Bibliometria das publicações da revista ‘Saúde em Debate’: uma fotografia da saúde mental

Bibliometrics of the publications of the journal ‘Saúde em Debate’: a photograph of Mental Health

Tiago Oliveira de Souza Isabela Barboza da Silva Tavares Amaral Fernanda Teles Morais do Nascimento Gizele da Conceição Soares Martins Hércules Rigoni Bossato Sobre os autores

RESUMO

O estudo objetivou realizar uma análise bibliométrica dos artigos publicados na revista ‘Saúde em Debate’, sobre a temática da saúde mental, no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira, no período de 2012 a 2019. Foi realizada uma busca no acervo on-line da revista em outubro de 2019. Inicialmente, os artigos foram exportados para o software Zotero Standalone 5.0®, sendo selecionados para análise textual e bibliométrica 66 textos. Em seguida, esses textos foram transferidos para o LibreOffice Writer e, posteriormente, analisados no IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Observou-se que a maior parte das publicações ocorreu no estado de São Paulo (18,2%), nos anos de 2014 (24,2%) e 2017 (25,8%), e utilizavam abordagem qualitativa (40,9%). Na classificação hierárquica descendente, o conteúdo analisado foi dividido em sete classes que deram origem à quatro categorias temáticas. A vastidão desse conteúdo textual exposta na análise de similitude e nas categorias temáticas emergidas denota a complexidade do campo de cuidados em saúde mental e aponta para a necessidade de engajamento da sociedade, dos profissionais de saúde e de pesquisadores, para superação de desafios que se ancoram em condutas ainda controversas diante dos avanços alcançados.

PALAVRAS-CHAVE
Saúde mental; Atenção à saúde; Política de saúde; Reforma dos serviços de saúde; Bibliometria

ABSTRACT

The study aimed to carry out a bibliometric analysis of the articles published in the journal ‘Saúde em Debate’, on the theme of mental health, in the context of the Brazilian Psychiatric Reform, in the period from 2012 to 2019. The search was carried out in the journal’s online collection in October 2019. Initially, the articles were exported to the Zotero Standalone 5.0® software, and 66 texts were selected for textual and bibliometric analysis. Those texts were then transferred to LibreOffice Writer and later analyzed on IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). It was observed that most publications occurred in the state of São Paulo (18.2%), in 2014 (24.2%) and 2017 (25.8%) and used a qualitative approach (40.9%). In the descending hierarchical classification, the analyzed content was divided into seven classes that gave rise to four thematic categories. The vast textual content exposed in the similitude analysis and in the thematic categories that emerged denote the complexity of the field of mental health care and point to the need for the engagement of society, health professionals and researchers to overcome challenges anchored in conduct that are still controversial, in view of the advances achieved.

KEYWORDS
Mental health; Health care; Health policy; Health care reform; Bibliometrics

Introdução

A Reforma Psiquiátrica iniciou-se como um movimento de luta pelos direitos das pessoas com transtorno mental. Historicamente, teve seu início com a crise da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), em 1987, e com a consequente criação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, sendo impulsionada por meio do movimento de reforma sanitária no Brasil. A década de 1990 foi de suma importância para alavancar a Reforma Psiquiátrica Brasileira, tanto pela realização de eventos quanto pela elaboração e vigência de portarias do Ministério da Saúde11 Amarante P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1995,22 Kantorski LP, Pitiá ACA, Miron VL. A Reforma Psiquiátrica nas Publicações da Revista “Saúde em Debate” entre 1985 e 1995. Rev. eletrônica enferm. [internet]. 2006 [acesso em 2020 jan 10]; 4(2):03-09. Disponível em: https://doi.org/10.5216/ree.v4i2.763
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No que tange aos eventos, em âmbito nacional, é válido destacar: as conferências nacionais de saúde mental; encontros de usuários, familiares e trabalhadores de saúde mental em prol da luta antimanicomial. Com relação ao aporte legislativo, houve portarias importantes que possibilitaram a criação de serviços de base territorial e de cunho substitutivo aos manicômios, como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), o Serviço Residencial Terapêutico, Leitos reservados em Hospital Geral, Estratégia Saúde da Família, entre outros33 Hirdes A. A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re) visão. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2009 [acesso em 2020 fev 10]; 14(1):297-305. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000100036
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,44 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Cadernos de atenção básica em saúde mental [internet]. Brasília, DF: MS; 2013. [acesso em 2020 dez 5]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos_atencao_basica_34_saude_mental.pdf
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O contexto internacional teve grande influência na Reforma Psiquiátrica Brasileira, principalmente o da Itália, por meio das experiências de Franco Basaglia. À época, no ano de 1990, a Organização Mundial da Saúde era favorável a essa reorientação do modelo assistencial, uma vez que a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) publicou a Declaração de Caracas, na qual havia um compromisso dos países da América Latina em substituir o manicômio – modelo hospitalocêntrico – para uma assistência com o foco no usuário, na sua família e na comunidade à qual ele pertence11 Amarante P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1995,33 Hirdes A. A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re) visão. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2009 [acesso em 2020 fev 10]; 14(1):297-305. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000100036
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Logo, a Reforma Psiquiátrica Brasileira é uma proposta de base territorial, fundamentada nos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente na descentralização, universalidade do acesso, equidade, resolutividade e na participação popular. Assim, compreende-se que, ao deslocar o paradigma de assistência centrado no hospital para o território, deslocou-se também a proposta assistencial.

