Vulnerabilidades e subjetividades de pessoas com diagnóstico e tratamento de hepatite C

Vulnerabilities and subjectivities of people diagnosed with and under treatment of hepatitis C

Ângela Antônia Ferreira Kunrath José Roque Junges Laura Cecilia López Sobre os autores

Resumos

Este estudo analisa as vulnerabilidades e subjetividades de usuários com hepatite C acompanhados por um centro de especialização. O estudo qualitativo buscou captar as complexas vulnerabilidades experimentadas por esses sujeitos. Expõem-se as formas de reação na busca pelo tratamento e no enfrentamento dos efeitos adversos da medicação, bem como as restrições impostas pela doença. As divergências no enfrentamento dependem da ressignificação das biografias e da reorganização das subjetividades. O tratamento está centralizado mais na terapia medicamentosa do que nos efeitos sobre a reorganização de suas vidas, questão que merece um olhar crítico, tendo presente a integralidade do cuidado à saúde.

Hepatite C; Vulnerabilidade em saúde; Terapêutica


This study analyzes the vulnerabilities and subjectivities of users diagnosed with hepatitis C who are accompanied by an appropriated health center. This is a qualitative research that aims to expose also the ways of reaction during the treatment and the tackling of the medication adverse effects as the restrictions imposed by the disease. Differences in coping with the disease depend on the capacity of giving a new meaning to life and on the reorganization of subjectivities. The treatment is centered more on drug therapy than on the effects on life reorganization, an issue that deserves a critical eye, bearing in mind the integrality of health care.

Hepatitis C; Health vulnerability; Therapeutics


Introdução

No Brasil, estima-se existirem cerca de três milhões de portadores de hepatite C que, em sua maioria, desconhecem seu estado de portador, o que ajuda a perpetuar o ciclo de transmissão dessa infecção viral (BRASIL, 2008______. ______.______. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Hepatites virais: o Brasil está atento. Brasília: Ministério da Saúde, 2008.). Apesar da grande magnitude, disseminação mundial e gravidade em termos de saúde pública, a hepatite C evoluiu como uma epidemia chamada silenciosa (BASTOS, 2007BASTOS F.I. O som do silêncio da hepatite C. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.).

O consenso da Sociedade Brasileira de Doenças Infecciosas sobre o tratamento e monitoramento da hepatite C (ARAÚJO , 2007ARAUJO, E.S.A. et al. Consensus of the Brazilian Society of Infectious Diseases on the management and treatment of hepatitis C. Braz. J. Infect. Dis., Salvador, v. 11, n.1, p. 1-5, 2007.) apresenta o estado da arte sobre os caminhos clínicos para enfrentar a doença, principalmente a aplicação do Interferon peguilado injetável, as incógnitas e os percalços que ainda permanecem nesse itinerário terapêutico. Um dos principais problemas apontados quanto ao tratamento são os efeitos adversos da aplicação da medicação. Outro problema, levantado por Serra (2008)SERRA M.A. El factor tiempo en el tratamento de la hepatites crónica por virus C. Revista Española de enfermedades digestivas, Madrid, v. 100, n. 4, p. 230-235, 2008., é o fator tempo, cujo dilema é encurtar ou prolongar a duração do tratamento.

O Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 34/2007 (BRASIL, 2007BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Portaria nº 34, de 28 de setembro de 2007. Dispõe sobre o Protocolo Clínico e as Diretrizes Terapêuticas para Hepatite Viral Crônica C. Brasília, 2007. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/2007/prt0034_28_09_2007.html>. Acesso em: 10 jun. 2010.
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), substituída recentemente pela Portaria nº 221/2011 (BRASIL, 2011______.______. Portaria SVS nº 221, de 13 de julho de 2011. Dispõe sobre o Protocolo Clínico e as Diretrizes Terapêuticas de Hepatite Viral C e Co-infecções. Brasília, 2011.), propõe um caminho terapêutico para as pessoas acometidas pelo vírus da hepatite C pautado por esse consenso. Esses movimentos refletem um processo de institucionalização e construção social da doença no sentido de 'fazer visível' uma enfermidade que até pouco tempo era invisível. Contudo, Araújo (2011) constata que ainda se está longe de uma terapia satisfatória e efetiva para a hepatite C.

