Apoio matricial como ferramenta da articulação entre atenção básica e Caps: o que os dados secundários mostram?

Matrix support as a networking tool between primary health care and Psychosocial Care Center: a secondary data overview

Lídia Pereira da Silva Godoi Lorrayne Belotti Érica Marvila Garcia Tereza Etsuko da Costa Rosa Oswaldo Yoshimi Tanaka Sobre os autores

RESUMO

O objetivo foi avaliar a correlação entre indicadores de estrutura – recursos físicos e trabalhadores – e de processo – produção do psicólogo e do psiquiatra – e a magnitude do apoio matricial realizado. Trata-se de um estudo ecológico, descritivo-analítico, baseado em dados secundários do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde, abrangendo as Coordenadorias Regionais de Saúde de São Paulo, no período de 2014 a 2018. À medida que a produção do psicólogo na atenção básica aumenta, a frequência do matriciamento aumenta. Isso pode ocorrer, pois o psicólogo, como profissional do campo, pode facilitar a articulação entre os serviços. Ao mesmo tempo, conforme a produção do psiquiatra da atenção básica aumenta, a frequência do matriciamento diminui. Uma possibilidade de explicação para tal contradição seria a não superação do modelo médico hegemônico. O município tem uma realidade complexa e heterogênea, diferentemente de todo o Brasil. As coordenadorias possuem grandes e importantes diferenças entre si, o que torna a pesquisa um desafio. No entanto, o matriciamento e as ações compartilhadas entre as unidades são metas importantes para a gestão municipal, o que destaca a necessidade da realização de pesquisas no campo.

PALAVRAS-CHAVE
Atenção Primária à Saúde; Saúde mental; Integração de sistemas; Serviços de saúde

ABSTRACT

The aim of the study was to assess the correlation between structural (physical resources and workers) and process (psychologist and psychiatrist procedures) indicators and the magnitude of the matrix support carried out. This is an ecological, descriptive-analytical study, based on secondary data from the Department of Informatics of the Unified Health System, covering the Regional Health Coordinators of São Paulo, from 2014 to 2018. Results show the bigger the amount of procedures conducted by psychologists in primary care, the higher the matrix support performed. A possible explanation is the fact that such professional can more easily articulate different types of service, given the expertise acquired by working in the field. On the other hand, the opposite happens between psychiatrist procedures and matrix support, which may indicate the hegemonic medical model is still in place and working as a barrier. São Paulo presents a very diverse and complex reality, which is different from other regions of the country and also results in important differences across health coordinators, making this research very challenging. Nevertheless, matrix support and shared actions among health units must be encouraged given its importance for the city management. Hence, more researches are needed in the field.

KEYWORDS
Primary Health Care; Mental health; Systems integration; Health services

Introdução

A atenção primária à saúde ou atenção básica é a porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS) e o nível o mais complexo de todo o sistema por ser responsável pela integração e coordenação da atenção com os demais níveis de maior densidade tecnológica11 Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: Unesco; 2002.. Em razão de sua localização descentralizada e proximidade com a comunidade, esse nível de atenção apresenta maior capacidade de construir vínculo com os usuários. Nesse sentido, está mais apto a realizar diagnósticos e, consequentemente, intervir precocemente na população, quer seja em nível individual, quer no coletivo. No caso específico da saúde mental, a atenção básica ganha maior relevância, uma vez que pode identificar manifestações mais simples da doença e trabalhar para a prevenção de seu agravo22 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde Mental. Brasília (DF); 2013. (Cadernos de Atenção Básica, 34)..

Devido a essas características, desde o início do século XXI, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e outros órgãos e pesquisadores da área recomendam a incorporação da atenção à saúde mental nos serviços de atenção básica33 Nemes MIB. Ação programática em saúde: recuperação histórica de uma política de programação. In: Schraiber BL, coordenadora. Programação em saúde hoje. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 65-116. (V. 30).

4 Pereira LMF, Giordano Júnior S. Saúde Mental. In: Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes-Gonçalves RB, coordenadores. Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. São Paulo: Hucitec; 1996. p. 133-150. (V. 96).

5 Organização Mundial da Saúde. Relatório sobre a saúde no mundo [internet]. Lisboa: Climepsi; 2002. [acesso em 2019 nov 13]. Disponível em: https://www.who.int/whr/2001/en/whr01_po.pdf.
https://www.who.int/whr/2001/en/whr01_po...

6 Coimbra VCC, Oliveira MM, Vila TC, et al. A atenção em saúde mental na estratégia saúde da família. Rev Eletrônica de Enfermagem [internet]. 2005 [acesso em 2019 nov 10]; 7(1):113-111. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/fen/article/view/847.
https://www.revistas.ufg.br/fen/article/...

7 Dimenstein M, Santos YF, Brito M, et al. Demanda em saúde mental em unidades de saúde da família. Mental [internet]. 2005 [acesso em 2019 nov 11]; 3(5):23-41. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-44272005000200003.
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8 Ferriolli SHT, Marturano EM, Puntel LP. Family context and child mental health problems in the Family Health Program. Rev de Saúde Pública [internet]. 2007 [acesso em 2019 nov 12]; 41(2):251-259. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-89102006005000017&script=sci_arttext&tlng=en.
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9 Lancman S, Pereira LMF. Introdução. In: Lancman S, coordenadora. Políticas Públicas e processos de trabalho em saúde mental. Brasília, DF: Paralelo 15; 2008. p. 9-29.
-1010 Pan American Health Organization. Strategy and plan of action on mental health [internet]. Washington, DC: PAHO; 2009 [acesso em 2019 nov 14]. Disponível em: http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/33930/CD49-11-e.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
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. No Brasil, em 2004, documento ministerial sobre a atenção à saúde mental destacou os serviços de atenção básica como parte estratégica para a garantia da integralidade do cuidado por sua localização tática territorial. Esse nível de atenção ganhou, então, ênfase e protagonismo no campo1111 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial [internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2004. [acesso em 2019 nov 19]. Disponível em: http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/sm_sus.pdf.
http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental...
.

