Percepção da Equipe de Saúde da Família sobre o cuidado a usuários de drogas

Laís Santana Santos Pereira Lira Luana Machado Andrade Luma Costa Pereira Peixoto Sâmia de Carliris Barbosa Malhado Edite Lago da Silva Sena Sobre os autores

RESUMO

Estudo com objetivo de compreender a percepção da equipe da Estratégia Saúde da Família sobre o cuidado a usuários de drogas. Trata-se de estudo fenomenológico na abordagem de Maurice Merleau-Ponty, realizado com nove profissionais de uma Unidade de Saúde da Família no interior da Bahia, Brasil, no período de janeiro a março de 2012, por meio da entrevista aberta relacionada com a leitura de Desenhos-Estória com Tema produzidos pelos próprios participantes. A compreensão das descrições ocorreu mediante a técnica Analítica da Ambiguidade, que originou dois eixos temáticos: a crença na existência de um espaço de inserção próprio do usuário de drogas; e a crença de que o usuário está fora da sociedade. Assim, olhar o usuário como quem olha de fora, sem se entrelaçar com ele, contribui para a segregação e a exclusão social, o que requer dos profissionais a suspensão de teses que sustentam no campo do uso de drogas e a ressignificação da forma como veem e cuidam do usuário de drogas e sua família.

PALAVRAS-CHAVE:
Relações profissional-família. Drogas ilícitas. Conhecimentos; atitudes e prática em saúde. Estratégia Saúde da Família. Filosofia em enfermagem

Introdução

A formulação de políticas sobre drogas no Brasil, inicialmente, ocorreu em uma perspectiva repressora, que criminaliza o uso e o usuário e promove uma cultura estigmatizante e preconceituosa na sociedade, configurando-se como modelo de atenção proibicionista11 Sodelli M. Des-tramando o proibicionismo: a redução de danos na prevenção. In: Fernandez OFRL, Andrade MM, Nery Filho A. Drogas e políticas públicas: educação, saúde coletiva e direitos humanos. Salvador: EDUFBA; Brasília, DF: ABRAMD; 2015. p. 125-136.. Essa perspectiva implica dificultar o acesso das pessoas que sofrem com o consumo habitual de drogas aos dispositivos terapêuticos, resultando em impacto aos familiares22 Vipers S, Hayashi K, Milloy MJ, et al. Use of withdrawal management services among people who use illicit drugs in Vancouver, Canada. Substance Abuse Treatment, Prevention, and Policy. 2018; 13(27):2-8.,33 Matsuzaki M, Vu QM, Gwadz M, et al. Perceived access and barriers to care among illicit drug users and hazardous drinkers: findings from the Seek, Test, Treat, and Retain data harmonization initiative (STTR). BMC Public Health. 2018; 18(366):2-11..

A lógica do cuidado fundamentado na Redução de Danos (RD) surge como um modelo que busca reconhecer as singularidades do usuário e objetiva reduzir os prejuízos e os danos decorrentes do consumo habitual de drogas, garantir os direitos dos usuários e promover saúde e cidadania aos mesmos11 Sodelli M. Des-tramando o proibicionismo: a redução de danos na prevenção. In: Fernandez OFRL, Andrade MM, Nery Filho A. Drogas e políticas públicas: educação, saúde coletiva e direitos humanos. Salvador: EDUFBA; Brasília, DF: ABRAMD; 2015. p. 125-136.,44 Gomes TB, Vecchia MD. Estratégias de redução de danos no uso prejudicial de álcool e outras drogas: revisão de literatura. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(7):2327-2338.. Além disso, as políticas formuladas com essa proposta evidenciam a questão desafiadora de cuidado às famílias.

Em 2003, foi formulada a Política de Atenção aos Usuários de Álcool e outras Drogas, no âmbito da Reforma Psiquiátrica (RP) e do Sistema Único de Saúde (SUS), a qual compreende que o cuidado deve acontecer por meio de redes de serviços de saúde e das redes sociais articuladas55 Brasil. A Política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2003.. Em 2005, ainda com caráter repressivo, promulgou-se a Política Nacional sobre Drogas, trazendo aspectos referentes ao fortalecimento da inclusão de alguns serviços e segmentos sociais no processo de cuidado, como a igreja, o comércio, os amigos, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), as comunidades terapêuticas, os grupos de autoajuda, a Atenção Básica (AB), entre outros66 Brasil. Resolução nº 03/GSIPR/CH/CONAD de 27 de outubro de 2005. Aprova a Política Nacional sobre Drogas. Diário Oficial da União. 28 Out 2005. Brasília, DF: Conselho Nacional Antidrogas; 2005. [acesso em 2020 maio 18]. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=101642.
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No âmbito da AB, foi implementada a Estratégia Saúde da Família (ESF) como espaço possível para o desenvolvimento de ações que garantam o acesso de todas as pessoas de forma igualitária e equitativa. A partir de dispositivos de cuidado de base territorial a uma população adscrita; tais como vínculo, escuta, acolhimento, integralidade, equidade, participação social e coordenação do cuidado; a ESF possui potencialidade para a atenção a contextos que sofrem com uso habitual de drogas. Assim, essas características inscrevem-na como um modelo adequado à proposta das políticas sobre drogas.