Nessa perspectiva, a busca pela cura da doença já estava ultrapassada; e o objetivo era promover autonomia por intermédio de produção de vida nos espaços sociais. Para tanto, o campo da saúde mental é intersetorial, ou seja, não se limita a serviços de saúde, mas busca a produção de vida com interlocução entre os setores de arte e cultura, social, jurídico-político, lazer, educação. Desse modo, a complexidade do cuidado em saúde mental se dá por meio de uma Rede de Atenção Psicossocial (Raps), e os recursos e serviços que irão compor a Raps variam de acordo com a especificidade e disponibilidade de cada território, bem como do engajamento dos profissionais33 Hirdes A. A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re) visão. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2009 [acesso em 2020 fev 10]; 14(1):297-305. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000100036
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,55 Furtado RP, Sousa MF, Martinez JFN, et al. Desinstitucionalizar o cuidado e institucionalizar parcerias: desafios dos profissionais de Educação Física dos CAPS de Goiânia em intervenções no território. Saúde soc. [internet]. 2017 Mar [acesso em 2020 fev 28]; 26(1): 183-195. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0104-12902017169101
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No que concerne ao movimento de Reforma Psiquiátrica, o foco passou a ser a reabilitação psicossocial tendo em vista atender aos seguintes conceitos: a desospitalização, a desinstitucionalização, a reinserção social e o resgate da cidadania da pessoa com transtornos mentais33 Hirdes A. A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re) visão. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2009 [acesso em 2020 fev 10]; 14(1):297-305. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000100036
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,66 Ferreira TPS, Sampaio J, Oliveira IL, et al. A família no cuidado em saúde mental: desafios para a produção de vidas. Saúde debate. [internet]. 2019 [acesso em 2020 fev 10]; 43(121):441-449. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-1104201912112
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Os serviços que compõem as Raps e seus trabalhadores devem estar alinhados a esses conceitos para que haja um trabalho efetivo na promoção da saúde e qualidade de vida do usuário. Devem, assim, atuar nos serviços da Raps, de modo interdisciplinar, pautado no paradigma da atenção biopsicossocial.

No que diz respeito à assistência, esta deve considerar as limitações e as potências que provêm do território, ter um caráter transversal e incluir a família, quando possível. A participação ativa do usuário é fundamental, na construção coletiva do seu tratamento, mediante um projeto terapêutico singular66 Ferreira TPS, Sampaio J, Oliveira IL, et al. A família no cuidado em saúde mental: desafios para a produção de vidas. Saúde debate. [internet]. 2019 [acesso em 2020 fev 10]; 43(121):441-449. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-1104201912112
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. Os profissionais da equipe interdisciplinar devem priorizar tecnologias relacionais do cuidado, como: o vínculo, o acolhimento, a corresponsabilização, o desenvolvimento de competências para contemplar as multidimensões e complexidades da pessoa com transtornos mentais – biopsicossocial, espiritual, econômica e cultural33 Hirdes A. A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re) visão. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2009 [acesso em 2020 fev 10]; 14(1):297-305. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000100036
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,44 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Cadernos de atenção básica em saúde mental [internet]. Brasília, DF: MS; 2013. [acesso em 2020 dez 5]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos_atencao_basica_34_saude_mental.pdf
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Nessa conjuntura, visou-se minimizar os efeitos prejudiciais da exclusão por meio do respeito às singularidades e limitações, cujas metas deveriam ser a diminuição da dependência pelo profissional – sem desassistência – por intermédio do desenvolvimento da autonomia social33 Hirdes A. A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re) visão. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2009 [acesso em 2020 fev 10]; 14(1):297-305. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000100036
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,44 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Cadernos de atenção básica em saúde mental [internet]. Brasília, DF: MS; 2013. [acesso em 2020 dez 5]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cadernos_atencao_basica_34_saude_mental.pdf
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Esse panorama, contextualizado mediante marcos históricos, é importante uma vez que a política de saúde mental passou, nos últimos dois anos, por retrocessos que culminaram com a Nota Técnica 11/2019. Esse documento prevê a reabertura de leitos em hospitais psiquiátricos bem como mantém a comunidade terapêutica como parte dos serviços financiados pelo SUS, entre outras providências que ferem os princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica77 Pitta AMF, Guljor AP. A violência da contrarreforma psiquiátrica no Brasil: um ataque à democracia em tempos de luta pelos direitos humanos e justiça social. Cadernos do CEAS. [internet]. 2019 [acesso em 2020 fev 10]; (246):6-14. Disponível em: http://dx.doi.org/10.25247/2447-861X.2019.n246.p6-14
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O movimento de Reforma Psiquiátrica Brasileira mantém-se com uma proposta de resistência marcada pela participação popular, por meio de familiares, profissionais e movimentos sociais, artísticos, científicos e culturais.