A visibilidade da doença e a própria insatisfação quanto à sua terapia acontecem a partir e dentro do paradigma biomédico. O tratamento se insere num contexto em que, muitas vezes, "as queixas são reduzidas a um mal fisiológico desagregado do paciente portador de uma experiência histórica e existencial e que traz em si um significado" (VALENÇA; FONSECA, 2006, P. 106VALENÇA, J.; FONSECA, A.B. Processos e percepções de cura a partir do levantamento da produção acadêmica brasileira sobre religião e saúde. Mediações - Rev Cienc Soc. Antropol e Saúde, Londrina, v. 11, n. 2, p. 99-112, 2006.). Por isso, é importante realizar outras aproximações ao fenômeno que entendam a experiência subjetiva da doença. Em paralelo ao contexto biomédico das intervenções, existe uma dimensão sociocultural que, muitas vezes, é esquecida, composta por significados sobre o adoecimento e a cura, vivência de estigmas e barreiras, possíveis perdas ou ganhos que acompanham a confirmação do adoecer e as interpretações sobre os itinerários terapêuticos. Essas novas abordagens podem abrir caminhos para os impasses do tratamento da hepatite C.

Na perspectiva da integralidade em saúde (PINHEIRO, 2001PINHEIRO, R. As práticas do cotidiano na relação oferta e demanda dos serviços de saúde: um campo de estudo e construção da integralidade. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A (Orgs.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ: Abrasco, 2001.), entende-se que a busca de cuidados não está limitada ao acesso e à utilização de medicamentos. Ainda que essenciais para a cura, as terapias com os consequentes efeitos colaterais precisam ser escolhas dos sujeitos. Eles irão aderir ou não, considerando processos internos complexos de adaptação sob a influência de suas relações sociais (ALVES; SOUZA, 1999ALVES, P.C.; SOUZA I.M. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. In: RABELO, M. C.; ALVES, P. C.; SOUZA I. M. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.).

Nesse contexto, é importante pesquisar sobre a qualidade de vida das pessoas com hepatite C (ALVES , 2012ALVES G. A. et al. Quality of life of patients with hepatitis C. Rev. Soc. Bras. Med. Trop., Uberaba, v. 45, n. 5, p. 553-557, 2012.), porque os efeitos colaterais incidem fortemente sobre o seu bem estar, obrigando-as a encontrar novos significados para seu cotidiano. Os dados deste estudo revelam que as pessoas não estão contentes com sua saúde por não saberem como lidar com esses efeitos. O domínio do ambiente possui elevada importância, porque mostra o contexto onde estão os recursos para que se possa reagir e resituar-se em sua subjetividade. Este é um dos poucos artigos que tentam compreender a situação subjetiva das pessoas que enfrentam as consequências adversas do tratamento. São necessários mais estudos qualitativos para entender a subjetividade dos usuários que são acompanhados e monitorados pelos centros de atendimento para a hepatite C.

A descoberta da doença e seu tratamento produzem contextos de vulnerabilidades e tentativas de se resituar na vida por parte dos sujeitos. O artigo objetiva analisar as narrativas sobre as experiências de adoecimento e tratamento e suas repercussões sobre a subjetividade dos usuários com hepatite C que são acompanhados e monitorados por um centro de especialização.

Metodologia

Trata-se de pesquisa qualitativa centrada nas narrativas (FLICK, 2009FLICK, U. Introdução à Pesquisa Qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009) de como os sujeitos diagnosticados com hepatite C enfrentam as vulnerabilidades produzidas pelo tratamento. A aplicação do medicamento e o acompanhamento terapêutico dessas pessoas precisam ser monitorados por centros especializados criados para essa finalidade.