Na sociedade contemporânea, diante das transformações funcionais e estruturais vivenciadas na família, a existência de um usuário de drogas, que, em nosso estudo, estamos designando ‘consumidor habitual de drogas’, é uma realidade de difícil enfrentamento. Quando isso acontece, nem todos conseguem lidar com a situação, o que acarreta uma série de dificuldades para enfrentar os problemas decorrentes, principalmente pela sensação de despreparo e pela construção cultural de exclusão, estigma e preconceito, o que requer mudanças de postura por parte dos profissionais de saúde77 Paula ML, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, et al. Assistência ao usuário de drogas na atenção primária à saúde. Psicol estud. 2014; 19(2):223-233..

Muitos profissionais da ESF, embora reconheçam sua responsabilidade pelo cuidado no contexto do consumo de álcool e outras drogas, não desenvolvem ações nesse campo específico, o que subutiliza a potencialidade cuidadora da ESF diante das famílias que convivem com os prejuízos decorrentes do consumo de drogas. Isso pode estar ocorrendo, sobretudo, devido ao despreparo da equipe para lidar com as situações de sofrimento e, também, pelos conceitos morais e estigmas relacionados ao tema77 Paula ML, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, et al. Assistência ao usuário de drogas na atenção primária à saúde. Psicol estud. 2014; 19(2):223-233.. Desse modo, a percepção de si como cuidador em potencial daqueles que sofrem com o consumo habitual de drogas e com inexistentes ou inadequadas ações de cuidado nos faz compreender a ambiguidade que permeia as vivências humanas.

Com efeito, a experiência da saúde não se trata de construir objetos/objetividades, mas de configurar sujeitos/intersubjetividades. O manejo da saúde nunca ocorre de forma isolada, estritamente individual, mas deve ser sempre construído na, com e para as interações intersubjetivas, desde as relações imediatas até aquelas das quais participamos com mediação da cultura e das instituições88 Ayres JRCM. Cuidado: trabalho, interação e saber nas práticas de saúde. Rev baiana enferm. [internet]. 2017 [acesso em 2020 maio 19]; 31(1):e21847. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/21847.
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. Assim, torna-se justificável e inevitável trazer à tona a percepção dos profissionais sobre o cuidado a consumidores habituais de droga, considerando a potência transformadora da interação entre sujeitos profissionais e sujeitos a serem cuidados, a fim de produzir um conhecimento que transcenda como cuidado em saúde.

Infelizmente, na maioria das tentativas de aproximação, deparamo-nos com a potencialidade produtiva de cuidado dos profissionais da ESF sendo refreada por questões culturais e subjetivas, que impossibilitam a abertura a um encontro verdadeiro com o usuário, o que aumenta o sofrimento em seus familiares. As linhas de conexão que deveriam formar a rede de cuidado aos consumidores habituais de droga, e suas famílias tornam-se cada vez mais enfraquecidas99 Subrinho LQ, Sena ELS, Santos VTC, et al. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saúde Soc. 2018; 27(3):834-844..

A partir desse cenário, o presente estudo tem como o objetivo compreender a percepção da Equipe de Saúde da Família (EqSF) sobre o cuidado a consumidores habituais de droga. Entendemos que o conhecimento dos profissionais, marcado por preconceitos e estigmas, interfere na forma como eles desenvolvem suas intervenções e limita as possibilidades de cuidado ao usuário e às famílias99 Subrinho LQ, Sena ELS, Santos VTC, et al. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saúde Soc. 2018; 27(3):834-844..

Neste estudo, pressupondo que a percepção da equipe da ESF sobre o cuidado aos usuários de drogas pode conduzir a forma como desenvolve suas intervenções, acreditamos que, a partir da intersubjetividade que permeia o campo da pesquisa/serviço, conseguiremos compreender a percepção da equipe da ESF sobre o cuidado a usuários de drogas, abrindo possibilidade para ressignificar as teses e transcendê-las a um novo modo de agir/cuidar diante do uso habitual de drogas que engloba usuários e familiares.

Metodologia

Por se tratar de um estudo que parte de experiência vivencial e que visa desvelar percepções e sentidos, optamos por fundamentá-lo na abordagem de Maurice Merleau-Ponty, cuja perspectiva consiste, essencialmente, em descrever as ambiguidades inerentes à experiência perceptiva. Desse modo, consideramos a afirmação do autor:

tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015. 1818 Cardoso FM, Campos GW. Aprendendo a clínica do sofrimento social: narrativas do internato na Atenção Primária à Saúde. Ciênc. Saúde Colet . 2020; 25(4):1251-1260..

A pesquisa foi realizada em um município do interior da Bahia, Brasil, com 100% de cobertura da ESF, com nove participantes, sendo um representante de cada categoria profissional da equipe da ESF: a Médica, o Enfermeiro, o Técnico de Enfermagem, o Agente Comunitário de Saúde (ACS), o Odontólogo e a Auxiliar de Consultório Dentário (ACD). Essa equipe é definida de acordo com a Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011, que aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da AB para a ESF e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs). Além desses participantes, foram incluídos outros trabalhadores da ESF, tais como o Auxiliar Administrativo, a Profissional de Serviços Gerais e o Guarda Municipal, por compreendermos que o cuidado não é atribuição específica e exclusiva do profissional de saúde, mas se revela como uma possibilidade em todas as relações, o que não excluem outros profissionais.

Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (CEP/Uesb), sob nº 191/2011, as descrições vivenciais foram construídas por meio da entrevista aberta em relação aos Desenhos-Estória com Tema, realizados pelos próprios participantes. A descrição das vivências foi realizada na própria unidade, com cada profissional separadamente em horário de pouca movimentação.

O Desenho-Estória com Tema constitui-se uma técnica projetiva, e sua aplicação no presente estudo consistiu no emprego de um meio indireto de expressão, justificando-se pela facilidade de deixar o informante livre para uma comunicação mais espontânea e por se constituir um recurso de investigação em pesquisa1111 Trinca W. Formas de investigação clínica em psicologia: procedimento de desenhos-estórias: procedimentos de desenhos de famílias com estórias. São Paulo: Vetor; 1997..

Cada informante foi instruído a desenhar, em uma folha em branco com lápis de cor, um desenho seguindo a orientação: ‘faça um desenho relacionado ao cuidado às famílias de usuários de drogas’. Em seguida, procedemos às entrevistas, solicitando a cada um que contasse a história de seu desenho de forma oral; momento em que foram gravadas.

O roteiro da entrevista incluiu dados de identificação e três temas norteadores: fale-me sobre a questão das drogas em seu contexto de atuação profissional; comente sobre as ações que sua equipe desenvolve com relação às famílias de usuários de drogas; qual a sua percepção sobre o cuidado às famílias de usuários de drogas?

A compreensão das descrições que emergiram das entrevistas ocorreu por meio da Analítica da Ambiguidade. Essa estratégia possibilita os diversos perfis que emergem das vivenciais dos participantes da pesquisa à luz da abordagem fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty, podendo ser aplicada em estudos com outras abordagens cujo foco é a percepção humana, considerando que esta se revela como algo ambíguo1212 Sena ELS, Gonçalves LHT, Granzotto MJM, et al. Analítica da ambiguidade: estratégia metódica para a pesquisa fenomenológica em saúde. Rev. Gaúcha Enferm. 2010; 31(4):769-775..

Resultados e discussão

Por meio do vínculo estabelecido nos encontros com os trabalhadores, a ambiguidade imanente foi-se mostrando na experiência intersubjetiva, tornando-se transcendente. Com base na noção de intersubjetividade de Merleau-Ponty, compreendemos que as descrições vivenciais produzidas com os participantes resultam do entrelaçamento do mundo sensível (sentimentos) com o mundo sociocultural (racionalidade)99 Subrinho LQ, Sena ELS, Santos VTC, et al. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saúde Soc. 2018; 27(3):834-844.. Logo, as descrições desvelaram o conflito existente entre o sentir e o pensar, entre o que não foi possível deliberar e a preocupação de elaborar e emitir uma resposta técnica, acadêmica, que contemplasse o que foi abordado na entrevista1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015..

Pela experiência, conseguimos pontuar duas das principais teses: a primeira consiste na crença de que existe separação da sociedade em dois lados: o lado do bem e o lado do mal, estando o usuário de drogas inserido no lado do mal, e o restante da sociedade, incluindo os técnicos, no lado do bem; e a segunda baseia-se na crença de que há a objetificação do mundo das drogas, como um mundo fora e separado da sociedade, reforçando a ideia de que o usuário está fora dela. Estas nos conduziram a entender que a forma como a equipe de trabalhadores vê as famílias e seus contextos interfere na maneira como ela cuida, reforçando o pensamento merleau-pontyano de que, no universo cultural, as teses incorporadas mobilizam sentimentos e condutas humanas1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015..

Com base na primeira tese, emergem das descrições vivenciais, a partir da experiência intersubjetiva, as crenças sociais dicotomizadas em dois lados: o lado do bem e o lado do mal

[...] e aí compra, vende, gostou da primeira vez, vendeu, fez o dinheiro e tudo, então ‘aqui está bom, o caminho é esse’, e aí é onde se desvia ali para aquele caminho ruim. É isso aí! (ACD).

[...] éramos três, e só ele que deu para o lado do vício, do lado mais maldoso e foi para São Paulo, chegou lá perdeu o irmão também que era viciado em drogas. (Auxiliar Administrativo).

A descrição da ACD faz ver o ‘mundo das drogas’ como o ‘caminho ruim’ para o qual o usuário se desvia, e o Auxiliar Administrativo refere a esse mundo como o ‘lado do vício’ ou o ‘lado maldoso’, o que o configura como um lugar objetificado e separado da sociedade. À luz de Merleau-Ponty, acerca da percepção, essas descrições se mostram em uma perspectiva figura-fundo, uma vez que, ao trazer a ideia de mundo ‘maldoso’, o profissional coloca-se como um observador pertencente ao ‘mundo do bem’ e imune às drogas.

