RESENHA CRITICAL REVIEW

 

 

Adriano Maia dos Santos

Doutorando em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ) - Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Professor da Universidade Federal da Bahia - Vitória da Conquista (BA) - Brasil. maiaufba@ufba.br

 

 

 

SOLLA, J.J.S.P. Dilemas e desafios da gestão municipal do SUS: avaliação da implantação do Sistema Municipal de Saúde em Vitória da Conquista (Bahia), 1997 – 2008. São Paulo: Hucitec, 2012

Dilemas e Desafios da Gestão Municipal do SUS sintetiza, no título, a tônica que perpassa toda a análise e argumentação esmiuçada por Jorge Solla, em livro com 347 páginas, publicado pela Editora Hucitec, resultado de tese de doutorado do autor, que optou por manter todo o conteúdo e formato original da produção acadêmica na versão publicada. Dessa forma, o texto atende a uma gama larga de públicos, desde estudantes e docentes a gestores, profissionais da saúde, formuladores de políticas e stakeholders, sendo uma leitura agradável aos recém-chegados à Saúde Coletiva/Saúde Pública.

No livro, o sujeito-pesquisador é, por vezes, o sujeito-pesquisado: desafio nada trivial! Visto que Jorge Solla ocupou os cargos de Secretário Municipal de Vitória da Conquista (BA), entre 1999 e 2002; de Secretário de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde, entre 2003 e 2005; e, atualmente, é Secretário da Saúde do Estado da Bahia (desde 2007), o livro tem a audácia de explicitar nomes e lugares, desnudando as escolhas, implicações e a militância do autor, "sem preocupação" com neutralidade. Ao contrário, o texto é instigante e revelador, sem abdicar da elegância e do rigor científico.

Para enfrentar esse desafio, o pesquisador dialoga com vasta bibliografia nacional e internacional para sustentar os argumentos acerca das políticas sociais e, especificamente, das políticas de saúde no Brasil. Dessa forma, resgata, na introdução, o processo conturbado e adverso à construção e à consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), mostrando, 'de cara', que a construção do SUS e sua face atual são frutos de cores partidárias, enfrentamentos políticos e escolhas da sociedade civil organizada, que, ao longo da história, militaram pela cidadania e pela justiça social. Para tanto, o livro está subdividido em dez capítulos, sendo o primeiro dedicado à metodologia, no qual, de maneira breve, o autor nos apresenta o método de investigação, os sujeitos entrevistados e os documentos contemplados na análise.

Com o tema "A descentralização das ações e serviços de saúde no SUS como componente de uma aposta transformadora", abordagem do capítulo dois, Solla revisa a história das políticas de saúde no Brasil, partindo do início do século XX até os dias atuais, para recuperar elementos que demarcam a opção 'paradoxal' pela descentralização e a implantação de um sistema público e universal de saúde (ampliação da proteção social), num contexto de reformas neoliberais e conservadoras – que exigiam a redução do Estado – presentes no início dos anos 1990. Sem pudor, o autor faz sérias críticas aos governos da época, consubstanciado – é importante frisar – por outros estudos e por sua experiência como gestor – o que não deixa de ser, em parte, um viés ideológico.

Por outro lado, a investigação contemporiza os esforços mobilizados para a construção, a reformulação e a consolidação das bases normativas e institucionais que modelam o SUS, partindo das Normas Operacionais Básicas ao Pacto pela Saúde para analisar os avanços e dificuldades no processo de descentralização, e o papel de destaque dos municípios no sistema de saúde brasileiro "como expressão de impacto de certas apostas e seus analisadores, para olhar Vitória da Conquista" (p.53).

O capítulo três, "Modelos de atenção à saúde no SUS – Saúde da Família e Acolhimento: apostas de mudanças na produção de práticas, ali, no dia a dia do fazer saúde", discute caminhos para a consolidação do SUS por meio de modelos de atenção à saúde gestados e experienciados em alguns municípios. O autor aborda como a Saúde da Família tornou-se um programa/estratégia nacional, e a insuficiência de adotá-lo desprovido de crítica, ou seja, guiado unicamente pelo fomento ministerial e conduzido à parte de uma rede de serviços de saúde. Nessa perspectiva, foca suas lentes na micropolítica do trabalho em saúde para defender a necessidade de qualificar o processo de trabalho alicerçado em tecnologias adequadas às necessidades das pessoas, apostando no acolhimento como estratégia de gestão do cuidado. Em síntese, o autor defende as experiências locorregionais como catalisadoras de mudança, mesmo em cenários adversos. Ou seja, recupera argumentos de defesa da descentralização e o protagonismos de diferentes gestores municipais.

