Regionalização e crise federativa no contexto da pandemia da Covid-19: impasses e perspectivas

Helena Eri Shimizu Luciana Dias de Lima André Luís Bonifácio de Carvalho Brígida Gimenez Carvalho Ana Luiza D’Ávila Viana Sobre os autores

RESUMO

A regionalização é um processo complexo condicionado por vários fatores, dentre os quais, destacam-se as desigualdades regionais e as relações federativas. No contexto da pandemia da Covid-19, as fragilidades da organização federativa e regional do Sistema Único de Saúde (SUS) foram expostas de forma aguda, e acentuadas por um cenário de descoordenação e de desmonte do desenho institucional concebido pela Constituição Federal de 1988. Este ensaio teve como objetivo extrair reflexões sobre algumas estratégias construídas nos âmbitos municipal, regional e estadual, para o enfrentamento da pandemia, como resposta ao cenário de crise política e institucional, bem como destacar os desafios atuais e futuros. Foram utilizadas, como base, as sínteses das discussões realizadas, durante a oficina preparatória, e da mesa de debate do IV Congresso de Políticas, Planejamento e Gestão de Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), sobre o tema das relações federativas e da regionalização no cenário da pandemia de Covid-19. Observaramse a ausência do protagonismo federal e a construção de autonomia delegada dos entes subnacionais na pandemia; a relevância de algumas experiências dos consórcios e de novas parcerias com sociedade; e os desafios e condicionantes de um novo pacto federativo e de novos formatos e desenhos parceiros e solidários para a organização do SUS.

PALAVRAS-CHAVE
Regionalização; Coronavírus; Planejamento em saúde

Introdução

A dimensão territorial das políticas afeta federações, países com mecanismos federalizados e até mesmo o funcionamento dos espaços multinacionais, como é hoje a União Europeia. O impacto da territorial politics ocorre em vários países, como Estados Unidos, Itália, Espanha, Alemanha, Índia, México e Brasil. Como ressaltam alguns autores11 Abrucio FL, Grin EJ, Franzese C, et al. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev Adm. Pública. 2020; 54(4):663-677.,22 Região e Redes. O planejamento regional é estratégico no enfrentamento da pandemia da COVID-19. [acesso em 2021 jun 23]. Disponível em: https://www.resbr.net.br/
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, nesses países, as relações de conflito e a cooperação entre a esfera nacional e os governos subnacionais moldaram, em boa medida, políticas recentes de saúde pública contra a Covid-19. Em algumas dessas experiências, soluções federativas bem-sucedidas explicam parte do êxito no combate à pandemia, como no caso alemão33 Pereira AMM. Estratégias de enfrentamento da pandemia pela COVID-19 no contexto internacional: reflexões para a ação. Nota Técnica. Observatório Fiocruz-COVID-19. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020. [acesso em 2021 jun 23]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/notatecnica_adelynepereiraestrategias_de_enfrentamento_da_pandemia_pela_COVID-19_no_contexto_internacional_reflexoes_para_a_acao.pdf
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. Nos casos norte-americano, na gestão Trump, e no brasileiro, ao contrário, houve dificuldades na luta contra a Covid-19, especialmente, por conflitos e descoordenação intergovernamental11 Abrucio FL, Grin EJ, Franzese C, et al. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev Adm. Pública. 2020; 54(4):663-677..

A política territorial ocorre em diferentes escalas territoriais (como região e diferentes espaços subnacionais) e introduziu, ao longo da história, conceitos com amplas e distintas definições. Em sentido amplo, a escala territorial reflete um sistema de ações e de objetos, manifestando-se de forma indissociável, em um certo tempo histórico e em determinado espaço, e não somente um sistema institucional ou organizacional. Nesses espaços, ocorre uma grande diversidade de processos sociais, econômicos e políticos, assim como tendências de transformação, fluxos e redes promovidas pelo Estado, sociedade, agentes privados, entre outros44 Viana ALD’A, Iozzi FL. Enfrentando desigualdades na saúde: impasses e dilemas do processo de regionalização no Brasil. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(supl2):e00022519..

No Brasil, antes mesmo da pandemia, não foram consolidadas políticas regionais efetivas para a diminuição da desigualdade socioespacial. Como aponta amplamente a literatura especializada, as políticas regionais implícitas foram bem mais virtuosas do que as explícitas55 Resende GM. Avaliação de políticas públicas no Brasil: uma análise da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR). Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2017..

Não se constituiu, no período das primeiras décadas do século XXI, uma estratégia voltada para o desenvolvimento territorial integral que viabilize a integração intra e inter-regional, que envolva uma dinâmica articulada de forma multiescalar, fundamentada em uma base de coalizão social e territorialmente alternativa. Nessa perspectiva, o desenvolvimento da conectividade regional e de frações que consolidam as formas oxigenadoras de bottom up de base territorial devem se complementar com as formas de coordenação, ordenamento e fortaleza antifragmentadora próprias da lógica top down de base nacional66 Fernández VR. Desenvolvimento regional sob transformações transescalares: por que e como recuperar a escala nacional? In: Brandão CA, Fernández VR, Ribeiro LCQ, organizadores. Escalas espaciais, reescalonamentos e estatalidades: lições e desafios para América Latina. Rio de Janeiro: Letra Capital; Observatório das Metrópoles; 2018. p. 276-325..