Tendo como fim a busca do princípio constitucional da integralidade, a partir de 2011, o Ministério da Saúde concentrou seus esforços na implantação das Redes de Atenção à Saúde (RAS) e, entre as redes temáticas selecionadas, instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) na área da saúde mental. Com a sua implantação, propõe-se ampliar, criar e articular os pontos de atenção à saúde para pessoas em sofrimento mental. Com isso, ratifica-se o papel da atenção básica, de ordenadora das ações de cuidado também na atenção à saúde mental1212 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial com a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS. Diário Oficial União. 30 Dez 2011. [acesso em 2020 set 16]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html.
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. Em 2015, o Ministério da Saúde divulgou um caderno temático no qual, ancorado na Raps, deu diretrizes para a articulação em rede da atenção básica com os Centros de Atenção Psicossocial (Caps).

No entanto, apesar das diretrizes e princípios de atuação propostos para a atenção básica, por um lado, esses serviços enfrentam diversos desafios em seu trabalho no campo da saúde mental, a saber: pouco desenvolvimento de ações nesse aspecto; formação deficiente dos profissionais e consequente dificuldade dos profissionais em reconhecer e cuidar do sofrimento psíquico, assim como a necessidade de apoio técnico específico nessa área; falta de articulação com serviços especializados; necessidade de uma escuta que promova vínculo e acolhimento, bem como atenção longitudinal e integral1313 Tanaka OY, Ribeiro EL. Ações de saúde mental na atenção básica: caminho para ampliação da integralidade da atenção. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2009 [acesso em 2019 nov 20]; 14(2):477-486. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000200016.
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14 Frateschi MS, Cardoso CL. Saúde Mental na Atenção Primária à Saúde: avaliação sob a ótica dos usuários. Physis [internet]. 2014 [acesso em 2019 nov 21]; 24(2):545-565. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312014000200545&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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15 Teixeira MR, Couto MCV, Delgado PGG. Atenção básica e cuidado colaborativo na atenção psicossocial de crianças e adolescentes: facilitadores e barreiras. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2017 [acesso em 2019 nov 22]; 22(6):1933-1942. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232017002601933&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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16 Fernandes ADSA, Matsukura TS, Lourenço MSG. Práticas de cuidado em saúde mental na Atenção Básica: identificando pesquisas no contexto brasileiro. Cad. Brasileiro de Terapia Ocupacional [internet]. 2018 [acesso em 2019 nov 22]; 26(4):904-914. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2526-89102018000400904&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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-1717 Rocha HA, Santos AF, Reis IA, et al. Saúde mental na atenção básica: uma avaliação por meio da Teoria da Resposta ao Item. Rev. Saúde Pública [internet]. 2018 [acesso em 2019 nov 23]; 52(17):1-12. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102018000100210&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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.

Por outro lado, os Caps, por diversas razões, também encontram dificuldades na realização de seu trabalho de acordo com as diretrizes e princípios propostos para sua atuação. Entre as mais importantes para o funcionamento da Raps, podemos citar: a centralização do cuidado nesse serviço; a superlotação e a articulação precária com a atenção1818 Bezerra E, Dimenstein M. Os CAPS e o trabalho em rede: tecendo o apoio matricial na atenção básica. Psicologia: Ciência e Profissão [internet]. 2008 [acesso em 2019 nov 30]; 28(3):632-645. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932008000300015&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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19 Moura RFS, Silva CRC. Saúde mental na atenção básica: sentidos atribuídos pelos agentes comunitários de saúde. Psicol., Ciênc. Prof. [internet]. 2015 [acesso em 2019 dez 2]; 35(1):199-210. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932015000100199&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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20 Ferreira TPS, Sampaio J, Souza ACN, et al. Produção do cuidado em Saúde Mental: desafios para além dos muros institucionais. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [internet]. 2017 [acesso em 2019 dez 03]; 21(61):373-384. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832017000200373&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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21 Silva SN, Lima MG. Avaliação da estrutura dos Centros de Atenção Psicossocial da região do Médio Paraopeba, Minas Gerais. Epidemiologia e Serviços de Saúde [internet]. 2017 jan-mar [acesso em 2019 dez 4]; 26(1):149-160. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-96222017000100149&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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22 Constantinidis TC, Cid MFB, Santana LM, et al. Concepções de profissionais de saúde mental acerca de atividades terapêuticas em CAPS. Trends in Psychology [internet]. 2018 [acesso em 2019 dez 5]; 26(2):911-926. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2358-18832018000200911&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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-2323 Onocko-Campos RT, Amaral CEM, Saraceno B, et al. Atuação dos Centros de Atenção Psicossocial em quatro centros urbanos no Brasil. Rev Panam Salud Publica [internet]. 2018 [acesso em 2019 dez 5]; 42(113):1-7. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/rpsp/2018.v42/e113/.
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.