Situados no polo objetivo, os participantes da pesquisa tendem a manter-se afastados do mundo das drogas como uma condição que os mantenha imunes a todos os desafios que engendram esse processo. No entanto, escapando deste dualismo - bem e mal - que se apresenta na própria ciência, objetivista e subjetivista, a ontologia da experiência merleau-pontyana faz retomar nas falas a “camada de experiência viva através da qual primeiramente o outro e as coisas nos são dados, o sistema - Eu-outro-as coisas - no estado nascente”1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.(89-90).

Por meio da intersubjetividade, em que se fundem sujeito e objeto, o entrelaçamento entre os seres humanos e todos os outros viventes, somos levados a compreender a dinâmica da experiência perceptiva que apresenta esta dicotomia, não apenas como uma luta entre o certo e o errado, mas como um fator de ambiguidade da nossa existência no mundo. Ainda que o trabalhador da saúde exerça sua função em prol do cuidado ao usuário de drogas (o que se mostra), ele se mantém fora do mundo observado; e o usuário torna-se o outro, de um mundo ao qual ele não pertence (o que sente).

Assim, o sujeito não desenvolve quaisquer vínculos de interesse, emoção, significação ou valor com coisas deste mundo1313 Melo RF, Maciel SC. Representação Social do Usuário de Drogas na Perspectiva de Dependentes Químicos. Psicol. Ciênc. Prof. 2016; 36(1):76-87. , o que fortalece a polaridade entre o profissional e o usuário. Vejamos o seguinte relato:

Para mim, encontrou Deus, teve coragem de procurar Deus, vai sair, a maior força, não é? Os amigos apoiam, Deus está trazendo ‘venha para o meu lado, meu filho’, e tudo resolvido para mim. (Odontólogo).

Ao afirmar ‘vai sair’, o Odontólogo parece anunciar que, para estar ao lado de Deus, aqui compreendido como o ‘lado do bem’, o usuário necessita deslocar-se de algum lugar que, até então, torna-o isento da presença divina. Esse lugar, concebido em uma perspectiva estigmatizante como o ‘mundo das drogas’, localiza-se fora da sociedade, ou seja, em um espaço no qual o profissional julga-se não coabitar. Olhando do ponto de vista de fora, essa polaridade pode configurar-se um limite para o envolvimento da equipe com esse mundo, já que o vê como um ambiente ‘desarticulado’, como mostra o relato a seguir:

É o que está acontecendo, a demanda só aumenta, a faixa etária só diminui, o consumo aumenta cada vez mais, por conta disso, alguns pacientes realmente desenvolvem um quadro psicótico grave e se tornam não funcionais. Jovens não conseguem reestruturar a vida, não conseguem entrar no mercado de trabalho, não conseguem, dá uma desarticulação, assim, do mundo, do mundo deles [...], até porque não encontravam emprego certo, um ambiente que não via uma outra vigência, não via outros mundos, estava muito difícil. (Médica).

A descrição revela o ‘mundo das drogas’ como um ambiente ‘em si mesmo’, e o fato de o usuário pertencer a este mundo o torna ‘não funcional’, impedindo-o de ‘reestruturar a vida’. A partir dessa compreensão, podemos pensar que o fato de o mercado de trabalho não admitir pessoas envolvidas ou que já se envolveram com drogas pode estar relacionado com o estigma que entorna este contexto, sempre concebido como um ‘mundo ruim’. Nessa perspectiva, consumir drogas constitui-se um processo anticivilizatório, um desvio diante dos projetos de desenvolvimento de uma sociedade civilizada, em que a segurança coletiva deve ser predominante1414 Venturi G. Consumo de drogas, opinião pública e moralidade: motivações e argumentos baseados em uso. Tempo Social, revista de sociologia da USP. 2017; 29(2):159-186..

Mesmo quando a abstinência parece ser a expressão máxima para o ajuste do sujeito, para a purificação e para a aceitação social do usuário, o caráter de vigilância pode se manter eterno. Para Merleau-Ponty, a percepção é algo que flui no tempo retomando os vividos e escoando-se a cada novo instante. Assim, estamos sempre lidando com três dimensões, passado, futuro e presente, que também são polos diferentes para se pensar a experiência com o outro1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.. Acontece que toda construção produzida pelo imaginário social está presente em nossos vividos; e, como tal, ainda que se torne passado (algo que nos foi ensinado desde a infância), “crava-se no tempo como uma cunha e pretende a eternidade”1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.(526).

Quando retomamos este passado, repleto de estigmas e preconceitos, é necessário que haja um esforço para atualizá-lo e ressignificá-lo. Essa possibilidade de mudança é ampliada quando se expõe ao outro (relações intersubjetivas) e deseja compreender, e não mais julgar o outro distinto de mim e o ‘outro eu mesmo’. Quando isso não ocorre, à medida que os profissionais reforçam (eternizam no tempo o passado apreendido) a ‘doença’ provocada pelo uso de drogas como algo incurável, ainda que se possa estabilizar, sempre estará presente, como um estigma, uma angústia, um mistério inalcançável1414 Venturi G. Consumo de drogas, opinião pública e moralidade: motivações e argumentos baseados em uso. Tempo Social, revista de sociologia da USP. 2017; 29(2):159-186.,1515 Prates JG, Pinho PH, Oliveira MAF, et al. A concepção dos enfermeiros de serviços de urgência e emergência sobre o processo saúde-doença na assistência aos usuários de substâncias psicoativas. Saúde debate. 2014; 38(101):318-327..

