A Rede de Atenção às Urgências e Emergências em cena: contingências e produção de cuidado

Luís Fernando Nogueira Tofani Lumena Almeida Castro Furtado Rosemarie Andreazza Mariana Arantes Nasser Olivia Félix Bizetto Arthur Chioro Sobre os autores

RESUMO

Este estudo tem por objetivo analisar as transformações nos processos de gestão e produção do cuidado em saúde, no contexto da prática, a partir da política da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE). A pesquisa tem caráter qualitativo e caracteriza-se como estudo de caso. Foram realizadas entrevistas com 16 gerentes de serviços de saúde em três municípios de diferentes portes populacionais. O material foi analisado tendo como referência o contexto da prática da Abordagem do Ciclo de Políticas. Observa-se que a RUE não é reconhecida enquanto política pública, embora sejam identificados alguns de seus elementos, como a implantação de Unidades de Pronto Atendimento, protocolos, classificação de risco, novas tecnologias assistenciais, arranjos regulatórios e linhas de cuidado. O olhar para a ‘RUE em cena’ aponta para três questões: a relação entre a atenção básica e as portas de urgência no atendimento à demanda espontânea; a regulação médica do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), enquanto promotora de acesso e qualidade; e a (des)continuidade no cuidado em saúde. Há evidências de movimentos e produções vivas induzidas pela política que qualificam o cuidado em saúde em situações de urgência e emergência. Entretanto, iniquidades são mantidas ou produzidas, e a necessidade de articulação entre os componentes em rede, embora evocada, traduz-se em conexões frágeis e não regulares.

PALAVRAS-CHAVE
Atenção à; saúde; Serviços médicos de emergência; Política de saúde; Gestão em saúde; Sistemas de saúde

Introdução

O atendimento às urgências e emergências é fundamental nos sistemas de saúde universais e integrais, como o Sistema Único de Saúde (SUS). O uso intensivo desses serviços, decorrente das mudanças demográficas, epidemiológicas e do crescimento de acidentes e violências, tem imposto a necessidade de reestruturação dos sistemas de saúde em muitos países11 Henderson AC. Patient assessment in emergency medical services: complexity and uncertainty in street-level patient processing. J. Health and Hum. Serv. Adm. 2013; 35(4):505-38.. Mesmo nações de média e baixa renda têm investido na reorganização dos serviços de urgência em busca de melhores resultados22 Obermeyer Z, Abujaber S, Makar M, et al. Emergency care in 59 low-and middle-income countries: a systematic review. Bull World Health Organ. 2015; 93(8):577-586..

No Brasil, a atenção às urgências apresenta-se como pauta prioritária, dada a magnitude dos problemas e a necessidade de intervenção para melhoria no atendimento33 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, et al. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulg. Saúde debate. 2014; 52:125-145.. O histórico da política de atenção às emergências no SUS foi subdividido por O’Dwyer et al.44 O‘Dwyer G, Konder MT, Machado CV, et al. The current scenario of emergency care policies in Brazil. BMC. 2013; 13(70). em três estágios: regulação inicial, implantação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e implementação das Unidades de Pronto Atendimento (UPA). Em 2011, o Ministério da Saúde propôs a política de construção de redes temáticas, sendo que, entre estas, regulamentou a Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE)55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção à Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 8 Jul 2011.. A RUE foi formulada enquanto um processo organizativo mais geral, sob influência do modelo de Redes de Atenção à Saúde (RAS)66 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 30 Dez 2010., como alternativa à fragmentação dos sistemas de saúde, principalmente em países onde predominam condições e agravos crônicos77 Organización Panamericana de La Salud. Redes integradas de servicios de salud: conceptos, opciones de política e hoja de ruta para sua implementación em las Américas. Washington, DC: OPAS; 2010. (Serie La renovación de La atención primaria de salud en las Américas nº 4).. O modelo conceitual das RAS propõe uma rede poliárquica, com centralidade da atenção básica e organização regional66 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 30 Dez 2010., que, no caso da RUE, objetiva articular e integrar todos os serviços de saúde, para ampliar e qualificar o acesso humanizado e integral em situações de urgência e emergência de forma ágil e oportuna55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção à Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 8 Jul 2011..

O SUS tem propiciado expansão de serviços públicos no Brasil, entretanto, limites históricos e estruturais, legados institucionais e disputas de projetos têm influenciado a política nacional de saúde88 Machado CV, Lima LD, Baptista TWF. Políticas de Saúde no Brasil em tempos contraditórios: caminhos e tropeços na construção de um sistema universal. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(2):e00129616.. Além disso, o estranhamento e a externalidade dos gestores com o espaço micropolítico traduzem-se em práticas de implementação de políticas que buscam normalizar e controlar esse território, desconsiderando que as políticas oficiais são reprocessadas, adquirindo novos desenhos nem sempre planejados pelos formuladores99 Cecílio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não produzirmos “mais do mesmo”? Saúde Soc. 2012; 21(2):280-289..