Nesse contexto de dificuldades no processo de trabalho para o andamento da Raps, tanto na atenção básica quanto nos Caps, introduz-se o apoio matricial ou matriciamento como uma ferramenta com a qual se pode propiciar a articulação entre eles. O apoio matricial é uma das propostas que podem potencializar o papel da atenção básica em intervenções efetivas e com maior qualidade na atenção à saúde mental e, portanto, auxiliar na integração da Raps, produzindo modificações na compreensão e atuação dos profissionais22 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Saúde Mental. Brasília (DF); 2013. (Cadernos de Atenção Básica, 34).. A equipe do apoio, que é aquela especializada em saúde mental – no caso, os Caps –, implementaria processos de construção, compartilhada com a equipe de referência na atenção básica, de propostas de intervenção com corresponsabilização de ambos os serviços2525 Brasil. Ministério da Saúde, Centro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva. Guia prático de matriciamento em saúde mental [internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2011 [acesso em 2019 dez 7]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_pratico_matriciamento_saudemental.pdf.
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Diversos resultados de pesquisas brasileiras evidenciam a importância da Raps, da articulação dos pontos da rede, em especial, da atenção básica e dos Caps, para a realização da integralidade do cuidado e o consequente cumprimento das diretrizes da rede. Entretanto, também relatam as dificuldades da implantação efetiva da Raps, com o importante desafio de superar a desarticulação2626 Scheffer G, Silva LG. Saúde mental, intersetorialidade e questão social: um estudo na ótica dos sujeitos. Serviço Social e Sociedade [internet]. 2014 [acesso em 2019 dez 7]; 118(1):366-393. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-66282014000200008&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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27 Kemper MLC, Martins JPA, Monteiro SFS, et al. Integralidade e redes de cuidado: uma experiência do PET-Saúde/Rede de Atenção Psicossocial. Interface – Comunicação, Saúde, Educação [internet]. 2015 [acesso em 2019 dez 7]; 19(1):995-1003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832015000500995&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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28 Nunes CK, Kantorski LP, Coimbra VCC. Interfaces entre serviços e ações da rede de atenção psicossocial às crianças e adolescentes. Rev. Gaúcha de Enferm. [internet]. 2016 [acesso em 2019 dez 7]; 37(3):1-8. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-14472016000300403&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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29 Salvador DB, Pio DAM. Apoio matricial e Capsi: desafios do cenário na implantação do matriciamento em saúde mental. Saúde debate [internet]. 2016 [acesso em 2019 dez 10]; 40(111):246-256. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042016000400246&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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30 Carvalho MFAA, Coelho EAC, Oliveira JF, et al. Desarticulação da rede psicossocial comprometendo a integralidade do cuidado. Rev Esc Enferm USP [internet]. 2017 [acesso em 2019 dez 12]; 51:1-7. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0080-62342017000100479&script=sci_arttext&tlng=pt.
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31 Kantorski LP, Coimbra VCC, Oliveira NA, et al. Atenção psicossocial infantojuvenil: interfaces com a rede de saúde pelo sistema de referência e contrarreferência. Texto contexto [internet]. 2017 [acesso em 2019 dez 11]; 26(3):1-10. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072017000300309&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt.
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32 Leite LS, Rocha KB, Santos, LM. A tessitura dos encontros da rede de atenção psicossocial. Trabalho, Educação e Saúde [internet]. 2017 [acesso em 2019 dez 12]; 16(1):183-200. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462018000100183&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
-3333 Pinho ES, Souza ACS, Esperidião E. Processos de trabalho dos profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial: revisão integrativa. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2018 [acesso em 2019 dez 13]; 23(1):141-152. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232018000100141&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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Diante da importância em compreender as dificuldades na implantação da Raps, da relevância do matriciamento como ferramenta para essa implantação e da escassez de estudos epidemiológicos utilizando dados agregados de indicadores sobre o tema, o objetivo deste estudo foi avaliar a influência de indicadores de estrutura (recursos físicos e trabalhadores) e de processo (produção de consultas dos profissionais de saúde mental nas unidades básicas de saúde) da Raps na magnitude de produção de matriciamento nos Caps.

Material e métodos

Trata-se de um estudo ecológico, descritivo-analítico, baseado em dados secundários do Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS)3434 Sistema de Informações Ambulatoriais do Sistema Único de Saúde [internet]. Rio de Janeiro: DATASUS [acesso em 2019 dez 14]. Disponível em: http://sia.datasus.gov.br/principal/index.php.
http://sia.datasus.gov.br/principal/inde...
e do Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES), disponível no programa TabNet-DataSUS/SP3636 TabNet [internet]. Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. São Paulo: DATASUS [acesso em 2019 dez 16]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/tabnet/index.php?p=6522.
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/...
, abrangendo as Coordenadorias Regionais de Saúde (CRS) de São Paulo, no período de 2014 a 2018.