Em 2003, foi inaugurado o Centro de Aplicação e Monitorização de Medicamentos Injetáveis (CAMMI) do Hospital Sanatório Partenon na cidade de Porto Alegre-RS. Sob a responsabilidade da Política de Assistência Farmacêutica Estadual, seus objetivos são a administração de medicamentos para o tratamento da hepatite, acompanhamento e monitoração, realizados por equipe multiprofissional (RIO GRANDE DO SUL, 2003RIO GRANDE DO SUL. Secretaria do Estado. Porto Alegre, 2003. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=18044>. Acesso em: 10 jun. 2010.
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).

O universo empírico da pesquisa foi composto por pessoas vivendo com hepatite C crônica em tratamento com Interferon peguilado injetável realizado no CAMMI. Em acordo com a equipe, foram definidos os seguintes critérios para a seleção: homens e mulheres, preferencialmente em igual número; que já tivessem ultrapassado a 24ª semana do tratamento, porque, segundo a literatura, quando não há a negativação ou diminuição da carga viral depois de transcorridas 12 semanas, o tratamento não é continuado (BRASIL, 2011______.______. Portaria SVS nº 221, de 13 de julho de 2011. Dispõe sobre o Protocolo Clínico e as Diretrizes Terapêuticas de Hepatite Viral C e Co-infecções. Brasília, 2011.; FERNANDÉZ, 2007FERNANDÉZ S. Tratamiento de la Hepatitis C Aguda. Revista de la Sociedad Venezolana de Gastroenterologia, Caracas, v. 61, n. 3, p. 213, 2007.; VELOSA , 2012VELOSA J. et al. Recomendações para a terapêutica da hepatite C. J Port Gastrenterol, Lisboa, v. 19, n. 3, p. 133-139, 2012.). Portanto, todos os usuários que permanecessem em tratamento após a 12ª semana poderiam ser convidados a participar do estudo, desde que tivessem mais de 18 anos, domiciliados em Porto Alegre e região metropolitana e que aceitassem participar da pesquisa. Dos 30 prontuários selecionados, 21 usuários foram convidados e dez aceitaram participar.

Assim, o universo constituiu-se de dez entrevistas com cinco homens e cinco mulheres com idades entre 38 e 73 anos. Destes, oito residiam em Porto Alegre e dois na região metropolitana. Em relação à situação no trabalho, dois eram motoristas de ônibus aposentados, uma dona de casa, uma auxiliar administrativa aposentada, um funcionário público, um advogado, um comerciante, um bancário aposentado, uma vendedora e uma prestadora de serviços gerais. Todos eles solicitaram tratamento por via administrativa.

Realizou-se a observação das situações de atendimento, onde se fez a aproximação para uma primeira conversa sobre a disponibilidade de participar da pesquisa. A abordagem foi feita no horário da aplicação dos medicamentos ou da consulta com os farmacêuticos. A enfermeira do centro também participou, convidando alguns pacientes pessoalmente ou por telefone. Os demais foram convidados pela pesquisadora na sala de espera, onde explicava o estudo e seus objetivos. Todos preferiram conceder as entrevistas no horário e local do atendimento.

Realizou-se a coleta de dados por meio de entrevistas narrativas (FLICK, 2009FLICK, U. Introdução à Pesquisa Qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009), guiadas por ideias norteadoras que propiciassem a exploração dos significados da doença e das escolhas terapêuticas sobre suas vidas, as vulnerabilidades provocadas e os novos modos de subjetivar-se. As entrevistas foram conduzidas a partir de três ideias norteadoras: significados que o usuário atribui à experiência da doença na sua história de vida; aspectos determinantes para a produção de vulnerabilidades no enfrentamento da hepatite C; e percepções do usuário sobre os itinerários percorridos na busca pela cura. Após, foram sistematizadas e enriquecidas com anotações do caderno de campo.

A leitura e compreensão das narrativas seguiu a perspectiva fenomenológica (GARNICA, 1997GARNICA, A.V.M. Algumas notas sobre pesquisa qualitativa e fenomenologia. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 1, p. 109-122, 1997.), permitindo analisar e destacar unidades de significado que indicam como os usuários percebem em suas vidas o fenômeno da hepatite C. Na análise das convergências e divergências nas unidades de significado, apareceram duas categorias: o tratamento como produtor de vulnerabilidades e o enfrentamento e reorganização das subjetividades. Essas categorias foram discutidas com base na literatura sobre as experiências do adoecimento e do cuidado e sobre produção de vulnerabilidades na área da saúde coletiva.

