Crítica à instituição médica moderno-industrial a partir do microssistema linguístico de Ivan Illich

Critique of the modern-industrial medical institution based on the linguistic microsystem of Ivan Illich

Alejandra Bello Volnei Garrafa Sobre os autores

RESUMO

Ivan Illich criou uma terminologia própria à temática relacionada com a saúde. Mais do que simples palavras, este autor permite um olhar diferenciado sobre a instituição médica contemporânea e sua relação com o atual modelo moderno-industrial de sociedade. Com uma produção acadêmica original, redefine o vocabulário médico, transformando uma série de termos ideológicos em categorias capazes de desvendar lógicas naturalizadas pelo poder vigente na sociedade atual. Sua produção acadêmica contribui para proporcionar à saúde pública um enfoque crítico diferente na abordagem de problemas, a partir das ciências sociais. Objetivando contribuir para a construção de um glossário de termos capaz de produzir e transmitir uma visão crítica mais aguda sobre a instituição médica moderno-industrial, a partir do microssistema linguístico de Illich, este artigo analisa, de forma narrativa, termos criados e redefinidos pelo autor na sua obra 'Medical nemesis'. Finalmente, o artigo propõe algumas chaves para pensar a saúde pública, desde a perspectiva do autor.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde pública; Ciências sociais; Medicina; Linguagem; Modernidade

ABSTRACT

Ivan Illich created an own terminology related to health. More than simple words, this author allows a different look at the contemporary medical institution and its relation with the current modern-industrial model of society. With an original academic production, it redefines the medical vocabulary, transforming a series of ideological terms into categories capable of unraveling naturalized logics by the current power in today's society. Its academic production contributes to providing public health with a different critical approach in addressing problems, from the social sciences. Aiming to contribute to the construction of a glossary of terms capable of producing and transmitting a more acute critical view of the modern-industrial medical institution, from the linguistic microsystem of Illich, this article analyzes, in a narrative way, terms created and redefined by the author in his work 'Medical nemesis'. Finally, the article proposes some keys to public health thinking, from the perspective of the author.

KEYWORDS
Public health; Social sciences; Medicine; Language; Modernity

Introdução

O objetivo do presente artigo é construir um glossário de termos capaz de produzir e transmitir um olhar crítico sobre a instituição médica moderno-industrial, a partir do microssistema linguístico criado por Ivan Illich, entendido como um ato de estética vital. O estudo será desenvolvido em quatro tópicos. O primeiro procura justificar a pertinência da escolha desse autor como eixo de construção de uma proposta de glossário crítico, assim como definir os respectivos conceitos que formam parte do sistema conceitual, a partir do qual sua proposta é desenvolvida. O segundo tem o propósito de problematizar o contexto e a pertinência da geração de um vocabulário crítico da instituição médica moderno-industrial. O terceiro tópico apresenta os principais conceitos do microssistema linguístico de Illich relacionados com a medicina e que foram construídos no contexto da sua crítica às sociedades industriais. Por último, são apresentadas as considerações finais a modo de discussão.

Universos de sentido e linguística como espaço político

Em palavras simples, Ivan Illich propõe nas suas obras uma série de termos que permitem um novo olhar sobre a instituição médica contemporânea e sua relação com o atual modelo moderno-industrial de sociedade, abrindo, assim, a possibilidade de imaginar/construir novas formas de relacionamentos entre as pessoas e a própria instituição médica. Ele gera um vocabulário capaz de estimular, produzir e expressar um olhar crítico sobre as experiências concretas próprias à sociedade moderna, abrindo uma porta à transformação destas experiências. Suas propostas inovadoras de definições para os termos 'doença' ou 'paciente', por exemplo, desvendam as relações de poder presentes nas definições mais utilizadas destes termos.

