Territórios e sentidos: espaço, cultura, subjetividade e cuidado na atenção psicossocial

Territories and meanings: space, culture, subjectivity and care in psychosocial attentiveness

Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima Silvio Yasui Sobre os autores

Resumos

No contexto da saúde coletiva e da saúde mental, o conceito de território está presente em múltiplas dimensões e sentidos. Aparece em documentos que expressam princípios e diretrizes das políticas de saúde e no planejamento das ações locais, e é elemento central para organizar a rede de cuidado na atenção psicossocial. O presente ensaio busca discutir o conceito de território e seus usos nas práticas da atenção psicossocial, desenvolvendo um diálogo com o geógrafo Milton Santos e os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, que, de campos e perspectivas distintas, trabalham com esse conceito. Este diálogo possibilitou pensar o território em sua complexidade, como espaço, processo e composição, de forma a potencializar a relação entre serviço, cultura, produção do cuidado e produção de subjetividade.

Serviços de saúde mental; Saúde pública; Cultura


In the light of the collective health and of the mental health, the concept of territory is present in multiple dimensions and meanings. It appears in documents that express principles and guidelines of the health policies and in the planning of local actions, and it is a central element to organize the care network in psychosocial attentiveness. This present essay aims to discuss the concept of territory and its uses in the practices of psychosocial care, developing a dialogue with the geographer Milton Santos and the philosophers Gilles Deleuze and Félix Guattari who, from different fields and perspectives, work with this concept. This dialogue made it possible to think the territory in its complexity, as space, process and composition, in order to optimize the relationship between service, culture, production of care and production of subjectivity.

Mental health services; Public health; Culture


Introdução

No contexto da saúde coletiva, o conceito de território está presente em múltiplas dimensões e sentidos. Aparece em documentos que expressam princípios e diretrizes das políticas de saúde e está presente no planejamento das ações locais, especialmente na Atenção Básica.

A relação entre a produção de cuidado e o território no qual este cuidado é exercido é também uma questão central para a atenção psicossocial e aparece claramente enunciada em diversos documentos relativos à Reforma Psiquiátrica, a partir de 2002. A Portaria nº 336/02, por exemplo, institui os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) como serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico a serem criados de forma territorializada e tendo por característica 'responsabilizar-se, sob coordenação do gestor local, pela organização da demanda e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do seu território'. Esta mesma portaria estabelece, também, no Parágrafo 2 do Artigo 1, que os "CAPS deverão constituir-se em serviço ambulatorial de atenção diária que funcione segundo a lógica do território" (BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Assistência à Saúde. Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelece CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS i II e CAPS ad II. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 20 fev. 2002. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/Portaria%20GM%20336-2002.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2011.
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).

A 'lógica do território' é uma ideia central, norteadora das ações a serem engendradas pelos serviços, de forma intrinsecamente associada ao tempo e ao lugar em que as ações são elaboradas e realizadas. Neste contexto, os CAPS aparecem como estratégia de organização da rede de cuidados, considerando-se que a realização de parcerias entre serviços de saúde e serviços com a comunidade é vital para operar os cuidados em saúde mental, já que nenhum serviço poderia resolver isoladamente todas as necessidades de cuidado das pessoas de um determinado território (DELFINI 2009DELFINI, P. S. S. et al. Parceria entre CAPS e PSF: o desafio da construção de um novo saber. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.14, supl.1, p. 1483-1492, set./out. 2009.).

Porém, devemos estar atentos a dois aspectos relevantes: o primeiro refere-se aos múltiplos sentidos que a palavra território pode conter, já que o conceito de território tem sido utilizado e desenvolvido em diversos campos do conhecimento, como a Geografia, a Biologia, a Antropologia, a Sociologia, a Ciência Política e a Filosofia. Na saúde coletiva brasileira, este conceito adquire destaque, especialmente a partir da implantação do Sistema Único de Saúde como um dos princípios organizativo-assistenciais mais importantes desse sistema (UNGLERT, 1999UNGLERT, C. V. S. Territorialização em Saúde. In: MENDES, E. V. (Org.). Distrito sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1999.). O segundo aspecto refere-se aos processos que ocorrem no território, considerando suas múltiplas lógicas - algumas de emancipação e participação, outras que produzem sujeição e dominação. Para pensar a organização e as ações desenvolvidas nos serviços substitutivos ao manicômio, é fundamental que possamos considerar as diferentes lógicas do território, seus recursos, suas potencialidades, suas linhas de captura.

É sob esses dois aspectos que o presente ensaio pretende abordar a discussão do conceito de território. Após uma breve contextualização histórica, na qual evidenciamos a relevância do tema do território nas práticas de saúde mental, buscaremos desenvolver um diálogo com alguns autores que trabalham com o conceito de território, para que estes nos auxiliem a pensar como potencializar a relação entre serviço, produção do cuidado, espaço e cultura.

Os autores que elegemos para este diálogo foram Milton Santos, Deleuze e Guattari, que, de perspectivas e campos distintos, pensam o território em relação aos processos que o constituem e que o desmancham, sempre inseridos em jogos de força.

Para o geógrafo brasileiro,

O território tanto quanto o lugar são esquizofrênicos, porque de um lado acolhem os vetores da globalização, que neles se instalam para impor sua nova ordem, e, de outro lado, neles se produz uma contraordem, porque há uma produção acelerada de pobres, excluídos, marginalizados (SANTOS, 2001, p. 114SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.).

