A utopia do debate democrático na Vigilância em Saúde

Heleno Rodrigues Corrêa FilhoSobre o autor

COMO CONCILIAR A VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA de origem militar com a marca da guerra fria com a democracia que desejamos para o Sistema Único de Saúde (SUS)? Seria essa uma tarefa utópica, impossível de atingir?

Vivemos em janeiro de 2020 sob o signo do ‘novo’ coronavírus surgido em Wuhan, capital de Hubei, na China. Desde os dias iniciais de janeiro até o primeiro decêndio de fevereiro, somamos 20 mil – ‘e um’– casos de infecção pelo Covid-19, com 426 óbitos e 623 pessoas recuperadas aparentemente sem sequelas. Isso equivale a 2,12% de letalidade dos casos confirmados. Se a taxa de reprodução por contatos de pessoa infectante for igual ou superior a 2,6 contatos efetivos para desencadear infecção, estamos com mais de 52 mil casos novos, cuja morbidade pode ser a ponta do iceberg, em que estes casos sejam 15% a 20% das infecções que resultem em morbidade clinicamente detectável com outros 70% indetectáveis – outros 260 mil –, cuja transmissibilidade pode ser iniciada antes de sinais e sintomas semelhante à caxumba11 Sheikh K, Watkins D, Wu J, et al. How Bad Will the Coronavirus Outbreak Get? Here Are 6 Key Factors [internet]. The New York Times. 2020 fev 1. [acesso em 2020 fev 1]. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2020/world/asia/china-coronavirus-contain.html.
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A letalidade da pandemia do Covid-19 não é o ‘fim do mundo’ como seria se estivéssemos com a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) de letalidade de 10% igual à da gripe ‘espanhola’ do início do século XX. Apenas temos um tempo diferente, em que o tráfego aéreo da China para outros países aumentou dez vezes desde a época da Sars em 2003. Isso implica espalhar muito mais a infecção pelo Covid-19 do que aconteceu nas pandemias anteriores. Nada comparável às letalidades das pandemias de varíola, do ebola e da gripe aviária superiores a 40%.

O problema é que a Covid-19 é uma doença que, em 20 dias, atingiu o dobro do número em que a pandemia de Sars se estabilizou aos cem dias do caso inicial; e nada indica que atingiu nesse prazo o seu platô no território chinês. Se as medidas de saúde pública adotadas na China forem eficazes para conter a transmissibilidade, a pandemia pode não se concretizar. Aí está o nó em que a corda da vigilância epidemiológica se travou. A passagem da corda ou se detém na trava, ou se arrebenta.

A trava é de natureza ética, geopolítica e menos virológica. Uma doença de letalidade baixa (2,6%), mas de alta transmissibilidade (2,6 contatos transmissores efetivos por doente) pode se espalhar pelo globo terrestre, e mesmo sendo pouco letal matará muita gente. Por isso, chamamos de nó o embargo ao trânsito contínuo do fio condutor da vigilância em saúde nos dias dessa pandemia22 The Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at JHU. Coronavirus 2019-nCoV Global Cases by Johns Hopkins CSSE [internet]. 2020. [acesso em 2020 fev 4]. Disponível em: https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html?fbclid=IwAR2eUiZF_45JToUoSiWB5xWg5pF_AXXuMJSlw_wpKPmLNQnYiexsIih3So8#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6.
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Os Estados Unidos da América (EUA) são o país que mais militarizou sua vigilância epidemiológica com a criação do Centro de Controle de Doenças (CDC) em Atlanta/Geórgia. Desenvolveu métodos biológicos calcados estritamente na detecção, redução de danos, imunização e desenvolvimento de terapias de contenção epidemiológica sob controle militar sem participação popular transparente. Como o enfoque epidemiológico do CDC foi o medo da guerra viral e bacteriana durante a guerra fria, esteve sempre longe da mobilização popular participativa. Os livros e filmes estão repletos de produção real e ficcional sobre o choque entre a quarentena militarizada e os direitos da população civil.

Ironicamente, é essa a acusação de epidemiologistas dos EUA contra as medidas de quarentena adotadas pelo partido comunista chinês. Alegam que os direitos civis são desrespeitados, as informações são impossíveis de validar, e acusam o conflito entre o fechamento das cidades com 40 milhões de habitantes e o direito de ir e vir.

Não sabemos em que medida os cidadãos chineses serão capacitados a participar ativamente da vigilância epidemiológica em comitês de bairro, de locais de trabalho, ou territórios de circulação e comércio. Não sabemos o grau de decisão democrática chinesa sobre notificação, investigação, auxílio às pessoas doentes e resolutividade das medidas de isolamento. Se as medidas forem militarizadas e autocráticas, estão destinadas ao fracasso porque a primeira reação do ser humano tolhido é libertar-se das amarras.

A noção de responsabilidade civil combinada com capacidade de resposta a epidemias é completamente nova no mundo. No Brasil, existe reação corporativa dos funcionários públicos contra dividirem sua missão sanitária com cidadãos considerados ‘leigos’. Existe também a descrença das lideranças populares e sindicais em confiar na participação popular direta nos sistemas de Vigilância em Saúde. Tanto o documento orientador quanto os resultados ainda não divulgados da primeira Conferência Nacional de Vigilância em Saúde mostram a evolução do conceito e, ao mesmo tempo, a ausência da proposta de participação direta nos direitos de notificação, avaliação e direito de saber para cidadãos que não são trabalhadores dos sistemas de saúde33 Conselho Nacional de Saúde. Relatórios do Conselho Nacional de Saúde da 1a Conferência Nacional de Vigilância em Saúde 2018. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020..