Reconhecendo a importância do processo de formulação e implantação de políticas, o presente estudo pretende aprofundar a reflexão sobre as seguintes questões: quais transformações no cuidado às situações de urgência e emergência foram induzidas pela RUE? Houve mudança na garantia de acesso e na integralidade? Este estudo tem por objetivo analisar as possíveis transformações nos processos de gestão e de produção do cuidado em saúde no contexto da prática, ou seja, a partir da política da RUE, encenada por atores que a operacionalizam.

Material e métodos

A pesquisa tem caráter qualitativo e caracteriza-se como estudo de caso1010 Stake RE. Case Studies. In: Denzin NK, Lincoln YS, organizadores. Handbook of qualitative research. Thousand Oaks: Sage Publications; 2000. p. 435-454.. Foi desenvolvida em uma região de saúde escolhida por ter sido uma das primeiras do estado de São Paulo a ter o plano da RUE aprovado, em 2012. Foram realizadas entrevistas com dezesseis gerentes de serviços que compõem a RUE - Unidades Básicas de Saúde (UBS), UPA, Samu, hospitais e atenção domiciliar -, em três municípios, de pequeno, médio e grande porte, cujas identidades foram codificadas para garantia de sigilo e anonimato (quadro 1). Os entrevistados foram indicados pelos gestores seguindo o critério de exercício da gerência de serviços de assistência direta à população. O gerente de serviço de saúde é considerado, neste estudo, como um profissional que exerce uma atividade complexa e múltipla, cujos relatos podem ajudar a visibilizar os processos micropolíticos de produção da gestão, do trabalho e do cuidado em saúde.

Quadro 1
Entrevistados por ponto de atenção da RUE e cargo/função. 2019-2020

As entrevistas tiveram duração média de quarenta minutos e foram realizadas nos locais de trabalho, previamente agendadas, mediante concordância em participação na pesquisa e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Não houve recusas. Utilizou-se um roteiro semiestruturado e cenas previamente coletadas, a partir de narrativas de usuários da RUE, em três linhas de cuidado: cerebrovascular (Acidente Vascular Cerebral - AVC), do trauma e cardiovascular (Infarto Agudo do Miocárdio - IAM)55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção à Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 8 Jul 2011.. A leitura e a reflexão sobre as cenas tiveram o objetivo de ser um ‘disparador’ para as entrevistas, cujos diálogos foram, depois, complementados pelas questões previstas no roteiro. O conteúdo foi gravado e transcrito na íntegra. Os resultados foram codificados e organizados considerando-se as diretrizes da RUE, dispostas no quadro 2.

Quadro 2
Diretrizes da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (Brasil, 2011)

O material empírico foi analisado tendo como referência a Abordagem do Ciclo de Políticas Públicas, proposto por Ball1111 Ball SJ. What is policy? Texts, trajectories and toolboxes. Discourse. 1993; 13(2)10-17., para quem uma política é sempre texto e discurso. A Abordagem do Ciclo de Políticas1212 Mainardes J. Abordagem do Ciclo de Políticas: Uma Contribuição para a Análise de Políticas Educacionais. Educ. Soc. 2006; 27(94):47-69. propõe que a análise das políticas seja realizada a partir de contextos - de influência, de produção de texto e da prática - que estão inter-relacionados, não têm uma dimensão temporal e não são etapas lineares (figura 1). Neste estudo, trabalhou-se com o contexto da prática, representado pelos serviços de saúde, onde a política está sujeita à interpretação e é encenada em arenas constituídas por atores que a recriam com suas histórias e valores1313 Mainardes J, Marcondes MI. Entrevista com Stephen J. Ball: um diálogo sobre justiça social, pesquisa e política educacional. Educ. Soc. 2009; 30(106):303-318.. A discussão foi mediada pelas questões norteadoras propostas por Mainardes1212 Mainardes J. Abordagem do Ciclo de Políticas: Uma Contribuição para a Análise de Políticas Educacionais. Educ. Soc. 2006; 27(94):47-69. para esse contexto e guiada por questões analisadoras identificadas.

Figura 1
Abordagem do Ciclo de Políticas

O projeto de estudo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e seguiu todas as normas éticas, de acordo com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa através do parecer 2.447.067/2017.

Resultados

A RUE não é reconhecida enquanto uma política nacional de saúde e como um marco de mudança pelos entrevistados. Alguns gerentes relatam não haverem participado de sua implementação a partir de 2012, mesmo estando na coordenação de serviços ou atuando na assistência: “Não sei dizer quase nada [...] não participei, que eu me lembre” (G1C).

Alguns entrevistados identificam elementos da RUE em suas práticas na gerência e na assistência à saúde:

Teve a implantação das outras UPAs nessa época. (G1H).