Essa afirmação aparentemente simples se torna complexa mediante a problematização do significado das palavras. Admitindo uma definição semântica básica, as palavras são signos acompanhados de referentes11 Greimas AJ. En torno al sentido: ensayos semióticos. Madrid: Fragua; 1973.. Uma palavra nasce quando existe um estímulo contextual que, ao ser nomeado e dotado de sentido, constitui coletivamente um significado. Uma vez que o significado aparece, o estímulo passa a ser uma referência desse símbolo, estabelecendo uma relação dinâmica de coconstrução entre o significado e aquilo a que ele se refere. Isto tem duas consequências importantes em relação àquilo que são as palavras. Primeiro, as palavras não são entidades estáveis porque dependem de relações dinâmicas. E, segundo, as palavras constituem uma síntese da interação entre o indivíduo, o coletivo e o contexto material.

As palavras não somente permitem a comunicação entre os membros de um grupo linguístico, mas também criam os termos através dos quais esses membros conseguem se relacionar entre si, com seu coletivo e com seu ambiente material e imaterial. As palavras não são apenas produtos de interações simbólicas entre os membros de um grupo. Elas são, ao mesmo tempo e pelo mesmo movimento, produtos e produtoras da interação/implicação entre estímulos materiais e os universos simbólicos que permitem tornar inteligíveis tais estímulos. Assim, as palavras implicam o material e o simbólico, definindo os termos da inteligibilidade da experiência das pessoas. Em consequência, delimitam o espaço daquilo que é imaginável, minimizando, assim, as possibilidades da experiência concreta das pessoas, ou seja, a sua realidade22 Espark MT. La palabra y su universo de sentido. Filosof. 2013; 21:27-35..

A afirmação de que as palavras criam realidade não diz respeito às perspectivas pós-modernas que caracterizam o giro linguístico - linguistic turn. Pelo contrário, o discursivo é independente do material; um olhar das lógicas discursivas não conseguiria dar conta da complexidade das experiências concretas das pessoas. O ponto referencial da perspectiva do presente trabalho é que as palavras não são elementos exclusivos do discurso. Elas existem em uma relação estreita e direta com o material, implicam relações entre o material e o discursivo, permitindo que a materialidade seja inteligível de modo contingente. Aquilo que é a experiência concreta das pessoas - a sua realidade - não é nem o material, tampouco o simbólico-discursivo, mas sua implicação. São as palavras que dão conta dessa implicação.

O uso das palavras não é politicamente neutro. Elas veiculam as lógicas vigentes do poder ou transformam essas lógicas, mas nunca ficam à margem das organizações do poder. Nesta perspectiva, através das palavras são construídas realidades, produzem-se termos novos ou propõem-se novas definições, o que significa um ato político transformador. Transformador não é sinônimo de crítico. A produção de palavras responde e cria possibilidades de experiências concretas inovadoras, o que não significa necessariamente que essa novidade implique em uma modificação das lógicas de organização da realidade, ou seja, as lógicas do poder, ligadas às próprias palavras.

Nenhum ato crítico parte do nada. Toda crítica está genealogicamente conectada àquilo que se quer criticar, pois é isto o que define sua existência. O olhar crítico de Illich se ancora no universo de sentido moderno que ele quer criticar, a partir da construção de novos elementos linguísticos capazes de modificar este universo, bem como as experiências concretas a ele vinculadas.

O maior interesse na obra de Ivan Illich está na originalidade da sua produção acadêmica. No exercício de redefinição do vocabulário médico, ele altera o sentido de uma série de termos que funcionam como categorias ideológicas e os transforma em categorias críticas, capazes de desvendar as lógicas do poder33 Renault E, Sintomer Y, editores. Où en est la théorie critique? Paris: Découverte; 2003.. Em outras palavras, o autor utiliza termos que são dispositivos de reprodução da lógica das relações de poder, próprias das sociedades modernas, e os transforma em ferramentas capazes de desvendar essas relações, deixando-as vulneráveis e modificáveis44 Renault E. Marx et l'idée de critique. Paris: Universitaires de France; 1995..

O ponto de partida do microssistema linguístico de Illich é o universo linguístico moderno-industrial. O vocabulário por ele criado constitui um ato de estética vital, no sentido mais nietzchiano55 Nietzche FW. El nacimiento de la tragedia. Madrid: Edaf; 1997.. Partindo da aceitação de que todo o imaginável está inevitavelmente atado ao universo de sentido moderno-industrial, ainda é possível partir dos elementos próprios a essa realidade e configurá-los de forma inovadora, gerando, assim, a possibilidade de produzir novas lógicas de configuração da realidade.