Desse modo, o estudo mostra que a eterna sujeição à possibilidade de o usuário apresentar recidiva o inscreve como alguém em quem não se pode confiar, o que contribui para a passividade, exclusão e enfraquecimento da organização social do próprio usuário, como expressa a profissional a seguir:

Fora que, sempre que se entra no mundo das drogas, é um mundo da perdição [...] E aí o que é que acontece? O jovem entra no mundo das drogas, da malandragem, da violência [...]. (Profissional de Serviços Gerais).

A descrição revela um olhar determinista, moralista em relação ao contexto de inserção do usuário de drogas, denominando-o de ‘mundo das drogas’. Sendo assim, o associa diretamente à perdição, ao roubo, ao tráfico, ao crime e à violência, o que faz eco à visão objetificada que a equipe possui sobre o sujeito. A constituição desse mundo como objeto com o qual os trabalhadores de saúde não se misturam não estabelece relações, impede a abertura do sujeito, usuário do serviço, a ‘um outro eu mesmo’, como pontua Merleau-Ponty:

Eu alieno meu poder perpétuo de me dar ‘mundos’ em benefício de um deles, e por isso mesmo este mundo privilegiado perde sua substância e termina por ser apenas ‘uma certa angústia’1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.(124).

A segunda tese evidenciada no estudo apoia-se na crença de que há a objetificação do mundo das drogas, como um mundo fora e separado da sociedade, reforçando a ideia de que o usuário está fora dela. Vejamos, a seguir, a manifestação dos profissionais:

[...] hoje ela mora fora do ambiente das drogas, certo? Construiu uma nova família, pai e mãe e irmãos contentíssimos, e formou uma família, e hoje é uma pessoa de bem na sociedade. (Técnico em Enfermagem).

[...] e hoje ele encontra-se com 23 anos de idade, arrumou emprego, tem família, saiu do mundo das drogas e se deu bem na sociedade. (Enfermeiro).

As descrições fazem ver os vários perfis em relação ao usuário e que a figura sempre traz um fundo; e tudo o que é percebido como uma figura sobre um fundo faz parte de um campo, sendo inconcebível a ideia de percepção pura, ou seja, ao figurarmos uma paisagem, jamais teremos percepções pontuais, “o todo se faz visão e forma um quadro diante de nós”1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015. 1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.. Os profissionais consideram que a condição para fazer parte da sociedade é estar ‘fora do ambiente das drogas’, o que reforça a objetificação desse contexto. Assim, a equipe revela forte influência histórica do proibicionismo, modelo no qual não há tolerância para o consumo de drogas, o que cria um obstáculo ao acesso de usuários a serviços de saúde ou outros locais onde podem buscar ajuda77 Paula ML, Jorge MSB, Vasconcelos MGF, et al. Assistência ao usuário de drogas na atenção primária à saúde. Psicol estud. 2014; 19(2):223-233.,1414 Venturi G. Consumo de drogas, opinião pública e moralidade: motivações e argumentos baseados em uso. Tempo Social, revista de sociologia da USP. 2017; 29(2):159-186.

15 Prates JG, Pinho PH, Oliveira MAF, et al. A concepção dos enfermeiros de serviços de urgência e emergência sobre o processo saúde-doença na assistência aos usuários de substâncias psicoativas. Saúde debate. 2014; 38(101):318-327.
-1616 Bard ND, Antunes B, Roos CM, et al. Estigma e preconceito: vivência dos usuários de crack. Rev. Latino-Am. Enfermagem [internet]. 2016 [acesso em 2020 maio 19]; 24(e2680):1-7. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rlae/v24/pt_0104-1169-rlae-0852-2680.pdf.
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. Ademais, as expressões a seguir exprimem a ambiguidade da percepção sobre o usuário de drogas:

O difícil é encontrar Deus com relação a essa pessoa, porque está no submundo, está largada, está abandonada, sem perspectiva nenhuma de futuro de vida. (Odontólogo).

[...] mas um cara realmente beberrão, drogado, está lá jogado às traças mesmo [...]. (ACS).

O uso de palavras e expressões, como ‘drogado’, ‘largado’, ‘beberrão’, pertencente ao ‘submundo’, ‘jogado às traças’, mostram a visão objetivista dos profissionais, caracterizando o usuário como alguém privado de construir projetos de vida, o que limita a possibilidade de comunicação e a potencialidade de experimentar a transcendência das vivências na relação usuário-profissionais de saúde.

A dificuldade de ‘encontrar Deus com relação a essa pessoa’ desumaniza o usuário e coloca a sua vida como algo que está determinado por hábitos, modos de ser, dependências e adoecimentos. O futuro, como algo palpável e previsível, torna-se um ‘sem perspectiva’ e mais uma vez a ambiguidade se faz presente e nos faz compreender as distorções dos modelos implementados em nosso sistema de saúde. A análise fenomenológica, por sua vez, permite-nos reconhecer o indeterminado como um fenômeno positivo e pensar possibilidades para mudanças efetivas que partam dos sujeitos e não dos modelos1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015..

