta de mão de obra, que leva a um constante ambiente competitivo e à sensação de que podem ser facilmente substituídos, estando dispostos a trabalhar por menos dinheiro.

Durante as entrevistas, todos os motoristas estavam de máscara. Não foi percebido o uso de álcool gel. Quando perguntado, afirmaram que recebiam da plataforma um kit de prevenção, com entrega feita a cada 15 dias, quando uma corrida é acionada com um trajeto até determinado local, onde recebem o kit. Se o entregador não for até o local buscar os insumos, lhe será creditado na conta um valor de 30 reais para comprá-los. As narrativas são de que essa entrega de insumos de prevenção ao vírus só foi iniciada no mês de julho de 2021, quando aconteceram greves dos motoboys desta e de outras plataformas de entrega.

Somado ao contexto de rua e do covid-19, os 14 entrevistados mencionaram os assaltos como um dos maiores riscos que correm. “Tu nunca sabes onde está levando o lanche, quando vê pode ser uma furada” (E12); “tem alguns endereços que são fake, para assaltos, manda o endereço e assaltaram, dão o nome de outra pessoa” (E1)

Muitos citaram emboscadas em endereços falsos para roubar a moto, dizendo que exigem familiaridade com o local da entrega para não cair em “endereços ciladas”. Outra ameaça é que os condomínios não permitem a entrada de motocicletas. Elas ficam estacionadas na rua, e o entregador vai a pé até a porta do cliente. Caso não queira deixar a moto estacionada na rua, pode ser penalizado com bloqueios e até mesmo com a exclusão da plataforma (Christie; Ward, 2019CHRISTIE, N.; WARD, H. The health and safety risks for people who drive for work in the gig economy. Journal of Transport & Health, Amsterdam, v. 13 p. 115-127, 2019. DOI: 10.1016/j.jth.2019.02.007
https://doi.org/10.1016/j.jth.2019.02.00...
).

A falta de segurança no local de trabalho prejudica a saúde do trabalhador, provocando estresse e ansiedade (Kaine; Josserand, 2019KAINE, S.; JOSSERAND, E. The organization and experience of work in the gig economy. Journal of Industrial Relations. Austrália, v. 61, n. 4, p. 479-501, 2019. DOI: 10.1177/0022185619865480
https://doi.org/10.1177/0022185619865480...
; Tran; Sokas, 2017TRAN, M.; SOKAS, R. The gig economy and contingent work: an occupational health assessment. Journal of Occupational Environment Medicine, Philadelphia, v. 59, n. 4, p. e63-e66, 2017. DOI: 10.1097/JOM.0000000000000977
https://doi.org/10.1097/JOM.000000000000...
). Em geral, são citados cansaço, ansiedade e estresse como riscos para a qualidade de vida dos entregadores (Rodrigues; Faiad; Facas, 2020RODRIGUES, C. M.; FAIAD, C.; FACAS, E. Fatores de risco e riscos psicossociais no trabalho: definição e implicações. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 36, 2020. Número especial. DOI: 10.1590/0102.3772e36nspe19
https://doi.org/10.1590/0102.3772e36nspe...
). Como a maioria são jovens, esses fatores são maiores, porque estão mais dispostos a correr riscos (Tran; Sokas, 2017TRAN, M.; SOKAS, R. The gig economy and contingent work: an occupational health assessment. Journal of Occupational Environment Medicine, Philadelphia, v. 59, n. 4, p. e63-e66, 2017. DOI: 10.1097/JOM.0000000000000977
https://doi.org/10.1097/JOM.000000000000...
; Garben, 2019GARBEN, S. The regulatory challenge of occupational safety and health in the online platform economy. Social security and the digital economy. International Social Security Review, Hoboken, v. 72, n. 3, p. 95-112, 2019. DOI: 10.1111/issr.12215
https://doi.org/10.1111/issr.12215...
).

Os entregadores entrevistados relataram dores musculares por conta da mochila em que carregam os alimentos. Além disso, declararam que causa dor nos ombros e nas costas, e que o uso da mochila produz mais cansaço. A literatura, ainda, demonstra que ela é um fator causal de colisões (Christie; Ward, 2019CHRISTIE, N.; WARD, H. The health and safety risks for people who drive for work in the gig economy. Journal of Transport & Health, Amsterdam, v. 13 p. 115-127, 2019. DOI: 10.1016/j.jth.2019.02.007
https://doi.org/10.1016/j.jth.2019.02.00...
). “com a bag tu tens que fazer força, cansa as costas, porque machuca” (E5)

Alguns trocam pelo baú, porém, esse também tem suas limitações, é mais caro e balança mais, arriscando virar os produtos, o que impacta na qualidade da entrega e na avaliação do entregador.