Do ponto de vista setorial, as políticas sociais e a de saúde, em particular, também foram desafiadas pela falta de integração escalar e institucional, no mesmo período assinalado (1988-2020).

O Sistema Único de Saúde (SUS), ao longo dos seus 30 anos de implementação, experimentou diferentes ciclos políticos orientados pela descentralização e regionalização, com formas distintas de intervenção no âmbito da promoção, da prevenção e da assistência (incluindo a atenção primária, de média e de alta complexidade). Sua última fase, constituída pela configuração de regiões de saúde e redes de atenção, avançou na construção de um espaço regional de gestão colegiada - as Comissões Intergestores Regionais (CIR) - em todos os estados brasileiros. Sua equação financeira foi favorecida pelo aporte dos entes subnacionais em um contexto de permanente retração da esfera federal.

Cabe assinalar que são diferentes os contextos políticos, econômicos e sociais dos dois ciclos de organização do SUS. No primeiro, há predomínio da descentralização de serviços, de profissionais e de algumas funções (administrativas e de regulação) para os municípios brasileiros. No segundo ciclo, há ênfase na construção de regiões e de redes de assistência à saúde. O contexto político do primeiro ciclo foi inaugurado com a emergência de uma nova Constituição Federal77 Viana ALD’A, Silva HP. Desenvolvimento e institucionalidade da política social no Brasil. In: Machado CV, Baptista TWF, Lima LD, organizadores. Políticas de saúde no Brasil: continuidades e mudanças. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 31-60., da qual afloram os princípios e as diretrizes do novo sistema e o início dos governos democráticos, com protagonismo de políticas neoliberais no comando da economia e uma agenda de política social voltada para a descentralização nos anos 1990. Já as caraterísticas do segundo ciclo são de hibridez, com continuidade de ordenamentos neoliberais na economia, com a volta da temática regional nas agendas econômicas e sociais (na primeira e na segunda décadas do século XXI).

O ciclo da regionalização da política de saúde pode ser visto em quatro períodos sucessivos: 1) início dos anos 2000 até 2006, voltado para a construção de instrumentos setoriais de regulação do processo, com destaque para a Norma Operacional da Assistência à Saúde - Noas em 2002; 2) 2006-2012 (Pacto pela Saúde), quando o tema da regionalização ganhou intersetorialidade e se juntou ao debate do desenvolvimento regional; 3) 2012-2016 (Decreto nº 7.508 e Lei Complementar nº 141), continuidade da discussão do desenvolvimento regional, interrompido pela crise econômica e política, cujo desfecho foi o impedimento da presidente eleita; 4) 2018 até os dias de hoje, marcado pelo desmonte do arcabouço político e institucional de políticas públicas pós-Constituição Federal de 1988, com edição de inúmeras leis, decretos e portarias, com abalo das relações federativas e desordem significativa no sistema político, com encerramento do ‘presidencialismo de coalização’ - dinâmica política que organizava as relações políticas e institucionais88 Abranches S. Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Evolução do Modelo Político. São Paulo: Companhia das letras; 2020. e que foi aprofundada com o pacto federativo da Constituição Federal de 1988.

Estudos nacionais recentes realizados sobre a temática da regionalização evidenciaram a importância da construção de outros elementos, de variáveis e de critérios para a conformação de um planejamento territorial na saúde. Esses estudos sinalizam que há ainda forte concentração de serviços e de recursos em municípios-polo e que a configuração territorial atlântica (litoral do Sul, Sudeste e Nordeste) continua a concentrar a maior parte dos serviços e tecnologias99 Mello GA, Pereira APC, Uchimura LYT, et al. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(4):1291-1310. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017224.26522016
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Tais estudos sugerem que foram insuficientes os esforços para a conformação das regiões e redes de atenção, tanto na dimensão política - devido, principalmente, ao frágil papel assumido pela esfera estadual por meio de suas estruturas regionais - quanto na dimensão da estrutura, na qual as desigualdades se evidenciam pela escassa distribuição de recursos e pela alta concentração de serviços em grandes cidades; ou ainda na dimensão da organização, em que se verifica a pouca integração dos diferentes pontos de atenção e as fragilidades do planejamento regional. Outro problema identificado foi a incapacidade de unir desenvolvimento econômico e social e esforços tecnológicos e de conhecimento em prol de regiões mais autossuficientes.

Por isso, o processo de regionalização da saúde no Brasil se diferencia daqueles implantados nos países desenvolvidos, muito voltados para a construção de redes e sistemas de atenção integrados. Estudos internacionais sobre a temática da regionalização sinalizam que os países desenvolvidos estimulam formas de organização de sistemas de saúde com centralidade no paciente, capazes de responder aos desafios epidemiológicos e à melhor performance dos serviços. No Brasil, os problemas de natureza estrutural se sobrepõem a uma oferta incompleta de equipamentos e especialidades (recursos humanos e tecnológicos) pelo território, trazendo para o primeiro plano a questão da equidade territorial como o maior desafio a ser enfrentado para a concretização da diretriz da integralidade no SUS.