Outrossim, essa visão objetivista torna o estigma do usuário de drogas mais duradouro que o próprio efeito da substância no organismo, o que carimba e aprisiona o sujeito na personagem do viciado, tornando um status de verdade que impossibilita, muitas vezes, que ele vivencie a sua diferenciação1313 Melo RF, Maciel SC. Representação Social do Usuário de Drogas na Perspectiva de Dependentes Químicos. Psicol. Ciênc. Prof. 2016; 36(1):76-87.. Nesse contexto, Merleau-Ponty nos coloca a seguinte reflexão sobre as relações socioculturais: “Obcecado pelo ser, e esquecendo o perspectivismo de minha experiência, eu o trato doravante como objeto, eu o deduzo de uma relação entre objetos”99 Subrinho LQ, Sena ELS, Santos VTC, et al. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saúde Soc. 2018; 27(3):834-844.(108). Desse modo, vejamos as falas a seguir:

[...] porque esse pessoal que usa droga, desempregados eles começam a roubar as coisas dentro na própria casa, aí quando não tem mais nada em casa que eles possam realmente a buscar fora, vende as coisas que tem, tênis, camiseta. Aí quando não tem outro recurso eles vão tentar o que? Roubar. (ACS).

Jovens, mais da sociedade, porque se eu vendo droga, você sendo da sociedade, você vai pegar para sustentar o tráfico de droga. (Guarda Municipal).

Aqui o usuário aparece como ‘ladrão’ que rouba sua própria família, o que reforça o processo de marginalização vivenciado por esse sujeito. Vendo-se como integrante do mundo sem drogas, a equipe não se reconhece como igual ao usuário, transformando-o em um objeto, e essa “individuação do objeto aparece como a expressão de uma potência posicional”1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015.(109), o que imobiliza a experiência perceptiva. A associação entre droga e marginalidade é um mecanismo que desvia a responsabilidade do Estado, trazendo ao usuário o sentimento de culpa pelo uso e um sofrimento constrangedor, o que não resolve a problemática do tráfico, além de afastar ainda mais os usuários dos serviços de saúde, já que a culpa não o impede de usar a droga1414 Venturi G. Consumo de drogas, opinião pública e moralidade: motivações e argumentos baseados em uso. Tempo Social, revista de sociologia da USP. 2017; 29(2):159-186.. A posição do profissional, na função de juiz, também pode se configurar roubo ou morte processual, uma vez que limita a oportunidade de o usuário tornar-se outro. O estigma como status negativo adere à pele do cidadão, tornando secundárias outras de suas características constitutivas e papéis sociais, o que aumenta a discriminação e promove a morte social da pessoa, impedindo-a de buscar o seu lugar, de projetar-se no futuro ou de criar expectativas de vida, além de privá-la do crescimento pessoal e das conquistas advindas das relações vivenciadas em sociedade1313 Melo RF, Maciel SC. Representação Social do Usuário de Drogas na Perspectiva de Dependentes Químicos. Psicol. Ciênc. Prof. 2016; 36(1):76-87.

14 Venturi G. Consumo de drogas, opinião pública e moralidade: motivações e argumentos baseados em uso. Tempo Social, revista de sociologia da USP. 2017; 29(2):159-186.
-1515 Prates JG, Pinho PH, Oliveira MAF, et al. A concepção dos enfermeiros de serviços de urgência e emergência sobre o processo saúde-doença na assistência aos usuários de substâncias psicoativas. Saúde debate. 2014; 38(101):318-327.. À luz de Merleau-Ponty, entendemos que o ser humano constitui um eu posso, o que significa dizer que ele está em constante transcendência. Portanto, estigmatizar o sujeito corresponde à negação da potência que lhe é inerente. Diz o filósofo que “as representações científicas segundo as quais eu sou um momento do mundo são sempre ingênuas e hipócritas”1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015. 44 Gomes TB, Vecchia MD. Estratégias de redução de danos no uso prejudicial de álcool e outras drogas: revisão de literatura. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(7):2327-2338..

A experiência perceptiva opera por meio do conjunto dos sentidos e conexão com o mundo a partir das várias dimensões do corpo próprio. Este não como um corpo fisiológico, mas como uma carne porosa que se torna nosso veículo do ser-no-mundo e que flui no tempo retomando os vividos e escoando-se a cada novo instante1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015..

Existem, para o filósofo, algumas dimensões para expressão deste corpo; e, em todas elas, quando há um bloqueio de sua manifestação, produz-se, em efeito cascata, uma espécie de ‘apagamento’ da sua potência. As possibilidades de ser, desfazer e refazer são ‘bloqueadas’, e, tanto os usuários como os trabalhadores, mantêm-se em estado de congelamento, de impotência e de reprodução dos mesmos modos de ser que os levaram até ali - os usuários em busca do alívio de suas dores, e os trabalhadores promovendo o (des)cuidado em saúde.