Em tempos de lockdown, o pedido por plataforma facilitou para o cliente, porque inclui o envio de compras de supermercados. “São 16 itens por pedido, só que nesses 16, pode ser 6 coisinhasiúda ou 6 Pepsi de três litro e meio, daí prejudica” (E14); “é no máximo até 16 itens, mas as pessoas só pedem refrigerante e caixa de leite que pesa” (E5)

É desaconselhável para os entregadores cancelar esse tipo de entrega, pois há risco de sofrer um bloqueio. Exigir que os trabalhadores carreguem mantimentos pesados e subam escadas é um estressor que vulnera a sua saúde (Keith; Harms; Long, 2020KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being. London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018...
).

Outro aspecto que afeta a saúde dos entregadores é a alimentação precária. As condições de trabalho não permitem uma refeição adequada, porque não há tempo. “...na verdade eu pego um potinho em casa e trago, como, enquanto espero o pedido ... a gente precisa se adaptar...” (E6); “...almoçar não almoça porque não tem tempo, come um lanche, um cachorro, um xis...” (E14).

Além de baixo valor nutricional, não é uma alimentação tranquila em um ambiente confortável, concentrada no ato de comer, porque existe a pressa de voltar ao trabalho (Brasil, 2014BRASIL. Guia Alimentar para a População Brasileira. 2 ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf >. Acesso em: 1 maio 2021.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
).

Com excesso de horas trabalhadas e o cansaço, é normal que os entregadores procurem bebidas estimulantes para se concentrarem mais (Christie; Ward, 2019CHRISTIE, N.; WARD, H. The health and safety risks for people who drive for work in the gig economy. Journal of Transport & Health, Amsterdam, v. 13 p. 115-127, 2019. DOI: 10.1016/j.jth.2019.02.007
https://doi.org/10.1016/j.jth.2019.02.00...
), apresentando um risco aumentado de diabetes do tipo 2, já superior para indivíduos que trabalham mais de 55 horas por semana. Aqueles que dependem exclusivamente dessa renda podem, também, desenvolver níveis alterados de HDL, colesterol e triglicerídeos (Freni-Sterrantino; Salerno, 2021FRENI-STERRANTINO, A.; SALERNO, V. A Plea for the Need to investigate the Health Effects of Gig-Economy. Frontiers in Public Health, Bethesda, v. 9, n. 638767, 2021. DOI: 10.3389/fpubh.2021.638767
https://doi.org/10.3389/fpubh.2021.63876...
).

Trabalhadores de entrega de alimentos estiveram mais propensos do que outros a continuar trabalhando durante a pandemia (Apouey; et al., 2020APOUEY, B. et al. Gig Workers during the COVID-19 Crisis in France: Financial Precarity and Mental Well-Being. Journal of Urban Health, Berlin, v. 97, p. 776-795, 2020. DOI: 10.1007/s11524-020-00480-4
https://doi.org/10.1007/s11524-020-00480...
). O excesso de oferta de mão de obra leva à vivência constante de um ambiente competitivo. Com isso, os trabalhadores sentem que podem ser facilmente substituídos e estão dispostos a trabalhar por menos dinheiro (Wood et al., 2019WOOD, A. et al. Good gig, bad gig: autonomy and algorithmic control in the global gig economy. Work, Employment and Society, Durham, v. 33, n. 1, p. 56-75, 2019. DOI: 10.1177/0950017018785616
https://doi.org/10.1177/0950017018785616...
), afetando sua saúde e qualidade de vida.

Entre todos os fatores que mais afetam negativamente a saúde dos trabalhadores, está a percepção e sensação de desvalorização do seu trabalho por parte dos clientes e dos próprios restaurantes, com repercussões sobre a saúde mental pelos riscos psicossociais (Rodrigues et al. 2020RODRIGUES, C. M.; FAIAD, C.; FACAS, E. Fatores de risco e riscos psicossociais no trabalho: definição e implicações. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 36, 2020. Número especial. DOI: 10.1590/0102.3772e36nspe19
https://doi.org/10.1590/0102.3772e36nspe...
). Alguns contam como fazem a entrega com capricho, atentando-se aos detalhes do produto que vão entregar, não apenas para receber uma boa nota, mas por empatia com quem vai receber o produto. “Eu quando vejo que virou, eu não entrego para o cliente, acho que o cliente pagou tem que comer bonitinho” (E13).