Não consigo lembrar daquela época, mas teve muitas mudanças, a implantação de protocolos, classificação de risco. (G2H).

Em uma situação específica, observada em um município, a política da RUE é tomada por ações locais de reorganização administrativa dos serviços: “Foi muita mudança com a aproximação da [autarquia municipal] com a Rede de Urgência. Foi o que a gente mais sentiu” (G1C).

Os relatos colhidos dialogam com as diretrizes da RUE55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção à Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 8 Jul 2011., em especial: acesso, integralidade, articulação, planejamento territorial, qualidade, articulação interfederativa e regulação. A seguir, são apresentados elementos que ajudam a analisar algumas diretrizes e objetivos propostos pela política no contexto da prática.

Acesso

A ampliação do acesso é identificada pelos arranjos e dispositivos implantados nos serviços. Na atenção básica, o acolhimento emerge enquanto materialização do atendimento à demanda espontânea: “A gente tem acolhimento durante o tempo em que a unidade está aberta. Tem os fluxos. O paciente veio por demanda espontânea, e a gente insere” (GC1).

O protocolo de classificação de risco é citado enquanto qualificação das portas de urgência:

É baseado no Manchester [...] a gente recebe o paciente e não sabe o que ele tem. Pode ser um infartado, e vai ficar aguardando? Não. Então, o enfermeiro avalia, coloca pra dentro. (G2H).

O acesso hospitalar, principalmente para as referências regionais, é realizado por muitas vias, oficiais ou não. Nesse fluxo, o Samu é considerado um elemento facilitador, um ‘atalho’ que prescinde da regulação estadual, que se dá pela Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde (Cross): “Outra maneira de vir é direto via Samu [...] pula a etapa da Cross” (G2E).

Integralidade

Com relação à integralidade, os relatos remetem às linhas de cuidados específicas. No caso do trauma, a questão que se coloca não é a do atendimento imediato, mas da continuidade do cuidado pós-hospitalar: “enquanto ele tá internado, tá recebendo o tratamento, mas e depois? E a continuidade?” (G2E).

Com relação à linha de cuidado do IAM, destaca-se como grande problema na região o acesso a procedimentos de hemodinâmica:

A questão do IAM da nossa cidade é uma vergonha [...] você não tem ‘padroeiro’ para a hemodinâmica [...] o cara tem um infarto, vem na UPA e fica três dias. Ele sai com papel para marcar o cateterismo meses depois! (G3C).

Articulação

A conformação em rede dos serviços que compõem a RUE está presente nos relatos e possibilita analisar suas articulações e desconexões (quadro 3). Observa-se que o Samu, quando existente, aparece como um componente com maiores articulações em rede. Os hospitais e as UPA apresentam um ‘insulamento’ nos territórios, cujas conexões necessárias demandadas pela atenção básica e domiciliar nem sempre são viáveis.

Quadro 3
Relatos de articulações e desconexões entre os pontos de atenção da RUE

Planejamento territorial

A organização das regiões de saúde e das redes a partir do planejamento territorial está presente nos relatos não só como reconhecimento dos territórios, mas, também, de outros interesses que os atravessam:

Essas coisas aparecem não só porque é uma demanda epidemiológica, mas existe uma importância de outro nível, acadêmica [...] a depender da necessidade do departamento, acaba essa demanda vindo, cria-se um serviço, a rotina, o fluxo. (G3C).

Os depoimentos remetem à regionalização enquanto diretriz para a organização da RUE, entretanto, há relatos de dificuldades de operacionalização do conceito:

Quanto mais distante, mais regional, mais dificuldade [...] quanto mais você vai alargando, mais dificuldade você vai identificando. A gente pensa em fazer consórcio, fazer coisas junto, mas a prática é muito difícil. (G3C).

A localização dos hospitais regionais surge como problema no acesso, produzindo iniquidades, a depender do município de origem dos usuários:

É um dos piores lugares da região para se escolher, porque a estrutura do município é muito baixa [...] não tem leito de internação [...] toda a demanda vem pra cá. (G2E).

E, ainda:

Esse hospital teria que ter papel microrregional [...] então, esse grupo médico foi sempre muito mais forte e conseguiu transformar num hospital exclusivamente municipal. (G3E).

Qualidade

Os gerentes relatam arranjos e instrumentos para a qualificação do cuidado, mesmo reconhecendo barreiras: “os profissionais também são matriciados, tomam conhecimento do assunto e depois vão tendo outras posturas, outras decisões, outros direcionamentos” (GS1).

O Samu, ausente na maioria dos municípios da região, é descrito, em especial, pela regulação médica, como elemento central para a qualificação da RUE:

A regulação médica do Samu, que é o coração do sistema... essas cidades aí [que não têm Samu], é tudo telefonista que despacha. Não é médico. A qualidade vai ‘pro saco’. (G3C).