As recentes políticas federais e estaduais posicionadas a favor da emergência de um sistema operado no formato redes colocaram o Brasil na posição de (alguma) contemporaneidade com o perfil internacional, ao definir que a organização da assistência dentro dos sistemas de saúde seria operada pelas redes, visando à construção de sistemas integrados de saúde.

Assinale-se que as redes se tornam portadoras de uma nova lógica de gestão e organização dos serviços de saúde, podendo facilitar a integração do ponto de vista territorial ou fragmentar ainda mais o sistema na região. Apontam-se aqui ao menos dois fatores, interligados, propulsores desse desalinho: a desarticulação entre as redes temáticas (não funcionando sistemicamente) e a falta de um protagonismo público na condução dessa integração.

Outro aspecto é o do empresariamento da oferta de serviços de saúde, pois essa forma jurídica dos contratos para a gestão de equipamentos se difundiu pelo País, de maneira a abarcar diferentes níveis de atenção. O peso dos segmentos institucionais, sob a égide do direito privado, apresentou forte crescimento entre 2005 e 2020, o que atesta que a gestão local no Brasil também é caracterizada pela maior presença de atores privados no manejo de determinadas políticas.

Além disso, estudos atuais mostram dificuldade de obter consensos entre os entes federados devido a seu alto grau de complexidade, que envolve condicionantes como: desigualdade na distribuição espacial de equipamentos, insumos e tecnologias e pouca disponibilidade de recursos humanos e financeiros; dificuldades de integração regional das políticas públicas e das ações do Estado nos diversos campos da atenção à saúde; e diversidade de agentes (governamentais e não governamentais, públicos e privados) que participam da gestão e da prestação de serviços no território1010 Viana ALD’A, Ferreira MP, Cutrim MAB, et al. O Processo de Regionalização no Brasil: influência das dimensões Política, Estrutura e Organização. Rev Bras Saúde Mater. Infant. 2017; 17(supl1):27-43.

11 Albuquerque MV, Lima LD, Oliveira RAD, et al. Governança regional do sistema de saúde no Brasil: configurações de atores e papel das Comissões Intergovernamentais. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(10):3151-61.

12 Ibañez N, Tardelli R, Viana ALD’A, et al. Gestão regional e redes: estratégias para a saúde em São Paulo. São Paulo: Edições Manole; Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo; 2020.
-1313 Noronha JC, Lima LD, Chorny AH, et al, organizadores. Brasil Saúde Amanhã: dimensões para o planejamento da atenção à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2017.
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Com a pandemia da Covid-19, esse cenário se agudizou devido à crise institucional e política e à necessidade premente de estabelecer uma divisão igualitária e equânime dos recursos da saúde, sejam financeiros, humanos, tecnológicos e de capacidade instalada1414 Vieira F, Servo L. COVID-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde debate. 2020; 44(esp4):100-113..

Os embates do Presidente da República com governadores e prefeitos levaram à judicialização do tema, com decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a competência da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios é concorrente em matéria de saúde e que, portanto, todos os entes da federação têm autonomia1414 Vieira F, Servo L. COVID-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde debate. 2020; 44(esp4):100-113. para tomar providências normativas e administrativas relacionadas com a Covid-19. Entretanto, essa decisão não pôs fim às divergências ou gerou espaço para uma ampliação da coordenação federativa no enfretamento da pandemia.

Como consequência, predomina um contexto de fragmentação e de caos do sistema político, com várias respostas dos entes governamentais, e com ausência de uma coordenação nacional de enfrentamento da pandemia. Pela primeira vez, tivemos, durante um ano de pandemia, um militar como principal autoridade sanitária, fora, portanto, da dinâmica político-partidária. Esse fato agudizou ainda mais a situação de descoordenação federativa, propiciando um insucesso da política brasileira de combate à Covid-19.

Este ensaio tem como objetivo extrair reflexões sobre algumas estratégias construídas nos âmbitos municipal, regional e estadual para o enfrentamento da pandemia, como resposta ao cenário de crise política e institucional, bem como destacar alguns desafios atuais e futuros. Foram utilizadas, como base, as sínteses das discussões realizadas, durante a oficina preparatória, e da mesa de debate do IV Congresso de Políticas, Planejamento e Gestão de Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), sobre o tema das relações federativas e da regionalização no cenário da pandemia da Covid-19.

Ausência do protagonismo federal e construção de autonomia (delegada) dos entes subnacionais na pandemia

A coordenação federativa ou intergovernamental diz respeito às formas de integração, compartilhamento e decisão conjunta presentes nas federações1515 Abrucio FL. A coordenação Federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do governo Lula. Rev Soc. Política. 2005; 24(41):41-67.,1616 Lima LD. A coordenação federativa do sistema público de saúde no Brasil. In: Fundação Oswaldo Cruz. A saúde no Brasil em 2030: organização e gestão do sistema de saúde. v. 3. Rio de Janeiro: Fiocruz; Ipea; Ministério da Saúde; Presidência da República; 2013. p. 73-139., aspectos fundamentais para a garantia do equilíbrio entre a interdependência e a autonomia federativa, situações determinantes para o enfrentamento da crise sanitária inerente à pandemia da Covid-19.

