A crise no cotidiano dos serviços de saúde mental: o desafio de experimentar desvios e favorecer a potência inventiva

The everyday crisis of mental health services: the challenge of experiencing deviations and encouraging inventive power

Aline Monteiro Garcia Hellen de Castro Pena Costa Sobre os autores

Resumos

Este artigo parte das práticas em saúde mental de um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) para discutir as concepções de crise que circulam no cotidiano desse serviço. Aqui a crise aparece como mais um sintoma a ser sanado pelas terapias e medicações ou prevenido pelo poder de polícia. No entanto, se aposta na potência inventiva da crise como momento catalisador da construção de novos territórios existenciais para esses sujeitos em sofrimento. Utilizou-se um caso como acontecimento analisador para que, a partir da sustentação de tal crise no Caps, os serviços repensem seu modo de organização e os profissionais possam colocar em análise os afetos produzidos por tal acontecimento.

Intervenção na crise; Saúde mental; Criatividade


This article grounds on the mental health practices of a Psychosocial Attention Center (Caps) to discuss the conceptions of crisis inherent to the daily life of that service. Here, the crisis appears as another symptom to be cured by therapies and medications or to be prevented by police power. However, we can invest on the creative power of the crisis as catalyst for the building of new existential territories to those persons in pain. We chose a parsing event case for, from Caps support to such crisis, the services to rethink their organization and the professionals to review the affections produced by such event.

Crisis intervention; Mental health; Creativity


Introdução

As reflexões contidas neste texto emergem da prática das autoras como psicólogas de um Centro de Atenção Psicossocial I (Caps I), que atende pacientes com transtornos mentais graves ou com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. No município que sedia esse serviço, localizado no sul do Estado do Rio de Janeiro, vivem cerca de 17 mil habitantes, que contam com ampla cobertura do Programa de Saúde da Família (PSF), ambulatórios e um hospital geral municipal. Ainda que no município vizinho exista um antigo hospital psiquiátrico em pleno funcionamento, a aposta atual do Programa de Saúde Mental é evitar ao máximo que se internem pacientes em crise nesse manicômio.

É histórica a prática de internar, nesse hospital psiquiátrico, todo e qualquer tipo de 'desvio' dos padrões esperados de comportamento. No entanto, outros destinos possíveis estão sendo construídos para os momentos difíceis dessa população.

A articulação com a atenção básica e com o hospital geral, no que tange às questões de saúde mental, está crescendo e dando bons frutos, apesar das dificuldades e resistências à nova política ainda se fazerem presentes no cotidiano. O próprio reconhecimento do Caps como dispositivo de atendimento à crise também acontece, o que incita a pensar como isso pode ser alterado. Desse modo, discute-se aqui um momento de crise, visto como acontecimento analisador11Segundo Lourau (1993), é um acontecimento que faz surgir, com mais força, uma análise, fazendo irromper a instituição "invisível". Esse conceito será trabalhado ao longo do texto, bem como a interrelação entre instituído, instituinte e instituição. que mobiliza este dispositivo, cujo entendimento dado por Foucault (1979, P. 244)FOUCAULT, M. Sobre a História da sexualidade. In: ______. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. é:

  1. um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos.

O acontecimento-crise mobilizou o dispositivo, que, encarnado em falas, medos, pedidos de leis e normas pela equipe do Caps, fez levantar a poeira do instituído, trazendo à tona o dito e o não dito, produtores dos tensionamentos nos modos de atendimento à crise no atual momento da reforma psiquiátrica.

Sendo assim, este texto visa utilizar tal acontecimento como analisador, com o objetivo de lançar outros olhares sobre esse momento, que, à primeira vista, parece algo difícil e complexo de contornar, podendo servir como abertura a novos modos de existência, abrindo caminhos a outros modos de funcionar, seja dos pacientes, seja do próprio serviço. A intenção é que a crise passe a ser tomada em sua positividade, e não apenas como algo negativo que, apesar de mobilizar sentimentos como medo, raiva, e, por vezes, até mesmo agressões, possa trazer elementos para a análise das práticas e organização do serviço.