Articulação interfederativa

A relação interfederativa aparece como condição necessária para a gestão de redes regionalizadas. As narrativas remetem, principalmente, para a relação entre os municípios e a gestão estadual:

O Governo do Estado só faz de conta [...] ele se desresponsabiliza com a sua competência. Ele gosta de fazer mais propaganda pra saúde [...] então criam-se serviços de aparência. (G3C).

E, ainda:

A gente percebeu que a parte do estado, ficou a desejar. O estado fala que ele investe em aeronave e acaba não repassando a parte do Samu. (G3H)

Regulação

A regulação emerge enquanto arranjo tecnológico capaz de articular os componentes da RUE. Em especial, a Central de Regulação do Samu é valorizada nas narrativas:

a Regulação do Samu é um plus, pra ordenar um pouco mais a qualidade dos serviços [...] se eu tenho um acidente grave, e o recurso não cabe naquele hospital do município, ele já vai encaminhado pro estadual, que é referência. (G3H).

Em alguns relatos, a regulação de vagas centralizada pelo estado na Cross é referida como insuficiente para garantia de acesso qualificado, ficando para os serviços o ônus desse ‘descuidado’:

As UPAs estão ficando com pacientes graves [...] a gente deixa 24 horas, insere na Cross, [...] a sensação é de incompetência nossa, não do órgão regulador. (G3H).

A descentralização da Cross é compreendida como necessidade, partindo da premissa de que uma regulação regional teria maior conhecimento e proximidade com a RUE no território. O projeto que estava em andamento foi interrompido:

Como na Cross muda muito, cada dia um médico, eles não têm um vínculo com essa região, não conhecem como a gente [...] foi formalizado o projeto de regionalizar, destinado o recurso, iria começar, mas houve a mudança de governo estadual, então foi temporariamente arquivado. (G3E).

Discussão

O contexto da prática é onde a política está sujeita a interpretação e recriação, é onde ela vai produzir efeitos e consequências que podem representar mudanças e transformações significativas na proposição original1212 Mainardes J. Abordagem do Ciclo de Políticas: Uma Contribuição para a Análise de Políticas Educacionais. Educ. Soc. 2006; 27(94):47-69.. No caso da RUE, o diálogo com gerentes dos serviços evidenciou que a política de reorganização dos serviços de urgência e emergência em rede não é reconhecida pelos entrevistados como uma política nacional de saúde. Mesmo com a forte indução financeira federal, a RUE não aparece como uma política internalizada para as equipes que a operam cotidianamente.

Outro aspecto importante que emergiu da pesquisa dialoga com a análise de Jorge et al.33 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, et al. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulg. Saúde debate. 2014; 52:125-145., de que o repasse de recursos financeiros, por si só, não garantiu a efetivação das redes e que a implantação da RUE não se fez acompanhada de mudanças do modelo assistencial. Nessa mesma direção, Padilha et al.1414 Padilha ARS, Amaral MA, Oliveira DC, et al. Fragilidade na governança regional durante implementação da Rede de Urgência e Emergência em Região Metropolitana. Saúde debate. 2018; 42(118):579-93. observaram na Região Metropolitana de São Paulo a ausência de arranjos capazes de envolver e articular em ação comunicativa todos aqueles com exercício de poder nos pontos de atenção e espaços de gestão da RUE, garantindo permeabilidade aos serviços.

Os gerentes identificam elementos da RUE em suas práticas gerenciais e assistenciais, tais como a implantação de UPA, protocolos, classificação de risco, tecnologias assistenciais, arranjos regulatórios e linhas de cuidado. O desconhecimento das portarias, da formalização dos arranjos em uma política, não impede que a rede seja construída e disputada no cotidiano dos serviços.

Em pesquisa realizada com gerentes de componentes da RUE no Rio Grande do Sul, foi identificado o precário conhecimento dos entrevistados sobre os fluxos para usuários acometidos por AVC: eles parecem desconhecer sua responsabilidade, transferindo-a para outros gestores1515 Pinno C, Birrer JA, Colpo APF, et al. Acidente Vascular Encefálico: Desafio para os Gestores na Rede de Atenção à Saúde. Rev. Enferm. UFSM. 2014; 4(4):667-677.. Essa dimensão de desresponsabilização, todavia, não foi identificada na região de saúde investigada.