Já para os filósofos franceses, o território é pensando como uma construção provisória que se dá sempre em relação a processos de desterritorialização e reterritorialização. Nas palavras de Gilles Deleuze (1989, p. 4)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v. 4., "o território só vale em relação a um movimento através do qual dele se sai". E continua: "não há território sem um vetor de saída do território, e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte".

O lugar da loucura

O lugar das práticas psiquiátricas sempre se revestiu de especial importância. No Brasil, a expressão 'aos loucos o hospício', enunciada em 1830 pela Sociedade de Medicina, denunciava a situação na qual viviam os loucos no Hospital da Santa Casa da Misericórdia e exigia a criação de um lugar diferenciado para um 'verdadeiro tratamento' da loucura. Uma doença especial requeria, para ser tratada, um lugar especial, definido e dirigido pelo saber médico. Essa direção para a prática lançava as bases de uma psiquiatria nascente e, simultaneamente, incluía o louco nas medidas da medicina social voltadas para a profilaxia do meio urbano (MACHADO ., 1978MACHADO, R. et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.).

Machado . (1978)MACHADO, R. et al. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978. e Cunha (1988)CUNHA, M. C. P. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. evidenciam a influencia do alienismo na organização do espaço urbano e na manutenção da ordem social, na sociedade brasileira do século XIX e início do século XX. A maior parte dos hospícios brasileiros possui uma mesma característica: estão situados em lugares distantes do principal núcleo urbano da cidade. Sua arquitetura e sua localização revelam uma de suas principais funções: a exclusão de indivíduos não adaptáveis ou resistentes à ordem social.

Entre esses indivíduos, dois perfis destacam-se: o do vadio e o do estrangeiro. O vadio era percebido como alguém perigoso, que vivia no mato, separado das trocas humanas, misto de homem e animal. Organizar os vadios era um problema a ser enfrentado. Era preciso ordenar uma população que era caótica, revoltosa, mole, frouxa e, sobretudo, doente. A doença, a pobreza, o ócio, o vício e o crime caminhavam juntos em cidades sem trabalho, luxo ilusório que a escravidão possibilitava. O estrangeiro (negro, oriental ou europeu) ocupava também um lugar central nas preocupações da higiene mental que tomariam corpo no início do século XX, como se, para afastar e prevenir o risco da loucura, fosse preciso expulsar ou, em uma ação de assepsia, evitar os riscos da contaminação que aqueles que vinham de fora representavam.

Costa (1981)COSTA, J. F. História da Psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. Rio de Janeiro: Campus, 1981. relata-nos a história da Liga Brasileira de Higiene Mental, que, nos anos 1920 e 1930, tem a pretensão de constituir-se em um projeto de regeneração nacional, tomando como tarefa o saneamento racial brasileiro. Com um discurso preventivo de ideal eugênico, alargava o campo de atuação da psiquiatria para as diversas instâncias do social: a família, o trabalho e a escola.

Esse processo faz parte de um progressivo desenvolvimento do poder sobre a vida, que, a partir do século XVII, estará associado a um poder de normalização dos processos vitais. Esse desenvolvimento deu-se em duas formas principais: a primeira foi centrada no corpo e em seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, no investimento em sua docilidade e utilidade, e na extorsão de suas forças, por meio do que Foucault chamou de disciplinas, caracterizadas por uma anátomo-política do corpo. A segunda forma de poder sobre a vida, que emergiu em meados do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, como suporte dos processos biológicos, caracterizado pela dinâmica do vivo. Dessa forma de exercício do poder, que Foucault (1979______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.; 2001______. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.; 2008)______. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.chamou de biopolítica da população, interessa conhecer, regular e controlar os nascimentos, a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida de determinadas populações e todas as condições que podem fazer esses processos variarem.

A partir da instauração dessa biopolítica da população, modalidade de exercício do poder própria dos estados modernos, que faz sobreporem-se vida e política, vemos surgir um mecanismo de vigilância e controle, e a organização de populações divididas em grupos com características peculiares tomadas como traço identitário. A população será, então, objeto dos cálculos do poder e das análises de risco, orientadas pelas flutuações das curvas de normalidade nas quais todos serão posicionados (FOUCAULT, 2008______. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.).

Para falar da disciplina, Foucault (2001)______. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. utiliza como modelo a exclusão dos leprosos, que se caracteriza por uma prática de rejeição e marginalização dos indivíduos, que são assim expulsos da cidade e impedidos de circulação social. A disciplina associa-se à outra modalidade de exercício do poder, que parece ser mais duradoura e cujo modelo é o da peste. Esta modalidade concretiza-se no policiamento da cidade e diz respeito ao controle dos indivíduos por meio de uma forma de inclusão constituída pela análise pormenorizada do território e de seus elementos, e pelo exercício de um poder contínuo.

não se trata de uma exclusão, trata-se de uma quarentena. Não se trata de expulsar, trata-se ao contrário de estabelecer, de fixar, de atribuir um lugar, de definir presenças, e presenças controladas. Não rejeição, mas inclusão. [...] trata-se de uma série de diferenças sutis, e constantemente observadas, entre os indivíduos que estão doentes e os que não estão (FOUCAULT, 2001, p. 57______. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.).