Partindo da concepção da linguagem exposta no presente texto, a pertinência do estudo do microssistema linguístico de Illich não se limitará a uma mera compreensão das ideias do autor. Procurando ir um pouco além, propõe-se uma contribuição a fim de melhor compreender as lógicas do poder próprias à modernidade. Assim, a análise da obra de Illich, no contexto do presente trabalho, constitui um meio e não um fim. Essa análise será construída sob a forma de um glossário baseado nos conceitos centrais da obra do autor, com relação à instituição médica.

O que está sendo criticado?

A sociedade moderna industrializada e a instituição médica

O modo industrial de produção só existe porque uma série de instituições reproduzem as condições necessárias para sua manutenção. No olhar de Illich, a instituição médica e a instituição escolar são particularmente importantes como exemplos do processo de produção/reprodução das sociedades industriais66 Subhash K. Sociological Ideas of Ivan Illich. Soc Scient. 1974; 2(11):59-65.. Para ele, a instituição médica não é uma ilha isolada; faz parte integral de toda uma série de instituições interdependentes, que se coconstroem. É esta interação que é entendida como sociedade moderno-industrial77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

A alienação e a concentração monopólica são os traços principais das sociedades moderno-industriais. As instituições que lhes são próprias constituem máquinas focadas em fragmentar as pessoas, alienar esses fragmentos e concentrá-los monopolicamente nessas mesmas instituições. Todo este contexto, portanto, é produto da concentração monopólica. Um traço da sociedade moderno-industrial é que as pessoas passam a necessitar das instituições monopólicas para terem acesso àquilo que fazia parte de sua integralidade antes da fragmentação moderno-industrial. As pessoas começam a depender das instituições para estarem completas. E esta dependência constitui um dispositivo potente para garantir a vigência desse modelo social.

O modo industrial de produção gera um sistema de assistência em saúde, segundo suas próprias necessidades. O sistema está baseado no monopólio do saber curar, da metodologia, da tecnologia e da higiene. Isto significa uma concentração monopólica dos mecanismos para lidar com as adversidades da vida. Na instituição médica, os saberes e as práticas ligados à gestão das adversidades são alienados das pessoas e concentrados em um corpo burocrático profissional: os profissionais da saúde. Isto gera dependência direta para com todo o corpo de pessoal sanitário e indireta para com o mesmo sistema77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

A gênese da instituição médica moderna remonta ao período da Revolução Francesa. No processo revolucionário, foram implantados os dois mitos fundacionais da medicina. O primeiro deles é que os clérigos deixam de ser necessários para lidar com o sofrimento das pessoas porque o progresso laico traz consigo os médicos, que, além de trabalharem com o sofrimento, também podem acabar com ele. O segundo mito é que, com a mudança do sistema político, a sociedade voltou para um estado de saúde original. A partir dessas duas crenças, a doença foi transformada em um assunto político, no qual o médico se converteu no artífice das magias que provaram que a proposta da revolução era mais capaz de aliviar o sofrimento do que o antigo regime77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

A noção de saúde que é própria da instituição médica está baseada na ideia de uma morte controlável. Na passagem do Antigo Regime para a modernidade, a morte deixou de ser um processo incontrolável. Esta modernidade trouxe consigo a ideia de que o ser humano não só podia, mas devia controlar as forças da natureza e, neste mesmo olhar, a morte deixou de ser algo sobrenatural, passando a ter um significado relacionado com a força da natureza, sendo, deste modo, um objeto suscetível de ser controlado pela razão humana77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Quando a morte moderna passou a ser parte da natureza, passou a fazer parte, também, do território do domínio humano. É nesta mudança da concepção da morte que se define o principal objetivo da medicina moderna: o controle da morte. A morte natural é a forma de morte que propõe a medicina, e é aquela construída pela modernidade como a boa morte, o parâmetro referencial para morrer77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975.. Esta noção constrói o espaço destinado a ser controlado pela razão prática do médico, ou seja, as doenças.