A pesquisa foi aprovada pelo CEP da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul com o Protocolo CEPS-ESP nº 598/10.

Resultados e discussão

As narrativas analisadas evidenciam uma forma de organização em que os entrevistados relatam sua experiência por meio de uma retrospectiva biográfica pontuada por eventos significativos. São relatos emocionados, demonstrando a intensidade do momento em que tem a oportunidade de expor sua visão sobre o adoecimento e o tratamento.

Tratamento como produtor de vulnerabilidades

As pessoas acometidas pelo vírus da hepatite C percorrem caminhos difíceis, depois de receberem o diagnóstico da doença, na busca de cuidados terapêuticos, itinerários, esses, que envolvem práticas individuais e coletivas. Esses caminhos se dão em determinados contextos e estão perpassados por processos sociais que, em muitos casos, produzem vulnerabilidades, que Ayres . (2003, P. 123)AYRES, J.R.C.M. et al. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (Orgs.) Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. define como

  1. o movimento de considerar a chance de exposição das pessoas ao adoecimento como a resultante de um conjunto de aspectos não apenas individuais, mas também coletivos [e] contextuais

e, vinculado a isso, o maior ou menor acesso a recursos adequados para se proteger das consequências indesejáveis da situação.

Pode-se destacar que a produção de vulnerabilidades perpassa todo o itinerário de tratamento dos entrevistados desde a descoberta da doença até a própria terapêutica proposta e os impactos que esta traz no plano individual e social. Destacam-se, ainda, aspectos da produção de vulnerabilidades que dizem respeito às três dimensões apontadas por Ayres (2003)AYRES, J.R.C.M. et al. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (Orgs.) Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.: individual, social e programática, como analisado a seguir.

Após a confirmação do diagnóstico, os entrevistados relataram traçar um percurso de busca de informações, ainda sem sentir os efeitos, somente com a preocupação por sua condição de 'portadores' da doença. A evidência da descoberta indireta e surpreendente do diagnóstico foi expressa na narrativa de Francisco, que, ao doar sangue, ouviu: "o senhor está com hepatite C e o seu sangue não vai poder ser usado e vai ter que ir para o livro, porque o senhor não tem mais condições de doar sangue".

Percebe-se que o impacto do diagnóstico produz vulnerabilidades no plano individual, considerando as percepções e as maneiras de agir inerentes aos saberes e às possibilidades de cada sujeito. Como expressa Daniel, ao sentir dor no abdômen, foi ao posto de saúde e descobriu por acaso: "e aí eu fiz o exame, trouxe pra doutora, ela olhou e disse não tem pedra, tu estás com hepatite C. E ali já começou o meu aborrecimento...".

Como afirma Bastos (2007)BASTOS F.I. O som do silêncio da hepatite C. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007., a hepatite C desenvolve-se durante anos sem manifestar os danos que causa ao organismo, sem qualquer sintoma. Essa diferença em relação a outras patologias crônicas causa nas pessoas uma sensação de surpresa e impotência frente ao diagnóstico.

Os relatos mostram que no percurso do diagnóstico ao tratamento as pessoas passam por muitos exames, consultas com especialistas, intervenções mais invasivas, como conta Inês: "eles faziam exames, mais exames e assim eu levei de 2007 até o início de 2010. Foi todo esse tempo, exames de dois em dois meses, consultas...".

O longo tempo transcorrido é percebido como gerador de vulnerabilidades, pois são meses ou anos considerados perdidos, em que a doença se desenvolve sem se poder 'fazer nada', ficando à mercê do protocolo de tratamento.

Uma vez começado o tratamento, os efeitos colaterais são relatados como 'muito duros', tornando-se impeditivos para as atividades dessas pessoas. As condições físicas pioram:

  1. Sintomas de início eu senti... vontade de vomitar, dor de cabeça, febre, eu tive quase 40 de febre[...]. Acho que o meu organismo não estava preparado para aquela aplicação (Francisco).