É nesse contexto que, na década de 1960, surge a psiquiatria preventiva norte-americana, que desloca a sua ação preferencial do hospital psiquiátrico para a sociedade, tomando-a como seu locus privilegiado. A doença mental passa a ser vista a partir do modelo da História Natural das Doenças, estabelecendo-se, assim, uma evolução que pressupõe um momento de prevenção da doença mental por meio da detecção precoce dos comportamentos desviantes e de risco que surgem em uma comunidade específica, esquadrinhada e controlada. O objetivo da psiquiatria passa da cura da doença para a sua prevenção: prevenir a doença mental e promover a saúde, identificada aqui como promoção do ajustamento social (BIRMAN; COSTA, 1994BIRMAN, J.; COSTA, J. F. Organizações e instituições para psiquiatria comunitária. In: AMARANTE, P. (Org.). Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994.).

Do apresentado até aqui, podemos perceber que a psiquiatria, em sua relação com a sociedade, tem funcionado como poderoso dispositivo de articulação de práticas disciplinares, que investem na docilização dos corpos (FOUCAULT, 1979______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.), e de práticas de controle (DELEUZE, 1992______. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.) voltadas para a produção de corpos e modos de vida: do corpo dócil ao corpo útil, cúmplice, aparentemente participativo, ajustado, consumidor.

Assim, se nos colocamos na perspectiva de uma ruptura com a racionalidade que determina o lugar do cuidado da loucura como o do isolamento, da exclusão, mas também de uma ruptura com a lógica do controle, que, por meio de diferentes dispositivos penetra na sociedade com estratégias de vigilância e domesticação, devemos estar atentos sobre as relações entre a produção de cuidado e o território no qual se inscreve o serviço.

O território vivo e dinâmico no qual a vida se desenrola

As discussões mais recentes sobre o tema do território trouxeram para o campo da saúde um importante geógrafo brasileiro: Milton Santos. Seus trabalhos serviram para reorientar as concepções sobre espaço e saúde no âmbito da saúde coletiva. Em seus estudos, o território é uma categoria central. Negando a visão tradicional da geografia que considera o território como um objeto estático com suas formações naturais, apresenta-o como um objeto dinâmico, vivo, repleto de inter-relações, e propõe o detalhamento das influências recíprocas do território com a sociedade, seu papel essencial sobre a vida do indivíduo e do corpo social. Para o autor, o território englobaria as características físicas de uma dada área, e também as marcas produzidas pelo homem. Assim,

Ele seria formado pelo conjunto indissociável do substrato físico, natural ou artificial, e mais o seu uso, ou, em outras palavras, a base técnica e mais as práticas sociais, isto é, uma combinação de técnica e política (SANTOS, 2002, p. 87______. O país distorcido. In: RIBEIRO, W.C. (Org.). São Paulo: Publifolha, 2002.).

Ou seja, há uma inseparabilidade estrutural, funcional e processual entre a sociedade e o espaço geográfico. O território, tomado como um todo dinâmico, permite uma visão não fragmentada dos diversos processos sociais, econômicos e políticos.

Nessa perspectiva, Moken . (2008, p. 5)MONKEN, M. et al. O território na saúde: construindo referências para análises em saúde e ambiente. In: CARVALHO, A. et al. (Org.). Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. Disponível em: <http://www.saudecoletiva2009.com.br/cursos/c11_3.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2011.
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destacam que

as discussões mais recentes sobre o território incorporam o componente cultural considerando que o território carrega sempre, de forma indissociável, uma dimensão simbólica, ou cultural em sentido estrito, e uma dimensão material, de natureza predominantemente econômico-política.

A ideia de território transitaria do político para o cultural, das fronteiras entre povos aos limites do corpo e ao afeto entre as pessoas. Isso aponta para novas propostas teórico-metodológicas, cujas bases estão na perspectiva da operacionalização do conceito de 'território usado', de Santos e Silveira (2001)SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.. Para estes autores, 'território usado' corresponde a qualquer pedaço do território, considerando a interdependência e a inseparabilidade entre sua materialidade e seu uso. Ou seja, o território usado é tanto o resultado do processo histórico quanto a base material e social das novas ações humanas.

Para Moken . (2008)MONKEN, M. et al. O território na saúde: construindo referências para análises em saúde e ambiente. In: CARVALHO, A. et al. (Org.). Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. Disponível em: <http://www.saudecoletiva2009.com.br/cursos/c11_3.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2011.
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, compreender o território nessa perspectiva abre possibilidades para as análises em saúde e para o entendimento contextual do processo saúde-doença, especialmente em espaços comunitários e tendo como dimensão temporal o cotidiano. Os autores destacam, como elementos importantes, a copresença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na contiguidade. Esta sociabilidade do cotidiano é constituída de pessoas, empresas, instituições, formas sociais e jurídicas e formas geográficas. Assim, após analisarem outros aspectos do conceito do território, aproximando-o ao campo da saúde, os autores concluem afirmando que o território da saúde coletiva é composto de produções coletivas, com materialidade histórica, social e configurações espaciais singulares compatíveis com a organização político-administrativa e institucional do setor.

