Política Nacional de Atenção Básica: consolidação do modelo de cuidado ou conciliação com o mercado de saúde?

National Primary Care Policy: consolidation of the care model or conciliation with the health market?

Stephan Sperling Sobre o autor

A Atenção Primária à Saúde (APS) consolidou-se, nos principais Sistemas Nacionais de Saúde, destacadamente naqueles que se orientam pelo marco da universalidade do cuidado, como nível de atenção crítico, organizador da oferta de acesso para as necessidades de saúde das pessoas, permitindo não apenas intervenções sanitárias coordenadas e abrangentes, mas, igualmente, equitativas, custo-efetivas e longitudinais11 Starfield B. Is primary care essential? Lancet. 1994; 344(8930):1129-1133.. A efetivação de seus atributos, assim, conferiu-lhe, imageticamente, o registro de porta de entrada para o cuidado, sendo os profissionais que lhe zelam o funcionamento considerados seus gatekeepers22 Gérvas J, Fernández MP. El fundamento científico de la función de filtro del médico general. Rev. Bras. Epidem. 2005 out; 8(2):205-218..

Entretanto, por ser o nível de atenção que trabalha com as demandas de usuários em estado bruto, buscando investigar as necessidades de saúde que as originam, encontra-se associado às dinâmicas social e política que determinam, historicamente, formas de se adoecer, de se compreender doenças e adoecimentos e de se produzirem intervenções para promoção, prevenção e reabilitação33 Campos GWS. El filo de la navaja de la función filtro: reflexiones sobre la función clínica en el Sistema Único de Salud en Brasil. Rev. Bras. Epidem. 2005 out; 8(4):477-483.. Em outras palavras, a atenção primária não é apenas o primeiro contato estruturado para atenção de pacientes, é, também, sem dúvida, campo em disputa para produção de significantes e significados no processo de cuidado da vida humana.

A tensão e as disputas que circundam o campo da atenção primária brasileira, ou atenção básica, como consolidou-se chamá-la no País, materializam-se mais evidentemente na revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), ocorrida no ano de 2017. Na qualidade de instrumento indutor e fomentador da organização deste nível de a no País, é impossível à política e à sua portaria manterem neutralidade diante dos tensionamentos pelos quais passam o Estado Brasileiro e o Sistema Único de Saúde (SUS), assim como o fora impossível ocultar, no produto, a opção segmentada por determinados setores sociais.

Enquanto uma crítica a respeito dos equipamentos e recursos previstos para a efetivação da atenção primária em todo território nacional, bem como uma análise do orçamento e do financiamento previstos para sustentar suas ações, pode apresentar interessantes trânsitos de interesses no seio do sistema de saúde, é atentando para o modelo de atenção, que, finalmente, aparece tocado, em que se observa o papel conciliador do Estado Brasileiro entre os interesses conflitantes do mercado em saúde e da defesa do direito à saúde.

Desde a promulgação da Declaração de Alma Ata, ocorrida na segunda metade do século passado, a estruturação de nível de atenção que ofereça primeiro contato para o cuidado foi objeto de diferentes políticas sanitárias ao redor do globo, bem como de diferentes respostas pelos Sistemas Nacionais de Saúde, para os sequentes desafios. O SUS, herdando do cenário histórico possibilidades técnicas e políticas para seus níveis de atenção e para suas Redes, contraditoriamente, persiste sustentando uma atenção primária segmentada entre um programatismo em saúde orientado para a patologia e para tecnologia, fomentando, por vezes, intervenções pouco eficazes às pessoas e muito custosas para o Sistema44 Heath I. In defence og a National Sickness Service. BMJ. 2007; 334:19., quando não danosas para ambos; e entre uma tentativa de centralizar o cuidado não em tecnologias, doenças ou adoecimentos, mas em pessoas enquanto indivíduos históricos que compõem seus territórios.

Inicialmente, a persistência tensa dessas contradições, entre uma atenção centralizada em ações biomédicas, quer sejam preventivas, quer sejam curativas, e o reconhecimento da complexidade da constituição das necessidades de saúde à porta de entrada do Sistema, atendia objetivamente a interesses de mercado, que lucrara com o emprego tecnológico não regulado, promovendo tanto sobre diagnóstico, como de cânceres prostáticos por rastreamento de toda a população masculina a partir dos 50 anos de vida55 Agency for healthcare research and quality. Overdiagnosis in Prostate Cancer Screening Decision Models: A Contextual Review for the U. S. Preventive Services Task Force. Departament of Health. 2017 abr; 17(5):1-42.; e iatrogenias legitimadas, como a prescrição de estatinas para profilaxia primária de eventos cardiovasculares em pacientes de baixo risco cardiovascular, mesmo à custa de câimbras e fadigas musculares; quanto sobremedicalizando fenômenos humanos e contradições materiais de uma sociedade capitalizada, como revela o incremento do uso de benzodiazepínicos ou antidepressores pelos que buscam serviços de saúde em sofrimento mental.