Ao narrar tais situações, eles revisitam um sofrimento passado e ainda vivo, que relacionam com o atual, referido como modificador do 'andar natural de suas vidas', como relata Fernando: "talvez a gente não se sente bem com ela, fica capenga, vamos dizer assim, das atividades. É quando você está no tratamento, porque antes eu não sentia nada".

No plano individual, pode-se notar que a descoberta da doença não implica necessariamente uma ruptura biográfica, tal como define Canesqui (2007)CANESQUI, A.M. Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec, 2007., para falar das doenças crônicas como experiência em que há rupturas nas estruturas, significados e conhecimento na vida do enfermo. Porém, a incerteza quanto ao início do tratamento, seja pela demora dos protocolos, seja pela demora devido ao descompasso entre oferta e demanda, provoca situações de vulnerabilidade. A hepatite C é referida como modificadora da biografia desses usuários quando iniciam os exames de acompanhamento e o tratamento.

Os efeitos colaterais do tratamento também produzem vulnerabilidades, sejam elas no plano individual ou social. A dimensão social da produção de vulnerabilidades refere-se às práticas coletivas de enfrentamento e as adversidades, conforme a disponibilidade de recursos e o acesso a esses recursos.

Pode-se ressaltar que a vida cotidiana dos enfermos, nas suas várias dimensões - trabalho, atividades domésticas, relações familiares, questões financeiras -, sofre restrições que interferem nas dinâmicas sociais:

  1. Estou com estafilococos, tive herpes nas pernas, fiquei com as pernas todas pretas assim. [...] Mas mesmo assim, até novembro, até fim de novembro, eu tentei trabalhar. Eu trabalhava dois, três dias, nos dias da aplicação eu não trabalhava (Pedro).

No caso de Maria, aposentada, que também vive com AIDS, a renda é baixa e o tratamento da hepatite C aumentou seus gastos. Sem apoio ou assistência social ela relata:

  1. Tu não tens um suporte financeiro [...] porque eu moro em Alvorada. Eu preciso pegar dois ônibus pra vir aqui [...]. Então tu tem que disponibilizar passagem, o meu salário é pouquinho [...]. Se não vem no dia, vem no outro...

Vários entrevistados relataram os impactos da doença relacionados com a produção de vulnerabilidades no plano programático, ou seja, nas brechas abertas pelas instituições de saúde nos cuidados prestados.

Pedro expressa o desejo de apoio psicológico e uma atenção mais inclusiva, evidenciando a fragilização do indivíduo pela doença:

  1. Talvez, primeiro, o SUS pudesse disponibilizar acompanhamento psicoterapêutico. Segundo, talvez pudesse viabilizar a formação de grupos para as pessoas que quisessem participar [...]. Talvez isso ajudasse nesse período...

Essa frase pode ser relacionada com o que Gertner (2009)GERTNER, A.K. Pharmaceutical care, public experiments and patient knowledge in the Brazilian Public Healthcare System. 147 f. 2010. Monografia (graduação em Antropologia). - Universidade de Princeton. Nova Iorque, 2010. evidencia como a experiência dos sujeitos quanto à solitária responsabilidade de enfrentar as vulnerabilidades impostas pela tecnologia médica.

Os entrevistados apontam as fragilidades das ações em saúde pública ao não contemplarem a integralidade dos sujeitos que se defrontam com tecnologias médicas que impõem reorganizações da sua subjetividade.

Enfrentamento e reorganização das subjetividades

A mudança de situação na vida do sujeito em processo de adoecer envolve transformações de diferentes ordens. Nesse processo de transformação, a subjetividade é reorganizada dando dimensões diferenciadas aos pensamentos, às emoções e às ações do sujeito, de acordo com os aspectos sociais e culturais que permeiam sua vida (MOURA , 2011MOURA, R.C.; PERES, V.L.A.; GONZÁLEZ REY, L. Doenças crônicas, subjetividade e construção de categorias da saúde. Estudos, Goiânia, v. 38, n.01/03, p.173-195, 2011.).