Entre gritos e medos, quais criações possíveis? - (re)vendo a crise

Gritos, cadeiras ao alto, mesas jogadas, telefone quebrado, agressividade. Eis um momento de surto de uma paciente no Caps. A equipe, pega de surpresa, precisa agir prontamente; algo tem que ser feito. Mas o ocorrido não parou por aí: reverberou na equipe, produziu efeitos, incômodos. Circulavam discursos demandando o poder policial. Foi dito que, talvez, uma solução para o ocorrido seria a de ter um guarda municipal de plantão no Caps, uma farda que colocaria respeito, que poderia prevenir as crises. Era preciso manter a paz e, nos casos em que ela fosse rompida, restaurá-la. A crise, tomada em seu aspecto negativo, precisa ser sanada, impedida, por um poder que a vigie; ou seja, que teoricamente a impeça de se manifestar, para proteger e garantir a suposta regularidade do cotidiano do serviço.

A demanda por um poder policial incumbido de vigiar para evitar outras crises remete à atualização de forças de normalização, analisadas por Foucault naquilo que ele chama de sociedade disciplinar. Ainda que, segundo Deleuze (1992)DELEUZE, G. Post-scriptum - sobre as sociedades de controle. In: ______. Conversações: 1972-1990. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. se esteja vivendo um momento histórico de passagem das disciplinas ao controle, não se tem aí uma passagem definitiva. Há embate de forças e, ainda hoje, se atualizam cotidianamente as práticas disciplinares.

O risco de novas crises, que deve ser minimizado, informa sobre a necessidade de controlar não o que o indivíduo faz ou é, mas o que pode vir a ser. Veem-se aí processos de normalização e disciplinas que remontam aos séculos XVIII e XIX. A disciplina toma os indivíduos como objeto de saber e instrumentos de poder. Por meio de um regime de visibilidade voltado para vigiar e corrigir, para adequar à norma, a disciplina fabrica sujeitos. As disciplinas dizem respeito a um modo de exercício de poder que atua nos detalhes, qualificando e reprimindo comportamentos e expressões que escapam ao que é definido como normal.

Através da disciplina, aparece a norma, que, ao final da era clássica, tem a regulamentação e a vigilância como instrumentos de poder. Esse poder de regulamentação, em certo sentido, força uma homogeneidade, porém, individualiza, medindo os desvios e ajustando as diferenças. Entra em cena o exame, como técnica de geração de visibilidade, classificação e hierarquização. Fica clara, no exame, a superposição da produção de saberes e o exercício de poderes sobre o sujeito. Mas não quaisquer poderes e saberes. Desse modo, o poder da norma introduz uma gradação de diferenças individuais dentro de uma homogeneidade, que é a regra. Com a norma, tem-se a passagem de uma regularidade observada a um regulamento a ser seguido (FOUCAULT, 2000______. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2000.).

A regra, no caso analisado, seria supostamente um cotidiano sem grandes problemas, no qual os pacientes viriam ao serviço tranquilos, sem maiores 'alterações' de comportamento, sem causar situações que escapem à predição e ao controle. E para garantir o poder da norma, há o exame.

O exame dá destaque à visibilidade do sujeito por meio de uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. O indivíduo torna-se um 'caso', com história, descrição e projeções. Desse modo, pode-se ver, no caso da crise da referida paciente, a realização de técnicas de exame: discutiu-se o caso em reunião de equipe, retomou-se sua história, foram feitas propostas - produção de saber, atravessadas por relações de poder que reivindicavam 'ordem' e 'respeito' a serem garantidos por um poder policialesco, materializado nos agentes da guarda municipal.

Foucault (2000)______. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2000. analisa uma construção da época moderna que deixa evidente o exercício do poder disciplinar: o panóptico, organização arquitetônica em que todas as celas estão de frente para uma torre central, na qual pode estar um vigia. Ele observa todos, mas eles não se veem, não se comunicam nem têm certeza de que alguém realmente os observa daquela torre (FOUCAULT, 2000______. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2000.).

Sendo assim, a vigilância é permanente e internalizada pelo vigiado, pois, ao não ter certeza que está sendo vigiado, age como se estivesse constantemente, a fim de evitar os efeitos punitivos que comportamentos desviantes poderiam causar. Assim, o panóptico fabrica os mesmos efeitos de poder, que atua no corpo, para atingir a alma, produzindo subjetividades que internalizam a norma. O modelo panóptico passa a ser utilizado em outros estabelecimentos: escolas, oficinas, hospitais, internatos, dentre outros.