Cecílio99 Cecílio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não produzirmos “mais do mesmo”? Saúde Soc. 2012; 21(2):280-289., ao relatar a relação de estranhamento dos gestores com o espaço micropolítico da produção do cuidado, observa que muitas das políticas formuladas se veem subordinadas a esquemas teórico-conceituais que não dão conta da complexidade da realidade. Na dimensão dos serviços, estudos reforçam que não há capilarização da política da RUE para as equipes de saúde. Pesquisa com gestores e profissionais que atuam em um centro de trauma na região Centro-Oeste do Brasil sugere o desconhecimento dos profissionais quanto à inserção do hospital na rede e os fluxos pactuados1616 Soares EP, Scherer MDA, O’Dwyer G. Inserção de um hospital de grande porte na Rede de Urgências e Emergências da região Centro-Oeste. Saúde debate. 2015; 39(106):616-26.. Entrevistas com médicos de hospitais e do Samu em Belo Horizonte também evidenciaram a necessidade de intervenções que alinhem conceitos inerentes à organização em redes de atenção à concepção vivida na prática1717 Lima DP, Leite MTS, Caldeira AP. Redes de Atenção à Saúde: a percepção dos médicos trabalhando em serviços de urgência. Saúde debate. 2015; 39(104):65-75.. Para Chioro et al.1818 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, et al. Reflexões para a Construção de uma Regionalização Viva. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(4):1045-1054., tão importante como pactuar é produzir a internalização das redes junto aos trabalhadores e serviços que a compõem, sem a qual ficarão restritas à mera dimensão cartorial, utilizadas somente para habilitação de serviços e captação de recursos.

Neste estudo, muitas das intencionalidades, dos objetivos e desafios da RUE foram declarados e relatados nas entrevistas, permitindo que o contexto da prática seja aqui discutido através de duas questões analisadoras: reflexos e contingências dos movimentos da gestão na produção de redes; e a RUE em cena.

Reflexos e contingências dos movimentos da gestão na produção de redes

Decisões de cada ente federativo impactam a produção da RUE com diferentes consequências. Assim, a decisão do governo estadual de São Paulo de não cofinanciar o Samu e manter a regulação centralizada, além da ação de alguns municípios para estimular a implantação de dispositivos e arranjos produtores de redes de cuidados, acabou interferindo na construção da RUE. Também, as reestruturações administrativas, como a adoção de modalidades de gestão por meio de autarquias ou organizações sociais, refletem diretamente na organização dos serviços. Ainda, a interposição de barreiras de acesso para usuários de outros municípios, mesmo para referências pactuadas, compromete a integralidade do cuidado na perspectiva regional. Assim, ações das equipes de saúde no contexto da prática são também moduladas por decisões de diferentes atores em situação de governo.

A indução e a implementação da RUE nos territórios não podem prescindir de integração e articulação nas estratégias de gestão, quando se trata de planejar e programar, regular e financiar as ações e os serviços33 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, et al. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulg. Saúde debate. 2014; 52:125-145.. Embora os três entes federados sejam autônomos, ainda que com diferentes potências, o desenho interfederativo brasileiro exige a realização de responsabilidades concorrentes e um alto nível de concertação para a operacionalização do SUS1818 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, et al. Reflexões para a Construção de uma Regionalização Viva. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(4):1045-1054.. Após décadas de descentralização da gestão, marcada pela municipalização, observaram-se ampliação do acesso à atenção básica e dificuldades para referência para a atenção de média e alta complexidade, indicando a necessidade de efetivação da regionalização para garantir acesso integral à saúde1919 Pinafo E, Carvalho BG, Nunes EFPA. Descentralização da gestão: caminho percorrido, nós críticos e perspectivas. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(5):1511-1524..

As Comissões Intergestores Regionais (CIR) são as instâncias formais de pactuação. Foram implantadas como espaços de inovação, formulação e produção de consensos, mas sua implementação é, muitas vezes, marcada pela cultura política burocrática e clientelista2020 Mello GA, Pereira APCM, Uchimura LYT, et al. O processo de regionalização do SUS: revisão sistemática. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(4):1291-1310. que perpetua poderes e não contribui para uma pactuação regional viva, que de fato ajude na construção de redes regionalizadas. Para Moreira et al.2121 Moreira MR, Ribeiro JM, Ouverney AM. Obstáculos políticos à regionalização do SUS: percepções dos secretários municipais de Saúde com assento nas Comissões Intergestores Bipartites. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(4):1097-1108., o sistema político-partidário e o poder executivo estadual são os grandes ausentes nas coalizões de apoio às políticas de regionalização do SUS. Padilha et al.1414 Padilha ARS, Amaral MA, Oliveira DC, et al. Fragilidade na governança regional durante implementação da Rede de Urgência e Emergência em Região Metropolitana. Saúde debate. 2018; 42(118):579-93. observaram relações assimétricas de poder que geram contenciosos, como o subfinanciamento federal, o não cofinanciamento estadual, a fragilidade dos instrumentos cooperativos de pactuação e a concorrência entre os entes federativos e suas redes de serviços. Com relação à ação do ente estadual na construção de redes regionais, estudos relataram a insuficiente capacidade de coordenação dos governos estaduais33 Jorge AO, Coutinho AAP, Cavalcanti APS, et al. Entendendo os desafios para a implementação da Rede de Atenção às Urgências e Emergências no Brasil: uma análise crítica. Divulg. Saúde debate. 2014; 52:125-145.,1919 Pinafo E, Carvalho BG, Nunes EFPA. Descentralização da gestão: caminho percorrido, nós críticos e perspectivas. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(5):1511-1524., muitas vezes, restrita ao seu papel de gestores dos próprios serviços2222 Mendes A, Louvison MCP, Ianni AMZ, et al. O processo de construção da gestão regional da saúde no estado de São Paulo: subsídios para a análise. Saúde Soc. 2015; 24(2):423-437.. Essa ausência da coordenação estadual na RUE também é fortemente relatada pelos entrevistados desta pesquisa.