A partir do acima exposto, podemos caminhar em direção a um entendimento do território que supere a noção de delimitação geográfica sobre a qual um determinado serviço se torna responsável, devendo atender às pessoas com domicílio naquele local. O território, na concepção dos autores citados acima, é relacional. Ele diz respeito à construção e à transformação que se dão entre os cenários naturais e a história social que os homens inscrevem e produzem: memória dos acontecimentos inscrita nas paisagens, nos modos de viver, nas manifestações que modulam as percepções e a compreensão sobre o lugar; relações que surgem dos modos de apropriação e de alienação desse espaço e dos valores sociais, econômicos, políticos e culturais ali produzidos; modos múltiplos, contíguos, contraditórios de construção do espaço, da produção de sentidos para o lugar que se habita por meio das práticas cotidianas.

Organizar um serviço substitutivo que opere segundo a lógica do território é olhar e ouvir a vida que pulsa nesse lugar. Pensar na organização de um CAPS em uma cidade situada no meio da floresta amazônica é distinto de pensar o CAPS no interior de um estado do Nordeste ou de um bairro da periferia leste da cidade de São Paulo. São territórios distintos, com suas histórias sociais, políticas e econômicas de ocupação e usos dos espaços. Há histórias que determinam os lugares e as formas de acesso: os bairros nobres interditados aos pobres, exceto aos serviçais; a região do comércio com suas ruas de intensa movimentação; o comércio enclausurado nos shoppings centers; os parques e equipamentos de lazer; os bairros pobres; a região do meretrício etc. Há histórias sociais que produzem marcas e formas peculiares de se expressar na mesma língua portuguesa, com palavras e sons particulares; modos de expressão cultural que revelam influências de diferentes culturas nas festas e celebrações, na culinária, na dança, na música; territórios com sua base econômica e formas de exploração do homem com suas consequências no modo de viver e levar a vida. A oferta, a organização, a distribuição e o acesso aos serviços e instituições também trazem as marcas locais da construção das políticas públicas.

Esse fundo de permanência marcado por tradições culturais é continuamente atravessado pela lógica do capitalismo globalizado, que intervém dissipando e desintegrando as fronteiras entre o local e o global, modificando relações, gerando modos conformados e consumistas de existir. É no território, também, que se exerce o controle das subjetividades. É nele que se instala o olho vigilante do poder disciplinar que se ramifica e adere às rotinas cotidianas, transmutando-as ao sabor das conveniências do mercado. E o que se vende com as mercadorias são modos de ser, novos mundos e novas formas coletivas de conceber a vida e a existência - subjetividades capturadas e ansiosas pelo consumo. Mas se, como propõe Foucault (2002)FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002., ali onde o poder incide é onde se exerce a resistência, o território é ainda lugar de produção contínua de modos de vida e de relações que escapam ao controle.

Milton Santos aponta essa dualidade de forças que incidem no território, afirmando que

o território não é um dado neutro nem um ator passivo. Produz-se uma verdadeira esquizofrenia, já que os lugares escolhidos acolhem e beneficiam os vetores da racionalidade dominante mas também permitem a emergência de outras formas de vida. Essa esquizofrenia do território e do lugar tem um papel ativo na formação da consciência. O espaço geográfico não apenas revela o transcurso da história como indica a seus atores o modo de nela intervir de maneira consciente (SANTOS, 2001, p. 80SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.).

O autor aposta que a luta por mudanças está na base das ações dos movimentos comunitários e populares como novas formas de fazer comunicação e realizar obras que sirvam ao outro, e destaca o papel dos pobres na produção do presente e do futuro. Antes, distingue pobreza de miséria, afirmando que esta última acaba por ser a privação total, com o quase aniquilamento da pessoa. Já a pobreza é "uma situação de carência, mas também de luta, um estado vivo, de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível. [...] Miseráveis são os que se confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam" (SANTOS, 2001, p. 132SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.). É no cotidiano, na lida diária, que eles descobrem e inventam formas de trabalho e luta, convivendo com a necessidade e com o outro.

Assim a cidade cria e recria uma cultura com a cara do seu tempo e do seu espaço, e de acordo ou em oposição aos 'donos do tempo', que são também os donos do espaço. Assim se elabora a política dos de baixo, constituída a partir das suas visões do mundo e dos lugares: uma política dos pobres baseada no cotidiano vivido por todos, pobres e não pobres, e alimentada pela simples necessidade de continuar existindo (SANTOS, 2001SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.).

Essa é a vida que pulsa no lugar. Essa é a aposta na construção dos serviços substitutivos territoriais.

A clínica e os territórios existenciais

Se o território é, simultaneamente, espaço de inscrição da racionalidade dominante e lugar de emergência de formas de resistência, o deslocamento espacial da atenção, do asilo ao território, não garante uma prática em ruptura com as formas de poder que se exercem sobre a vida. Do asilo aos novos serviços substitutivos que inscrevem sua ação em seu território de abrangência, poderíamos apenas passar de uma prática disciplinar para uma prática de controle. Deleuze (1992)______. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.chamou a atenção para esse risco ao afirmar que, se a crise do hospital, os hospitais-dia e os serviços comunitários marcaram inicialmente novas liberdades, eles também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com as mais duras formas de confinamento.