A extensão das instituições disciplinares no século XVIII é resultante de profundos processos de transformação social: a disciplina não mais se dedica apenas a neutralizar perigos ou evitar inconvenientes. A partir de então, visa a aumentar a utilidade possível dos indivíduos. Além disso, a disciplina passa a não mais ter sua atuação restrita aos estabelecimentos disciplinares; a vigilância se externaliza para além dos muros, e passa a exercer controle na vida cotidiana dos indivíduos, por mecanismos sutis, aparentemente bem intencionados. Ocorre também a centralização de mecanismos de disciplina em aparatos do Estado - especialmente através da polícia, compondo uma vasta rede hierarquizada que deve exercer poder por meio de uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível; tudo o que acontece deve ser controlado - a massa dos comportamentos, ações, opiniões, acontecimentos. Assim, "o soberano, com uma polícia disciplinada, acostuma o povo à ordem e à obediência" (FOUCAULT, 2000, P. 177______. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2000.).

Mas será a crise uma questão necessariamente de afronta à ordem e à moral? De acordo com a definição do dicionário Houaiss (2004)HOUAISS, A.; VILLAR, M. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004., crise significa:

  1. 1. Estado de manifestação aguda ou agravamento de doença física, mental ou emocional 2. manifestação repentina de um sentimento 3. estado de incerteza e vacilação 4. fase crítica de uma situação 5. momento de desequilíbrio emocional (HOUAISS, 2004, P. 201HOUAISS, A.; VILLAR, M. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.).

O próprio dicionário define a crise como um momento agudo, repentino, de incertezas, e, pode-se dizer, como algo imprevisível, no sentido que, por mais que se conheça um paciente, ele pode surpreender com um determinado repertório de comportamentos provocado por um momento de desequilíbrio emocional, vindo a gerar manifestações inesperadas.

Etimologicamente falando, o vocábulo crise vem do grego krisis, verbo krinein, que significa separar ou decidir. Era usado pelos médicos antigos para referir-se a um estado do paciente no qual haveria um desfecho: cura ou morte. Indicava, então, que algo se irrompe, e por isso, deve ser analisado, pois ali os médicos teriam que analisar os sintomas e agir no sentido de decidir se o paciente viveria ou morreria. Tratar-se-ia, então, de uma situação nova, aguda, que mereceria atenção e especial análise. Daí também deriva o termo 'crítica', que significa análise ou estudo de algo para emitir um julgamento, e critério, que seria a racionalidade adequada para tal.

Remete-se à Guattari (2008)GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolíticas: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2008. para ampliação da análise sobre a crise em termos de sua produção histórico-social. Esse autor mostra que vivemos no chamado Capitalismo Mundial Integrado (CMI), que produz subjetividades do tipo capitalísticas, e trata a subjetividade não por sua essência, mas como produção. Para ele, o que é produzido pela subjetividade capitalística, o que nos chega via mídia, família e todos os equipamentos sociais que nos rodeiam não são apenas ideias, mas sistemas de conexão entre as grandes máquinas produtoras de controle social e as instâncias psíquicas, a maneira de perceber o mundo.

Guattari (2008)GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolíticas: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2008. acrescentou o sufixo 'ístico' ao vocábulo capitalista por sentir a necessidade de criar um termo que pudesse designar não apenas as sociedades qualificadas como capitalistas, mas também setores do chamado Terceiro Mundo, bem como as economias socialistas de países do leste. Tais sociedades, segundo o autor, funcionariam com uma mesma política do desejo no campo social, com o mesmo modo de produção de subjetividade e de relação com o outro. O CMI não restringe seus focos de poder às estruturas de produção de bens e serviços, mas, através principalmente do controle que exerce sobre a mídia, amplia o exercício de poder para as estruturas produtoras de signos, de sintaxe e de subjetividade (GUATTARI, 2005GUATTARI, F. As três ecologias. 16 ed. São Paulo: Papirus, 2005.). A subjetividade capitalística é engendrada de modo a descartar da existência os acontecimentos que podem atrapalhar e perturbar a opinião. Sendo assim, qualquer dissenso e produção singular de existência deveriam ser evitados ou avaliados e aprovados por aparelhos e quadros de referência especializados (GUATTARI, 2005GUATTARI, F. As três ecologias. 16 ed. São Paulo: Papirus, 2005.).