Com a finalidade de facilitar a compreensão e auxiliar o entendimento das diferenças encontradas nos dados, apresentamos uma breve descrição do município. São Paulo possui uma população estimada de 11.811.5163737 CEInfo. Boletim CEInfo – Saúde em Dados: Município de São Paulo – 2019 [internet]. São Paulo; 2019 [acesso em 2019 dez 17]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/epidemiologia_e_informacao/index.php?p=258529.
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. A maioria da população é urbana, 99%, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) é de 0,805 e o Índice de Gini é de 0,623838 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [internet]. Brasília, DF; 2019 [acesso em 2019 dez 18]. Disponível em: https://www.br.undp.org/.
https://www.br.undp.org/...
. Em relação aos equipamentos de saúde, dispõe de: 167 unidades de saúde tradicional, 89 unidades de saúde mistas (Unidade Básica de Saúde Tradicional com Estratégia Saúde da Família) e 210 unidades com Estratégia Saúde da Família (ESF). A cobertura de equipes de Atenção Básica (eAB) e ESF é de 60,9%. As eAB podem conter médico generalista, clínico, pediatra e ginecologista-obstetra, sendo a presença do generalista ou clínico obrigatória. A ESF é composta por uma equipe multiprofissional que possui, no mínimo, médico generalista ou especialista em saúde da família ou médico de família e comunidade, enfermeiro generalista ou especialista em saúde da família, auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde4040 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Manual instrutivo do PMAQ para as equipes de Atenção Básica (Saúde da Família, Saúde Bucal e Equipes Parametrizadas) e NASF [internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013 [acesso em 2019 dez 20]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_instrutivo_pmaq_atencao_basica.pdf.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
. O município possui: 87 unidades de Assistência Médica Ambulatorial (AMA), 25 ambulatórios de especialidades, 23 hospitais-dia, 39 unidades de urgência e emergência e 20 hospitais. Quanto aos Caps, São Paulo conta com 92, entre eles: 17 Caps Álcool e Drogas III (Caps AD III); 13 Caps AD II; 12 Caps Adulto III; 20 Caps Adulto II; 5 Caps Infantojuvenil III (Capsi III), 17 Capsi II e 8 Capsi3939 Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo [internet]. São Paulo; 2019 [acesso em 2019 dez 19]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/.
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Os dados utilizados no presente trabalho foram coletados por CRS, segundo divisão adotada pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (SMSSP), que corresponde a seis regiões paulistanas distintas – Centro, Leste, Norte, Oeste, Sudeste, e Sul – e utilizados para análise comparativa das correlações relativas aos indicadores escolhidos.

A SMSSP possui em sua estrutura organizacional seis CRS, que têm como atribuições responder pela execução das políticas municipais de saúde em seu território, planejar, gerenciar e responder pelas ações de assistência à saúde em prevenção, promoção, recuperação e vigilância em saúde, recursos humanos e financeiros. As coordenadorias têm como responsabilidade a promoção de ações integradas com as áreas centrais da SMSSP e demais CRS, constituir e/ou participar de instâncias de articulação, pactuação e decisão do Sistema Municipal de Saúde, em âmbito local, regional e municipal. Também é de competência das CRS o desenvolvimento continuado das ações de avaliação e controle do SUS, assim como a elaboração e a implantação dos instrumentos municipais de gestão do SUS em conjunto com as áreas centrais da SMSSP, a implantação de projetos prioritários de saúde definidos pelas áreas centrais da SMSSP e outros que atendam às necessidades da região. No âmbito territorial as coordenadorias têm o encargo de identificar, apoiar e divulgar projetos desenvolvidos pelas unidades de saúde, identificando e apoiando o desenvolvimento dos profissionais de saúde por meio de ações de educação permanente em articulação com as diretrizes da SMSSP4040 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Manual instrutivo do PMAQ para as equipes de Atenção Básica (Saúde da Família, Saúde Bucal e Equipes Parametrizadas) e NASF [internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013 [acesso em 2019 dez 20]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_instrutivo_pmaq_atencao_basica.pdf.
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.

A seguir, uma breve caracterização das CRS, de acordo com informações do ‘Boletim CEInfo’ de 20193737 CEInfo. Boletim CEInfo – Saúde em Dados: Município de São Paulo – 2019 [internet]. São Paulo; 2019 [acesso em 2019 dez 17]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/epidemiologia_e_informacao/index.php?p=258529.
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:

  • CRS Centro: possui 457.726 habitantes, a cobertura por eAB e ESF é 45,2% e a população usuária exclusivamente do SUS é de 36,1%;

  • CRS Leste: possui 2.494.088 habitantes, a cobertura por eAB e ESF é 66,6% e a população usuária exclusivamente do SUS é de 67,8%;

  • CRS Norte: possui 2.302.248 habitantes, a cobertura por eAB e ESF é 60,9% e a população usuária exclusivamente do SUS é de 57,2%;

  • CRS Oeste: possui 1.072.347 habitantes, a cobertura por eAB e ESF é 41,0% e a população usuária exclusivamente do SUS é de 41,4%;

  • CRS Sudeste: possui 2.705.660 habitantes, a cobertura por eAB e ESF é 47,0% e a população usuária exclusivamente do SUS é de 46,5%;

  • CRS Sul: possui 2.779.447 habitantes, a cobertura por eAB e ESF é 76,8% e a população usuária exclusivamente do SUS é de 62,7%.

Os indicadores de processo, extraídos do SIA/SUS, selecionados para o estudo foram os procedimentos produzidos nos pontos de atenção da Raps, a saber: consulta de psicólogo da Unidade Básica de Saúde (UBS), consulta do psicólogo do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB), total de procedimentos realizados por psicólogos da UBS e do Nasf-AB, consulta de psiquiatra da UBS, atendimento domiciliar de psiquiatra da UBS e total de procedimentos do psiquiatra; além da produção de maior interesse deste estudo que foi a produção de procedimento de matriciamento de eAB realizado pelo Caps. Esses dados de produção foram extraídos das bases de dados como quantidades produzidas. As informações referentes aos estabelecimentos e aos trabalhadores foram coletadas utilizando-se o mês de julho de cada ano do estudo, conforme metodologia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)4242 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [internet]. Brasília, DF: IBGE [acesso em 2019 dez 21]. Disponível em: https://ibge.gov.br/.
https://ibge.gov.br/...
. A descrição detalhada desses indicadores encontra-se no quadro 1, seguindo informações fornecidas pelo SIA/SUS e Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais (OPM) do SUS4343 Datasus. Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS [internet]. Brasília, DF: DATASUS [acesso em 2019 dez 22]. Disponível em: http://sigtap.datasus.gov.br/tabela-unificada/app/sec/inicio.jsp.
http://sigtap.datasus.gov.br/tabela-unif...
.