Se o poder que incide sobre a vida e se atualiza em práticas médicas e de saúde tende a passar cada vez menos pelo manicômio (MARTINS, 2009MARTINS, A. L. A psiquiatrização da vida na sociedade de controle. In: CARVALHO, S. R.; FERIGATO, S. (Org.). Conexões: saúde coletiva e políticas de subjetividade. São Paulo: Hucitec, 2009.), isto coloca novos desafios para a construção da atenção em saúde mental. A reforma psiquiátrica brasileira, como um processo social complexo (AMARANTE, 2003AMARANTE, P. A (clínica) e a reforma psiquiátrica. In: ______. (Org.). Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau, 2003.), vem sendo construída no interior de uma tensão que atravessa a vida no contemporâneo, na qual práticas de resistência - que afirmam a potência da vida de reinventar-se permanentemente - estão em embate com linhas que tendem para a vigilância e o controle.

Assim, se a discussão das relações entre território e produção de cuidado envolve o território como área sobre a qual o serviço deve assumir a responsabilidade sobre as questões de saúde, ela também deve ir além e pensar o território como espaço e percurso que compõem as vidas cotidianas das pessoas e dos usuários de serviços de saúde, espaço relacional no qual a vida pulsa. Isto sem esquecer o território como espaço no qual se produzem modos de ser, de se relacionar, de amar, de consumir, alguns engajados na grande máquina capitalista, outros que resistem a sua captura.

Não se trata apenas de pensar os deslocamentos no espaço físico, mas de problematizar o olhar sobre o território, para pensar quais os modos de vida que estão sendo produzidos e que clínica é possível aí realizar.

Nesse percurso, coloca-se, portanto, a reconstrução do conceito e da prática clínica, que, segundo Amarante (2003)AMARANTE, P. A (clínica) e a reforma psiquiátrica. In: ______. (Org.). Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau, 2003., tem sido um aspecto fundamental da reforma psiquiátrica brasileira. Para esse autor, é preciso reinventar a clínica como espaço de efetivo engajamento e responsabilização para com o sofrimento humano, de construção de possibilidades de vida e de produção de subjetividades.

Essa reinvenção da clínica requer a desvinculação entre clínica e hospital e a criação de novas instituições que trabalhem na lógica da heterogeneidade, da implicação, da circulação social, e que se coloquem a questão das territorialidades, mas também dos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 1997DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v. 4.). O paciente aqui não é objeto de um saber ou de uma prática, mas sujeito em construção em um processo de individuação complexo, que se dá no interstício dos encontros. Abandona-se, assim, uma clínica centrada na pessoalidade e no sintoma individual, para dar lugar a processos de produção de saúde e de subjetividade, o que implica a inserção em processos de criação voltados para a construção de novas línguas, novos territórios, novos sentidos.

As relações entre clínica, território e subjetividade introduzem a noção de 'território existencial', que envolve espaços construídos com elementos materiais e afetivos do meio, que, apropriados e agenciados de forma expressiva, findam por constituir lugares para viver.

Estamos aqui trabalhando com a perspectiva de Deleuze e Guattari, que compreendem o território a partir de uma articulação entre os sentidos etológico, subjetivo, sociológico e geográfico do conceito, como um agenciamento entre seres, fluxos e matérias (HAESBAERT; BRUCE, 2002HAESBAERT, R.; BRUCE, G. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari. GEOgraphia, Niterói, v. 4, n. 7, 2002. Disponível em: <http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/view/74/72>. Acesso em: 08 mar. 2014.).

A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo [...]. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo, tanto a um espaço vivido quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente "em casa" (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 323GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.).

Esses territórios comportam vetores de desterritorialização e reterritorialização: "O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair de seu curso e se destruir" (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 323GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.).

Em relação a isso, é preciso considerar que a experiência da loucura, do sofrimento, da exclusão é marcada por um forte coeficiente de desterritorialização, entendido como movimento por meio do qual alguém deixa um território, desfazendo tudo aquilo que uma territorialização constitui como dimensão do familiar e do próprio. Esses movimentos de desterritorialização são inseparáveis de novos mundos que se fazem em processos de reterritorialização, que não consistem em um retorno ao território de origem, mas na construção de um novo território.

Ora, a problemática da loucura - e de tantas outras linhas de fuga que são traçadas em processos vitais de dissidência e/ou deserção - é a de uma desterritorialização que muitas vezes se reterritorializa em territórios mínimos, muito fechados, para constituir uma proteção contra o caos, ou em territórios paradoxais, quando se faz da própria desterritorialização um território subjetivo (PELBART, 2003______. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.).

Na perspectiva da clínica, trata-se, então, de acompanhar, cuidar e investir em movimentos de reterritorilização para que estes possam operar a criação de uma nova terra na qual seja possível traçar linhas de vida. É preciso sustentar a construção de territórios existenciais, mesmo que efêmeros e nômades, que possam se abrir, estabelecendo relações com outras vidas e com outros mundos. E esses territórios não coincidem necessariamente com aqueles circunscritos pelos serviços, e podem aí constituir vetores de desterritorialização.

Se o território é também, como sugere Deleuze (1992)______. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992., o lugar por excelência do controle, os processos de desterritorialização poderão ser pensados como processos de resistência que engendrariam novas territorialidades.

