Retratos da Reforma Psiquiátrica Brasileira

Fernanda Maria Duarte Severo André Vinicius Pires Guerrero June Corrêa Borges Scafuto Ana Maria Szapiro Paulo Roberto Fagundes da Silva Sobre os autores

ESTE NÚMERO ESPECIAL DA REVISTA ‘SAÚDE EM DEBATE’, intitulado Retratos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, é um compromisso democrático, tributo histórico e compartilhamento de saberes. Em cada texto, temos um retrato da nossa época. Um recorte do cotidiano dos serviços de saúde e de formas de cuidado reveladoras de um tempo que exigiu transformações sociais. Cada composição é uma espécie de instantâneo recortado do fluxo de um tempo produtivo dos novos paradigmas da desinstitucionalização. Retratos que se apresentam como peças da roda do conhecimento e das práticas do campo da saúde mental e da atenção psicossocial contemporâneos. São instantâneos da ousadia em que a aceitação da diversidade e o amadurecimento da construção da democracia aboliam o que aprisionava, para consumar a liberdade. São retratos da inclusão e da justiça social que aproximam a saúde mental da saúde coletiva.

No cenário factual, a Constituição de 1988 apresenta-se como a baliza dessas transformações da saúde pública brasileira, momento da construção do Sistema Único de Saúde e da abertura dos horizontes do cuidado da saúde mental com a Reforma Psiquiátrica Brasileira na conjuntura da democratização do País. Esses novos modelos de cuidados desembocaram na construção de uma rede de atenção orientada à substituição da lógica de internação hospitalar, até então principal meio de tratamento àqueles que apresentavam sofrimento psíquico. Foi essa implementação e sustentação política, por mais de 30 anos, que conferiu ao Brasil um lugar de destaque e reconhecimento internacional no campo da saúde mental11 Caldas ALJM. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso 2020 out 1]; 35(11):e00129519. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- -311X2019001300502.
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Ciência, militância, sensibilidade artística e cultural e relatos de experiências dos serviços têm consolidado narrativas com diferentes matizes sobre o cuidado em liberdade, evidenciando o quanto a expressividade dessas construções de forte conteúdo simbólico e material demarcam os territórios das práticas locais. Entretanto, a partir de 2016, mudanças nas diretrizes governamentais relativas às políticas de saúde mental e publicações normativas ameaçam as conquistas do processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira.

O cuidado personalizado e as estratégias de atenção psicossocial vêm deixando a linha de frente dando lugar à retomada de um modelo que privilegia leitos em hospitais psiquiátricos, centrado em práticas que desconsideram as necessidades e os desejos das pessoas com sofrimento ou transtorno mental e daquelas com necessidades relacionadas com o uso de substâncias psicoativas. Nesse sentido, os saberes-fazeres representativos dos avanços da saúde mental brasileira, em contraponto aos retrocessos e disputas, precisam ser analisados e debatidos em perspectiva. Aferir avanços e dificuldades, compartilhar conhecimentos e estratégias, de modo a estimular o desenvolvimento das políticas públicas de saúde sem maiores prejuízos para a garantia de direitos, mobilizaram essa comissão, resultando na presente proposta editorial.

Há que se destacar que a chamada para submissão dos artigos para este número temático, fruto de parceria do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), antecedeu a pandemia de Covid-19 e, por isso, não contempla a temática. Em contrapartida, são instantâneos de um mundo imediatamente anterior, já marcado pela incerteza e pelo/a isolamento/exclusão social, agora agravados pela pandemia. Os textos nos oferecem um acúmulo de aprendizados sobre o cuidado em saúde mental e nos lembram da importância dos vínculos, da escuta sensível, da promoção da autonomia e da cidadania.

Esta é a segunda vez que a revista ‘Saúde em Debate’ publica um número especial sobre a Reforma Psiquiátrica. Para os ‘Retratos da Reforma Psiquiátrica Brasileira’, foram submetidos mais de 180 manuscritos, recorde absoluto para o Cebes e a revista ‘Saúde em Debate’ – e um desafio para a equipe editorial –, que acolheram a proposta, concebida em um momento adverso para a Política brasileira de saúde mental, álcool e outras drogas, decorrente dos movimentos retrógrados contra reformistas.

O resultado é um panorama diversificado da produção de conhecimento de autores de diferentes estados e instituições do País, a qual tem procurado compreender o alcance e os desafios das políticas e práticas da saúde mental. Os manuscritos aqui publicados destacam os avanços, relatam experiências implicadas e densas, mas não se esquivam das reflexões críticas; e, além das conquistas e possibilidades, contextualizam contradições, limites e impasses do campo.

Os textos selecionados dão ênfase aos vínculos construídos na vida experienciada nos territórios da liberdade, nos saberes e nas práticas presentes nas Redes de Atenção Psicossocial e abordam os temas da desinstitucionalização, saúde mental infantojuvenil, atenção às necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, projeto terapêutico singular, crise, autonomia o papel das tecnologias de cultura e arte para a potencialização da vida.

Paralelamente, tópicos do processo histórico e do desenvolvimento das bases legais colocam em relevo o enfrentamento ao modelo manicomial e da implementação da rede assistencial de base comunitária e territorial. Entre os convidados para a edição, Benedetto Sarraceno prospecta o futuro da psiquiatria e da saúde mental, Edmar Oliveira e Ana Szapiro dialogam com a densidade do tempo vivido e o horizonte de possibilidades da Reforma Psiquiátrica Brasileira no momento presente. No mesmo diapasão, a Lei nº 10.216, que, em 2019, completou 21 anos, foi revisitada por Paulo Delgado, em um recorte inédito do texto de uma entrevista concedida ao Núcleo de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Fiocruz Brasília.

Retratos da Reforma Psiquiátrica, tal como outros retratos, recorta, documenta, descreve, idealiza, conhece e dá a conhecer, congela um pedaço dos percursos para serem visualizados – edições do tempo e do espaço sustentadas sobre o estatuto da verossimilhança e das representações do presente. Vivemos em tempos árduos que precisam de lembretes do que somos capazes de realizar, do quanto todos os nossos feitos exigiram a ampliação das fronteiras do conhecimento, da humanidade, da persistência, do senso crítico e da disposição para os ajustes. Esperamos que a leitura dos trabalhos aqui reunidos inspire novas questões para pesquisa e construção de propostas estratégicas, reafirmando o caminho de respeito à diversidade, de uma educação à liberdade22 Basaglia F, Ongaro FB, Casagrande D, et al. Considerações sobre uma experiência comunitária. In: Amarante P, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994. p. 11-40. e de garantia de direitos plenos de cidadania a todas as pessoas.

Convidamos todos a se aproximarem desta coletânea de textos-retratos como parte de um esforço da resistência de consolidação de uma memória que provoca reflexões sobre o que já realizamos na Reforma Psiquiátrica Brasileira, como propulsão e potência para enfrentar os desafios que se renovaram.

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    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

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    Caldas ALJM. Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso. Cad. Saúde Pública [internet]. 2019 [acesso 2020 out 1]; 35(11):e00129519. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- -311X2019001300502
    » https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- -311X2019001300502
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    Basaglia F, Ongaro FB, Casagrande D, et al. Considerações sobre uma experiência comunitária. In: Amarante P, organizador. Psiquiatria social e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1994. p. 11-40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Out 2020
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br