As relações desiguais de poder entre os municípios também atuam produzindo iniquidades. Para Chioro et al.1818 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, et al. Reflexões para a Construção de uma Regionalização Viva. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(4):1045-1054., um dos mais complexos desafios para o SUS é garantir acesso integral aos cidadãos de pequenos municípios, o que só pode ser efetivado na perspectiva da regionalização. Mendes et al.2222 Mendes A, Louvison MCP, Ianni AMZ, et al. O processo de construção da gestão regional da saúde no estado de São Paulo: subsídios para a análise. Saúde Soc. 2015; 24(2):423-437. destacam a necessidade de os pactos contemplarem solidariamente os municípios com maiores dificuldades socioeconômicas, epidemiológicas, demográficas e de oferta de serviços. O acesso aos serviços de média e alta complexidade é dificultado, muitas vezes, por disputas locais e barreiras impostas por gestores municipais que não cumprem as pactuações regionais1919 Pinafo E, Carvalho BG, Nunes EFPA. Descentralização da gestão: caminho percorrido, nós críticos e perspectivas. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(5):1511-1524., já que, muitas vezes, os pactos interfederativos são estabelecidos como instrumentos burocráticos, sem a responsabilização dos gestores1818 Reis AAC, Sóter APM, Furtado LAC, et al. Reflexões para a Construção de uma Regionalização Viva. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(4):1045-1054.. Terminam por impor contingências que restringem o acesso e a integralidade da atenção à saúde.

Nesta investigação, portanto, foi central a percepção da importância da produção cotidiana de espaços de pactuação e comunicação entre os serviços, para que os fluxos e protocolos combinados deixem sua forma burocrática e tenham impacto na produção do cuidado, numa perspectiva mais integral.

A RUE em cena

As práticas relatadas expressam possibilidades e limites da RUE, em diálogo com suas intencionalidades. Para análise da RUE em cena, destacam-se três questões recorrentes nos relatos: a relação entre a atenção básica e as portas de urgência no atendimento à demanda espontânea; a regulação médica do Samu enquanto promotora de acesso e qualidade; e a (des)continuidade no cuidado em saúde.

A relação entre as UBS e as portas de urgências 24 horas é uma questão mal resolvida. Embora o acesso à demanda espontânea na atenção básica já viesse sendo trabalhado mesmo antes da RUE, há resistência em conceber as UBS enquanto serviços de portas abertas. Quando a situação é de emergência (casos mais graves), há menor reconhecimento ainda da atenção básica enquanto integrante da RUE. Definidas nas normativas como responsáveis pela ampliação do acesso e pelo primeiro cuidado às urgências e emergências até a transferência a outros pontos de atenção55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção à Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 8 Jul 2011., as UBS ainda são vistas por gestores, trabalhadores e usuários como um lugar de coisas simples99 Cecílio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não produzirmos “mais do mesmo”? Saúde Soc. 2012; 21(2):280-289.. No presente estudo, observa-se um dilema sobre a demanda de casos considerados simples, atendida pelas UPA, que, no entendimento de seus gerentes, deveria ser acolhida nas UBS. Também entendem que o deficiente acompanhamento e controle de doenças crônicas na atenção básica gera uma demanda de casos agudizados para as UPA. Já os gerentes de UBS referem dificuldades em estabelecer conexões com as UPA e uma grande deficiência no processo do contrarreferenciamento desses usuários para a atenção básica.