A pandemia acentuou a transformação do modelo de Estado em curso em muitos países1717 Vidal JP. Pandemia de COVID-19 y Estado: ¿Hacia una nueva la configuración administración-Estado? Cad. EBAPE.BR. 2020; 18(4):924-935.. Desta feita, a gravidade da situação, caracterizada pela complexidade inerente às sociedades modernas atuais, constituídas por uma extensa e densa organização política administrativa e jurídica em múltiplos níveis1717 Vidal JP. Pandemia de COVID-19 y Estado: ¿Hacia una nueva la configuración administración-Estado? Cad. EBAPE.BR. 2020; 18(4):924-935., exigia e continua exigindo um Estado presente em todos os âmbitos.

No Brasil, desde o início da pandemia, observou-se ausência de protagonismo do governo federal na condução das ações, sobretudo, para articulá-las entre os três níveis de governo. Ao contrário, observou-se a presença do negacionismo1818 Morel APM. Negacionismo da COVID-19 e educação popular em saúde: para além da necropolítica. Trab. Educ. Saúde. 2021; (19):e00315147.,1919 Apostolidis T, Santos F, Kalampalikis N. Society against COVID-19: challenges for the socio-genetic point of view of social representations. Papers on Soc. Represent. 2020; 29(2):3.1-3.14., que foi liderado pelo Presidente da República, causando dificuldades de diálogo e desencontros com os outros entes federativos (estados e municípios). Essa situação foi agravada por quatro mudanças de ministros da saúde até o momento.

Na resposta dos países à Covid-19, as seguintes atividades são apontadas como essenciais: i) coordenação e consistência nas ordens para ficar em casa em todas as jurisdições; ii) rápida testagem para identificação do novo coronavírus; iii) melhoria da capacidade de resposta do sistema de saúde1414 Vieira F, Servo L. COVID-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde debate. 2020; 44(esp4):100-113.. Essas ações não foram implantadas, de forma adequada e em tempo oportuno, sobretudo, devido à omissão da coordenação do nível federal, que tem repercutido fortemente na maioria dos estados e municípios, levando-os às tomadas de decisões solitárias, muitas acertadas e outras inócuas ou prejudiciais, diante da necessidade de enfrentamento da doença, com número crescente de infectados e de mortes.

Inicialmente, o Ministério da Saúde (MS) procurou realizar ações voltadas para a área de vigilância em saúde, incluindo a declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, com a criação de grupo executivo interministerial, publicação de editais para aquisição de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e de emissão de boletins epidemiológicos. Porém, as sucessivas divergências entre o MS e a Presidência da República geraram impasses e atrasos na aplicação dos recursos federais em ações voltadas ao enfretamento da pandemia2020 Croda JHR, Garcia LP. Resposta imediata da Vigilância em Saúde à epidemia da COVID-19. Epidemiol. Serv. Saúde. 2020; 29(1):e2020002.50.,2121 Afonso JR, Pinto EG. A velha falta de prioridade e uma nova tragédia anunciada. Poder 360. 2020 maio 18. [acesso em 2020 jun 12]. Disponível em: https://bit.ly/2Atrp9R
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Ademais, a falta de escuta a estados e municípios nas instâncias de representação, como também na elaboração de normas para o sistema com a participação da representação das três esferas de governo, desencadeou uma escalada de conflitos na relação tripartite, dente os quais, destacamos: a) O não reconhecimento devido, por parte do governo federal, da importância das instâncias de representação dos estados - Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) - e municípios - Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) - para a gestão do SUS e para a coordenação das ações de resposta à pandemia2222 Brasilino CE. Conselhos de secretários de Saúde são barrados na posse de Teich: Ministro enviou ofício aos presidentes do Conass e do Conasems onde pede desculpas pelo constrangimento ocorrido na cerimônia no Planalto. Metrópoles 2020. [acesso em 2020 jun 12]. Disponível em: https://bit.ly/3cUwYLQ
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b) Renúncia do Presidente do Conass, Alberto Beltrame, devido à falta de coordenação do MS na compra de equipamentos, medicamentos, insumos e ampliação de leitos de UTI no contexto da pandemia da Covid-192323 Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Nota oficial: renúncia do presidente Alberto Beltrame. [acesso em 2020 jun 12]. Disponível https://www.conass.org.br/nota-oficial-renuncia-do-presidente-alberto-beltrame/
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c) Publicação de orientação para uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, à revelia da norma que estabelece a análise pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde2424 Brasil. Ministério da Saúde. Orientações do Ministério da Saúde para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da COVID-19. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2020 jun 12]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br
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d) Atraso na divulgação dos dados e alteração da metodologia de registro dos óbitos por Covid-19, situação que fez o Conass lançar um painel para apresentação dos números de casos e óbitos2525 Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Painel Conass: COVID-19. Brasília, DF: Conass; 2020. [acesso em 2020 jun 12]. Disponível em: https://www.conass.org.br/painelconassCOVID-19/
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e) Cancelamento de compras de respiradores e contratação de leitos de UTI por parte do MS2626 Bertoni E. Os atrasos e omissões de um Ministro da Saúde provisório. Nexo Jornal. 2020 jun 1. [acesso em 2020 jun 12]. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/06/01
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f) Publicação da Carta do Conass (01/03/2021) exigindo maior rigor nas medidas de restrição das atividades não essenciais, de acordo com a situação epidemiológica e capacidade de atendimento de cada região, avaliadas semanalmente, a partir de critérios técnicos2727 Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Carta dos Secretários Estaduais de Saúde à Nação Brasileira. Brasília, DF: Conass; 2021. [acesso em 2020 jun 12]. Disponível em: https://www.conass.org.br/carta-dos-secretarios-estaduais-de-saude-a-nacao-brasileira/
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g) Carta publicada por entidades de saúde coletiva e bioética, manifestando apoio ao posicionamento assumido pelo Conass e Conasems, por considerarem inoportuna a pactuação e publicação de uma Matriz de Risco, proposta pelo atual Ministro da Saúde, para orientar a flexibilização do distanciamento social no País2828 Carta em apoio ao CONASS e CONASEMS: A saúde e a vida das pessoas não podem esperar. 2020. [acesso em 2020 jun 12]. Disponível: https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2020/05/Carta-em-apoio-ao-Conass-e-Conasems-A-SA%C3%9ADE-E-A-VIDA-DAS-PESSOAS-N%C3%83O-PODE-ESPERAR-1.pdf
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Essas situações deslocaram estados e municípios para, juntos e/ou de forma isolada, assumirem fortemente o processo de coordenação da resposta à pandemia. Isso ocorreu com grande dificuldade, pois a posição adotada pelo MS ampliou a assimetria de poder, resultando em uma coordenação deficiente, o que propiciou o afastamento de suas responsabilidades e das amarras dos órgãos de controle. Também gerou descontinuidade de uma série de situações em relação à garantia de testes laboratoriais, kits de medicamentos para intubação, oxigênio medicinal, EPI, leitos de UTI, entre outros, resultando em uma coordenação deficiente e um desenvolvimento ineficiente, e no comprometimento da efetividade das ações de vigilância e de assistência à saúde. Essa conjuntura levou o Brasil, com mais de 500 mil mortes, a se tornar o epicentro da pandemia em março de 2021.