O setor privado, entretanto, não se comporta como bloco monolítico nesse cenário, sofrendo, tanto ontem, como hoje, importantes tensionamentos desse Modelo de Atenção. Enquanto a fração técnico-industrial do mercado em saúde ceva suas taxas de lucro por meio do incremento de consumo desnecessário e danoso de medical devices, como de stents para doenças ateroscleróticas sobrediagnosticadas, ou alocação indiscriminada de próteses de quadril para osteoartroses, a fração administrativo-gerencialista, e cada vez mais financeirizada, do capital em saúde encontrou no século XXI limites críticos para sustentar o banquete de intervenções e ações de seus consumidores. Seguros de saúde, mesmo aqueles de capital misto e aberto, conglomerados com grandes empresas do cenário globalizado internacional, têm buscado restringir o desperdício de investimentos e recolocar o debate da custo-efetividade das intervenções e ações em saúde66 Orsag PR, Gluckman D. The medical marketplace is changing fast [internet]. Bloomberg. 2018 [acesso em 2018 abr 9]. Disponível em: https://www.bloomberg.com/view/articles/2018-04-09/the-medical-marketplace-is-changing-fast.
https://www.bloomberg.com/view/articles/...
. Ocorre ao setor privado a necessidade de um nível de atenção que, em coordenando o cuidado de seus consumidores, racionalize o acesso à tecnologia e restrinja investimentos custosos. Já não é mais possível apostar isoladamente no managed care, no cuidado gerenciado individual ofertado por cada operador de serviço privado: faz-se necessário constituir um managed access ao privado, um acesso de Rede gerenciado, em que todo o nível de atenção possa atuar como intérprete de necessidades e regulador de ofertas, sem custos adicionais.

Tal fenômeno de segmentação contraditória do modelo de atenção proposto para a atenção primária brasileira, levado a reboque por essa movimentação do mercado de saúde sobre o curso de suas práticas, só conheceu enfrentamento concreto para asseguração do direito à saúde e defesa do sistema universal e constitucional brasileiro por meio da priorização da Estratégia Saúde da Família (ESF), como política para ordenamento e provimento de cuidados em primeiro contato. Em poucos momentos históricos pós-1988, o Estado Brasileiro definiu nacionalmente uma política indutora de cuidado integral, acessível, orientadora para todo o modelo de atenção do Sistema, com a capacidade de capilarizar-se por todo o território e provocar, finalmente, profundo debate a respeito do modelo de atenção vigente. No entanto, em poucos momentos históricos, igualmente, o Estado Brasileiro comportou-se tão levianamente, como tem se comportado desde 2016, convertendo a PNAB, de produto estratégico para a defesa e implantação da ESF e de um modelo de atenção à saúde civilizatório em todo o País, em carta de conciliação e conivência política para com atores antagônicos aos princípios fundantes do SUS, tentando intermediar mais as tensões do mercado de saúde, cada vez mais desnacionalizado, do que as tensões do SUS e de suas necessidades.

Verifica-se, dessa forma, ao longo da Portaria instituinte da PNAB, uma transferência, permissiva e indevida, à discricionariedade local, de autonomia para gerir e ordenar elementos basilares e críticos para o funcionamento do nível de atenção. O Governo Brasileiro optou, assim, por intermédio de contornos de formalidade administrativo-legal, por perverter o mérito da ação do Poder Público, anuindo com o afrouxamento da APS na base do Sistema Único e acenando ao mercado de saúde e à saúde privada. Quer dizer, a PNAB não avança para a consolidação de um modelo de atenção indutor dos atributos essenciais da atenção primária nos territórios, não indica à municipalidade os melhores percursos técnicos e políticos para fortalecimento do nível de atenção, fraciona a cobertura dos territórios entre ESF e outros modelos menos custo-efetivos para o cuidado e para o Sistema e nega-se a reconhecer o papel formador e fixador da APS para novos profissionais comprometidos com o SUS.