Não obstante venham ocorrendo mudanças paradigmáticas no contexto do enfrentamento do consumo habitual de drogas, a equipe de saúde ainda valoriza o tratamento moralista e disciplinar, como mostram os seguintes relatos:

Como se vê em muitas clínicas aqui, você leva o paciente, chega lá, você solta lá dentro, ele fica se ele quiser. Tem que ter tudo murado, tudo bem feitinho [...] É bom preso, trancado, murado, quando sair de lá ‘Poxa, estou no paraíso, estou aqui fora’, chega cá fora ele não vai fazer mais, porque ele vai falar ‘Poxa, passei por lá e fiquei trancado, cá fora é outra coisa’. (Guarda Municipal).

A gente teve caso aqui de parente, de amigos da gente tentarem resolver e a solução é mandar para fora [...] ou para outro Estado. (Auxiliar Administrativo).

Eu desenharia a família feliz, de bem com a vida, só paz e alegria. O contato com a natureza melhora, porque respira ar limpo. Ajuda a manter nossa cabeça e a mente limpa. (Profissional de Serviços Gerais).

As descrições fazem ver o usuário como alguém que está fora da sociedade; e, concebendo-o dessa forma, a equipe acredita que o tratamento também deve ser realizado fora do território. As descrições desvelam, portanto, que o cuidado significa retirar o usuário da sociedade e discipliná-lo, sob a forma de tratamento moral. Este, por sua vez, surge como característica da racionalidade psiquiátrica, a qual mantinha a prática do internamento como um controle social e moral ininterrupto1717 Pombo MF. Da recusa à demanda de diagnóstico: novos arranjos da medicalização. Arq. bras. psicol. 2017; 69(3):5-20..

Nesse sentido, fundamentada em princípios de vigilância e punição, a psiquiatria visa manter os usuários reclusos em manicômios, isolados do mundo e de seus cotidianos, tendo a institucionalização como produtora da homogeneidade e objetificação dos institucionalizados1717 Pombo MF. Da recusa à demanda de diagnóstico: novos arranjos da medicalização. Arq. bras. psicol. 2017; 69(3):5-20..

Com efeito, a centralidade no hospital e a hegemonia do paradigma biomédico nas escolas médicas ainda concorrem para a inadequação do perfil de profissionais formados no Brasil em nossa contemporaneidade1818 Cardoso FM, Campos GW. Aprendendo a clínica do sofrimento social: narrativas do internato na Atenção Primária à Saúde. Ciênc. Saúde Colet . 2020; 25(4):1251-1260.. Nesse contexto, a Associação Brasileira de Psiquiatria, instituição que, desde o início dos anos 2000, assumiu uma forte posição crítica e divulgadora contra a RP, tem mobilizado problematizações paradigmáticas na área da saúde mental, favorecendo concepções e práticas profissionais biocientificistas e de base na lógica de mercado da indústria farmacêutica por toda a sociedade civil1919 Leal EM, Ferrari IF. A realidade social brasileira e o retrocesso na Saúde Mental. Rev. latinoam. psicopatol. fundam. 2019; 22(3):421-438.,2020 Moncrieff J. Antipsychotic maintenance treatment: time to rethink? PLoS med. [internet]. 2015 [acesso em 2020 maio 19]; 12(8):e1001861. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4524699/.
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. Assim, mesmo passados tantos anos do início da luta pela RP, desafios são postos todos os dias para aqueles que desejam a concretização da mudança psiquiátrica na atenção à saúde mental no Brasil. Ademais, contemporaneamente, temos acompanhado retrocessos na política pública de saúde mental pelo desmonte de alguns de seus pilares, o que também demanda reflexões e pesquisas na área, pois ainda conhecemos pouco sobre o impacto desses retrocessos na assistência e nas produções socioculturais1919 Leal EM, Ferrari IF. A realidade social brasileira e o retrocesso na Saúde Mental. Rev. latinoam. psicopatol. fundam. 2019; 22(3):421-438..

Na perspectiva dos retrocessos na atenção à saúde mental, deparamo-nos com gestores apoiando ações, com base na Resolução nº 32, de 2017, a qual alterou a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e sua perspectiva de serviços substitutivos, ampliou a oferta de leitos hospitalares qualificados para internação e reajustou valores de diárias para internação de sujeitos em hospitais especializados, refletindo um estímulo à internação psiquiátrica2121 Brasil. Resolução nº 32 de 14 de dezembro de 2017. Estabelece as Diretrizes para o Fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017..

Soma-se à Resolução de 2017 a recente publicação da Nota Técnica nº 11/20192222 Brasil. Ministério da Saúde. Nota Técnica nº 11/2019. Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde e nas diretrizes na Política Nacional sobre drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2019. , publicada pelo Ministério da Saúde para explicitar e consolidar as mudanças que a RP vem sofrendo, desde 2017, na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas.