Nesse cenário, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), desde a sua criação, em 1976, luta pela democratização da saúde e pelos direitos sociais. Tem na revista ‘Saúde em Debate’, incluída na base da Scientific Electronic Library Online (SciELO Brasil) no ano de 2012, um canal relevante para divulgação e democratização de conhecimento científico para o campo da saúde coletiva/pública brasileira. Por isso, o objetivo deste trabalho foi realizar uma análise bibliométrica dos artigos publicados na revista ‘Saúde em Debate’ sobre a temática da saúde mental, no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira, no período de 2012 a 2019.

Material e métodos

Delineamento

Trata-se de um estudo bibliométrico da produção científica da revista ‘Saúde em Debate’ sobre a temática da saúde mental e da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Por meio do uso de técnicas estatísticas, foi realizada análise de um corpo da literatura, buscando conexões importantes entre os textos publicados e na perspectiva de apontar o desenvolvimento temporal/histórico dos temas abordados88 Organização Pan-Amenricana de Saúde. Biblioteca virtual em Saúde. Descritores em Ciências da Saúde. [internet]. [acesso em 2020 jan 22]. Disponível em: http://decs.bvsalud.org
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. As variáveis mensuradas foram descritas quantitativamente, por meio de análise lexicográfica, classificação de contextos semânticos (método de Reinert) e análise de similitude99 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do software IRAMUTEQ: Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires. 2018 [acesso em 2020 jan 15]. Disponível em: http://www.iramuteq.org/documentation/fichiers/tutoriel-portugais-22-11-2018
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A bibliometria no presente estudo seguiu as seguintes etapas: busca e seleção de estudos, tabulação e padronização dos textos, extração de dados, avaliação dos estudos, análise e síntese dos resultados. A explicação de cada uma dessas etapas é descrita a seguir.

Busca e seleção dos estudos

Foram identificados artigos/publicações por busca bibliográfica, no próprio acervo on-line da revista, indexado na SciELO, no período de outubro de 2019. A construção da estratégia de busca utilizou os seguintes descritores/termos: ((*) ANDM (“Saúde Mental”)) ORM (“Reforma Psiquiátrica”) AND journal_titleM: (“Saúde em Debate”). Essa estratégia de busca eletrônica ampla teve por finalidade levantar todos os artigos publicados na revista; por isso, foram incluídos os artigos publicados em inglês, espanhol e português, sem delimitar data de publicação, e que apresentassem título e resumo compatíveis com o objeto do estudo.

Os artigos encontrados foram exportados para um gerenciador bibliográfico, o software Mlivre Zotero Standalone 5.0®. Nele, realizaram-se a organização das referências e a exclusão das duplicidades. A partir de então, contabilizaram-se 66 textos para análise textual e bibliométrica.

Tabulação e revisão dos textos

Em seguida, esses textos foram transferidos para um programa de edição de texto (LibreOffice Writer). Nesse softwareM, foi construído o corpusM (conjunto de textos) – composto pelos títulos e resumos dos artigos, que, posteriormente, foram analisados no software livre IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Esse último programa possibilita o processamento de dados qualitativos (documentos, entrevista, textos etc.), dando um viés quantitativo para eles1010 Souza MAR, Wall ML, Thuler ACMC, et al. O uso do software IRAMUTEQ na análise de dados em pesquisas qualitativas. Rev. Esc. Enferm. USP. [internet]. 2018 [acesso em 2020 jan 20]; 52:e03353. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/s1980-220x2017015003353
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Todo o corpusM foi revisado, para uniformização de siglas e junção de palavras compostas (por exemplo, saúde_mental e rede_de_atenção_psicossocial) e separado em linhas de comando (**** *artigo_01 *ano_2019) para codificação e compreensão pelo programa. A partir disso, foram realizadas as seguintes análises com esse conjunto de 66 títulos e resumos: estatística textuais básica (lexicografia), Classificação Hierárquica Descendente (CHD) e análise de similitude99 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do software IRAMUTEQ: Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires. 2018 [acesso em 2020 jan 15]. Disponível em: http://www.iramuteq.org/documentation/fichiers/tutoriel-portugais-22-11-2018
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,1010 Souza MAR, Wall ML, Thuler ACMC, et al. O uso do software IRAMUTEQ na análise de dados em pesquisas qualitativas. Rev. Esc. Enferm. USP. [internet]. 2018 [acesso em 2020 jan 20]; 52:e03353. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/s1980-220x2017015003353
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Além disso, os artigos foram classificados quanto ao ano de publicação, tipo de estudo, Unidade da Federação (UF) do estudo, número total de autores, autores mais citados (incluindo primeiro autor mais citado) e filiação do primeiro autor. Apresentados em tabela com frequência absoluta e relativa.