No quarto capítulo, "Estudo de implementação de políticas públicas", o autor revisa os conceitos de política, poder e sujeito, recorrendo, dentre outras referências, a Emerson Merhy, Mário Testa e Carlos Matus para enfatizar a complexidade na implantação de políticas públicas de saúde. Além disso, o processo de trabalho em saúde e a produção da saúde ganham destaque na análise de Solla, que apresenta os dilemas de gestores que precisam harmonizar vários projetos em disputa, e esses nem sempre são conciliáveis.

Os capítulos que se sucedem englobam a imersão nos dados empíricos sobre o sistema municipal de saúde de Vitória da Conquista (BA). Nesse momento, o livro ganha maior potência e pulsação, até porque o autor desprende-se das "amarras" teóricas e pode avistar, com lentes de aumento, os interstícios da gestão, como consequência dos dados, mas, e talvez principalmente, resultado de experiências e observações ao longo da própria prática, muitas vezes como protagonista.

Revolvendo os capítulos cinco, seis e sete, o leitor encontrará a descrição detalhada da ampliação e diversificação da oferta de serviços em todos os pontos da rede, com forte indução da prestação pública direta, ênfase no acolhimento como estratégia de gestão do cuidado, busca pela qualificação dos trabalhadores/prestadores e alargamento da participação social em Vitória da Conquista (BA), que requereu, segundo o autor, "radicalizar na organização do sistema municipal de saúde, buscando alterar os modelos de gestão e de atenção à saúde" (p.127). Ou seja, a investigação, em certa medida é uma autoanálise. Ressalte-se que o autor não se abstém de explicitar suas preferências partidárias, suas implicações políticas e seu envolvimento visceral com o objeto estudado.

As narrativas dos trinta sujeitos entrevistados são apresentadas em "Mergulhando no contexto local através das falas dos atores", capítulo oito. O autor opta por deixar fluir 'livremente' os posicionamentos daqueles que, como ele, vivenciaram a gestão de Vitória da Conquista (BA). Sob essa ótica, há uma convergência de percepções acerca do objeto, muito provavelmente por tratarem-se de pessoas que fazem uma leitura de um processo, que também foram/são protagonistas. Ou seja, plasma no conteúdo manifesto das entrevistas um 'viés' de autoanálise, uma implicação que, em certa medida, pode esmaecer a crítica ou distorcer a objetiva. Contudo, a riqueza das falas impressiona, causa perplexidade e emociona. Mais do que isso: os depoimentos desnudam um passado recente e imprimem a sensação de que estamos assistindo a um filme com nuances de drama social, quase um roteiro de documentário, tal a densidade dos fatos relatados. Assim, como um cineasta, o autor, ao escolher as cenas mais contundentes, consegue projetar um filme fundamental, pois mostra como as políticas públicas na Bahia e, em especial, em seu Município de Vitória da Conquista, foram/são tratadas, bem como, o desejo de um grupo (governo local e sociedade civil organizada) pode instituir uma nova lógica social, mesmo em cenário de histórica resistência à democracia e à vocalização popular.

Nos dois últimos capítulos, "Discussão e Comentários Finais", o autor apresenta uma revisão de diferentes estudos nacionais, que tiveram Vitória da Conquista (BA) como cenário de investigação, e ainda faz uma síntese de trabalhos em cidades que,também foram territórios de inovação e experimentação de novos modelos de políticas de saúde. Nesse sentido, o livro recupera a razão de Vitória da Conquista (BA) ter sido pioneira e protagonista na construção e consolidação de inúmeras políticas de saúde, sendo, por muitos, referenciada como modelo de tecnologia de gestão.

Num mundo em ebulição, com crises econômicas no Velho Mundo, berço da democracia e das políticas de proteção social, assiste-se ao fortalecimento de políticas conservadoras e receitas racionalizadoras de ideários economicistas. Em tempos de Troika, presencia-se países (Portugal e Grécia, principalmente) com bons níveis de desenvolvimento social submetidos ao empobrecimento compulsório. Tais lições nos são muito caras, visto que o Brasil, ainda que na contramão da crise, é sumariamente atacado pelo ideal liberal, que atribui a necessidade de redução do Estado e a flexibilização dos direitos trabalhistas como recomendações para escapar da suposta crise. No campo das políticas sociais, a política de saúde (o SUS) é o terreno fértil para o ataque e, assim, justifica-se o subfinanciamento e a permanente precarização dos vínculos trabalhistas. O livro de Jorge Solla, ao trazer à baila os embates (dilemas e desafios) recentes para a construção da gestão local do SUS, conclama a renovação da militância pela defesa ideológica do espaço público e nos faz crer que vale a pena.

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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