Quadro 1
Descrição dos procedimentos produzidos, indicadores de processo, nos pontos de atenção da Raps* e a sua utilização como indicador, em 2020

Os indicadores de estrutura da Raps, coletados do SCNES, do município de São Paulo selecionados foram os pontos de atenção Caps I, II, III, UBS e os profissionais de saúde mental psicólogo, psiquiatra e as Equipes de Saúde da Família (EqSF). Foram extraídas as frequências dos estabelecimentos e as quantidades de vínculos dos trabalhadores referentes ao período da pesquisa.

Foram incluídos os dados de todas as UBS e Caps Adulto I, II e III por CRS, com exceção do Caps Adulto Itapeva – Prof. Luís da Rocha Cerqueira –, pois é um serviço administrado por uma Organização Social de Saúde (OSS) em parceria com a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, ou seja, não pertence à Raps do município. Apesar de atender também à população do município, a organização do serviço é distinta; o Caps Adulto Itapeva não pertence a nenhuma CRS, dessa forma, optou-se por retirá-lo.

Os dados foram analisados no software Stata versão 14.0. Para avaliar a normalidade dos indicadores, foi realizado o teste Kolmogorov–Smirnov. Como a variável de interesse apresentou distribuição normal, optou-se pelo teste de correlação de Pearson, considerando um nível de significância de 5%, para avaliar a relação entre o matriciamento e os indicadores de estrutura e de processo. Os valores da correlação foram classificados como forte ou superior para 0,50, moderado para valores variando de 0,30 a 0,49 e fraco para valores entre 0,10 e 0,294444 Cohen J. Statistical power analysis for the behavior sciences. 2. ed. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates; 1988..

Esses dados não possuem nenhuma identificação individual, são de domínio público, estão disponibilizados no portal da SMSSP e foram tabulados pelo TabNet. A pesquisa seria dispensada de apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, no entanto, ela foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo com o parecer nº 3.648.026 no dia 17 de outubro de 2019.

Resultados

No gráfico 1, estão apresentados os totais de produção do procedimento matriciamento de acordo com o ano e com as CRS do município de São Paulo, no período de 2014 a 2018. No geral, observamos que os totais sofrem relativa variação ao longo do período analisado e de acordo com a região. A CRS Sul, que se destaca por sua magnitude de produção do procedimento, produziu, respectivamente, 1.749, 1.349, 558, 1.060 e 1.147 procedimentos nos anos 2014 a 2018. A CRS Leste, região comparável à anterior no tocante à população de abrangência, cobertura de atenção básica e de população usuária exclusiva do SUS, produziu, 267, 255, 601, 1.040 e 882 procedimentos, respectivamente, nos anos analisados. A região Oeste se manteve estável, porém com a quantidade de matriciamento bastante inferior às demais CRS. Chamou a atenção a alta produção do procedimento da CRS Centro, com a menor população de abrangência, menores índices de cobertura da atenção básica e de população usuária exclusiva, que manteve os níveis de produção inferiores apenas ao da CRS Sul em todos os anos do período estudado.

Gráfico 1
Total de matriciamentos de equipes de Atenção Básica , para o período de 2014 a 2018, segundo Coordenadorias Regionais de Saúde do município de São Paulo

Em relação às estimativas médias dos indicadores de estrutura, para o período de 2014 a 2018, apresentadas na tabela 1, observamos uma proporcionalidade das estruturas de acordo com a magnitude das respectivas populações de abrangência das CRS do município. No entanto, algumas diferenças são notáveis. Vamos considerar as regiões Sul e Leste, por serem relativamente comparáveis por população de abrangência, cobertura da atenção básica e população usuária exclusivamente SUS. As estimativas médias são semelhantes no que se refere ao número de UBS, de Caps e de psicólogo, e se diferenciam expressivamente em relação ao número de psiquiatras e de EqSF, que, na região Leste, não chega à metade do número encontrado na Sul.

Tabela 1
Estimativas médias anuais dos indicadores de estrutura, para o período de 2014 a 2018, segundo as Coordenadorias Regionais de Saúde e município de São Paulo

Em relação aos indicadores de processo, as estimativas médias para o período de 2014 a 2018 e as razões de procedimentos por número de profissionais presentes estão apresentadas na tabela 2. A produção de procedimentos, salvo exceções, era bastante concordante com os indicadores de estrutura de cada região. Ou seja, as razões de procedimentos indicam que, em média, a produção de procedimentos é coerente com o número de profissionais existentes nas CRS, com pequenas discrepâncias entre as regiões. Algumas diferenças relevantes valem ser destacadas. Uma delas é a região Centro cujo total de procedimentos de psicólogo está bastante abaixo da média do município, chegando a pouco mais de um quarto do que os demais psicólogos produzem em outras regiões. Na mesma região, consulta de psiquiatra e total de procedimentos de psiquiatra estão ligeiramente abaixo em comparação com o município. Na CRS Sudeste, consultas de psiquiatras e total de procedimentos desses profissionais são cerca de metade do que foi observado nas outras regiões. Na CRS Sul, chamou a atenção o atendimento domiciliar do psiquiatra, que é aproximadamente o dobro da média municipal.