Análise e síntese dos resultados

Na análise estatística textual, realizada com auxílio do IRaMuTeQ, cada unidade de texto (cada título e resumo) é separado em Segmentos de Texto (ST); e, a partir deles, são produzidas sínteses descritivas do conjunto de textos, o corpusM, bem como os demais tipos de análise. Nessa etapa, foram identificadas a quantidade de palavras, a lematização, além de formas ativas e suplementares na pesquisa de vocábulo99 Camargo BV, Justo AM. Tutorial para uso do software IRAMUTEQ: Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires. 2018 [acesso em 2020 jan 15]. Disponível em: http://www.iramuteq.org/documentation/fichiers/tutoriel-portugais-22-11-2018
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Na CHD, o corpusM é processado e dividido em classes interpretadas pelo IRaMuTeQ e nomeadas pelo pesquisador. Essas classes são formadas por meio da associação entre a ocorrência das palavras nos ST, utilizando, para isso, o teste qui-quadrado (χ2). No presente estudo, foram consideradas apenas as palavras com força de associação com suas respectivas classes, cujo nível de significância foi inferior a 1% (p-valor < 0,01).

Em sequência à criação dessas classes (sete classes), foram elaborados gráficos de similitude das ligações entre palavras selecionadas e as demais palavras da classe. As palavras foram escolhidas a partir do maior valor no teste qui-quadrado e em função das frequências e relação entre as demais palavras. Assim, foram identificadas as interações entre as palavras (‘Reforma Psiquiátrica’, ‘Território’, ‘Familiar’ e ‘Apresentar’) e o conjunto de palavras da classe correspondente. Esse tipo de análise é recorrente em pesquisas sobre representações sociais e se baseia na teoria dos grafos. Ademais, auxilia na identificação dos principais assuntos presentes na produção da revista, por meio dos temas comuns contidos nos resumos1111 Marchand P, Ratinaud P. L’analyse de similitude appliqueé aux corpus textueles: les primaires socialistes pour l’election présidentielle française. In: Anais da 11ª. Journées internationales d’Analyse statistique des Données Textuelles; 2012; Liège, Belgique [internet]. 2012. p. 687-699. [acesso em 2020 jan 22]. Disponível em: http://lexicometrica.univ-paris3.fr/jadt/jadt2012/Communications/Marchand,%20Pascal%20et%20al.%20-%20L%27analyse%20de%20similitude%20appliquee%20aux%20corpus%20textuels.pdf
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Aspectos éticos

O estudo utilizou, exclusivamente, dados bibliográficos publicados, coletados em bases de dados de domínio público e irrestrito. Por isso, em conformidade com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, está isento da necessidade de parecer de Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados e discussão

Foram destacados os resultados alcançados por meio da análise estatística textual e bibliométrica partindo dos métodos empregados, com a finalidade de caracterizar as publicações, identificar conexões relevantes da produção científica, classificar estatisticamente os contextos encontrados nos resumos analisados e apresentar como os termos e as palavras estão relacionadas nos diversos estudos.

Os elementos que surgem desses resultados são discutidos e avaliados a partir dos achados relevantes e originais da própria pesquisa e em comparação com literatura pertinente (outros textos científicos), na perspectiva de interpretar a produção científica da revista ‘Saúde em Debate’, no campo da saúde mental.

Caracterização das publicações e análise lexicográfica

Observa-se maior ocorrência de publicações sobre a temática em estudo nos anos de 2014 (24,2%) e 2017 (25,8%), com 40,9% dos estudos com abordagem qualitativa, sendo que a UF onde a maioria dos estudos foi realizada foi em São Paulo, seguida pela UF de Rio Grande do Sul. Os locais de estudo parecem relacionar-se com filiação acadêmica do primeiro autor, pois as mais frequentes foram a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal de Pelotas. Grande parcela desses artigos tem apenas dois autores (42,4%), por outro lado, as porcentagens de artigos com três (22,7%) e cinco (18,2%) autores também são elevadas. Artigos com um ou mais de cinco autores correspondem a 4,5% dos 66 artigos analisados (tabela 1M).

Tabela 1
Distribuição das características das publicações da revista ‘Saúde em Debate’, incluídas na análise bibliométrica, 2012 a 2019

A análise evidenciou que grande parte do resultado da busca do estudo teve origem em produção de pesquisa de abordagem qualitativa. No Brasil, estudos de abordagens relacionais fazem mais sentido ao SUS a fim de reverberar os ASPECTOS da prática assistencial vigente, conforme apontam considerações colocadas pela psicologia social1212 Spink MJ. Linguagem e produção de sentidos no cotidiano [internet]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2010 [acesso em 2020 jan 3]. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/w9q43/pdf/spink-9788579820465.pdf
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Minayo1313 Minayo MCS. A utilização do método qualitativo para a avaliação de programas de saúde. In: Campos RO, Furtado JP, Passos E, organizadores. Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 27-37. afirma que essa abordagem qualitativa em saúde mental, entre outras coisas, possibilita que o pesquisador entre em contato com a história, as representações, as percepções e as opiniões dos sujeitos – e, consequentemente, na valorização da sua figura e do seu significado na produção dos resultados; trazendo à luz novas narrativas e desvelando processos sociais desse grupo.