Por fim, se, por um lado, a ascensão da participação dos estados e dos municípios se mostrou, de certa maneira, positiva e importante para o enfrentamento da pandemia; por outro, ficou clara a importância de uma coordenação tripartite, tendo o MS como elemento norteador da organização de práticas e os processos de cooperação triparte, capazes de ampliar a capacidade federativa ao enfrentamento de um inimigo comum: a Covid-19.

Experiências dos consórcios e de novas parcerias com sociedade

A necessidade de planejamento e programação regional dos serviços de saúde vem sendo apontada, no âmbito da gestão do SUS, desde o início dos anos 2000; e ficou mais evidente no contexto da pandemia, especialmente, pela ausência de coordenação do MS para a instituição de medidas abrangentes e que envolvessem a organização dos diferentes entes para o seu enfrentamento.

Destaca-se que a regionalização, apontada no contexto normativo do SUS como necessária para garantia de atenção integral, exige esforços técnico-políticos para a sua efetivação. Os Consórcios Públicos de Saúde foram constituídos como arranjos organizativos entre os entes municipais nessa perspectiva e possuem relevante papel de apoio, ao propiciar a rediscussão do pacto federativo, no sentido de enxergar pontos fracos da região, de verificar onde podem atuar regionalmente e de forma organizada, para enfrentar os desafios comuns.

Essa experiência, desenvolvida inicialmente pelos municípios, inspirou outras modalidades de consorciamento entre os entes. Uma dessas novas modalidades é o Consórcio Vertical, envolvendo o estado do Ceará e os municípios daquele estado. Os consórcios do Ceará foram implantados, tendo como membros os municípios da região e o estado; possuem estrutura organizacional diferenciada dos entes e se constituem como associações públicas de natureza autárquica2929 Julião KS, Olivieri C. Cooperação intergovernamental na política de saúde: a experiência dos consórcios públicos verticais no Ceará, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2021 abr 10]; 36(3):e00037519. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020000305001&lng=en
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Instituídos para viabilizar a implantação da atenção especializada no interior do estado, foram fundamentais para organizar a atenção hospitalar à Covid-19. Nesse sentido, por meio dos consórcios, foi viabilizada a restruturação da rede de serviços hospitalares, iniciando pelos hospitais próprios do estado, acelerando abertura de leitos que estavam em construção e alocando leitos e equipamentos em todas as regiões de saúde, em estabelecimentos próprios e conveniados, em prestadores privados e filantrópicos. Essa forma de atuação possibilitou que as regiões mais distantes da capital do Ceará apresentassem maior envolvimento e participação nas políticas de saúde e se organizassem de modo mais célere que as regiões mais próximas.