Félix Guattari (1992)GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992. analisa a sociedade contemporânea como o mundo da técnica e da desterritorialização, com a consequente produção de uma homogênese capitalística, que impõe uma equivalência generalizada dos valores e uma padronização dos comportamentos. A partir de processos intermitentes de desterritorialização e reterritorialização, desenvolveu, com Gilles Deleuze, a noção de heterogênese, para afirmar que é por meio dela que se produz algo novo e inusitado. Podemos pensá-la como busca permanente, no âmbito da vida cotidiana, da instauração de um processo contínuo de produção singular da existência. Heterogênese diz respeito à produção de diferença, daquilo que escapa da homogeneidade e do já instituído. Os processos de reterritorialização referem-se à composição de territórios existenciais, que se segue ao desfazimento de outros. Guattari afirma que se trata de reconstituir uma relação particular com o cosmos e com a vida, na composição de uma singularidade individual e coletiva.

Territórios mínimos, territórios efêmeros

Gostaríamos de trazer aqui duas situações clínicas para podermos visualizar como essas diferentes ideias de território se compõem e se atravessam no trabalho cotidiano de produção de saúde.

A primeira situação, vivenciada com frequência no cuidado de pessoas na atenção psicossocial, ocorreu em um acompanhamento terapêutico realizado no Programa de Composições Artísticas e Terapia Ocupacional (Pacto), programa didático-assistencial do Laboratório de Estudo e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (LIMA ., 2009LIMA, E. M. F. A. et al. Ação e criação na interface das artes e da saúde. Revista de Terapia Ocupacional Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 20, n. 3, p. 143-148, 2009.). Ulisses, como o denominaremos aqui, era um jovem que se comportava de forma bastante restrita, enclausurado em sua própria casa, passando os dias em seu quarto. Ele não transitava pelo território de sua cidade e de sua comunidade; sua casa era seu território existencial. Foi proposto a Ulisses e sua família um trabalho de acompanhamento terapêutico, pelo qual se desenvolveria uma exploração acompanhada do entorno de sua casa, na procura de outros espaços de pertinência e sociabilidade.

Essa sugestão aposta em uma ampliação do território existencial de Ulisses, o que implica um processo de desterritorialização e requer, portanto, bastante prudência e cuidado. Ela envolve, também, um processo de desterritorialização de seu entorno, que está atravessado pelas mesmas forças de exclusão que fizeram com que o jovem tivesse vivido dentro de sua casa grande parte de sua vida. São essas forças as enfrentadas quando Ulisses passeia por espaços que não parecem ter sido feitos para ele. Promove-se uma desterritorialização do território social e cultural, que tem que se reconfigurar para comportar Ulisses e tantas outras existências dissidentes.

Assim, o trabalho de produção de saúde deve sempre levar em conta o território da cidade no qual se insere a atenção, podendo entrar em processos de composição com este - múltiplos e ricos processos de composição, que vão sendo engendrados quando se passa a descobrir e ativar os recursos do próprio território. Este trabalho compreende, também, momentos de enfrentamento de certos pontos duros, de captura e enclausuramentos, em que é necessário realizar intervenções no território, que podem levar a sua reinvenção coletiva.

Nessa perspectiva, a intervenção não estaria voltada para a inclusão de alguém em uma configuração social hegemônica, mas para a reinvenção do território da cidade: reabilitar o território, em suas dimensões geográficas, políticas e culturais, dimensões que comportam ainda um plano micropolítico, aquele dos encontros e afetos que se constelam na relação com o padeiro, com o motorista do ônibus, com o segurança de um museu - enfim, todo um conjunto de ações que provoque, instigue, convide o território, a cultura, a construir coletivamente novas formas de convivência com a diferença.

A outra situação clínica que gostaríamos de trazer para nos ajudar a pensar o território e os processos coletivos e existenciais que o atravessam foi vivida junto a um usuário do Centro de Atenção Psicossocial Luis da Rocha Cerqueira, em São Paulo (SP). Chamaremos aqui de Teodoro esse homem que ficava por muito tempo olhando revistas e jornais e escolhendo figuras ou palavras que recortava e colava em sua roupa ou seu corpo, como se quisesse criar para si um contorno (LIMA, 1997LIMA, E. M. F. A. Clínica e criação: a utilização de atividades em instituições de saúde mental. 1997. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1997.).

Muitas vezes, as figuras que Teodoro recortava eram depois coladas em diferentes lugares da casa, como se ele estivesse transformando um espaço desconhecido, sem marcas e sem história, em um território próprio. Teodoro estava envolvido na construção de uma morada, na qual pudesse se sentir 'em casa', o que possibilitaria frequentar o CAPS Luis Cerqueira e também habitar seu corpo e transitar pelo mundo. Criar territórios, marcando os espaços como próprios, tem a função de controlar o excesso, de possibilitar o enfrentamento do caos. Deleuze e Guattari (1997)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v. 4.dizem que, quando o caos ameaça, é muito importante traçar um território e, se for preciso, tomar o próprio corpo como território, territorializar o corpo.

Teodoro, ao mesmo tempo em que territorializava seu corpo, buscava domesticar o ambiente desconhecido. Ao espalhar figuras e fragmentos de textos pela casa onde se dava seu tratamento, marcava o território de forma a poder habitá-lo e transitar por ele. As composições de figuras que criava constituíam um salto do caos em direção a um começo de ordem. Em pouco tempo, poderia estar 'em casa' no CAPS.