O corpusM composto por 66 títulos e resumos dos artigos selecionados foi separado em 203 ST, com aproveitamento de 93,1% do corpusM (total de textos analisados). Foram contabilizadas 6.935 ocorrências (palavras, formas ou vocábulos), sendo 2.027 palavras distintas (número de formas), e 1.320 com uma única ocorrência (número de hápax).

Classificação Hierárquica Descendente (CHD)

A partir da CHD, método de Reinert, o IRaMuTeQ identificou a raiz semântica das palavras no contexto e dividiu o conteúdo analisado em sete classes: classe 1, com 29 ST (15,3%); classe 2, com 22 ST (11,6%); classe 3, com 36 ST (19,1%); classe 4, com 22 ST (11,6%), classe 5, com 23 ST (12,2%); classe 6, com 23 ST (12,2%); classe 7, com 34 ST (18,0%). Assim, foi possível inferir as ideias transmitidas por essas classes, que, consequentemente, foram agrupadas e categorizadas, conforme a figura 1M.

Figura 1
Fluxograma de seleção e inclusão dos textos utilizados na análise. Revista ‘Saúde em Debate’, 2012-2019

A primeira categoria, composta pelas classes 1 e 5, foi denominada ‘Princípios e Diretrizes da Reforma Psiquiátrica’. Ela remonta à reorientação do modelo assistencial, apresenta crítica ao modelo hospitalocêntrico e ao processo de implantação da Raps.

[...] reforça a necessidade de resgate da autonomia, da reinserção social, do trabalho com valor social e dos direitos de cidadania, a partir de uma atenção especializada e individualizada. As redes sociais de apoio, a intersetorialidade e a articulação das Redes de Atenção Psicossocial devem ser a base da transformação para que essas questões se concretizem na prática assistencial. M(artigo_01).

[...] o Caps foi o local em que os usuários se sentiram mais bem cuidados. Foi observada a coexistência de práticas de cuidado que corroboram os princípios da reforma psiquiátrica e outras que ainda reproduzem a lógica manicomial.M (artigo_33).

Ancorada no Movimento Mundial de Luta Antimanicomial, a Reforma Psiquiátrica Brasileira é um processo fundamentado no paradigma da reabilitação psicossocial. Tal reforma elucida práticas em serviços de base territorial e comunitária que são pautados pelo princípio da desinstitucionalização do tratamento psiquiátrico, almejando-se o rompimento da lógica manicomial na atenção à saúde.

Embora a reforma tenha avançado em um modelo assistencial de base territorial e comunitária, ela, enquanto movimento, ainda enfrenta desafios nas práticas institucionais influenciadas pela indústria farmacêutica e pela adoção de condutas profissionais ligadas às velhas práticas e modelos de políticas neoliberais. Em síntese, a reforma é atravessada por desafios nos campos social, político, econômico e cultural.

Um espaço importante para o acompanhamento e tratamento em base territorial e comunitária no Brasil refere-se aos Caps, que são

instituições destinadas a acolher os usuários em sofrimento psíquico, estimular sua integração social e familiar e apoiá-los em suas inciativas de busca de autonomia, além de oferecer atendimento médico e psicológico1414 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial [internet]. Brasília, DF: MS; 2004. [acesso em 2020 dez 5]. Disponível em: http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/sm_sus.pdf
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(9).

Ainda assim, há evidências sobre o aumento dos números de encaminhamentos dos usuários do Caps para avaliação e internações em hospitais psiquiátricos conduzidos pelos profissionais desse serviço substitutivo. Tal constatação acompanha o propósito sobre desmantelamento da rede substitutiva ditada pelo cenário político e ideológico do Brasil contemporâneo1515 Souza FSP, Jorge MSB. O retorno da centralidade do hospital psiquiátrico: retrocessos recentes na política de saúde mental. Trab. educ. saúde. 2019; 17(1):e0017201..

Entretanto, em outro estudo quantitativo sobre a alta no Caps, observou-se que este possui “um percentual elevado de altas clínicas, garantindo o retorno dos usuários à vida cotidiana, especialmente entre os sujeitos com transtornos mentais graves e persistentes”1616 Kantorski LP, Guedes AC, Machado RA, et al. A alta dos usuários no centro de atenção psicossocial. J. nurs. health. 2019; 9(3):e199305.(1), evidenciando a importância do Caps para o resgate da cidadania, acompanhamento e tratamento dos usuários do serviço de saúde mental.

Torna-se necessário, portanto, considerar que o Caps é atravessado por diversos desafios ligados ao movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, sendo um deles a promoção da cidadania do sujeito, mediada tanto pela promoção da cidadania do usuário quanto pela manutenção da autonomia diante das diversas propostas terapêuticas.