Há, ao menos, dois registros no corpo da Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017, que promulga a Política, altamente ilustrativos da generalização da gestão local como principal protagonista na produção de políticas para atenção às necessidades dos territórios e formuladora de intervenções centradas em suas necessidades77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Política Nacional de Atenção Básica. Estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 22 Set 2017.(70).

[...] Podem existir outros arranjos de adscrição, conforme vulnerabilidade, riscos e dinâmica comunitária, 'facultando aos gestores locais', conjuntamente com as equipes que atuam na Atenção Básica e Conselho Municipal ou Local de Saúde, a possibilidade de definir outro parâmetro populacional de responsabilidade da equipe [...].

"Caberá ao 'gestor municipal' realizar análise da demanda do território e ofertas da UBS para mensurar sua capacidade resolutiva"77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Política Nacional de Atenção Básica. Estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 22 Set 2017.(71). A Política não indica normatizações futuras, para que, tanto o rastreamento e adscrição de áreas vulneráveis, quanto a oferta de ações e serviços de padrões essenciais e ampliados, obedeçam, minimamente, a uma ordenação nacional; sequer disponibiliza instrumentos com lastro em evidências, anexados à Portaria, para avaliação das intervenções territoriais pretendidas. O impacto desejado é exclusivamente ceder ao gestor a possibilidade de ordenamento desregulamentado de suas ações. Porém, hiatos ou vazios regulatórios podem ocorrer suficientemente no corpo da Lei, mas são, faticamente, preenchidos pelas disputas políticas e pelos tensionamentos reais. Nesse sentido, uma PNAB que não regulamenta, vulnerabiliza o Sistema de Saúde e a atenção primária diante do mercado e do capital em saúde.

O arremate à fragilização do modelo de atenção obtido com as equipes de ESF dá-se, finalmente, com a possibilidade de o gestor, da mesma forma com que arbitrariamente compõe equipes e redesenha territórios, não priorizar a contratação de médicos e de enfermeiros de família e comunidade para desempenho de atividades assistenciais em serviços primários. Negligenciam-se, assim, evidências consolidadas de que esses profissionais são responsáveis pelos melhores desempenhos sanitários do nível de atenção e para o Sistema, aumentando a custo-efetividade das intervenções, diminuindo demanda por outros níveis, como as internações evitáveis por causas sensíveis à atenção primária. Evidências, porém, empregadas pelo setor suplementar para redesenhar seus serviços88 Kidd M. A contribuição da Medicina de Família e Comunidade para os Sistemas de Saúde. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2016..

É flagrante, assim, na PNAB revisada, a capitulação do Estado Brasileiro à pressão do privado para o sequestro de médicos de família e comunidade, em favor da construção do managed access99 Agência Nacional de Saúde Suplementar. Laboratório de inovação sobre experiências em atenção primária na saúde suplementar. Rio de Janeiro: Organização Pan-Americana de Saúde; 2018.. Inexistência de indicativos de fixação e orientação de formação profissional, tratamento de vínculo profissional meramente como ajuste de carga horária, ausência de diálogo com instituições de ensino e nenhuma menção às especialidades médicas ou de enfermagem evidenciam a conciliação da Política com os setores do capital. Por sua vez, o mercado em saúde seduz o médico e o enfermeiro de família e comunidade por meio de virtual autonomia para suas práticas, destacando a prevenção quaternária e a gestão da clínica na obtenção de melhores desfechos, buscando multifacetar a atuação dos especialistas em seus serviços, enquanto pratica melhor remuneração, mesmo que à custa de vínculos empregatícios desprotegidos e sem qualquer perspectiva de integração a redes de cuidado ou ao fortalecimento do Sistema Único. Sem o protagonismo da política pública no ordenamento do emprego da especialidade no Sistema, o médico de família e o enfermeiro de família vinculados ao SUS serão filtros de uma imensa demanda desorganizada e vulnerabilizada de brasileiras e brasileiros desprotegidos, ou porteiros de um acesso gerencialista, que não possui vínculo ou comprometimento civilizatório suficientes com a realidade nacional.