Na narrativa de Daniel sobre o enfrentamento da doença, evidencia-se a visão da enfermidade como perda relacionada aos frouxos vínculos sociais que o sujeito vivencia:

  1. Aí, me explicaram tudo sobre a doença. Mas veio aquela tristeza, aquela angústia. Já que eu sou viúvo, moro só, solidão, então, fiquei triste. Não tinha nada há bem pouco tempo atrás e agora me aparece isso aí...

Maria, com uma compreensão diferente sobre o adoecimento, entende a hepatite C como mais um desafio a vencer, e relaciona esses desafios à manutenção de estreitos vínculos familiares:

  1. Eu enfrento o HIV faz dez anos. Eu luto e mato um leão por dia. Eu já tive tuberculose, eu já tive tudo que é tipo de infecção que possa imaginar [...]. Por causa dos meus filhos, por eles. Eles precisam de mim.

Essas divergências nos levam a pensar como as reorganizações subjetivas estão relacionadas com as vivências e trajetórias, com os significados dados à doença, assim como com os vínculos sociais de apoio.

Os entrevistados expressam a importância da participação dos familiares, cônjuges, e até dos próprios médicos como motivadores para o início e a continuidade do tratamento:

  1. Eu estava muito pra baixo. O médico disse: "dona Inês, aguenta firme, não desiste". Aí eu disse: mas quem disse pra ti que eu vou desistir, não vou desistir nunca, nem que eu vou de arrasto até o fim [...]. Se a gente não tem vontade já é uma batalha perdida (Inês).

A reorganização das subjetividades está vinculada, também, a fatores coletivos, como oferta e acesso aos serviços de saúde. A equipe do centro foi referida por todos os entrevistados como importante para o enfrentamento e o sucesso de seus tratamentos, como diz Pedro:

  1. O CAMMI é um serviço diferenciado em termos do SUS[...]. Principalmente aqui, é uma área profissional muito capacitada. Dá apoio, uma força muito grande e é uma cultura diferente [...]. É uma cultura do setor, eles te dão uma relação especial, então o serviço pra mim é 100%.

No caso da hepatite C, a opção pelo tratamento, muitas vezes, é feita para seguir a prescrição médica, ainda que não sintam doentes. Esse 'compromisso com quem prescreve' é referido por Lefèvre (2001)LEFÈVRE, F. O medicamento como mercadoria simbólica. São Paulo: Cortez, 2001. ao explicar a simbologia do medicamento para pacientes que não experimentam nenhuma sensação da doença. Cumprindo o compromisso, fazendo o tratamento, eles atendem a uma exigência social e o medicamento simboliza o que o autor chama de 'saúde social'.

Os caminhos de busca pela cura desses sujeitos expressam a adequação às orientações médicas e o direcionamento aos recursos diagnósticos e terapêuticos ofertados pelo sistema público de saúde como única possibilidade de estabilização da doença. Outras formas de cuidado são vistas como 'reforços' para a continuidade do tratamento com o Interferon.

A visão biomédica, que tem pautado o enfrentamento da hepatite C, mostra-se insuficiente por não considerar todas as dimensões envolvidas, principalmente as culturais e sociais (BASTOS, 2007BASTOS F.I. O som do silêncio da hepatite C. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.).

Segundo Gerhardt (2007)GERHARDT, T.E. Itinerários terapêuticos e suas múltiplas dimensões: desafios para a prática da integralidade e do cuidado como valor. In: PINHEIRO R.; MATTOS, R.A. (Orgs.) Razões públicas para a integralidade em saúde:o cuidado como valor. Rio de Janeiro: IMS/UERJ: CEPESC/Abrasco, 2007., é necessária a compreensão dos problemas ligados à saúde e à capacidade de mobilização de 'recursos sociais' que respondam aos problemas encontrados e às trajetórias que conduzam os indivíduos a determinada situação. Pensar na prática da integralidade inclui pensar o cuidado como valor ético, o cuidado como redes sociais e, principalmente, abrir espaço para a diversidade, tornando possível a instituição do apoio social como prática de saúde por parte dos profissionais.