A morte moderno-natural trouxe consigo a diferenciação social frente à morte e o aparecimento da morte burguesa. A saúde passou a ser um privilégio reservado a quem pode pagar um médico, para que ele lute contra a morte e o sofrimento. A boa morte, então, é o resultado das intervenções, pela instituição médica, durante a vida inteira, e que termina na velhice. Em consequência, a boa morte é a morte de quem pode pagar por ela. Assim, a morte burguesa se converte no parâmetro moderno para morrer77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

A partir do parâmetro da morte burguesa, as doenças dos pobres se transformaram em enfermidades não tratadas; em parâmetro da injustiça social. Na realidade, os pobres continuaram morrendo das mesmas doenças de antes, e os ricos deixaram de morrer dos mesmos problemas por terem acesso médico-industrial às formas de controle desses problemas. E é esse contraste que permite redefinir as doenças entre doença de rico e doença de pobre; entre a morte natural desejável e a morte indesejável, que é aquela na qual não há intervenção médica ou a intervenção médica alcançada não é suficiente para a manutenção da vida.

Do mesmo jeito que a ação médica, a morte natural é parte integrante do progresso do mito fundador da modernidade. Ela constitui a prova do domínio da natureza pela razão humana. Além disto, e com implicações mais profundas, a morte natural funciona como um dispositivo de construção de espaços de intervenção da instituição médica. Ela - a ação médica - só é possível por meio da intervenção médica constante. Só um bom consumidor de serviços de saúde pode aspirar a uma morte desejável. Uma vez que se aceita a morte natural como objeto de desejo, se aceita também a perda de autonomia que essa aspiração implica77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

O desejo de renunciar à autonomia e viver sob o controle da instituição médica está secretamente inculcado em todas as pessoas, através da ilusão de que todos podem ter uma morte boa. Contudo, na realidade, só aquelas pessoas que têm o dinheiro necessário podem consegui-la. Independentemente dos efeitos iatrogênicos da medicina, a sociedade industrial inculca nas pessoas o desejo de intervenção pela instituição médica, mas somente poucos podem satisfazer este desejo. Na prática, esta lógica garante um controle generalizado da população pela instituição médica. Contudo, o benefício da intervenção acaba sendo efetivamente de poucas pessoas.

Glossário crítico da instituição médica moderno-industrial

Este ponto apresenta, de modo crítico, um glossário da instituição médica moderno-industrial, de acordo com as ideias e os termos introduzidos por Ivan Illich na sua obra mais conhecida, 'A expropriação da saúde - nêmesis da medicina', na qual afirma que a maior ameaça à saúde é a medicina moderna, e que os hospitais causam mais doenças do que saúde.

Doença:

As doenças são criações culturais feitas a partir da definição daquilo que é um desvio, segundo cada cultura. Cada civilização cria suas próprias doenças e a sua própria maneira de gerá-las. A característica da construção da doença que é própria à sociedade industrial é a transformação dos doentes em pacientes, ou seja, dos doentes autônomos em pessoas dependentes da instituição médica77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Doente:

É a pessoa que vê a si mesma sentindo mal-estar. Esse mal-estar é percebido sempre em relação à cultura77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975.. Doente e paciente não são sinônimos.

Iatrogênese:

É o conjunto de danos corporais, sociais e culturais intrinsecamente ligados à existência da instituição médica moderna88 Krause E. Book Reviews. Medical Nemesis: the expropiation of health. Technol Cult. 1977; 4(18):725-730.. Divide-se em iatrogênese clínica, social e cultural.

Iatrogênese clínica:

É causada pelos próprios cuidados de saúde, resultando em danos à saúde atribuíveis à falta de segurança e ao abuso dos medicamentos e das tecnologias médicas mais avançadas, ou seja, é o conjunto dos danos produzidos sobre os indivíduos pela ação da instituição médica. É a forma de iatrogênese mais rapidamente perceptível, já que é aquela que acontece no próprio corpo. Para Illich, a medicina moderna tem o comportamento de uma epidemia, que produz danos, morte e sofrimento para as pessoas. Nessa epidemia, os agentes patogênicos são os remédios, os médicos e os hospitais, que, em conjunto, criam estados clínicos. A iatrogênese clínica só é possível em um contexto no qual o doente acredita que a medicina lhe permite convertê-lo em paciente. Esta disposição do doente está baseada na falsa crença de que são os médicos, e não as condições ambientais, que determinam o processo saúde-doença. Uma das provas da falsidade desta crença é o fato de que, em ambientes onde há pobreza, a taxa de mortalidade costuma ser mais elevada do que em locais mais afortunados, independentemente do número de médicos atuantes nas regiões comparadas77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975.. Na realidade, a presença de médicos não só não evita a doença, mas a produz. A presença de profissionais da saúde destrói o potencial das pessoas, de enfrentarem as fraquezas humanas, as vulnerabilidades e as suas próprias singularidades, individual e autonomamente77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Iatrogênese social:

É decorrente de uma crescente dependência da população para com os medicamentos, os comportamentos e as medidas prescritas pela medicina em seus ramos preventivo, curativo, industrial e ambiental (considerada medicalização social). Este processo se expressa de cinco maneiras, ou, nas palavras de Illich, esta patologia tem cinco sintomas: 1) dependência da ação médica; 2) dependência dos medicamentos; 3) medicalização da vida; 4) medicalização das medidas preventivas; e 5) medicalização das expectativas77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

A dependência da ação médica é necessária para a existência da instituição médica. Ela está baseada na crença de que as pessoas não podem enfrentar doenças sem a medicina moderna e sem os profissionais de saúde. A partir desta crença, o processo da cura se liga inexoravelmente à atenção que os médicos e os profissionais da saúde dão aos seus pacientes. Isto tem como consequência uma separação estrutural entre a cura e o que o paciente pode fazer autônoma e individualmente. O autor chega a qualificar como 'insalubre' a proliferação de profissionais de saúde enquanto agentes criadores de dependência e agentes destruidores da possibilidade de cura autônoma77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

A dependência de medicamentos própria à instituição médica gera uma dependência toxicômana nos doentes, associada à dependência em relação aos profissionais de saúde. A toxicomania medicalizada chega a ser maior do que a toxicomania não médica. O doente, transformado em paciente, é convertido também em dependente de drogas. Assim, o médico não só trabalha com os toxicômanos, mas o ato de criá-los passa a fazer parte integral da sua profissão77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

A medicalização das medidas preventivas é um dispositivo poderoso de criação de pacientes. Este dispositivo, que permite à instituição médica ter acesso à totalidade dos indivíduos e não só àqueles que se consideram doentes, funciona através do diagnóstico precoce, o que lhe permite a transformação de pessoas sadias em pacientes ansiosos e dependentes da atenção médica77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

A medicalização de expectativas é o processo por meio do qual as pessoas são atraídas à instituição médica. O desejo de ser atendido pela instituição médica está baseado na esperança de se ter cada vez mais saúde. Contudo, a instituição médica meramente produz a expectativa de uma melhor saúde. Na realidade, ela garante cada vez mais saúde, mas gera uma incapacidade nas pessoas para procurarem, elas mesmas, uma melhor saúde77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

E, finalmente, quando Illich fala da maioria dos pacientes como um sintoma da iatrogênese social, se refere à criação de categorias sociais, mediante a catalogação das pessoas em termos de aspectos estranhos, comportamentos estranhos ou traços pouco comuns, a partir de um sistema de codificação passageira e cultural. Esta codificação está ligada a papéis e limites sociais predeterminados, o que configura um rol social e político importante77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Iatrogênese cultural:

Na iatrogênese clínica, os responsáveis diretos pelos danos são os profissionais da saúde. Na iatrogênese social, são as instituições e os aparelhos burocráticos que permitem o funcionamento da instituição médica. A iatrogênese cultural, por sua vez, não tem um responsável único. É a mais profunda de todas as iatrogêneses, porque é aquela que tem a ver com as mudanças na cultura que permitem que todas as outras iatrogêneses sejam possíveis, representando as modificações nas definições dos rituais sobre os quais se dá a coesão social, como, por exemplo, a morte, o sofrimento e o nascimento77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Instituição médica moderno-industrial:

A instituição médica moderna é a institucionalização da cura a partir de lógicas alienantes e monopolizadoras. O ritual da cura é o núcleo diante do qual se cria e se reproduz essa instituição. No ritual da cura, o enfermo está excluído da possibilidade de participar e mesmo de entender o ritual. A dependência está baseada na perplexidade do enfermo, que não tem outra opção a não ser entregar sua autonomia aos profissionais da área da saúde em troca da esperança de ser curado77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Quando se entende a saúde como o poder de enfrentar autonomamente as adversidades, a institucionalização da cura nas lógicas modernas significa, então, uma grande ameaça à saúde. Existem três razões principais pelas quais a instituição médica industrial é patógena: ela produz danos clínicos superiores aos seus possíveis benefícios; mascara as condições políticas que minam a saúde da sociedade; e expropria o poder do indivíduo, de curar a si mesmo e modelar seu ambiente77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Medicina:

A medicina é um ritual moderno-industrial. É um ritual relacionado à cura, no qual se exclui a pessoa doente através da criação de barreiras entre o doente e a magia da cura. Essas barreiras são encarnadas pelos profissionais de saúde66 Subhash K. Sociological Ideas of Ivan Illich. Soc Scient. 1974; 2(11):59-65.. Esta lógica gera uma dependência do enfermo frente aos profissionais, que acabam por monopolizar os conhecimentos e as práticas do ritual77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975.. A partir do mito moderno do progresso ilimitado, a medicina se autojustifica como um esforço persistente e ascendente para melhorar a saúde humana, abolir a dor, erradicar a doença e estender a duração da vida. O meio identificado é a intervenção ingenieril sobre a vida humana. As pessoas ficam atrapalhadas pela esperança de evitar a dor e a morte por meio da medicina, porém, o preço dessa esperança é a perda da autonomia e a dependência da instituição médica e da sociedade industrial77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Medicalização da vida:

É a criação de dependência nos indivíduos, em relação ao enfrentamento das adversidades da vida. É um processo próprio à sociedade industrial estatal. Manifesta-se pela inclusão da assistência em saúde nos orçamentos públicos; dependência direta de uma burocracia médica; criação do hábito do consumo de medicamentos industriais; e da classificação iatrogênica das idades do humano. A medicalização da vida faz parte da iatrogênese social, ou seja, é um dos danos sociais ocasionados pela instituição médica, em escala social77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Nêmesis:

É a inveja experimentada pelos mortais em relação àquilo que só os deuses podem ter, e o castigo que esta inveja implica. Uma extrapolação do seu contexto místico original permite utilizá-la para falar sobre o desejo de ter aquilo que não é próprio à condição humana e pelo que se paga um alto custo. Quando Illich fala em nêmesis médica, está querendo assinalar o desejo moderno-industrial de ir além dos limites da condição humana, pagando o custo da perda da autonomia. A dor, o sofrimento e a morte fazem parte da condição humana e o desejo de querer evitá-los traz, como custo, a perda da possibilidade de lidar com esses aspectos fora da instituição médica, gerando uma dependência dela e da sociedade industrial77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

O autor fala em quatro formas de nêmesis: endêmica, industrializada, médica e velada. Todas elas estão profundamente interligadas e são codependentes. A nêmesis endêmica é característica da sociedade industrial. É a articulação do social, a partir do desejo de ter aquilo que não é próprio à condição humana, mesmo pagando altos custos por isso, como a perda da autonomia. A nêmesis industrializada é a produção de um desejo ilimitado; a ilusão de sentir que é legítimo desejar tudo. A sociedade industrializada oferece a indústria como meio para satisfazer tudo aquilo que é desejável, mas o custo disto é a dependência frente à indústria para satisfazer os desejos. A perda das mitologias tradicionais e a adoção da mitologia do progresso ilimitado produzem estes tipos de nêmesis. A nêmesis médica é o desejo de ter acesso a melhorias ilimitadas na saúde humana para evitar a morte e o sofrimento. E, por fim, a nêmesis velada é aquela que permite que todas as nêmesis possam se autorreproduzir. É a ilusão que possibilita às pessoas se concentrarem no desejo, e não nos custos, para satisfazê-lo. A solução para os problemas da industrialização é encontrada na própria industrialização. Reconhecer os problemas e as suas causas reais levaria ao abandono do sistema industrial77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Paciente:

É um corpo alienado através do uso de tecnologias utilizadas por profissionais da medicina. Um corpo definido como paciente passa a ser um corpo manipulável e alienável, um corpo público nas mãos da instituição médica. O corpo, como território da intervenção, é um espaço definido por fronteiras. A norma é a noção moderna que define as fronteiras do campo de ação da instituição médica no corpo individual e social. Uma pessoa se torna paciente a partir de um parâmetro normativo, que permite distinguir entre o desejável e o não desejável. Então, a categoria paciente rotula os corpos em função de parâmetro-padrão, indicando que o corpo não está de acordo com o socialmente desejável. Não estar de acordo com a norma justifica a intervenção médica com o propósito de reparar e aproximar os parâmetros-padrão do desejável. Isto significa que a sociedade moderno-industrial só tem duas possibilidades de interação com a excentricidade: o respeito às normas-padrão ou a correção da excentricidade através da instituição médica ou sua exclusão.

A norma como dispositivo de organização social somente se torna pensável quando a separação entre a mente e o corpo é introduzida pelo pensamento moderno. Esta separação binária permite pensar o corpo como uma máquina que tem que ser dominada pela mente. Neste contexto, a norma leva a racionalizar o corpo, permitindo sua gestão através do uso da razão. As lógicas modernas associam a normalidade definida a partir de padrões referenciais ao bem-estar77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975.. Assim, quem não estiver dentro da normalidade, está doente, e, ao se tornar doente, é transformado em paciente. Esta é uma das características da medicina industrial: converter o doente em paciente77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975.. Ser paciente implica em três coisas: ser examinado com o propósito de ser reparado; ser um cidadão administrado a partir de parâmetros-padrão; e ser cobaia para alimentar o mito do progresso eterno da ciência médica77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Profissões da saúde:

Burocracia encaminhada a destruir o potencial das pessoas para lidarem com suas fraquezas humanas, sua vulnerabilidade e sua singularidade de maneira autônoma.

Saúde pública:

É a prática da saúde como virtude. A saúde pública tem que estar baseada no direito à saúde, que é o direito a desertar e a organizar-se a partir de novas lógicas que não respondam à sociedade industrial e que permitam modos de estar no mundo menos destrutivos à vida, possibilitando às pessoas um maior controle sobre seus ambientes77 Illich I. Nemesis médica: La expropiación de la salud. Barcelona: Barral; 1975..

Conclusões

Este artigo, longe de propor o vocabulário de Illich como uma verdade axiológica, o toma como um ponto de partida para a leitura da instituição médica contemporânea. Isto tem três implicações. Em primeiro lugar, não faz parte do propósito do artigo convencer os leitores da verdade das definições propostas. O artigo não é um convite para o leitor aceitar ou rejeitar o vocabulário proposto, mas representa um chamado a um diálogo entre as definições com as quais ele já opera, baseado na sua própria experiência. Assim, o propósito final é convidar os leitores a se permitirem desestabilizar definições pré-estabelecidas e automáticas, a fim de que possam tirar suas próprias conclusões.

A segunda implicação é que esta proposta configure uma reflexão propositalmente inacabada. Espera-se que ela seja suscetível de influir em práticas concretas, a partir da interação ativa da pessoa leitora com os argumentos aqui apresentados. O artigo foi escrito para que sua leitura seja completada pela pessoa leitora através do contraste ativo com sua própria realidade.

Relacionada com as duas anteriores, a terceira implicação é que, propositalmente, não há um contraste com uma realidade específica adicional à análise proposta sobre a própria instituição médica moderno-industrial. Partindo da natureza crítico-epistemológica deste artigo, o objetivo não é oferecer uma análise acabada de uma realidade específica, mas propor ferramentas para que os leitores possam contar com mais elementos para fazer essas análises, a partir da dúvida sobre o que já foi estabelecido.