Outra modalidade mais recente de consorciamento entre os entes é o Consórcio Nordeste, que se constitui na experiência mais bem-sucedida de articulação e cooperação entre os entes para o enfrentamento da pandemia. O Consórcio de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste foi criado em 2019, é de natureza pública e congrega atualmente nove estados. Tem o propósito de promover o desenvolvimento sustentável e a cooperação entre os entes consorciados, propiciando, entre outros, ganhos de escala na contratação de bens e serviços e no desenvolvimento de ações, em uma lógica de pactuação interfederativa3030 Consórcio Nordeste. Ações de Combate à Pandemia 2021. [acesso em 2021 jun 19]. Disponível em: http://www.consorcionordeste-ne.com.br/compras-conjuntas-combate-a-pandemia/
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As experiências de consórcios municipais existentes contribuíram para que o Consórcio Nordeste aprendesse com a lógica e dinâmica de entes consorciados, orientando para onde se caminharia e quais objetivos buscar. Outro fato que facilitou o consorciamento foi a existência do fórum de governadores do Nordeste, existente desde 20042929 Julião KS, Olivieri C. Cooperação intergovernamental na política de saúde: a experiência dos consórcios públicos verticais no Ceará, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2020 [acesso em 2021 abr 10]; 36(3):e00037519. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020000305001&lng=en
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. Esse fórum se reunia e discutia os desafios e encaminhamentos, mas não tinha gestão. A partir das eleições de 2018, os governadores entenderam que o consórcio poderia ser um instrumento de gestão. Os nove governadores do Nordeste, ainda que de partidos distintos (seis partidos), têm uma coesão muito forte no sentimento, no desafio, na necessidade, nos problemas, ou seja, há muitos elementos em comum na região que favorecem a coesão entre os governadores dos estados.

Em relação à atuação do Consórcio Nordeste no contexto da pandemia, cabe considerar que, embora tenha havido pressão dos governadores para que o governo central adotasse ações de coordenação, essa proposta foi negada. Nenhum dos ministros que assumiu tomou medidas nesse sentido, e os estados se sentiram abandonados à própria sorte. Dessa forma, tiveram que desenvolver ações para as quais não estavam preparados, como, por exemplo, as compras internacionais. Muitos estados foram vítimas de golpes nessa área de compras, porque não tinham expertise nem experiência sobre essa forma de atuação.

Para superar tal situação, foi instituído um ‘Comitê Científico’, com a finalidade de assessorar os Estados consorciados na adoção de medidas para a prevenção, o controle e a contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública, bem como contribuir com a estruturação do sistema de saúde para o atendimento da população3030 Consórcio Nordeste. Ações de Combate à Pandemia 2021. [acesso em 2021 jun 19]. Disponível em: http://www.consorcionordeste-ne.com.br/compras-conjuntas-combate-a-pandemia/
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A questão atual sobre a vacina (episódio triste) foi resultado de grande articulação feita a partir do Consórcio Nordeste, por intermédio do governador Wellington Dias (Piauí), com os demais governadores, o Presidente da República e o Ministro da Saúde, para a compra dos imunizantes, de acordo com a necessidade do País, não importando a origem, desde que comprovada a segurança. Feito o acordo, houve um encontro em Brasília no MS, ocasião em que estava a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Tudo estava acertado, mas, por pressão dos seguidores e por pressão internacional, o Presidente voltou atrás e negou a compra da vacina chinesa. Isso tudo aumentou o desafio, pois os governadores passaram a se organizar para a necessidade eventual de ter que comprar diretamente para a região, mesmo considerando incorreta a compra apenas para uma região do Brasil.

Cabe ressaltar que se mantém o entendimento de que o MS tem responsabilidade constitucional legal de coordenação nacional e que se essa atuação tivesse ocorrido, provavelmente, a situação sanitária do País seria diferente da vivenciada atualmente. Portanto, é necessário que se continue cobrando essa postura do Ministério. No entanto, para suprir, ainda que parcialmente, a falta de liderança e coordenação nacional pelo governo federal, outras formas de organização foram efetivadas nesse período. Foi criado o Consórcio da Amazônia Legal, além do estímulo ao funcionamento de um outro consórcio que já existia, que é o Consórcio Brasil Central, e da reativação do fórum nacional de governadores.

Uma lição que fica é que os Consórcios têm cumprido um importante papel para o enfrentamento conjunto da pandemia por parte dos entes, na lógica da colaboração, da gestão compartilhada, com foco no cuidado da saúde das pessoas. Porém, a discussão do pacto federativo necessita ser retomada. Existem muitas distorções que precisam ser corrigidas; e, atualmente, é necessário enxergar quais são as fragilidades, onde e como se pode avançar e como a sociedade alcançará outro patamar que distancie o País da situação catastrófica atual.