Além desse contexto, é importante apontar outros desafios da Reforma Psiquiátrica Brasileira, principalmente no que tange a infraestrutura dos serviços, equipamentos e tecnologias, apoio institucional, capacitação e comprometimento da gestão nos processos de educação permanente em saúde1717 Clementino FS, Miranda FAN, Pessoa Júnior JM, et al. Atendimento integral e comunitário em saúde mental: avanços e desafios da reforma psiquiátrica. Trab. educ. saúde. 2019 [acesso em 2020 set 22]; 17(1):e0017713. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1981-77462019000100511&lng=pt&nrm=iso
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.

Em decorrência desses e de outros fatores, o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira encontra-se em um processo lentificado, o que se agrava pela lógica neoliberal que também afeta o campo das políticas de saúde mental. Tal conjuntura atual preconiza o desmonte das políticas sociais custeadas pelo Estado. Isso reduz investimentos no SUS e precariza a assistência ao usuário do sistema e os serviços1818 Silva EKB. Política de saúde mental no brasil: alguns apontamentos. Barbarói. 2019; 53(1):172-184..

Segundo Ventura et al.1919 Ventura CAA, Moraes VCO, Jorge MS. Direitos humanos de pessoas com transtornos mentais: perspectiva de profissionais e clientes. Rev. enferm. UERJ. [internet]. 2017 [acesso em 2020 jan 10]; 25:e4344. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12957/reuerj.2017.4344
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, apesar das transformações ocorridas com a Reforma Psiquiátrica Brasileira, ainda existem lacunas quanto ao exercício dos direitos humanos das pessoas com transtorno mental, destacando que, entre outras coisas, é necessário desenvolver pesquisas e intervenções que facilitem às pessoas com transtornos mentais se apropriarem dos seus direitos. Nesse sentido, Maluf e Andrade2020 Maluf SW, Andrade APM. Entre políticas públicas e experiências sociais: impactos da pesquisa etnográfica no campo da saúde mental e suas múltiplas devoluções. Saúde Soc. [internet]. 2017 [acesso em 2020 jan 10]; 26(1):171-182. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0104-12902017168331
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ressaltam que estudos que analisam as contradições entre políticas públicas com as experiências sociais são essenciais para elucidar uma avaliação qualitativa no campo das políticas públicas.

Denominada ‘Métodos de pesquisa, indicadores e achados dos estudos’, a segunda categoria foi composta pelas classes 2 e 7. Quando se avaliam textos técnicos, no IRaMuTeQ, como é o caso de resumos de artigos científicos, são recorrentes palavras e expressões próprias desse tipo de publicação. Nesse caso evidenciou-se a ocorrência dos principais métodos utilizados, instrumentos, ferramenta, técnicas de análise de dados e características metodológicas dos estudos em saúde mental, como pode ser observado nos trechos dos artigos a seguir:

Se utilizou um instrumento contendo variáveis sociodemográficas.M (artigo_01).

Se trata de relato de experiência. M(artigo_05).

O artigo apresenta indicadores para avaliação da inserção de pessoas com deficiência intelectual na rede de atenção psicossocial. M(artigo_14).

Se identificaram dois indicadores qualitativos de satisfação, sendo estes: a não internação psiquiátrica ou menor necessidade desta; sentimento ou sensação de bem-estar. M(artigo_27).

Para análise, foi utilizada a análise de conteúdo. M(artigo_30).

Para a realização da coleta de dados, foi utilizada a técnica do grupo focal, seguida de análise de conteúdo.M (artigo_39).

O conceito amplo de território, bem como a vida em sociedade e a luta por uma sociedade sem manicômios, foi categorizada como ‘Território, Modelos e Redes de Cuidado’, categoria composta pelas classes 3 e 4, da classificação hierárquica.

No contexto da saúde coletiva e da saúde mental, o conceito de território está presente em múltiplas dimensões e sentidos. Aparece em documentos que expressam princípios e diretrizes das políticas de saúde e no planejamento das ações locais, e é elemento central para organizar a rede de cuidado na atenção psicossocial. […] pensar o território em sua complexidade, como espaço, processo e composição, de forma a potencializar a relação entre serviço, cultura, produção do cuidado e produção de subjetividade. M(artigo_46).

O conceito de território na saúde mental é o elemento-chave para a organização da rede assistencial e de cuidados do indivíduo em sofrimento psíquico grave e/ou com transtorno mental. Esse conceito carrega várias dimensões de sentido, é traçado no campo da geografia e utilizado na área da saúde coletiva. Logo, o território vai para além do espaço territorial, e se configura também na produção de subjetividades no meio espacial.

O território torna-se um campo existencial no qual o homem constrói sua história e produz os diversos sentidos de sua existência, assim como as suas regras, as normatizações, as interações e as negociações do convívio social.

Dessa maneira, o território irá se configurar nas características referente às singularidades daquele espaço coletivo habitado. Assim, o uso do território na terapêutica em saúde produz uma ênfase para a construção das identidades sociais dos indivíduos e a produção de suas subjetividades.