Na prática do SUS no Brasil, existe um universo tácito de negligência consentida pelos órgãos de saúde pública que atribui a vigilância epidemiológica apenas aos serviços públicos embora a lei destine igual responsabilidade aos serviços de saúde privados. Nesse ponto, somos absoluta imagem precária da militarização estadunidense sem termos a centralidade partidária vertical do estado comunista chinês. Pecamos por excesso de burocracia aliado à falta de estrutura.

Países centrais da Europa, além dos EUA, tomaram medidas epidemiológicas ineficazes com interesse de caráter geopolítico. Bloquearam suas fronteiras ao ingresso de cidadãos e viajantes procedentes da China, como se seus nacionais com passaporte e vistos de residência permanente fossem abençoados pela ausência de infecções de um vírus ‘chinês’. A guerra comercial e geopolítica busca tirar proveito da epidemia para seus interesses comerciais e de supremacia militar.

Países governados por governos sabujos do império estadunidense, como Brasil, Chile, Equador, Bolívia e Paraguai, tomarão medidas epidemiológicas espelhadas no pior da geopolítica e na incompetência para combinar direitos civis com contenção epidemiológica. Seguirão determinações dos modelos centrais que já se demonstraram politicamente contaminados pela guerra econômica bipolar entre China e EUA com subordinação a este último.

Se os cidadãos chineses tiverem a oportunidade de organizar a vigilância civil em saúde, darão lição ao mundo sobre a melhor forma de democratizar a participação popular direta em saúde. Terão duas vitórias a exibir. A vitória epidemiológica virá associada à vitória da politização das relações entre estado e responsabilidade sanitária popular, tal como fizeram na eliminação da esquistossomose endêmica nos anos 1960.

Se fracassar a contenção da pandemia do Covid-19 na China, e, consequentemente, em toda a Ásia, assistiremos ao avanço da epidemia de forma inexorável em países com sistemas de saúde incompetentes, fracos, privatizados, terceirizados, excludentes e desparelhados para lidar com a natureza humana da solidariedade na emergência de doenças.

Já imaginaram a classe média abastada ou remediada correndo em massa para seus ‘hospitais de convênio’ com sintomas de angústia respiratória? Pior que isso. Já imaginaram prefeitos, vereadores e deputados que defendem o estado mínimo neoliberal com o corte de orçamento da Emenda Constitucional 95 exigindo que seus eleitores furem a fila dos hospitais do SUS? Vai ser um ‘Holiday’ de espetáculos de clientelismo indecente como ocorreu na epidemia de meningite dos anos 1970.

Medidas militares podem conter focos epidêmicos, mas não podem conter uma pandemia. Medidas burocráticas verticais sem participação popular direta com direito de informação plena e direito de saber resultados são parcialmente eficazes, mas são incompatíveis com estados sem democracia.

Acusar o governo chinês de esconder informações e reclamar do Secretário Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) que deu apoio às ações chinesas de saúde pública é fácil para quem domina a mídia ocidental. Esconder as dimensões da fragilidade sanitária do ocidente capitalista militarizado também é fácil para quem domina a mesma mídia, como acontece no Brasil.

A Vigilância em Saúde que hoje reúne a vigilância epidemiológica, sanitária, ambiental e de saúde do trabalhador ainda tem muito que progredir até dar direito pleno de notificação epidemiológica a todos os cidadãos, e não apenas aos profissionais de saúde. Todos os cidadãos notificantes deveriam ter direito às normas de confidencialidade, de saber os resultados da investigação e de partilhar a tomada de decisões em momentos de guerra humana, química, viral ou bacteriológica44 Corrêa Filho HR. As mudanças no mundo do trabalho e suas repercussões sobre a Saúde do Trabalhador: revisão e tendências para o início do século XXI. In: Feliciano GG, Ebert PRL, editores. Direito Ambiental do Trabalho: Apontamentos para uma teoria geral. Direito Ambiental e do Trabalho. São Paulo: LTR Editora; 2018. p. 93-126.. A diretriz central do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) refletida nas publicações históricas da revista ‘Saúde em Debate’ afirma: sem democracia, não há saúde. O corolário do século XXI é: sem democracia e comitês populares participativos, não há Vigilância em Saúde.

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    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

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    Sheikh K, Watkins D, Wu J, et al. How Bad Will the Coronavirus Outbreak Get? Here Are 6 Key Factors [internet]. The New York Times. 2020 fev 1. [acesso em 2020 fev 1]. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2020/world/asia/china-coronavirus-contain.html
    » https://www.nytimes.com/interactive/2020/world/asia/china-coronavirus-contain.html
  • 2
    The Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at JHU. Coronavirus 2019-nCoV Global Cases by Johns Hopkins CSSE [internet]. 2020. [acesso em 2020 fev 4]. Disponível em: https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html?fbclid=IwAR2eUiZF_45JToUoSiWB5xWg5pF_AXXuMJSlw_wpKPmLNQnYiexsIih3So8#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6
    » https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html?fbclid=IwAR2eUiZF_45JToUoSiWB5xWg5pF_AXXuMJSlw_wpKPmLNQnYiexsIih3So8#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6
  • 3
    Conselho Nacional de Saúde. Relatórios do Conselho Nacional de Saúde da 1a Conferência Nacional de Vigilância em Saúde 2018. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020.
  • 4
    Corrêa Filho HR. As mudanças no mundo do trabalho e suas repercussões sobre a Saúde do Trabalhador: revisão e tendências para o início do século XXI. In: Feliciano GG, Ebert PRL, editores. Direito Ambiental do Trabalho: Apontamentos para uma teoria geral. Direito Ambiental e do Trabalho. São Paulo: LTR Editora; 2018. p. 93-126.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br