Tabela 2
Estimativas médias anuais dos indicadores de processo e a Razão de Procedimentos por Profissionais, para o período de 2014 a 2018, segundo as Coordenadorias Regionais de Saúde e município de São Paulo

Os resultados da análise de correlação estão apresentados na tabela 3, chamando a atenção que a CRS Leste se sobressai em relação às demais por apresentar uma forte e significativa correlação positiva entre a realização do matriciamento e o número de psicólogos presente nas UBS (r=0,889 p=0,043) e diversas produções de procedimentos relacionados com esse profissional, a saber, consultas na UBS (r=0,916 p=0,029) e consulta no Nasf-AB (r=0,922 p=0,026), e total de procedimentos realizados na UBS e no Nasf-AB (r=0,986 p=0,002). Cabe assinalar que alguns indicadores relacionados com a produção de procedimentos de psiquiatras apresentaram, também, uma correlação positiva forte, apesar de não terem alcançado significância estatística, quais sejam, consulta (r=0,692 p=0,195) e total de procedimentos (r=0,691 p=0,197).

Ainda nas análises de correlação, os resultados, que envolvem o profissional médico psiquiatra de algumas regiões se destacaram pela forte correlação negativa apresentada, embora com valor de p próximo da significância estatística estabelecida ou sem significância estatística. Na região Centro, o matriciamento apresentou uma correlação negativa forte com consulta do psiquiatra (r=-0,820 p=0,089) e com total de procedimentos do psiquiatra (r=-0,842 p=0,073). A CRS Sul teve correlações negativas e fortes para os seguintes indicadores: consulta do psiquiatra (r=-0,588 p=0,297) e total de procedimentos do psiquiatra (r=-0,568 p=0,318) (tabela 3).

Tabela 3
Correlação entre o matriciamento de equipes da Atenção Básica e indicadores de processo, para o período de 2014 a 2018, nas Coordenadorias Regionais de Saúde do município de São Paulo

Discussão

A atenção básica possui um papel fundamental na garantia da integralidade do cuidado em saúde mental e tem os Caps como o mais importante serviço especializado no cuidado de pessoas com sofrimento psíquico grave. Compreender como se dá a articulação entre esses dois níveis de atenção, analisando indicadores que, supostamente, podem influenciar positiva ou negativamente essa articulação pode fornecer subsídios para o desenvolvimento de ações de mudanças nos processos de trabalho que contribuam para a implementação da Raps. Discutimos, neste estudo, os indicadores de estrutura e de processo no contexto da Raps e as suas inter-relações, partindo do suposto que a produção de matriciamento de eAB é influenciada pela composição e pelo perfil dos profissionais de saúde presentes nas unidades de atenção básica.

Antes de passarmos para a discussão do principal objeto deste estudo, vale destacar algumas peculiaridades do município de São Paulo, que formam o contexto de nossas interpretações. Inicialmente, tentamos compreender e interpretar alguns resultados da produção de apoio matricial que se destacaram na grande variabilidade e heterogeneidade observadas nas regiões. Alguns resultados, aparentemente, não têm relação com a presença de profissionais em saúde mental ou com os respectivos indicadores de produção de procedimentos. De um lado, a CRS Centro, a menor região em todos os aspectos comparada com as outras, apresentou uma elevada produção de matriciamento, comparável àquelas de muito maior estrutura. Para levantarmos uma hipótese explicativa para a elevada produção de matriciamento na região Centro, é preciso considerar a alta concentração de pessoas em situação de rua nessa área4545 Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Censo da população em situação de rua na cidade de São Paulo: resultados – São Paulo; 2015. [acesso em 2020 set 16]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/assistencia_social/observatorio_social/2015/censo/FIPE_smads_CENSO_2015_coletivafinal.pdf.
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/...
e o processo de adoecimento dessa população relacionada com o consumo de substâncias psicoativas4646 Rosa AS, Santana CLA. Consultório na Rua como boa prática em Saúde Coletiva. Rev. Bras. Enferm. [internet]. 2018 [acesso em 2019 dez 22]; 71(1):465-466. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-71672018000700465&script=sci_arttext&tlng=pt.
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. Esse parece ser o contexto que favorece as altas demandas de ações em saúde mental das equipes de Consultórios na/de Rua, que, por sua vez, devem requisitar os procedimentos de matriciamento ao único Caps da região. Estudos em profundidade são necessários para conhecer melhor essa realidade; entretanto, podemos arriscar a apontar que, na CRS Centro, existem, de um lado, um perfil epidemiológico específico que demanda ações em saúde mental, de outro, uma boa articulação das eAB com o Caps que utilizam o modelo do matriciamento de cuidado em saúde mental, o que imprime dinamicidade à Raps e concretude para o novo modelo de saúde mental que se quer efetivar.

Em contrapartida, a CRS Oeste, pouco menor no que tange aos indicadores de estrutura, não alcançou, em nenhum momento do período estudado, um décimo da produção de matriciamento da Coordenadoria Centro, mesmo que a produção média de consultas e de outros procedimentos dos profissionais de saúde mental seja comparável às das outras regiões. Essa baixa magnitude de produção de apoio matricial parece não ter uma explicação factível que possa ser sustentada com os resultados dos indicadores de estrutura e de processo. Aqui, se o sub-registro dos dados, ou seja, a falta do preenchimento adequado da informação não for a explicação, a outra interpretação possível seria o modelo de atenção à saúde mental adotado por essa coordenadoria, que não promove a utilização do modelo do apoio matricial como forma de cuidado de saúde mental na atenção básica.