A clínica no território requer apostas dos profissionais mesmo diante das dificuldades do campo macropolítico e econômico. Tal iniciativa se dá quando o profissional investe no usuário, interage e sensibiliza com suas singularidades e contexto, promove uma escuta qualificada, acolhe suas queixas e proporciona o cuidado no campo coletivo2121 Dutra VFD, Bossato HB, Oliveira RMP. Mediar a autonomia: um cuidado essencial em saúde mental. Esc. Anna Nery Rev. Enferm. 2017 [acesso em 2020 set 22]; 21(3):e20160284. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ean/v21n3/pt_1414-8145-ean-2177-9465-EAN-2016-0284.pdf
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Entretanto, as práticas de cuidado em saúde mental ainda estão relacionadas com ações internas dos serviços substitutivos, sem uma articulação efetiva com a rede assistencial e dentro dos muros institucionais. Essas práticas produzem ações asilares e rompem com o trabalho em rede, mesmo com a ênfase no modelo psicossocial extramuros2222 Campos DB, Bezerra IC, Jorge MSB. Produção do cuidado em saúde mental: práticas territoriais na rede psicossocial. Trab. educ. saúde. 2020 [acesso em 2020 set 20]; 18(1):e0023167. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-77462020000100502&script=sci_abstract&tlng=pt
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Vale destacar que a melhoria da integração das redes de atenção à saúde e dos serviços que a compõem pode ser viabilizada por meio da prática do matriciamento (apoio matricial), levando-se em conta a capacitação dos profissionais na saúde mental2323 Sarzana MBG, Lessa G, Preis LC, et al. Gestão do cuidado na saúde mental sob a perspectiva da rede de atenção à saúde. REME rev. min. enferm. 2018 [acesso em 2020 set 20]; 22:e-1144. Disponível em: http://www.dx.doi.org/10.5935/1415-2762.20180075
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Para efetivar o matriciamento na rede e no processo de trabalho das equipes, torna-se necessário ampliar tal articulação entre profissionais, gestores, família e usuário do serviço de saúde mental. Por conseguinte, defende-se que o matriciamento, no âmbito da saúde mental, deriva do desenvolvimento de práticas mais integradas nos modos de se relacionar, não se restringindo a encontros ocasionais2424 Iglesias A, Avellar LZ. Matriciamento em Saúde Mental: práticas e concepções trazidas por equipes de referência, matriciadores e gestores. Ciênc. Saúde Colet. [internet]. 2019 [acesso em 2020 jan 2]; 24(4):1247-1254. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018244.05362017
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. Portanto, uma rede integrada em saúde mental de serviço e de pessoas

[...] ainda precisa ser efetivamente incorporada na agenda pública local, tornando-se uma política de Estado, garantindo sua continuidade e possibilitando uma implementação efetiva da intersetorialidade2525 Pereira SLB, Guimarães SJ. Rede, instituições e articulação: contribuições de uma experiência local para refletir sobre a intersetorialidade na saúde mental. Barbarói. 2019; 53(1):185-207.(186).

Em síntese, o trabalho focado no território e nas territorialidades, articulação entre as redes assistenciais e de cuidado em diretriz integral, adesão da família ao processo terapêutico são desafios colocados no campo da efetivação das políticas públicas em saúde mental no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira e do modelo assistencial a ser adotado no processo de trabalho das equipes.

A última categoria, nomeada ‘Os múltiplos papéis dos familiares’, definida a partir da classe 6, traz a ideia da participação dos familiares nos cuidados às pessoas com transtornos mentais e as implicações desse envolvimento.

[...] pretendeu-se conhecer o contexto familiar após a desospitalização do sujeito com transtornos mentais, e como a reabilitação psicossocial tem se articulado nesse processo. M(artigo_65).

Cuidar de um familiar com transtorno mental exige que o cuidador auxilie nas diversas atividades cotidianas, gerando dificuldades para quem cuida. [...] envolve sobrecarga pelo acúmulo de funções desempenhadas e pelo despreparo do cuidador, sinalizando que os equipamentos de saúde mental necessitam intervir na saúde do cuidador e capacitá-lo para a oferta de cuidados. M(artigo_47).

‘Sobrecarga familiar’ é o impacto que o cuidado dedicado a um paciente pode provocar no ambiente familiar.M (artigo_29).

[...] necessidade de os serviços de saúde mental assistirem às famílias, quanto ao papel do cuidado e de apoio ao tratamento do ente com transtorno mental.M (artigo_54).

A promoção do cuidado para o usuário do serviço de saúde mental não é uma questão intrínseca apenas da relação usuário e profissional, uma vez que a dimensão do sujeito envolve seu contexto social, portanto, familiar. A família é parte fundamental do acolhimento para uma assistência em saúde mental, e seu afastamento desse processo dificulta o dimensionamento de uma clínica ampliada de cuidados.

Contudo, Ziwchak e Aristides2626 Ziwchak DJV, Aristides JL. Percepção de familiares quanto ao seu papel no cuidado à criança e ao adolescente usuários de um caps infanto juvenil. Arq. ciências saúde UNIPAR. 2019; 23(3):181-187. ressaltam que, apesar da participação das famílias no cuidado terapêutico do indivíduo com transtorno mental ser fundamental, ainda há desconhecimento por parte dos familiares do seu real papel no cuidado e tratamento, além de terem dificuldade em entender a posição do Caps nesse processo.