Entretanto, todo esse esforço para entregar a comida em perfeito estado e o mais rápido possível não é retribuído, devido à falta de educação por parte dos clientes. “Todo mundo acha que é teu patrão, todo mundo quer te diminuir” (E5); “As pessoas não dão valor para o motoboy, é uma profissão perigosa, cansativa, trabalha bastante” (E2); “Mas tem que botar a cara, tem que ir, tem que entregar não adianta” (E8).

Essa situação aponta para o desenvolvimento da síndrome do vício do trabalho (workaholic), caracterizada pela excessiva dedicação ao trabalho, tornando-o único objetivo da vida, pela impossibilidade de parar de trabalhar. Além disso, gera-se o medo irracional de ficar sem celular ou internet. “o celular é quase tão importante quanto a moto” (E8); “o uso do celular no trajeto depende da internet, mas não dá nenhuma segurança, é um risco para a saúde” (E9).

Todos esses riscos para a qualidade de vida do entregador ocasionam um processo de vulneração de sua saúde. A suscetibilidade de baixa classificação do cliente cria um desequilíbrio de poder, resultando em alto potencial para tratamento injusto e até mesmo interações abusivas (Keith; Harms; Long, 2020KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being. London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018...
). Os entregadores se sentem pressionados a serem afáveis e tolerar comportamentos inadequados e ofensivos, ocasionando consequências mentalmente exaustivas e estressantes (Bajwa et al., 2018BAJWA, U. et al. The health of workers in the global gig economy. Globalization and Health, Berlin, v. 14, n. 124, 2018. DOI: 10.1186/s12992-018-0444-8
https://doi.org/10.1186/s12992-018-0444-...
). Para conseguir boas classificações, devem ser amigáveis, eficientes e prestativos em todos os momentos (Garben, 2019GARBEN, S. The regulatory challenge of occupational safety and health in the online platform economy. Social security and the digital economy. International Social Security Review, Hoboken, v. 72, n. 3, p. 95-112, 2019. DOI: 10.1111/issr.12215
https://doi.org/10.1111/issr.12215...
).

Por isso, falar sobre sua profissão não foi motivo de orgulho, mas um desabafo, devido à assimetria de informação e falta de explicação por parte da plataforma sobre seus processos de trabalho, levando-os a se sentirem não valorizados como indivíduos (Keith et al., 2020KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being. London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018...
) e não terem seu trabalho apreciado (Kaine; Josserand, 2019KAINE, S.; JOSSERAND, E. The organization and experience of work in the gig economy. Journal of Industrial Relations. Austrália, v. 61, n. 4, p. 479-501, 2019. DOI: 10.1177/0022185619865480
https://doi.org/10.1177/0022185619865480...
).

Além dos riscos à saúde física, ainda há riscos à saúde psíquica, porque não podem responder aos bloqueios e ofensas, sentindo-se desvalorizados por não terem uma alternativa. Sofrem psicologicamente pelas condições precárias do trabalho (Bajwa et al., 2018BAJWA, U. et al. The health of workers in the global gig economy. Globalization and Health, Berlin, v. 14, n. 124, 2018. DOI: 10.1186/s12992-018-0444-8
https://doi.org/10.1186/s12992-018-0444-...
), com o impacto negativo na saúde e os maiores níveis de estresse (Christie; Ward, 2019CHRISTIE, N.; WARD, H. The health and safety risks for people who drive for work in the gig economy. Journal of Transport & Health, Amsterdam, v. 13 p. 115-127, 2019. DOI: 10.1016/j.jth.2019.02.007
https://doi.org/10.1016/j.jth.2019.02.00...
).

Os entregadores não veem outra solução ao desemprego e se sentem incapazes de resolver esse dilema. Frases como “se trabalhar mais, ganha mais”, muito proferidas por eles próprios, são um problema quando o entregador não atinge o mínimo de entrega por dia, por achar que não trabalhou o quanto devia ou que não foi rápido o suficiente.