Sendo a crise um acontecimento inédito, rompe intempestivamente a suposta linearidade da existência humana. Pensa-se que a necessidade de prevenção ou contenção, e a aposta neste tipo de intervenção, atua no sentido de favorecer o instituído, o aumento da condição crônica desses pacientes, que, por apresentarem repetidas crises, acabam tendo seus vínculos rompidos ou enfraquecidos: trabalho, família, amigos, relacionamentos amorosos. Rompidos, porque a crise só costuma expor seu caráter destrutivo. Mas essa destruição pode comportar algo de criativo.

No entanto, não é fácil se deslocar dos lugares confortáveis, circunscritos. O instituído, entendido como aquilo que é congelado, estático, que tende a não mudar, que comporta forças para sua conservação está em constante tensionamento com forças instituintes, que tendem a transformar a vida social e são dinâmicas, criativas. Sendo assim, a vida é tida como um processo cambiante por excelência, que se desenrola na relação, no tensionamento entre instituído e instituinte. As forças instituintes produzem novos instituídos; e estes, para serem úteis à vida social, precisam estar sempre abertos à ação instituinte. Então, o acontecimento-crise mostra que ordem e normalidade são ilusórias, pois as forças instituintes estão em constante tensionamento com o instituído, forçando rupturas em seu funcionamento (BAREMBLITT, 1994BAREMBLITT, G. Sociedades e instituições. In: ______. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 2 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994.).

Se a crise for entendida como algo intrínseco à vida, assumindo que abarca não só a estabilidade, mas o próprio caos como possibilidade de desvio, potência criativa, há outra aposta possível. Aqui, pode-se recorrer à discussão que Rolnik (1992) faz sobre o homem da moral e o homem da ética. Segundo a autora, esses são vetores que constituem a subjetividade. O homem da moral transita no visível, age de acordo com os códigos, o conjunto de valores e regras de ação compartilhados em sociedade, fundamentais para a nossa sobrevivência. Mas a existência humana não se resume a isso; caso contrário, não existiriam os desassossegos, as inquietações com esses códigos, o caos, a desordem. O homem da ética seria aquela dimensão da nossa subjetividade que se move no invisível. Ele ativa uma perspectiva de abertura para a virtual diferenciação que acontece no encontro com o outro, tornando-se um veículo de atualização dessa diferença no visível, criando novos modos de subjetivação, de existência e de sociedade.

Sendo assim, a crise, esse momento perturbador, desconfortável, quando acolhido em seu potencial transgressor, possibilita que os fragmentos se reorganizem e produzam novos modos de existência. Vista como um lugar micro, da eclosão do novo, de funcionamento caótico, porém potente, pode produzir outras conexões, ganhar outro sentido. A aposta nas mudanças locais, nas transformações microscópicas, nas conexões circunstanciais que esse momento possibilita pode resultar em grandes mudanças do instituído, do funcionamento molar, que é aquele entendido como sendo o lugar das formas objetais, discursivas, visíveis, formais, constituídas. E assim, fica colocado o desafio de dar passagem ao devir, de modo que sua experimentação não se dê de forma desintegradora. Devir é movimento, passagem, referente à pluralidade e multiplicidade.

Lourau (1993)LOURAU, R. Análise Institucional e práticas de pesquisa. Curso ministrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1993 (mimeo). afirma que a ciência é atravessada pelos valores do profissional, independentemente da posição ideológica que possua (seja esquerda, direita ou centro).

  1. Logo, a neutralidade axiológica, a decantada 'objetividade', não existe.[...] Mas a ciência necessita que ela 'exista' e os cientistas, por vezes, nos fazem crer nessa 'existência' (LOURAU, 1993, P. 16LOURAU, R. Análise Institucional e práticas de pesquisa. Curso ministrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1993 (mimeo).).

A análise de implicações, método advindo da análise institucional, remete à análise dos lugares que ocupamos, ativamente, nesse mundo.