Por intermédio da PNAB revisada, está posto de lado o debate, cada vez mais crítico e inadiável para os sistemas de saúde, como aponta o 'World Health Report' 20081010 World Health Organization. Primary health care: now more than ever. Geneva. World Health Organization; 2008., a respeito da superação de modelos de atenção verticalizados e orientados por consumo tecnológico para combate de doenças e adoecimentos, para adoção de modelos de atenção centrados em pessoas está posta de lado a estruturação de acesso aos serviços de atenção primária para tentativa de acolhimento de necessidades diárias, equitativamente distribuídos segundo vulnerabilidades aferidas por instrumentos respaldados. Está posta de lado a construção de outra racionalidade de cuidado, orientada pela horizontalidade e complementariedade de saberes, não restritos à capacidade de realizar intervenções sanitárias. Está posto de lado o papel indutor e fixador para novos recursos humanos para o SUS. Está ao centro a conciliação com um setor privado que deseja avançar na elaboração de serviços de cuidados de primeiro contato e que necessita da segmentação do Sistema e da conveniência do Poder Público para persistir com suas atividades.

O Governo Brasileiro, por meio da PNAB, optou por não enfrentar elementos críticos para a estruturação da APS no seio do Sistema Único. Mantendo inatacado o modelo de atenção, em verdade, fortalece o assédio da saúde privada e do acesso gerenciado e segmentado para a oferta de cuidado. O afrouxamento de possibilidades regulatórias por parte da Política para todo o território nacional indica claramente que a mediação com setores do capital sanitário será contraditória por todo o País, avançando, possivelmente, para a monopolização de serviços privados, nesse nível de atenção, por entidades e grupos de capital desnacionalizado, com centralização de sua oferta nos eixos urbanos conhecidos.

A população em geral permanecerá submetida a rotinas programatizáveis, de fácil consumo e baixo financiamento, pervertendo a ESF enquanto patrimônio do cuidado centrado em pessoas. A fixação de profissionais será dificultosa, e a orientação de formação de novos recursos humanos comprometidos com o Sistema Único dará espaço, unicamente, à disputa por remuneração individual entre o sistema público e o setor privado. Os consumidores de planos de saúde serão frequentemente descontextualizados de suas realidades societárias, não tendo espaço em seus planos de cuidado para formulações que contemplem o incentivo a novas formas de organização social e superação de contradições dialéticas. O acesso a intervenções de alto custo será iníquo, não orientado por necessidades, mas pela censitarização do cuidado, como indica o iminente debate a respeito de contratação de franquias para copagamento.

O SUS deixará de ser indutor do processo civilizatório nacional e será legado, sem financiamento e com modelo de atenção iníquo e inefetivo, ao cuidado segmentado do pobre. Enfrentar a PNAB, logo, significa não tolerar que os desfechos sanitários obtidos por 30 anos de regulamentação e busca pela efetivação do direito à Saúde, e pela regulamentação e busca do fortalecimento da ESF, sejam descartados por um Estado Nacional que concilia com o inconfessável e medeia com o inadmissível.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Starfield B. Is primary care essential? Lancet. 1994; 344(8930):1129-1133.
  • 2
    Gérvas J, Fernández MP. El fundamento científico de la función de filtro del médico general. Rev. Bras. Epidem. 2005 out; 8(2):205-218.
  • 3
    Campos GWS. El filo de la navaja de la función filtro: reflexiones sobre la función clínica en el Sistema Único de Salud en Brasil. Rev. Bras. Epidem. 2005 out; 8(4):477-483.
  • 4
    Heath I. In defence og a National Sickness Service. BMJ. 2007; 334:19.
  • 5
    Agency for healthcare research and quality. Overdiagnosis in Prostate Cancer Screening Decision Models: A Contextual Review for the U. S. Preventive Services Task Force. Departament of Health. 2017 abr; 17(5):1-42.
  • 6
    Orsag PR, Gluckman D. The medical marketplace is changing fast [internet]. Bloomberg. 2018 [acesso em 2018 abr 9]. Disponível em: https://www.bloomberg.com/view/articles/2018-04-09/the-medical-marketplace-is-changing-fast
    » https://www.bloomberg.com/view/articles/2018-04-09/the-medical-marketplace-is-changing-fast
  • 7
    Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Política Nacional de Atenção Básica. Estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 22 Set 2017.
  • 8
    Kidd M. A contribuição da Medicina de Família e Comunidade para os Sistemas de Saúde. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2016.
  • 9
    Agência Nacional de Saúde Suplementar. Laboratório de inovação sobre experiências em atenção primária na saúde suplementar. Rio de Janeiro: Organização Pan-Americana de Saúde; 2018.
  • 10
    World Health Organization. Primary health care: now more than ever. Geneva. World Health Organization; 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2018
  • Aceito
    12 Set 2018
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