Como nos ensinam Deleuze e Guattari (1997)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v. 4., o 'em casa' não preexiste; é preciso organizar um espaço limitado, traçando um contorno em volta de um centro frágil e incerto. Para os autores, os territórios se fazem por procedimentos expressivos; eles são constituídos ao mesmo tempo em que são produzidas ou selecionadas as qualidades expressivas que os compõem: formas que emergem do caos criando configurações, composições, sentidos. Componentes diversos intervêm e participam da construção desses territórios, em uma organização do espaço que visa manter o caos no exterior: ambiente, cotidiano, exposições de arte, cinema, música, esporte.

Deleuze e Guattari (1997)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v. 4. dizem, ainda, que esses processos de territorialização são a base ou o solo da arte: de qualquer coisa, fazer uma matéria de expressão, em um movimento do qual emergem marcas e assinaturas que são constitutivas de uma morada e de um estilo. No entanto, segundo os autores, instalamo-nos em um território para dele poder fugir. O movimento de construção de territórios implica simultaneamente a escavação de aberturas que permitam que algo ou alguém entre, ou então, que aquele que habita o território seja lançado para fora, como se o próprio território "tendesse a abrir-se para um futuro, em função das forças em obra que ele abriga" (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 117DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v. 4.).

Assim, é preciso construir um mínimo de contorno, de território existencial; enfim, uma morada que possa funcionar como ancoragem e proteção contra o caos. As marcas vão constituindo essa ancoragem. Ao mesmo tempo, essa morada é percorrida por movimentos de desterritorialização.

Essas considerações colocam-nos em posição de pensar uma clínica pautada no construtivismo e na experimentação, uma clínica que se dá em duas direções ao mesmo tempo. De um lado, possibilitando a atualização de devires, a produção de marcas e de sentido; trabalho de produção de contorno, de construção de territórios existenciais, de moradas. De outro lado, o trabalho clínico também implica desestabilizar territórios muito restritos e enrijecidos; trabalho lento e cuidadoso de construção de aberturas e de linhas de singularização (LIMA, 1997LIMA, E. M. F. A. Clínica e criação: a utilização de atividades em instituições de saúde mental. 1997. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1997.).

É preciso pertencer a um território para desterritorializar-se, ou, como nos ensina Winnicott (1975)WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975., não há originalidade sem uma base de tradição. No entanto, não há vida sem movimento e criação e, portanto, é preciso apropriar-se da tradição, destruí-la para que algo novo advenha. O novo surge e busca-se articulá-lo a uma rede coletiva de sustentação, criando novos territórios; estamos, assim, de volta ao campo cultural.

A clínica, nesta configuração, faz-se no território da cidade e na produção de novas territorialidades espaciais e subjetivas nas quais a vida seja possível. Poderia, então, orientar-se pelas forças da originalidade e da tradição como dois polos de um movimento incessante de constituição sempre precária das subjetividades. Está em jogo aqui a aposta na sustentação e no acolhimento de uma multiplicidade de formas de existência e, ao mesmo tempo, seu agenciamento a redes de sentido que venham a criar novos territórios.

Trata-se de uma clínica que exige delicadeza e atenção, pois há sempre o risco de que, ao convidar os loucos e sua loucura para participar das trocas sociais no território da cidade, estejamos inadvertidamente, por meio de uma sutil ortopedia, forçando-os a adaptar-se aos modos de vida hegemônicos.

Nesse sentido, Peter Pál Pelbart (1993, p. 104)PELBART, P. P. A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago, 1993.questiona:

Ao borrarmos essa fronteira simbólica e concreta entre a sociedade e seus loucos não estaremos, sob pretexto de acolher a diferença, simplesmente abolindo-a? Não estaremos, como um carinhoso abraço de urso, conjurando o perigo que os loucos representam? Não estaremos, através de uma tecnologia soft, baseada na brandura e na diluição, domesticando a fera que os habita e nos livrando da estranheza que eles transmitem? Para dizê-lo de modo ainda mais incisivo, será que a libertação do louco não corresponde, no fundo, a uma estratégia de homogeneização do social?

Seria interessante que, ao atuar em saúde mental, nos mantivéssemos acompanhados por essas perguntas. A racionalidade moderna, encarnada no gesto de Pinel, de retirar os grilhões, também se ergueu como a libertadora dos loucos. Hoje, estamos diante de novos desafios: exercitarmo-nos no acolhimento de pessoas em sofrimento psíquico sem produzir anulação das diferenças e homogeneização, e sem domesticar ou domar a loucura, retirando dela sua potencialidade de romper códigos engessados e alienantes; construirmos espaços que possam ser habitados pela radical diferença da desrazão, em toda a sua plenitude provocativa, permeável e porosa a um estranho diálogo com a nossa racionalidade 'careta', mas sem a qual ainda não sabemos direito como viver. Construir esses espaços implica reinventarmo-nos na relação com a experiência da desrazão; implica, enfim, pensar, sentir e viver de forma diferente, intensamente diferente.

Conclusão

Se o lugar das práticas psiquiátricas sempre se revestiu de especial importância, com a Reforma Psiquiátrica esse lugar deixa de ser predominantemente o hospital para tornar-se o território de vida do sujeito, um objeto dinâmico, vivo, de inter-relações.