Estudo realizado em Belo Horizonte observou que a demanda que chega às UBS e aos serviços de urgência era por consultas médicas, motivada por afecções leves, verificando-se duplicidade na utilização dos serviços: em geral, o usuário costuma procurar as emergências quando considera que o problema de saúde é grave ou quando avalia que a atenção básica não irá resolver seu problema de saúde2323 Pires MRGM, Göttems LBD, Cupertino TV, et al. A utilização dos serviços de atenção básica e de urgência no SUS de Belo Horizonte: problema de saúde, procedimentos e escolha dos serviços. Saúde Soc. 2013; 22(1):211-222.. A expansão acelerada das UPA no Brasil, sem a efetiva organização em rede, também contribuiu para a reprodução do modelo tradicional de pronto atendimento2424 O’Dwyer G, Konder MT, Reciputti LP, et al. O processo de implantação das unidades de pronto atendimento no Brasil. Rev. Saúde Pública. 2017; (51):125.. Porém, a implantação da Classificação de Risco nas UPA, compreendida como elemento de qualidade e humanização, constitui-se em potente tecnologia aplicada à gestão do cuidado e dos serviços de urgência e emergência2525 Sacoman TM, Beltrammi DGM, Andreazza R, et al. Implantação do Sistema de Classificação de Risco Manchester em uma rede municipal de urgência. Saúde debate. 2019; 43(121):354-367., desde que estejam integradas na RUE para ampliar a resolutividade2626 Uchimura LYT, Viana ALA, Silva HP, et al. Unidades de Pronto Atendimento (UPAs): características da gestão às redes de atenção no Paraná. Saúde debate. 2015; 39(107):972-983.. Na realidade, para efetivação da rede, há necessidade de integração territorial e conexões com a atenção básica. Ambas precisam ser compreendidas enquanto portas de entrada da RUE que são acessadas pelos usuários em diferentes situações, segundo seus próprios critérios e necessidades, e que são serviços corresponsáveis no cuidado à saúde. Este estudo reforça a importância da superação desse desenho idealizado sobre qual deve ser a porta de entrada do usuário no sistema, desconsiderando a autonomia desse sujeito na produção de sua rede de cuidados.

O Samu foi o primeiro componente da Política Nacional de Atenção às Urgências implantado no País2727 O’Dwyer G, Konder MT, Resciputti LP, et al. O processo de implantação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência no Brasil: estratégias de ação e dimensões estruturais. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(7):e00043716.. Os resultados desta pesquisa corroboram o destaque dado à ação central de regulação médica do Samu enquanto promotora de ampliação de acesso e qualidade na RUE. Sua estruturação e seu funcionamento podem se beneficiar do controle do fluxo e da qualidade de serviços, dependendo da capacidade de uso dos elementos constitutivos do sistema de regulação2828 Barbosa DVS, Barbosa NB, Najberg E. Regulação em Saúde: desafios à governança do SUS. Cad. Saúde Colet. 2016; 24(1):49-54.. O que se observa é que a central de regulação do Samu detém poderes para garantir o acesso de usuários com quadros de maior gravidade a serviços hospitalares pelo acesso direto ou pela determinação de vaga zero, quando o médico regulador exerce sua autoridade sanitária para determinar o local de atendimento. Essas ações emprestam ao Samu um poder real e simbólico, reforçado pelo uso da marca, da frota e do uniforme padronizados, que materializam a autoridade de suas equipes2929 Veloso IS, Araujo MT, Alves M. Práticas de poder no serviço de atendimento móvel de urgência de Belo Horizonte. Rev. Gaúcha Enferm. 2012; 33(4):126-132..

A vaga zero é relatada pelos entrevistados como um atalho para acesso à assistência hospitalar em situações de emergência. No caso da região estudada, de 20 municípios que a compõem, apenas três possuem Samu, restando aos demais serviços transporte sanitário local desprovido de regulação médica e da autoridade sanitária. No Brasil, observa-se implantação desigual do Samu entre estados e regiões, devido à capacidade dos estados e à sua decisão de financiar e regionalizar a organização da oferta2727 O’Dwyer G, Konder MT, Resciputti LP, et al. O processo de implantação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência no Brasil: estratégias de ação e dimensões estruturais. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(7):e00043716.. No caso do estado de São Paulo, os relatos apontam que a recusa do governo estadual de cofinanciar o Samu é fator importante para impedir sua expansão. Neste estudo, a cobertura desigual apareceu como produtora de iniquidades, uma vez que alguns municípios que possuem o serviço provido de regulação médica terminam obtendo maior acesso às referências hospitalares especializadas, ficando os demais (sem Samu) dependentes da regulação estadual centralizada e sujeitos às dificuldades operacionais já descritas.

A continuidade do cuidado é uma diretriz da RUE para garantia da produção da integralidade55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção à Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 8 Jul 2011.. Nas narrativas dos gerentes, foi possível observar tanto situações de maior produção de redes como de ausência de redes, tal qual Hadad e Jorge3030 Hadad ACAC, Jorge AO. Continuidade do cuidado em rede e os movimentos de redes vivas nas trajetórias do usuário-guia. Saúde debate. 2018; 42(4):198-210. já haviam relatado em estudo com usuários-guia egressos de internações hospitalares. Também observaram-se diferentes compreensões de rede, que expressam distintas racionalidades. Algumas remetem às redes formatadas através de estruturas e fluxos. Há, também, evidências que indicam a conformação de redes vivas, que se conectam com a vida dos usuários, produzidas a partir da tessitura do cuidado e das necessidades em saúde3131 Tofani LFN, Furtado LAC, Guimarães CF, et al. Caos, organização e criatividade: Revisão integrativa sobre as redes de atenção à saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2021; 26(10):4769-4782..