Condicionantes, desafios e perspectivas para o aprimoramento da governança federativa do SUS

A pandemia de Covid-19 acentuou o cenário de instabilidade política no Brasil, desencadeando uma crise marcada por embates entre os governos, descoordenação de políticas e judicialização das relações federativas11 Abrucio FL, Grin EJ, Franzese C, et al. Combate à COVID-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev Adm. Pública. 2020; 54(4):663-677.. Como condicionantes da crise, destaca-se a existência de um projeto político sistemático de desmonte e a fragilização da capacidade de intervenção pública do Estado, em curso no País desde 2016. Esse projeto possui orientação neoliberal e se ancora em um modelo de desenvolvimento econômico autoritário, subordinado às economias centrais e dependente delas, no cenário global, de caráter concentrador e excludente, que gera e agrava as desigualdades, depreda o meio ambiente e despreza a vida. Além disso, ressaltam-se os fatores, de ordem política e institucional, relativos à atuação dissonante do governo federal em relação às medidas de controle e mitigação da pandemia, às especificidades do arranjo federativo e à desestruturação da institucionalidade conferida pela Constituição Federal de 19881414 Vieira F, Servo L. COVID-19 e coordenação federativa no Brasil: consequências da dissonância federal para a resposta à pandemia. Saúde debate. 2020; 44(esp4):100-113.,3131 Lima LD, Pereira AMM, Machado CV. Crise, condicionantes e desafios de coordenação do Estado federativo brasileiro no contexto da COVID-19. Cad. Saúde Pública. 2020; 36(7):e001852200..

Nesse contexto, diversos estados e municípios desenvolveram estratégias e mecanismos próprios para mitigar a ausência de liderança e de coordenação nacional e para fortalecer a cooperação intergovernamental em diferentes escalas regionais. Entretanto, tais medidas perdem efetividade e tendem a reforçar a iniquidade entre os entes, ante o cenário de desigualdades socioespaciais e de fragilização do Estado e do próprio SUS, submetido a um subfinanciamento crônico e ao desfinanciamento imposto à política social por meio da Emenda Constitucional nº 95.

Atualmente, a federação brasileira se encontra em uma encruzilhada. Que escolhas deverão ser feitas e quais as perspectivas para o pacto federativo na saúde? Antes de tudo, é preciso alterar a direcionalidade de atuação do Estado. A base para essa transformação envolve um novo pacto social, sustentado por diferentes atores do Estado e da sociedade, em defesa da democracia e da vida. Nesse projeto, certamente, o SUS deverá ter um lugar de destaque e precisará ser fortalecido por meio de seu arranjo de governança.

Os arranjos de governança abrangem os atores, as estruturas e os processos que conformam o exercício da autoridade e as decisões de políticas públicas3232 Rhodes RAW. The new governance: governing without government. Political Studies. 1996; (XLIV):652-67.,3333 Stoker G. Governance as theory: five propositions. Int Soc Sci J. 1998; 50(155):17-28.. As experiências desenvolvidas, no plano internacional e nacional, no contexto da pandemia sugerem quatro eixos estratégicos para o aprimoramento futuro do arranjo político-institucional de governança do SUS: 1. fortalecimento de estruturas de comando e articulação; 2. repartição clara de responsabilidades e funções gestoras; 3. incremento dos mecanismos de cooperação intergovernamental; 4. Coordenação dos fluxos de informações e ações de comunicação com a sociedade relativas ao quadro sanitário, às decisões e às ações de enfrentamento da emergência, de forma oportuna, inclusiva e transparente, conforme figura 1 abaixo.

Figura 1
Aspectos estratégicos para o aprimoramento do arranjo de governança do SUS

No primeiro eixo, destaca-se a importância do fortalecimento de estruturas de comando e articulação em cada nível de governo, entre diferentes esferas de governos, e que envolvam diversas organizações do Estado e da sociedade. O arcabouço institucional de gestão do SUS é constituído por Comissões Intergestores Tripartite, Bipartites e Regionais (CIT, CIB e CIR respectivamente) e Conselhos de Representação de Secretários Estaduais e Municipais de Saúde em nível nacional e estadual (Conass, Conasems e Conselhos de Secretários Municipais).

Trata-se de estruturas de negociação e formulação de políticas de saúde com participação de diferentes esferas de governo. Tal característica configuram-nas como fóruns, que precisam ser tratados como espaços para o planejamento de políticas e de ações conjuntas entre os gestores do SUS, favorecendo a elaboração de uma pauta de negociação voltada para integrar políticas e serviços (redes de atenção à saúde), promover investimentos e lidar com situações geográficas específicas (regiões metropolitanas, áreas fronteiriças, zonas limítrofes entre estados, áreas de proteção ambiental e reservas indígenas, entre outras). Além disso, possibilita o intercâmbio de experiências entre estados e municípios, abrindo espaço para a cooperação técnica entre eles. Faz-se necessário que as Comissões Intergestores sejam apoiadas por Comitês de Assessoramento, compostos por especialistas e representantes de movimentos, organizações e entidades representativas da sociedade civil. Além disso, as comissões devem funcionar, de modo articulado, com os Conselhos de Saúde nas diferentes esferas de governo.

O segundo eixo estratégico se refere à definição clara de responsabilidades e funções gestoras, a partir de planos nacionais, estaduais e regionais acordados entre os entes. Entre as responsabilidades dos gestores, cabe destacar a criação de mecanismos de acompanhamento das medidas implementadas e os seus resultados e de informação e comunicação permanente com o conjunto da sociedade. A definição de responsabilidades entre os entes federativos deve considerar o grau de efetividade que se pode alcançar com a concentração ou a desconcentração das funções necessárias ao alcance dos objetivos dos planos. Considera-se uma função precípua da União garantir o financiamento adequado do SUS. Além disso, cabe ao MS articular ações com os Ministérios da Economia e do Trabalho, entre outros, para oferecer garantias de proteção social e econômica da população.