Análise de similitude

A figura 2M mostra um grafo com as ligações entre uma palavra selecionada e as demais palavras da respectiva classe. Utilizaram-se, como palavras centrais, as formas “Reforma Psiquiátrica” (A), “Território” (B), “Familiar” (C) e “Apresentar” (D), organizadas graficamente em quatro árvores de ocorrência, criadas em função das frequências e da relação entre as palavras, considerando o maior valor do teste qui-quadrado das classes 1, 3, 6 e 7.

Figura 2
Análise de similitude a partir das palavras de ligação: Reforma Psiquiátrica (A), Território (B), Familiar (C) e Apresentar (D)

Na árvore de similitude (A), a maior conexidade entre a palavra central e as palavras pode ser evidenciada pela maior espessura das bordas de ligação com as palavras: usuário, sujeitos, saúde mental, brasileira. Em um segundo estágio de conexões, alguns destaques são: autonomia, Caps, princípio e trabalhador(es).

Na árvore B, pode-se destacar: conceito, diálogo e espaço e no próximo estágio de conexão: saúde coletiva, construção, subjetividade, prática e produção de cuidado.

As palavras de maior ligação com a palavra Familiar (na árvore C) foram: cuidado, cuidador, sobrecarga, transtornos mentais. Em um segundo e terceiro estágios, destacam-se as palavras: atividade, atender, conhecer, transtorno mental, família e impacto, importância, cuidar.

A árvore D compreendeu uma série de conexões e reflete a diversidades de temas e abordagens dadas nos estudos da área de saúde mental. Essa estrutura reflete como é vasto o conteúdo textual, quando selecionada a palavra ‘Apresentar’, que revela os resultados, métodos, população e variáveis utilizadas nos estudos.

No que se refere à limitação do estudo, ela está relacionada com o delineamento empregado e com os detalhes e critérios da própria investigação. Isso se deve às carências dos indicadores bibliométricos em evidenciar detalhes das pesquisas e sua qualidade. Outra limitação é a utilização de palavras-chaves tanto para busca de artigos indexados como para a realização das interpretações e classificação dos artigos, o que pode não refletir precisamente o teor das temáticas e abordagens dos artigos. Uma das providências adotadas para neutralizar ou reduzir essas limitações foi a utilização de uma estratégia de busca ampla e irrestrita, além do uso de critérios estatísticos nas análises.

Considerações finais

Evidenciou-se que os estudos de abordagem qualitativa, somados aos ensaios teóricos e relatos de experiência, têm-se destacado enquanto metodologias mais utilizadas nas publicações da revista ‘Saúde em Debate’ no campo da saúde mental, tendo nos anos de 2014 e 2017 pontuais marcos de ampliação do número das publicações na área.

As categorias temáticas que emergiram do presente estudo denotam a complexidade do campo de cuidados em saúde mental, e as várias facetas conjunturais: sócio-político-culturais, que interferem nos seus processos de construção de práticas ao longo dos tempos. Essa complexidade, também denotada pela vastidão de conteúdo textual exposta na análise de similitude, aponta para a necessidade de estudos que aprofundem as discussões disparadas pelos elementos apresentados nas categorias temáticas identificadas, sendo essa uma limitação dos métodos utilizados nesta pesquisa.

Os Caps, a valorização das singularidades dos casos e o conceito de território enquanto chave para organização dos serviços de cuidado em saúde mental têm sido elementos de grande relevância para a reintegração social e promoção da autonomia dos sujeitos em sofrimento psíquico e/ou com transtornos mentais. Além disso, a abordagem de cuidadores e familiares nas discussões que envolvem políticas públicas em saúde mental, além de um achado enquanto tendência, parece irromper enquanto fundamento substancial na busca de caminhos terapêuticos mais centrados no indivíduo e, portanto, mais efetivos.

No campo dos desafios enfrentados pela Reforma Psiquiátrica Brasileira na contemporaneidade, torna-se necessária a ruptura de velhas práticas contrárias ao paradigma psicossocial, a adoção de uma clínica de cuidados pautada em uma terapêutica que valorizam a subjetividades do usuário e integre a família no processo de cuidar, um maior investimentos pelo Estado nas políticas públicas que colaboram para a produção de cidadania às pessoas que necessitam de serviços de saúde mental. Porém, essas mudanças requerem transformações não só no campo político-econômico, mas também cultural, em que se dão por meio das evidências e das pesquisas qualitativas e relacionais que apontem as contradições, desafios e mecanismos para permanência do paradigma psicossocial traçado pela Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Ademais, embora a Reforma Psiquiátrica Brasileira tenha protagonizado essenciais mudanças de paradigmas nas formas consuetudinárias de cuidados em saúde mental no Brasil, torna-se evidente a necessidade de engajamento da sociedade, dos profissionais de saúde e de pesquisadores, para superação de desafios que se ancoram em condutas ainda controversas diante dos avanços alcançados.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Out 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2019
  • Aceito
    10 Ago 2020
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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