Assim, ressaltamos a necessidade da divulgação ampla de práticas e estudos que articulam a saúde mental com a saúde coletiva, de base comunitária e de relações dialógicas, intersubjetivas e horizontais nas abordagens de cuidado, para além do modelo biomédico2323 Nóbrega MPSS, Venzel CMM, Sales ES, et al. Ensino de Enfermagem em Saúde Mental no Brasil: perspectivas para a atenção primária à saúde. Texto contexto - enferm. [internet]. 2020 [acesso em 2020 maio 19]; 29:e20180441. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0104-07072020000100315&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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. Nessa perspectiva, concordando com a reflexão merleau-pontyana acerca da intersubjetividade1010 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2015. , compreendemos que o encontro intersubjetivo entre profissionais da saúde usuários e demais cuidadores, além de produzir o acolhimento das diferenças, é capaz de promover ressignificações de vivências de sofrimento em abordagens de cuidado integral para todos os envolvidos no encontro2424 Carvalho PAL, Malhado SCB, Constâncio TOS, et al. Cuidado humano à luz da fenomenologia de Merleau-Ponty. Texto contexto enferm. [internet]. 2019 [acesso em 2020 maio 19]; 28:e20170249. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010407072019000100605&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt.
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.

Por fim, modelos historicamente hegemônicos em relações verticalizadas na atenção à saúde mental podem interromper a experiência perceptiva, intersubjetiva e influenciar relações de cuidado ineficazes à produção da vida. Assim, no estudo, levantamos a perspectiva de possíveis mudanças na visão de mundo dos profissionais e na invenção de práticas efetivas de prevenção, reabilitação e reinserção social, visto que “a história não é nem uma novidade perpétua, nem uma repetição perpétua, mas o movimento único que cria formas estáveis e as dissolve”99 Subrinho LQ, Sena ELS, Santos VTC, et al. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saúde Soc. 2018; 27(3):834-844.(130).

Considerações finais

O estudo consistiu em compreender a percepção da equipe da ESF sobre o cuidado a usuários de drogas, à luz da fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. Para o filósofo, o saber é construído na relação intersubjetiva que se estabelece por meio do diálogo na dinâmica da experiência perceptiva.

As descrições relacionadas com a primeira tese mostram que os profissionais compreendem o contexto do uso de drogas como um mundo objetificado e separado da sociedade, que foi designado de ‘mundo das drogas’. Ao instituir esse espaço como o lado do mal, a equipe coloca-se em oposição a ele, isto é, como integrante do lado do bem. Assim, a dicotomia entre o mundo da equipe e o mundo do usuário - o ‘mundo das drogas’ - interfere no processo intersubjetivo que deve caracterizar as relações de cuidado entre a equipe e as famílias.

A segunda tese apresentada postula que o usuário de drogas está fora da sociedade, habitando um espaço do qual os técnicos não fazem parte. Ao ser concebido de forma objetificada, a tese impõe-lhe uma série de características: ‘assassino’, ‘ladrão’, ‘criminoso’, ‘traficante’, ‘marginal’, ‘dependente químico’, ‘largado’, ‘jogado às traças’, ‘beberrão’, ‘sem perspectiva de vida’, entre outros estereótipos.

Olhar o usuário como quem olha de fora, sem entrelaçar-se com ele, contribui para a segregação e a exclusão social, uma vez que dificulta o acesso a espaços que possam favorecer outras expressões de cuidado, como a conquista de interações sociais e a construção de projetos de vida.

É fundamental, portanto, que os profissionais percebam as teses que sustentam no campo do uso de drogas e ressignifiquem a forma como veem e cuidam do usuário de drogas e sua família. Também, a percepção da equipe da ESF sobre o cuidado às famílias de usuários de drogas parece configurar-se como suposto cuidado ou, por assim dizer, como descuido, visto que se orienta pela sustentação de teses objetivistas. Ao se veem como diferentes do usuário, como integrantes de mundos opostos, a distância entre profissionais e famílias interfere no estabelecimento de espaços dialógicos e transformadores, o que interrompe a experiência perceptiva, já que não se reconhece o cuidado como resultante da intersubjetividade.

Ao ressignificar o olhar, a equipe da ESF poderá ver-se como igual ao outro, na medida em que se constituem seres de generalidades. Ao possibilitar espaços de fala e de escuta, o diálogo entre profissionais e famílias será o meio pelo qual se descobrirão novas alternativas para reduzir danos decorrentes do uso prejudicial de drogas e, dessa forma, novas possibilidades de existência a partir da experiência perceptiva.

A partir dos resultados obtidos, é perceptível a necessidade de maiores aproximações entre a ESF e os serviços de saúde mental, a fim de preparar melhor os profissionais da AB para o cuidado na área de drogas em uma perspectiva biopsicossocial, mediante dispositivos importantes como o matriciamento e a educação permanente.

Como limitações do estudo, os desenhos produzidos pelos participantes que consistiram apenas no emprego de um meio indireto de expressão não foram analisados. A análise deles enriqueceria ainda mais os resultados do estudo. Além disso, a pesquisa foi desenvolvida apenas em uma unidade de ESF, sendo que a expansão para outras unidades poderia desvelar outras teses para serem agregadas aos resultados.

Por fim, o estudo possibilitou-nos compreender que o fenômeno se mostra sempre em perfil, trazendo consigo outros perfis. Na dinâmica da experiência perceptiva, a construção do conhecimento constitui-se uma experiência inacabável, e os fenômenos jamais se desvelam ‘em si’ por completo, o que impossibilita alcançar todas as suas perspectivas.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    07 Set 2019
  • Aceito
    05 Maio 2020
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