Editorial

Em outubro de 2014, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) promoveu seminário preparatório para o XIII Congreso Latinoamericano de Medicina Social y Salud Colectiva da Associación Latinoamericana de Medicina Social (Alames). Ao final, foi aprovada a ‘Carta do Brasil’ com 12 itens, os quais transcrevemos neste espaço de diálogo com o leitor, reafirmando o compromisso do Cebes com o conteúdo da referida carta: 1. A América Latina vive um momento político crítico, com possibilidades concretas de retrocessos nos avanços conseguidos por governos de caráter mais popular, no campo dos direitos sociais e da própria estratégia de articulação latinoamericana, na medida em que a direita conservadora, apoiada pelo imperialismo e conspirando diuturnamente contra esses governos, busca recuperar de diferentes formas a hegemonia de poder na região; 2. É preciso reconhecer que os governos de caráter popular e os processos revolucionários em curso na América Latina ainda se encontram distantes de superar as pautas políticas e os programas neoliberais, não conseguiram promover as transformações profundas que a sociedade requer e não superaram a primazia dos interesses do capital. Também se deve reconhecer que a via do jogo político, que caracteriza a democracia burguesa, tem se revelado insuficiente para garantir as conquistas e assegurar avanços mais significativos nas políticas econômicas e sociais favoráveis à classe que vive do trabalho; 3. As estratégias políticas dos governos de esquerda na América Latina enfrentam dificuldades. A participação popular, em que pesem os grandes avanços observados nos governos progressistas do subcontinente, não conseguiu ainda lograr plenamente sua independência e autonomia em relação ao Estado. Promoveram-se políticas de inclusão e de distribuição de renda, mas com frequência se constituíram em políticas individualizadas e despolitizadas, e problemas políticos foram tratados como problemas técnicos; 4. A esquerda latinoamericana tem encontrado muita dificuldade em ganhar a batalha da comunicação. Parte dela acreditou que quando assumisse o poder poderia transformar o Estado, mas não considerou que, ao revés, a estrutura burocrática do Estado poderia transformá-la; 5. Os partidos políticos comprometidos com as causas populares precisam reencontrar sua legitimidade. Os programas partidários têm-se diferenciado pouco do ponto de vista ideológico, observando-se uma incoerência entre o programa do partido e o seu exercício, em grande medida pelas coalizões que realizam para governar, resultando em uma crise política e de representação. Apesar desse desencanto, os partidos continuam sendo importantes para articular ideologias, campos políticos e a participação popular autônoma com participação no Estado, que continua sendo o principal agente indutor de transformações; 6. Há dificuldades reais em identificar o ator revolucionário que pode impulsionar um processo de transformação social. Por isso, deve-se realizar uma leitura atenta dos movimentos sociais da cidade e do campo, dos sujeitos periféricos, que emergem das contradições do próprio sistema capitalista. Reconhecer como esses sujeitos têm atuado e realizado transformações lentas mas profundas nos modos de viver, concretizando a crítica ao modelo econômico e apontando para outros projetos de sociedade; 7. Este momento é de reconstrução da agenda e da construção de um projeto socialista, articulado regionalmente, uma vez que um país isolado não tem como levar adiante projetos que rompam com a lógica capitalista mundializada, baseada no individualismo e no consumo, que não respeita a natureza e coloca em risco o planeta; 8. Um projeto que vise construir um novo modelo de Estado e de sociedade deve ter como pressupostos a soberania dos países, a articulação regional, a solidariedade entre e intrapaíses, a sustentabilidade visando o futuro das novas gerações, a construção de novos consensos a partir da democracia irrestrita e da participação popular; 9. A discussão sobre os caminhos possíveis para um processo de transição para o socialismo deve levar em consideração experiências latinoamericanas, que, como forças reformistas e/ou revolucionárias, procuraram construir um Estado popular como mediação para a construção de um mundo igualitário, socialista; 10. Os governos progressistas da América Latina necessitam promover reformas estruturantes, impulsionados pelos movimentos sociais. Algumas reformas precisam ser realizadas urgentemente para garantir a própria democracia, como a reforma dos meios de comunicação, a reforma tributária, a reforma agrária, a reforma judiciária e a reforma política; 11. A luta pela saúde não pode ser uma luta setorial. A política de saúde precisa ganhar um conteúdo anticapitalista. Os avanços conseguidos nesse setor, como o caso do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, foram decorrentes de lutas mais amplas que ganharam a adesão de toda a sociedade. As políticas sociais focalizadas que custam 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) não bastam, pois continuam atendendo aos interesses do capital. A luta deve ser por políticas sociais universais; 12. Entidades como o Cebes e a Alames devem assumir a articulação em nível regional, recuperando o momento da emergência da Medicina Social, da Saúde Coletiva e da luta pelo direito à saúde na América Latina. Nesse processo, contribuir para a interpretação da realidade, identificando as contradições e construindo um discurso que faça sentido para todos. Esta articulação deve transformar a luta pela saúde em uma luta que vise à construção de um novo projeto societário.

Entendemos que o conteúdo da ‘Carta do Brasil’ é um alerta e um chamado aos militantes do Movimento de Reforma Sanitária brasileira para a ação política, que deve ultrapassar os limites nacionais e integrar-se à luta dos movimentos sociais da América Latina.

Diretoria Nacional do Cebes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br