Em um terceiro eixo, destaca-se a necessidade do incremento dos mecanismos de cooperação intergovernamental voltados para o fortalecimento das capacidades político-institucionais dos governos no plano subnacional. Nesse sentido, dois elementos são fundamentais: a ampliação dos gastos diretos e das transferências da União para estados e municípios, que permitam repor as perdas de arrecadação e que garantam os investimentos e o custeio adequado de serviços; e o fortalecimento de consórcios públicos verticais (com a participação de diferentes níveis de governo) e horizontais (intermunicipais e interestaduais), cuja atuação na área da saúde se dê de forma articulada às Comissões Intergestores, visando à ampliação da escala de provisão de políticas e ações.

Por fim, um quarto eixo importante é o de informação e comunicação social. Essa dimensão envolve aspectos como a disponibilização de informações de saúde confiáveis para toda a população, de forma oportuna, contínua e em linguagem acessível e adequada aos diferentes grupos sociais. Em países federativos como o Brasil, é fundamental o fluxo ágil de informações entre governos das diferentes esferas, bem como a coordenação das ações de comunicação pública, relativas à situação epidemiológica, ao cenário do sistema de saúde e às estratégias de enfrentamento de emergências sanitárias. O SUS compreende sistemas de informações relevantes, de diversos tipos, inclusive na área de vigilância em saúde, que devem alimentar análises estratégicas para orientar a tomada de decisões e permitir a comunicação clara e fundamentada com a sociedade.

Entretanto, reconhecer que os arranjos político-institucionais importam para o aprimoramento da governança do SUS não é o mesmo que dizer que só as instituições importam. Não há sistema político que funcione de modo independente das escolhas e da definição de objetos e estratégias dos atores políticos que o sustentam. As transformações acima exigem alianças em torno de uma agenda positiva comum que reverta o quadro atual de desmonte e reoriente a atuação do Estado em uma conjuntura marcada por enormes desafios para o avanço das políticas públicas e do SUS.

Considerações finais

A pandemia da Covid-19 trouxe à tona a agudização da crise institucional e da política vigente no Brasil, mostrando, como destacado no ensaio, a dificuldade em obter consensos entre os entes federados. Nesse sentido, merece destaque a postura negacionista do chefe do executivo nacional ao quadro pandêmico e uma condução desarticulada por parte do MS, agudizada pelas sucessivas trocas no cargo de ministro, no que tange às ações aos estados e aos municípios.

Vimos, assim, a corporificação de inúmeros embates entre o presidente da República com governadores e prefeitos, situação que ampliou a tensão, levando essa temática a ser judicializada perante o STF, que decidiu pela autonomia dos entes federados no que tange à adoção de providências normativas e administrativas relacionadas com a Covid-19. Mesmo assim, nem as divergências foram dirimidas, tampouco foi ampliado o canal de diálogo para a qualificação da coordenação federativa no enfrentamento da pandemia.

Podemos, assim, observar e depreender que as consequências de tais situações nos levaram a um contexto de mais fragmentação e caos do sistema de saúde, acarretando várias consequências que agudizaram ainda mais a situação de descoordenação federativa, contribuindo para o insucesso da política brasileira de combate à pandemia da Covid-19.

Tal situação obrigou os entes federados a buscar caminhos e a encontrar saídas para o enfrentamento da pandemia, processo capitaneado fortemente pela edição de normas (decretos e leis) que tiveram campos distintos de intervenção: da gestão territorial à regulação, do desenvolvimento de políticas de saúde e expansão de serviços à proteção do emprego, renda e finanças. No que tange ao setor saúde, vimos a forte relação dos gestores às diretrizes emanadas pela Organização Mundial da Saúde na defesa do isolamento social, na adoção medidas de restrição de circulação e aglomeração para evitar o colapso do setor saúde, com base nas orientações epidemiológicas e de gestão de crise.

Os gestores procuraram se organizar; e, nesse contexto, a atuação do Conass e do Conasems foi de extrema importância para a manutenção do equilíbrio federativo. Destaca-se também o desenvolvimento de algumas experiências de consórcios e novas parcerias com a sociedade, que se mostraram relevantes.

Contudo, persistem os desafios e as condições necessárias para um novo pacto federativo, que possam contribuir, de forma efetiva, no combate à pandemia e a superar as sequelas que ela irá deixar para o setor saúde e para a sociedade. A superação desse quadro exige mudança de rumo, que passa pela transformação da direcionalidade de atuação do Estado. Exige também a mobilização de diferentes forças políticas e de atores do Estado e da sociedade em torno de novo pacto social, em defesa da democracia, do fortalecimento do SUS e da vida.

Agradecimentos

Lima LD é bolsista de produtividade em pesquisa e Cientista do Nosso Estado e agradece o apoio recebido, respectivamente, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj). Shimizu H é bolsista de produtividade do CNPq e agradece apoio à pesquisa recebido em Edital do CNPq e do Decit/MS.

  • Suporte financeiro: MCTI/CNPq/CT-Saúde/MS/SCTIE/Decit Nº 07/2020. Processo nº 403141/2020-6
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    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2021
  • Aceito
    23 Jul 2021
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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