Uma vez esclarecido o propósito do artigo, vale sugerir um possível campo de utilidade para ele, a partir dos elementos aqui apresentados. Percebendo que a proposta de Illich implica um ponto de quebra na maneira de entender a saúde pública, surge, então, o questionamento a respeito de qual pode ser a utilidade da obra do autor para definir aquilo que pode ser considerado como uma intervenção não iatrogênica nesse campo. Uma boa ação em saúde pública na sociedade é sinônima de uma maior intervenção estatal, e isto significa uma interação direta entre um indivíduo e o Estado. Ressalte-se que o Estado que funciona nas sociedades contemporâneas interatua com cidadãos-indivíduos, não com pessoas-comunidades. Pela natureza desigual existente na relação cidadão-Estado, o fluxo recíproco possível na interação pessoa-comunidade não existe, nesse caso, de maneira equivalente. Assim, é na natureza dessa interação Estatal que a gestão das adversidades da vida, em termos iatrogênicos, tem lugar.

Os argumentos anteriores definitivamente não permitem chegar à conclusão neoclássica segundo a qual o Estado deve se abster de atuar no campo da saúde. Apesar de ter em comum a proposta por um controle da ação estatal, não se está, aqui, sugerindo o mercado como melhor gestor para a execução dessa proposta. Independentemente das vantagens e desvantagens do Estado e da sua contingência histórica, em termos práticos, este mesmo Estado é a realidade contemporânea da organização política. Além disto, a saúde pública tem uma relação genealógica com esta forma de institucionalidade. Assim, uma ação em saúde pública sempre vai ter uma relação com o Estado, independentemente de qual seja. Uma proposta crítica tem que lidar com o Estado como realidade, sem importar a valoração que ela tenha dele. Neste contexto, a saúde pública, enquanto parte do Estado, sempre vai ser iatrogênica, porém ela pode sê-lo em maior ou menor medida.

Retomando a proposta do Illich, uma boa intervenção estatal no campo da saúde pública tem que estar encaminhada no sentido de reconstruir a autonomia da pessoa, para que ela, assim, possa interatuar com as adversidades da vida. Por outro lado, expandindo as colocações do autor, tendo em conta a relação genética do Estado com a sociedade industrial e também a impossibilidade de ignorar o Estado na saúde pública, uma ação a partir da saúde pública sempre vai produzir iatrogenia. Porém, isto é inevitável enquanto o Estado seja a forma de organização política privilegiada. Isto, mais do que representar um limite externo da saúde pública, faz parte daquilo que ela é. Deste modo, tal realidade é somente o ponto de partida para a análise crítica, no sentido de passar a considerar os limites do possível. Neste contexto, a ação de menor iatrogenia possível, no campo da saúde pública, seria aquela que, partindo da sua incapacidade para proporcionar autonomia às pessoas, se encaminhasse a reduzir o mínimo possível dessa autonomia.

Para fechar esta reflexão, aqui se propõe, a título de hipótese realista, que mesmo a produção da menor iatrogênese possível passa pela reconsideração da relação cidadão-Estado como única relação possível. Nesta lógica, uma relação comunidade não estatal-Estado poderia permitir uma ação em saúde pública mais suscetível de gerar autonomia para as comunidades e as pessoas, na gestão das adversidades da vida. O indivíduo é uma ficção própria das sociedades moderno-industriais; as pessoas sempre vão ter uma relação de continuum com uma coletividade, esteja ela presente na sua forma industrializada/moderno-industrial (o Estado), esteja ela representada por outras formas de organização comunitária ligada ou não ao Estado. A autonomia das pessoas entendida como a possibilidade de autogoverno sempre está em relação com os coletivos nos quais a pessoa é um continuum. Assumir o indivíduo como ente separado do coletivo e como interlocutor, por antonomásia, do Estado - e, assim, da saúde pública - faz parte da inteligibilidade própria às sociedades moderno-industriais produtoras de iatrogenias. Uma ação que se pretende não iatrogênica tem que partir, ao menos, da análise crítica da relação cidadão-Estado.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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    Krause E. Book Reviews. Medical Nemesis: the expropiation of health. Technol Cult. 1977; 4(18):725-730.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    08 Nov 2017
  • Aceito
    11 Mar 2018
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