A literatura aponta para vários riscos ocasionados pela precarização do trabalho com consequências sobre a saúde: a insegurança de renda (Kaine; Josserand, 2019KAINE, S.; JOSSERAND, E. The organization and experience of work in the gig economy. Journal of Industrial Relations. Austrália, v. 61, n. 4, p. 479-501, 2019. DOI: 10.1177/0022185619865480
https://doi.org/10.1177/0022185619865480...
), por não ter garantia de remuneração mínima (Garben, 2019GARBEN, S. The regulatory challenge of occupational safety and health in the online platform economy. Social security and the digital economy. International Social Security Review, Hoboken, v. 72, n. 3, p. 95-112, 2019. DOI: 10.1111/issr.12215
https://doi.org/10.1111/issr.12215...
); estresse (Apouey et al., 2020APOUEY, B. et al. Gig Workers during the COVID-19 Crisis in France: Financial Precarity and Mental Well-Being. Journal of Urban Health, Berlin, v. 97, p. 776-795, 2020. DOI: 10.1007/s11524-020-00480-4
https://doi.org/10.1007/s11524-020-00480...
); ansiedade e depressão (Christie; Ward, 2019CHRISTIE, N.; WARD, H. The health and safety risks for people who drive for work in the gig economy. Journal of Transport & Health, Amsterdam, v. 13 p. 115-127, 2019. DOI: 10.1016/j.jth.2019.02.007
https://doi.org/10.1016/j.jth.2019.02.00...
); menor bem-estar; esgotamento; e exaustão (Keith; Harms; Long, 2020KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being. London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018...
). Para eles, é torturante ter que aceitar essa situação, porque não têm alternativa de fonte de renda.

Considerações finais

A proliferação de relações de trabalho mediadas por plataformas digitais é um novo capítulo da tendência do capitalismo atual, de terceirização da mão de obra, precarização dos direitos laborais e esvaziamento dos dispositivos jurídicos de proteção dos trabalhadores. Esse fenômeno econômico-laboral se faz presente nas plataformas de entrega de alimentação, que experimentaram um grande crescimento durante a pandemia, conectando os restaurantes e os clientes através de aplicativos acessados pelos trabalhadores.

Essas novas formas de empregabilidade aconteceram num contexto de forte desemprego, tornando-se o único meio de conseguir uma remuneração e levando os trabalhadores a aceitarem a total precarização das condições de trabalho, expressa na exigência de custear os meios necessários para o trabalho, na total imprevisibilidade da renda cuja definição está fora do seu controle e na submissão a scores de avaliação não transparentes, cujos critérios dependem de algoritmos criptografados pela plataforma.

Essa situação de precarização das condições de trabalho tem consequências graves sobre a saúde dos trabalhadores, porque os expõe a riscos físicos e psíquicos, devido a ter a rua como lugar de trabalho, no trânsito, com todas suas ameaças e inseguranças. Nas relações de trabalho, o elo fraco e sempre em desvantagem é o trabalhador, porque é continuamente avaliado pelos clientes e restaurantes, sem ter um retorno, criando um clima de tensão, ameaça e medo, o que afeta sua saúde mental.

Os resultados da precarização do trabalho e a consequente vulneração da saúde apresentam limites pelo reduzido universo empírico dos entrevistados, não permitindo sua universalização, como é típico de uma pesquisa qualitativa. Por isso, é apontada a necessidade de novos estudos sobre o trabalho realizado através de plataformas digitais, bem como seus efeitos sobre a saúde e a consequente exigência da criação de formas de proteção jurídica das condições de trabalho, como a exigência de cumprimento dos direitos humanos.