Esse conceito guarda certa proximidade com o conceito psicanalítico de contratransferência22De acordo com a psicanálise a contratransferência é um processo que envolve sensações, sentimentos e percepções que brotam no terapeuta, emergentes do relacionamento terapêutico com o paciente: como respostas às manifestações do paciente e o efeito que tem sobre o analista. É um sinal de grande significação e valor para orientar o terapeuta no trabalho analítico.. Entretanto, no institucionalismo, não é apenas psíquico nem inconsciente, mas de uma materialidade múltipla, sendo um processo imanente aos processos políticos, sociais, econômicos, tecnológicos etc.

Logo, o momento crise abre múltiplas possibilidades de reorganização da existência. Porém, aquilo que por nós ainda não é conhecido, que está aquém e além do eu, que, como unidade circunscrita, pode gerar estados inéditos, abalando nossos conhecidos contornos subjetivos. Isso nos desestabiliza e exige a criação de novos modos de existir que encarnem a diferença que reverbera, incomoda, à espera de um corpo que a traga ao visível, que institua novas formas de relações, novos modos de lidar com as crises. E, no cotidiano de um serviço como o Caps, percebe-se que não é o discurso científico que possibilita certas intervenções. É a essa potência inventiva do devir, nesse caso, que se deve a criação de manejos outros da crise que produzam brechas no poder instituído de polícia. Para tal, operar com o conceito de implicação se faz necessário, a fim de gerar rupturas no que está instituído.

A análise institucional como ferramenta de criação de outros possíveis - reorganizando práticas em equipe

Toma-se, então, tal acontecimento como uma situação analisadora. Um analisador se refere a acontecimentos que, por si só, colocam em análise as instituições, as relações percebidas como naturais ou necessárias. "Esses acontecimentos podem falar por si, produzirem sua própria análise" (COIMBRA, 2001, P.25COIMBRA, C. Operação rio: o mito das classes perigosas. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 2001.). Esse analisador histórico, produzido pela própria vida histórico-social natural, aparece como resultado de múltiplas determinações sobre como deve ser o modo de existência humano. Situações que rompem equilíbrios, momentos de descontrole, são hegemonicamente entendidas como perturbadores da ordem social. Assim aprende-se na vida: é preciso se manter equilibrado, estável ainda que a própria vida produza as condições para o desequilíbrio. E esse desequilíbrio, nesse caso, causou um desequilíbrio, uma crise também no serviço. Daí o aspecto instituinte dessa situação, de perturbar uma suposta ordem, de produzir deslocamentos no que está instituído sobre a necessidade de uma existência humana linear, sem crises, sem problemas. E aí a equipe precisou refletir, e discutir o que aconteceu.

No Caps Sonho Real existe o atendimento a situações de urgência e emergência. Na estrutura do quadro de horários de atividades do serviço está posto um profissional, a cada período, para atender às situações de 'emergência', principalmente quando ocorrem fora do Caps. Sendo convocado a atender uma situação de crise, o técnico pode utilizar o veículo do Caps e ir até o local solicitado. É importante perceber que, na organização do Caps, tal ajuda é considerada uma das estratégias do serviço. Porém, mesmo com essa organização, não há garantias de que o modo de pensar e acolher a crise não produza entraves. É justamente porque se tem que defrontar com isso que é necessário repensar o modo como se acolhem as situações de crise.

Vê-se então que, apesar de os Caps serem um serviço substitutivo às internações, preconizado em lei desde 2002, nos momentos de crise, ainda circula entre os profissionais a lógica do enclausuramento, mesmo que não se dê intramuros. Em documento do Ministério da Saúde, onde é descrito o modo de funcionamento dos Caps, estes serviços:

  1. devem oferecer acolhimento diurno e, quando possível e necessário, noturno. Devem ter um ambiente terapêutico e acolhedor, que possa incluir pessoas em situação de crise, muito desestruturadas e que não consigam, naquele momento, acompanhar as atividades organizadas da unidade. O sucesso do acolhimento da crise é essencial para o cumprimento dos objetivos de um Caps, que é de atender aos transtornos psíquicos graves e evitar as internações (BRASIL, 2004, P. 17).