Junges e Zoboli (2012)JUNGES, J.R.; ZOBOLI E.L.C.P. Bioética e saúde coletiva: convergências epistemológicas. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v.17, n. 4, p. 1049-1060, 2012. conceituam saúde como a capacidade de reagir aos diversos fatores que vulnerabilizam o equilíbrio vital, a fim de reorganizar, na subjetividade e em interação com o contexto socioambiental, os elementos biológicos, psicológicos e simbólicos. Essa capacidade é expressa no seguinte relato:

  1. Porque em vez de reclamar, a gente tem que reagir. E eu não falo isso aqui só, sentada olhando para ti. A gente vem na vida para vencer um obstáculo. Enquanto eu tiver força, ninguém vai tomar conta de mim, só eu[...]. Eu não preciso de ninguém para sair, para vir fazer tratamento (Rosane).

A fala mostra uma reação individualizada à doença, que, não sendo abordada na sua dimensão coletiva, perde visibilidade no espaço público (ADAM; HERZLICH, 2001ADAM, P.; HERZLICH, C. Sociologia da doença e da medicina. Bauru: Edusc, 2001.). Ao inverter essa lógica, aumentando a articulação com o social e a interlocução com os grupos de apoio, as políticas públicas poderiam avançar na direção da integralidade.

As narrativas expressam uma incerteza em relação ao futuro. Alguns falam em doença terminal, outros falam de esperança e fé em Deus. Não foram expressas estratégias concretas para seguir a vida depois do tratamento, apenas a vontade de superar e viver.

Considerações finais

Complexas vulnerabilidades foram referidas pelos usuários. Inicialmente, por ignorar os riscos de infecção e/ou a condição de portador do vírus; durante o diagnóstico, pela dificuldade de realizar muitos exames e a espera pelo tratamento; pelos efeitos adversos severos da medicação, restrições ao trabalho e à vida social. E, por fim, na busca solitária da reorganização de suas vidas. Por isso, a qualidade de vida dessas pessoas depende, em muito, do contexto.

Percebe-se que o enfrentamento da hepatite C tem sido uma responsabilidade dos indivíduos centralizada no tratamento e não na reorganização de suas vidas. A dimensão social/coletiva do enfrentamento quase não aparece nos relatos, restringindo-se ao apoio das relações familiares, da religiosidade e da equipe do serviço de saúde.

A ampliação da assistência ao usuário com hepatite C precisa suplantar os limites da visão biomédica. Os protocolos de tratamento contemplam os testes diagnósticos e os medicamentos, mas a atenção integral depende da organização da rede assistencial e de políticas desenvolvidas pelos gestores da saúde pública.

Tais complexidades remetem a intervenção à abordagem intersetorial, na perspectiva da integralidade, respeitando as diferenças e valorizando as redes de apoio social. O apoio social foi pouco referido, o que sinaliza a necessidade de reflexão da gestão sobre essa questão.

Houve avanço com a publicação do novo protocolo que valoriza a atitude do profissional e da equipe de saúde em promover acolhimento, aconselhamento e abordagem individualizada. Ressalta-se a capacidade de estabelecer diálogo e relação de confiança, além da flexibilidade e negociação com o paciente, facilitando o acesso a informações sobre o tratamento como importantes estratégias de promoção da saúde e atenção integral.

A estratégia de implantação de centros de aplicação de medicamentos revela-se uma iniciativa capaz de minimizar algumas vulnerabilidades e foi valorizada por todos os sujeitos do estudo. É necessário, porém, melhorar a estrutura física e equacionar o número de profissionais da equipe para atender à demanda. É necessário ampliar a rede, localizando estrategicamente os centros de atendimento e agregando psicólogos às equipes no acompanhamento do sofrimento psíquico do usuário durante o tratamento.

Referências

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  • Suporte financeiro: não houve

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    Out 2013
  • Aceito
    Mar 2014
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