No que concerne aos indicadores de estrutura, chama a atenção o número de psiquiatras e de psicólogos inseridos nas unidades de atenção básica no município. A inserção de profissionais de saúde mental em serviços de atenção básica, embora não seja incomum, não é uma prática amplamente disseminada no País. As políticas públicas de saúde brasileiras, pelo menos desde a criação do SUS, não definiram a presença desse tipo de profissionais na atenção básica4747 Böing E, Crepaldi MA. O psicólogo na atenção básica: uma incursão pelas políticas públicas de saúde brasileiras. Psicol. cienc. prof. [internet]. 2010 [acesso em 2019 dez 23]; 30(3):634-649. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932010000300014&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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. Ao contrário, no município de São Paulo, percebemos que tanto psicólogos quanto psiquiatras estão inseridos e em número expressivo nas UBS.

Essa configuração parece ter uma explicação histórica relacionada com um programa de saúde mental desenvolvido pelo governo do estado de São Paulo. Na década de 1970, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo formulou um subprograma de saúde mental com o intuito de reduzir os riscos de morbidade psiquiátrica e de elevar os níveis de saúde mental no estado. Para isso, foram implementadas equipes mínimas de saúde mental em praticamente todos os Centros de Saúde – os atuais serviços de atenção básica – do município de São Paulo. As equipes mínimas tinham uma composição multiprofissional, com profissionais como: terapeuta ocupacional, psicólogo, auxiliares de enfermagem, médico sanitarista, médico psiquiatra, assistente social e técnicos de enfermagem. A inserção da saúde mental na atenção básica no município de São Paulo remonta a essa época44 Pereira LMF, Giordano Júnior S. Saúde Mental. In: Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes-Gonçalves RB, coordenadores. Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. São Paulo: Hucitec; 1996. p. 133-150. (V. 96)..

As análises essenciais desta investigação, que testou a relação entre a produção de procedimentos de profissionais de saúde mental presentes na atenção básica e a produção de matriciamento de eAB, confirmaram plenamente a hipótese, entretanto, somente na coordenadoria Leste. Nesta, observamos que, entre 2014 e 2018, quanto maior a produção de procedimentos do psicólogo, maior a produção do matriciamento das equipes do Caps. Alguns autores têm defendido a ideia de que o psicólogo tem a interdisciplinaridade e a integralidade como eixos norteadores de sua prática4747 Böing E, Crepaldi MA. O psicólogo na atenção básica: uma incursão pelas políticas públicas de saúde brasileiras. Psicol. cienc. prof. [internet]. 2010 [acesso em 2019 dez 23]; 30(3):634-649. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932010000300014&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
,4848 Pegoraro RF, Cassimiro TJL, Leão NC. Matriciamento em saúde mental segundo profissionais da estratégia da saúde da família. Psicol. estud. [internet]. 2014 [acesso em 2020 jan 3]; 19(4):621-631. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722014000400621&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
,4949 Iglesias A, Avellar LZ. As Contribuições dos Psicólogos para o Matriciamento em Saúde Mental. Psicol. cienc. prof. [internet]. 2016 [acesso em 2020 jan 4]; 36(2):364-379. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932016000200364&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, o que seria favorável à incorporação do modelo do apoio matricial e que corrobora os nossos achados.

No entanto, ao analisarmos as demais regiões estudadas, percebemos as contradições entre elas: algumas apresentaram correlações fortes, ora positivas, ora negativas, que ressaltam as diferenças entre elas e nos obrigam a levantar outras hipóteses explicativas.

Por exemplo, em relação às consultas e ao total de procedimentos realizados pelo psiquiatra na atenção básica, é notável que, na maioria das coordenadorias, as correlações foram fortes, mas negativas; ou seja, nas regiões Centro, Norte e Sul, a relação é inversa à esperada: à medida que a produção do psiquiatra na UBS aumentou, a frequência do matriciamento diminuiu. Isso configura que a atuação do psiquiatra pode estar interferindo negativamente na produção do apoio matricial, modelo que busca desenvolver um trabalho baseado no diálogo e na integração entre profissionais da atenção básica e os dos serviços de atenção especializada. É possível que os médicos psiquiatras da atenção básica tenham uma atuação característica de um especialista, não demandando cuidados de equipe interprofissional para a condução dos casos de saúde mental. Podemos dizer que essa atuação é contraditória com o processo de mudança de um modelo centrado na doença e no sintoma para aquele centrado na pessoa e na saúde integral, como o preconizado no modelo do apoio matricial e da Reforma Psiquiátrica. Em concordância com os nossos achados, a literatura reporta resistência e dificuldade do psiquiatra no desenvolvimento do apoio matricial, o que acaba, por um lado, desresponsabilizando outros profissionais de uma abordagem e intervenção em equipe multi/interprofissional nos casos de saúde mental e, por outro, ratificando a supervalorização do especialista médico5050 Vannucchi AMC, Carneiro JN. Modelos tecnoassistenciais e atuação do psiquiatra no campo da atenção primária à saúde no contexto atual do Sistema Único de Saúde, Brasil. Physis [internet]. 2012 [acesso em 2020 jan 2]; 22(3):963-982. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312012000300007&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
,5151 Domitti ACP. Um possível diálogo com a teoria a partir das práticas de apoio especializado matricial na atenção básica de saúde [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2006..