Pode-se então dizer que o Caps, ainda que seja um serviço constituinte da reforma psiquiátrica, que visa evitar e reduzir internações, atuando no sentido de extinguir os hospitais psiquiátricos, locais de exclusão e anulação das diferenças, pode estar reproduzindo, em seu modo de funcionamento, a lógica do panóptico. Lógica esta que não mais necessita dos muros, da torre e das celas para funcionar, pois já está difundida nas múltiplas relações.

A ideia de uma vigilância da guarda municipal para impedir as crises encarna o funcionamento dessa lógica. Acredita-se que um sujeito fardado colocaria respeito, evitando que as crises aconteçam, como se fossem fruto necessariamente de um querer e uma afronta. Com a ação da guarda, seja ela ativa ou passiva, de coibir esses eventos intempestivos, os pacientes evitariam ter crises, por estarem sendo vigiados.

Qual o critério que se usa para dizer que um paciente está bem? É aquele que não dá trabalho, que fica quieto, calmo, supostamente estável? Partindo desse critério, o poder de polícia é demandado com vistas a restaurar uma 'ordem'. Vista por esse viés, a crise é tida como algo que diz respeito ao déficit de um sujeito que não consegue responder de forma adequada às exigências da vida. Nos momentos de crise, algo faltaria àquele sujeito e, na situação apresentada, precisaria ser tamponada, preenchida, quer pela guarda municipal, por medicação ou terapias. A crise é pensada apenas pelo seu viés negativo, como um acontecimento que deve ser contido, ter suas manifestações sanadas, algo que deve ser excluído da vida.

Percebe-se, em reunião de equipe, que o discurso sobre essa paciente a colocava no lugar de alguém que, muitas vezes, estava lá somente para tumultuar, que na verdade, nem precisava estar ali todos os dias e que usava o serviço como um 'palco' para realizar suas atuações. Mas isso era o que se supunha saber. As propostas apresentadas e as falas sobre aquela paciente estavam levando em conta o que ela pode falar de si mesma ou do momento da crise? Pode-se arriscar que não.

No Caps Sonho Real, realizam-se diversas atividades com os pacientes: oficinas de pintura, de futebol, de fuxico, atividades de geração de renda, grupos terapêuticos, psicoterapia individual, assembleias, visitas domiciliares, grupos de familiares, espaços de convivência. No entanto, o momento de crise desestabiliza o cotidiano das atividades, convocando todos ali presentes a deixar o que estiverem fazendo para olhar, intervir e pensar em algo que não está previsto e que incomoda. Mas é preciso pensar e repensar que, seja lá o que for feito com a crise, é necessário fazer de um modo a acolher aquele momento singular do paciente. Isso, tendo como norte as ações para que o paciente se recupere em seu próprio território, criando com o Caps uma referência de cuidado, e não de isolamento ou vigilância.

A situação aguda promovida pela paciente retirou os profissionais das atividades planejadas para construir uma intervenção acolhedora e singular. A tentativa de abordagem pela fala não se sustentou por si só, sendo necessário o apoio de toda a equipe ali presente no sentido de conter a paciente e aplicar uma medicação injetável, a fim de que fosse possível, posteriormente, a abordagem pela fala, na tentativa de ajudar a paciente a criar contornos para a sua desestabilização. Durante esse processo, profissionais da guarda municipal que trabalhavam em frente ao Caps ajudaram a conter a paciente de modo bastante humanizado, numa atitude de solidariedade.

Foi possível, após passar o momento de grande intensidade afetiva da paciente, mapear, junto com ela, o que se passava para culminar em tal acontecimento. A paciente estava prestes a realizar uma cirurgia e amedrontada com a anestesia, pois ouvira do médico que poderia deixá-la paraplégica. Além disso, havia sofrido abuso sexual recentemente. É claro que tais elaborações não aconteceram no mesmo dia da crise. Foi preciso suportar aquele dia, para que, ao longo dos dias seguintes, a paciente voltasse ao Caps e, nas conversas com os diversos profissionais da equipe, pudesse ligar tais situações à sua crise.