Assim, organizar um serviço substitutivo que opere segundo a lógica do território é olhar e ouvir a vida que pulsa nesse lugar. Para tanto, é preciso trabalhar com um conceito relacional de território, que leve em conta modos de construção do espaço, de produção de sentidos para o lugar que se habita, ao qual se pertence por meio das práticas cotidianas (YASUI, 2010YASUI, S. Rupturas e encontros: desafios da reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.). Nesta perspectiva, a contribuição de Milton Santos é indispensável. Para ele,

o território é o chão e mais a população [...], o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado, utilizado por uma dada população. (SANTOS, 2001, p. 96SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.).

Organizar um serviço que opere segundo a lógica do território é encontrar e ativar os recursos locais existentes, estabelecendo alianças com grupos e movimentos de arte ou com cooperativas de trabalho, para potencializar as ações de afirmação das singularidades e de participação social. Para tanto, é preciso criar uma intensa porosidade entre o serviço e os recursos do seu entorno. Significa, também, especialmente nos locais precários e homogeneizados, criar outros recursos, inventar e produzir espaços, ocupar o território da cidade com a loucura - do manicômio, lugar zero das trocas sociais (ROTELLI ., 2001ROTELLI, F.; LEONARDI, O.; MAURI, D. Desinstitucionalização, uma outra via. In: NICÁCIO, F. (Org.). Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001. p. 17-59.), ao espaço público como locus terapêutico, de intervenção, de montagens e instalações em permanente processo de produção.

Aqui, novamente podemos contar com a contribuição de Milton Santos, que via no cotidiano das pessoas uma flexibilidade, uma adaptabilidade e um pragmatismo existencial que constituem a fonte de sua veracidade e riqueza, e que os movimentos organizados deveriam imitar (SANTOS, 2001SANTOS, M. Por uma outra globalização (do pensamento único à consciência universal). Rio de Janeiro: Record, 2001.). Em outras palavras, ir ao encontro do território é estar atento para os modos de organização, de articulação, de resistência e de sobrevivência que as pessoas que ocupam esses espaços vão inventando no seu cotidiano.

Organizar uma associação de amigos, familiares e usuários; organizar eventos de celebração do dia (ou semana) da luta antimanicomial, com participação e cooperação de outras instituições do território; realizar intervenções culturais, como exposições de trabalhos, apresentações de teatro, dança e música; produzir e colocar em circulação, na cidade, jornal ou informativo sobre a saúde mental; utilizar espaços nas feiras-livres para mostra e venda da produção artesanal; simplesmente caminhar com os usuários pelos espaços da cidade - são exemplos de como podemos ter o território como cenário dos encontros, como matéria-prima de processos de subjetivação e de autonomização. São encontros e ações provocativas e locais para produzir atos de cuidado para além do serviço, a fim de construir outra lógica assistencial em saúde mental, que se contraponha à racionalidade hegemônica e à lógica do capitalismo globalizado.

Nesse esforço de reinventar o território, Deleuze e Guattari guiam-nos em uma leitura do social a partir do desejo, oferecendo-nos ferramentas para fazer a passagem do desejo ao político, para pensar os territórios como agenciamentos de componentes heterogêneos, de ordem biológica, social, imaginária, semiótica, afetiva, política, cultural etc.

Pensar esses agenciamentos é, segundo Haesbaert e Bruce (2002)HAESBAERT, R.; BRUCE, G. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari. GEOgraphia, Niterói, v. 4, n. 7, 2002. Disponível em: <http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/view/74/72>. Acesso em: 08 mar. 2014., pensar uma geografia, mas uma geografia das multiplicidades e das simultaneidades, que comporta os modos de subjetivação, os processos de singularização, a construção de lugares para viver e os processos de ruptura e de criação de novos territórios existenciais.

O conceito de território é, portanto, complexo e deve ser abordado também na perspectiva de libertar o conhecimento local, advindo das necessidades e das realidades locais. O conhecimento local expresso nas práticas cotidianas e heterogêneas é o conhecimento que contribui na produção de sentidos para uma nova semântica do território e seu viver.

Pensar o território como espaço, como processo, como relação e como composição rompe com a noção de esquadrinhamento da sociedade, que delimita áreas de abrangência e considera apenas o frio mapa de uma cidade. Muitas vezes, ao definir territórios de abrangência por meio de políticas públicas, o Estado opera sobrecodificando os agenciamentos territoriais prévios, fazendo com que a multiplicidade de sentidos que recobrem o território tenda a um sentido único. Como nos ensinam Deleuze e Guattari (2010)______. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 2010., quando uma organização administrativa, fundiária ou residencial opera a divisão dos espaços geográficos, o que acontece não é somente uma promoção de territorialidade, mas o efeito de um movimento de desterritorialização de outras organizações e outros territórios.

Os autores que trouxemos aqui para o diálogo ajudam-nos a considerar todos os territórios envolvidos em um dado agenciamento - uma rede de serviços, um encontro entre um usuário e um serviço - e a mapear as forças que os atravessam. A partir desse mapa, é possível inventar espaços de subjetivação nos quais o cuidado se daria em uma produção de atos regidos pela alegria e pela beleza, que promovem bons encontros, potencializando a vida.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2014

Histórico

  • Recebido
    Fev 2014
  • Aceito
    Jul 2014
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