Referências

  • A GREVE dos entregadores e uma nova forma de organização na luta dos trabalhadores. Entrevista especial com Sidnei Machado. Entrevistado: Sidnei Machado. Entrevistador: João Vitor Santos. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, 8 jul. 2020. Notícia. Disponível em: <Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/600717-a-greve-dos-entregadores-e-uma-nova-forma-de-organizacao-na-luta-dos-trabalhadores-entrevista-especial-com-sidnei-machado >. Acesso em: 1 jul. 2020.
    » http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/600717-a-greve-dos-entregadores-e-uma-nova-forma-de-organizacao-na-luta-dos-trabalhadores-entrevista-especial-com-sidnei-machado
  • ABÍLIO, L.; GROHMANN, R.; WEISS, H. C. Struggles of delivery workers in Brazil: working conditions and collective organization during the pandemic. Journal of Labor and Society, New York, v. 24, n. 4, p. 598-616, 2021. DOI: 10.1163/24714607-bja10012
    » https://doi.org/10.1163/24714607-bja10012
  • ANTUNES, R. Qual é o futuro do trabalho na Era Digital? Laborare, Campinas, v. 3, n. 4, p. 6-14, 2020. DOI: 10.33637/2595-847x.2020-46
    » https://doi.org/10.33637/2595-847x.2020-46
  • APOUEY, B. et al. Gig Workers during the COVID-19 Crisis in France: Financial Precarity and Mental Well-Being. Journal of Urban Health, Berlin, v. 97, p. 776-795, 2020. DOI: 10.1007/s11524-020-00480-4
    » https://doi.org/10.1007/s11524-020-00480-4
  • BAJWA, U. et al. The health of workers in the global gig economy. Globalization and Health, Berlin, v. 14, n. 124, 2018. DOI: 10.1186/s12992-018-0444-8
    » https://doi.org/10.1186/s12992-018-0444-8
  • BRASIL. Guia Alimentar para a População Brasileira 2 ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf >. Acesso em: 1 maio 2021.
    » https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf
  • BRASIL. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Brasília, DF, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?edicao=32275&t=resultados Acesso em: 1 maio 2021.
    » https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?edicao=32275&t=resultados
  • CEPAL - Comisión Económica para América Latina y el Caribe. Anuario Estadistico de América Latina y el Caribe, 2020 Santiago, 2021.
  • CHRISTIE, N.; WARD, H. The health and safety risks for people who drive for work in the gig economy. Journal of Transport & Health, Amsterdam, v. 13 p. 115-127, 2019. DOI: 10.1016/j.jth.2019.02.007
    » https://doi.org/10.1016/j.jth.2019.02.007
  • COM PANDEMIA, entregadores de app têm mais trabalho, menos renda e maior risco à saúde. BBC Brasil, São Paulo, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53258465 >. Acesso em: 16 jun. 2021.
    » https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53258465
  • ENGLERT, S.; WOODCOCK, J.; CANT, C. Digital Workerism: technology, platforms and the circulation of workers Struggles. Communication, Capitalism & Critique, Paderborn, v. 18, n. 1, p. 132-145, 2020. DOI: 10.31269/triplec.v18i1.1133
    » https://doi.org/10.31269/triplec.v18i1.1133
  • FLICK, U. Amostragem, seleção e acesso. In: FLICK, U. Desenho da pesquisa qualitativa Porto Alegre: Artmed, 2009, p. 43-55.
  • FRENI-STERRANTINO, A.; SALERNO, V. A Plea for the Need to investigate the Health Effects of Gig-Economy. Frontiers in Public Health, Bethesda, v. 9, n. 638767, 2021. DOI: 10.3389/fpubh.2021.638767
    » https://doi.org/10.3389/fpubh.2021.638767
  • GARBEN, S. The regulatory challenge of occupational safety and health in the online platform economy. Social security and the digital economy. International Social Security Review, Hoboken, v. 72, n. 3, p. 95-112, 2019. DOI: 10.1111/issr.12215
    » https://doi.org/10.1111/issr.12215
  • GOUVEIA, F. P. S. Faces da precarização do mundo do trabalho e a juventude sobrante. Estudos IAT, Salvador, v. 4, n. 1, p. 124-137, 2019.
  • GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: entre dataficação, financeirização e racionalidade neoliberal. Revista Eptic, v. 22, n. 1, p. 106-122, 2020.
  • IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desemprego Rio de Janeiro, 2020b. Disponível em: <Disponível em: https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php >. Acesso em: 1 maio 2021.
    » https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php
  • IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. São Leopoldo: população no último censo [ 2010]. Rio de Janeiro, 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/sao-leopoldo/panorama >. Acesso em: 1 maio 2021.
    » https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/sao-leopoldo/panorama
  • IFOOD. Termos e condições de uso ifood para entregadores São Paulo, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://entregador.ifood.com.br/wp-content/uploads/2023/02/Termo-de-uso.pdf >. Acesso em: 1 maio 2021.
    » https://entregador.ifood.com.br/wp-content/uploads/2023/02/Termo-de-uso.pdf
  • IFOOD: a maior plataforma de delivery do Brasil. Cotidianum, [s.l.], 2019. Disponível em: <Disponível em: https://cotidianum.com.br/ifood-a-maior-plataforma-de-delivery-do-brasil.html >. Acesso em: 1 abr. 2021.
    » https://cotidianum.com.br/ifood-a-maior-plataforma-de-delivery-do-brasil.html
  • IVANOVA, M. et al. Foodora and Deliveroo: the app as a boss? Control and autonomy in app-based management - the case of food delivery riders. Working Paper Forschungs Förderung, Düsseldorf, n. 107, 2018.
  • KAINE, S.; JOSSERAND, E. The organization and experience of work in the gig economy. Journal of Industrial Relations Austrália, v. 61, n. 4, p. 479-501, 2019. DOI: 10.1177/0022185619865480
    » https://doi.org/10.1177/0022185619865480
  • KALIL, R. B. Capitalismo de plataforma e Direito do trabalho: Crowdwork e trabalho sob demanda por meio de aplicativos. Tese (Doutorado em Direito do Trabalho e da Seguridade Social) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
  • KEITH, M. G.; HARMS, P.D.; LONG, A. C. Worker health and well-being in the gig economy: A proposed framework and research agenda. In: PERREWÉ, P. L.; HARMS, P. D.; CHANG C. H. (Ed.). Entrepreneurial and Small Business Stressors, Experienced Stress, and Well-Being London: Emerald Publishing, 2020. p. 1-34. DOI: 10.1108/S1479-3555202018
    » https://doi.org/10.1108/S1479-3555202018
  • LARA, B.; BRAGA, N.; RIBEIRO, P. V. Parceria de risco, The Intercept, [s.l.], 2020. Disponível em: <Disponível em: https://theintercept.com/2020/03/23/coronavirus-aplicativos-entrega-comida-ifood-uber-loggi/ >. Acesso em: 1 maio 2021.
    » https://theintercept.com/2020/03/23/coronavirus-aplicativos-entrega-comida-ifood-uber-loggi/
  • MAGALHÃES, A. L. 10 aplicativos para pedir comida pelo celular. Canaltech, São Paulo, 7 jan. 2021. Disponível em: Disponível em: https://canaltech.com.br/apps/aplicativos-pedir-comida-celular Acesso em: 1 nov. 2021.
    » https://canaltech.com.br/apps/aplicativos-pedir-comida-celular
  • MUNTANER, C. Digital Platforms, Gig Economy, Precarious Employment, and the Invisible Hand of Social Class. International Journal of Health Services, Toronto, v. 48, n. 4, p. 597-600, 2018. DOI: 10.1177/0020731418801413
    » https://doi.org/10.1177/0020731418801413
  • OIT - ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalhar num planeta mais quente: o impacto do stress térmico na produtividade do trabalho e no trabalho digno. Genebra, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_771469.pdf >. Acesso em: 1 maio 2021.
    » https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/documents/publication/wcms_771469.pdf
  • RODRIGUES, C. M.; FAIAD, C.; FACAS, E. Fatores de risco e riscos psicossociais no trabalho: definição e implicações. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 36, 2020. Número especial. DOI: 10.1590/0102.3772e36nspe19
    » https://doi.org/10.1590/0102.3772e36nspe19
  • SOUZA, L. K. Pesquisa com análise qualitativa de dados: conhecendo a Análise Temática. Arquivos brasileiros de psicologia, Rio de Janeiro, v. 71, n. 2, p. 51-67, 2019. DOI: 10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.51-67
    » https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.51-67
  • TRAN, M.; SOKAS, R. The gig economy and contingent work: an occupational health assessment. Journal of Occupational Environment Medicine, Philadelphia, v. 59, n. 4, p. e63-e66, 2017. DOI: 10.1097/JOM.0000000000000977
    » https://doi.org/10.1097/JOM.0000000000000977
  • WOOD, A. et al. Good gig, bad gig: autonomy and algorithmic control in the global gig economy. Work, Employment and Society, Durham, v. 33, n. 1, p. 56-75, 2019. DOI: 10.1177/0950017018785616
    » https://doi.org/10.1177/0950017018785616

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Jan 2023
  • Aceito
    01 Fev 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br