As crises dos pacientes afetam os profissionais, isso ficou evidente. O próprio título deste trabalho denuncia as implicações: a crise no cotidiano dos serviços - a crise de quem, do que? Do paciente, do serviço, do modo de organização do trabalho, dos profissionais? Ou tudo isso em rede, entrelaçado, num emaranhado de forças em tensionamento? Forças de conservação, forças de revolução, que também atuam nos profissionais. Não se quer dizer que não é preciso tomar decisões no momento da crise, mas, sim, que essas decisões devem ser entendidas como provisórias e circunstanciais.

Tal decisão pode até incluir uma internação. Também não se pode ter a ilusão de que os Caps conseguem contornar sozinhos toda e qualquer situação de crise. No entanto, o recurso ao hospital geral do município aparece como uma saída para os casos em que as intervenções no Caps não sejam resolutivas. Para tal, tem sido importante a construção de uma parceria com os profissionais desse serviço no sentido do entendimento que o hospital também é lugar de tratar saúde mental. Tal tarefa é árdua, mas necessária, sobretudo porque se trata de um Caps I, com horário de funcionamento restrito das 8 às 17 horas, nos dias de semana. E sabe-se bem que as crises dos pacientes não obedecem necessariamente a esse horário.

Portanto, o atendimento no hospital geral, com suporte da equipe técnica do Caps, que acompanha o paciente e direciona o seu projeto terapêutico, é fundamental para evitar as internações em instituições asilares. E é claro que um paciente em crise, quando atendido em hospital geral, desestabiliza também a própria rotina do serviço, muito mais rígida que a do Caps. Dessa forma, a equipe do Caps tenta trabalhar com os profissionais com o objetivo de produzir reflexões sobre a própria rotina do serviço; assim como um paciente em crise talvez precise caminhar, acompanhado, pelo corredor do hospital, para diminuir sua ansiedade, por exemplo.

O que a crise mostra como fora da norma pode servir de indicativo para um trabalho potente de subjetivação, com vistas a construir outros territórios subjetivos a partir da desterritorialização provocada pela crise. Aqui, entende-se a noção de território tal como Guattari (2008)GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolíticas: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2008. a concebe, sendo relativo não só ao espaço geográfico, como também a um espaço vivido e a um sistema percebido, no qual o sujeito se sente 'em casa'. Território seria, assim, sinônimo de apropriação, de uma subjetivação que se fecha em si mesma. Só que essa apropriação não segue um curso tão estável quanto pode parecer nem acontece de modo tão simples. O território pode se desterritorializar, ou seja, abrir-se a devires, sair do seu curso ou até mesmo destruir-se.

A espécie humana está cheia de exemplos disso, de esfacelamentos de diversos territórios construídos por muitos anos, como as mudanças nas relações de trabalho, nas crenças religiosas, nas tecnologias, nas relações familiares etc. Isso não quer dizer que o desfazer do território seja necessariamente algo bom, que nos salvaria dos males do território. Assim como um território pode ficar enrijecido, os processos de desfazimento do território não dão conta da existência humana. É preciso que novos territórios se criem, e aí se fala de refazer o território, que é a tentativa de recompor um território que se engajou num processo de desfazimento (GUATTARI, 2008GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolíticas: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2008.).

Nenhum poder constituinte se realiza em uma constituição. É preciso que o processo de desfazimento de território tenha pontos de parada, nos quais se criem novos corpos, novos modos de existência, até mesmo para que o processo de criação continue. A questão que se coloca é como refazer o território e quais territórios constituir. Deve-se cuidar para que não tornem regras enrijecidas, instituídos impermeáveis à ação instituinte, para não se reproduzirem dominações, sujeições e encarceramentos das singularidades dos pacientes ao modo hegemônico de existência.

Sendo assim, pode-se pensar que a crise da paciente desestabilizou não só a ela, mas toda a equipe e a organização do serviço. A partir da Análise Institucional, pode-se entender tal acontecimento como uma força instituinte, que provocou reações nos que estavam ali presentes, no sentido de iniciar um processo de refazimento do território, de produzir um instituído, tanto para que a paciente pudesse ter condições de contornar a crise como para que o serviço parasse para analisar os momentos de crise. Quando a guarda municipal ajudou - e isso foi fundamental no momento - a equipe propôs tornar isso uma regra, que valesse para todos os pacientes e que fosse colocada de antemão, a fim de evitar novas crises. Tais forças, operativas de um instituído da clausura, da contenção, que apareceram a partir dos afetos de medo e insegurança de alguns profissionais, puderam entrar em tensionamento com as forças instituintes, materializadas nos discursos de outros profissionais que tentavam produzir um novo instituído que não o da clausura.