Böing e Crepaldi4747 Böing E, Crepaldi MA. O psicólogo na atenção básica: uma incursão pelas políticas públicas de saúde brasileiras. Psicol. cienc. prof. [internet]. 2010 [acesso em 2019 dez 23]; 30(3):634-649. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932010000300014&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, tomando os anos de 2007 e 2008, analisam a inclusão de psicólogo em diferentes níveis de atenção para a caracterização de modelos assistenciais em saúde mental. As autoras constatam uma dicotomia nas políticas públicas entre saúde e saúde mental, em que o Caps, representando a saúde mental, apresenta um funcionamento particular, paralelo e à parte do sistema de saúde. Devemos salientar que o período analisado é anterior à instituição da Raps, que passa a dar ênfase à centralidade do cuidado na atenção básica. No entanto, não é difícil de imaginar que mudanças radicais de modelo de atenção à saúde mental necessitem de mais do que a simples implantação de um conjunto de serviços, que passa a ser denominado Raps, e a inserção de profissionais em saúde mental na atenção básica para se efetivar.

Muitos outros fatores devem concorrer para a configuração amplamente heterogênea entre as regiões no município de São Paulo no que diz respeito à produção de matriciamentos. De modo geral, o apoio matricial e as ações compartilhadas entre atenção básica e saúde mental especializada são metas presentes no Plano Municipal de Saúde de 2018 a 2021 e no Plano Anual de Saúde de 20195252 Prefeitura Municipal de São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde. Plano Municipal de Saúde de 2018 a 2021 [internet]. São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde; 2017 [acesso em 2020 jan 5]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/plano_municipal_de_saude_2018_2021.pdf.
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/...
,5353 Prefeitura Municipal de São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde. Plano Anual de Saúde de 2019 [internet]. São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde; 2018 [acesso em 2020 jan 6]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/programacao_anual_2019.pdf.
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/...
. Em vista disso, o município estabeleceu metas a serem cumpridas, para que o matriciamento e as ações compartilhadas entre atenção básica e saúde mental atinjam níveis satisfatórios, ou seja, que a articulação efetivamente se realize. Isso dá indicações de que a gestão municipal reconhece a necessidade e a importância da articulação entre a atenção básica e a atenção especializada em saúde mental para a realização do cuidado integral em saúde.

Apesar desse panorama favorável à produção de procedimentos de apoio matricial, a dinâmica de funcionamento dos serviços em cada CRS depende de pactuações realizadas entre os gestores e os diversos níveis de coordenação envolvidos, tanto na região quanto no município. As diferenças na administração dos serviços também imprimem diferenciações entre as CRS. A gestão dos estabelecimentos de saúde pode ser de responsabilidade da secretaria municipal ou estadual, ou ainda, das OSS. Portanto, a gerência dos serviços pode ser pública, de entidades sem fins lucrativos ou de entidades privadas. Vale lembrar que, em 20174141 São Paulo (Município). Decreto nº 57.857, de 05 de setembro de 2017. Dispõe sobre a reorganização da Secretaria Municipal da Saúde, altera a denominação e a lotação dos cargos de provimento em comissão que especifica, bem como transfere cargos de provimento em comissão entre órgãos e do Quadro Específico de Cargos de Provimento em Comissão. Diário Oficial do Município de São Paulo. 6 Set 2017; Seção1:1., o município possuía 23 contratos de gestão com 9 diferentes organizações sociais, com as quais cada CRS pode estabelecer acordos técnicos e políticos em que, por exemplo, uma região poderá contratar mais psicólogos ou realizar programas de incentivo ao matriciamento, em detrimento de outras programações. Essas são algumas pistas que levantamos para ampliarmos a nossa compreensão sobre o contexto do município de São Paulo quanto à atenção à saúde mental.

Não obstante, temos que qualificar a discussão acima colocando em foco a principal limitação deste estudo que se refere à utilização de dados secundários, atinentes à saúde mental, advindos de um sistema de informações que ainda possui algumas restrições na qualidade e na cobertura dos dados. Para garantir a acurácia desses registros, selecionamos o período a partir de 2014, um ano após os serviços passarem a registrar o procedimento de matriciamento, tempo que consideramos suficiente para que os dados estivessem registrados de forma correta e fidedigna. Além disso, tradicionalmente, o sistema de informação em saúde paulistano é reconhecidamente qualificado e confiável, o que nos dá possibilidades de abrir interpretações para outras localidades com características comparáveis ao município de São Paulo.

Apesar das restrições em relação a informações oriundas de dados secundários e de não haver estudos comparáveis, a qualidade deste trabalho e a sua principal contribuição residem no fato de possibilitar um debate em âmbito municipal sobre o apoio matricial e as articulações entre atenção básica e Caps. As pesquisas sobre o apoio matricial em saúde mental são, predominantemente, qualitativas, envolvendo número bastante restrito de serviços e de profissionais de saúde mental.

No momento em que se propõe a realização de um estudo com essas características no campo da saúde mental, inúmeros desafios surgem, uma vez que essa área não possui uma tradição em pesquisas quantitativas, como, por exemplo, na área da saúde materno-infantil. Há, também, a divergência de consensos entre os atores sociais envolvidos e a subjetividade dos usuários e dos trabalhadores. Entretanto, as dificuldades não tornam a pesquisa menos necessária e importante, porque este tipo de investigação traz inúmeros benefícios, entre eles, o monitoramento de ações. As pesquisas deste tipo têm a possibilidade de reconhecer atributos dos serviços que possam gerar resultados positivos na subjetividade dos indivíduos e na produção de saúde mental5454 Furtado PJ, Onocko-Campos TR, Trapé LT, et al. Construção de Indicadores para a Avaliação de Caps. In: Tanaka OY, Ribeiro EL, Almeida CAL, coordenadores. Avaliação em Saúde: Contribuições para Incorporação no Cotidiano. Rio de Janeiro: Atheneu; 2017. p. 37-52..

  • Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Out 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2020
  • Aceito
    13 Ago 2020
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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