Mas foi importante o que aconteceu em equipe: a reunião na qual surgiram discursos que asseguravam que a crise da paciente era apenas para 'chamar a atenção', e que, para dar 'limite' a essa atitude, era necessária a presença constante do poder de polícia, pôde ser também o momento em que se repensou a crise, o discurso sobre a paciente. Outros contornos foram dados: ressaltou-se a importância de escuta ao que a paciente teria a dizer, sendo possível sustentar, a partir disso, sua não internação e a não colocação de profissionais fardados da guarda municipal como um integrante do serviço.

Afirma-se desse modo, que o encontro semanal dos profissionais em reunião pode ser um lugar potente, onde se pode pensar, rever, construir as intervenções de modo singular, levando em conta que os pacientes têm necessidades diferentes, e, portanto, necessitam de intervenções diferentes.

Da análise deste caso, é possível evidenciar algumas contribuições para a organização dos serviços de saúde mental. O acontecimento-crise provocou, também, a crise no serviço e possibilitou a emergência dos instituídos, qual seja, a resposta à crise com enclausuramento, ainda que extramuros, e o poder de polícia, encarnados na possibilidade levantada de se ter um guarda municipal como vigilante de plantão no Caps.

Considerações finais

Ao se tomar a crise como força instituinte, houve efeitos diversos, que, provavelmente, não ocorreriam caso se decidisse pela internação da paciente. Nesse episódio, precisouse recorrer à ajuda da guarda municipal como forma de contenção, para compor com as estratégias de medicação da paciente no próprio serviço e, em momento posterior, possibilitar à paciente, através da escuta, sua elaboração discursiva em relação à sua crise.

Sendo assim, o recurso à guarda municipal foi circunstancial, e não algo a ser tomado como um regulamento, que deveria ser utilizado para todas as crises de qualquer paciente, nem como forma de 'impor respeito', com vistas a evitar, prevenir crises. Essas ações possibilitaram observar que é possível acolher a crise no Caps, realizando algumas intervenções, sem ter que demandar a clausura da paciente, e que a reorganização da paciente e sua responsabilização, ao serem acolhidas e suportadas, junto com ela, num momento difícil, permitiram a manutenção e fortalecimento do vínculo terapêutico na direção do fortalecimento da autonomia da paciente.

A aposta na capacidade da paciente de elaborar o acontecimento, e, a partir daí, construir novos modos de lidar com situações críticas de sua vida, expressa o entendimento do momento de crise não como mais um sintoma a ser controlado, mas, sim, como uma abertura ao devir.

Portanto, pensar o paciente em crise, antes de pensar em acabar com a crise por meio da lógica do poder e ordem disciplinar, é pensar nos dispositivos existentes e nos princípios norteadores da Reforma Psiquiátrica de acolhimento do sujeito em seu território subjetivo, com toda potência criadora e disruptiva que isso abarca.

Referências

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  • LOURAU, R. Análise Institucional e práticas de pesquisa Curso ministrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1993 (mimeo).
  • ROLNIK, S. À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e reinvenção da democracia. In: SPINK. M. J. P.; MAUTNER, A. V. A cidadania em construção: uma reflexão transdisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994.

  • Suporte financeiro: não houve
  • 1
    Segundo Lourau (1993)LOURAU, R. Análise Institucional e práticas de pesquisa. Curso ministrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1993 (mimeo)., é um acontecimento que faz surgir, com mais força, uma análise, fazendo irromper a instituição "invisível". Esse conceito será trabalhado ao longo do texto, bem como a interrelação entre instituído, instituinte e instituição.
  • 2
    De acordo com a psicanálise a contratransferência é um processo que envolve sensações, sentimentos e percepções que brotam no terapeuta, emergentes do relacionamento terapêutico com o paciente: como respostas às manifestações do paciente e o efeito que tem sobre o analista. É um sinal de grande significação e valor para orientar o terapeuta no trabalho analítico.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    Nov 2012
  • Aceito
    Jan 2014
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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