Na RUE, a continuidade do cuidado deveria ser garantida mediante a disponibilidade de tecnologias e recursos, as articulações entre os pontos de atenção e a organização de linhas de cuidado55 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção à Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 8 Jul 2011.. Neste estudo, os gerentes relataram certa organização através de fluxos e grades de referências pactuadas, eventualmente, com limitações de acesso e resolubilidade, mas que são viabilizados por múltiplos caminhos, formais ou não, e algumas possibilidades de conexões entre serviços e equipes de saúde. A potência da articulação aparece diretamente relacionada com a existência de espaços vivos de pactuação e articulação entre os trabalhadores dos diversos serviços.

Os casos de AVC e de trauma assentam-se em bem estruturados protocolos de cuidado e referenciamento, compreendidos como planos de resposta rápida para situações graves, cuja resolubilidade é, na maioria das vezes, efetiva. Estudo realizado no estado do Rio Grande do Sul1919 Pinafo E, Carvalho BG, Nunes EFPA. Descentralização da gestão: caminho percorrido, nós críticos e perspectivas. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(5):1511-1524. demonstrou a importância do conhecimento dos fluxos e processos de trabalho para o atendimento ao AVC, pois a não utilização das ferramentas e dos dispositivos para efetivação dessa linha de cuidado leva à fragmentação da assistência. Com relação ao trauma, pesquisa realizada em Minas Gerais identificou movimentos de redes vivas na busca por parte dos usuários da continuidade do cuidado, evidenciando a potência dos encontros entre usuários, familiares e profissionais de saúde, mas, também, a incipiência na formação de redes formais capazes de acolher e resolver suas necessidades3030 Hadad ACAC, Jorge AO. Continuidade do cuidado em rede e os movimentos de redes vivas nas trajetórias do usuário-guia. Saúde debate. 2018; 42(4):198-210..

O que se observou na região estudada é que o atendimento de emergência, mesmo que com algumas limitações, foi garantido. O Samu, as UPA, os hospitais e mesmo as UBS, em algumas situações, realizaram o primeiro atendimento, reverteram quadros graves e/ou de sofrimento e estabilizaram as condições de saúde, na medida do possível. A questão que se coloca são as dificuldades para a continuidade do cuidado. As ações de reabilitação, cirurgias eletivas e procedimentos diagnósticos especializados nem sempre estavam acessíveis. Ao contrário, muitas vezes sequer eram reconhecidas como algo que deveria ser produzido em rede. Em estudo que analisou o acesso à reabilitação para vítimas de acidentes de trânsito no Brasil3232 Oliveira WIF, Sousa KMS, Melo LOM, et al. A qualitative study analyzing access to physical rehabilitation for traffic accident victims with severe disability in Brazil. Disabilities Rehabilitation. 2017; 39(6):568-577., foram relatadas enquanto barreiras a burocracia administrativa, a oferta insuficiente de serviços e a desarticulação entre os hospitais e serviços ambulatoriais. O insulamento das unidades hospitalares observado neste estudo, ou seja, sua baixa conectividade com os demais componentes da RUE, também foi descrito por Beltrammi e Reis3333 Beltrammi DGM, Reis AAC. A fragmentação dos sistemas universais de saúde e os hospitais como seus agentes e produtos. Saúde debate. 2020; 43(5):94-103. como causa e consequência da fragmentação dos sistemas universais de saúde em seus processos históricos de conformação. Observou-se na região estudada que as articulações dos hospitais e UPA com as UBS são frágeis e baseadas em relações pessoais entre profissionais e gerentes, não havendo rotinas regulares para acompanhamento pós-alta.

A linha de cuidado do IAM apresenta-se como nó crítico na região estudada. Apesar de contar com estrutura, capacidades técnica e profissional importantes na área de cardiologia, os relatos apontam para dificuldades para acesso a cirurgias e, principalmente, procedimentos de hemodinâmica. Pesquisa realizada no município de São Paulo demonstrou que a organização de uma rede de tratamento, envolvendo diagnóstico, reperfusão, transporte imediato e hospital de retaguarda, resultou em melhora imediata dos resultados para o IAM3434 Caluza ACV, Barbosa AH, Gonçalves I, et al. Rede de infarto com supradesnivelamento de ST: sistematização em 205 casos diminui eventos clínicos na rede pública. Arq. Bras Cardiol. 2012; 99(5):1040-1048.. Isso não é evidenciado na região deste estudo, onde o acesso ao procedimento de cateterismo e às cirurgias de revascularização miocárdica é comprometido.

Com relação aos instrumentos de articulação em rede, foram observados dispositivos formais e informais, construídos para casos e contextos singulares. Para a regulação, por exemplo, variados dispositivos foram utilizados, incluindo sistemas informatizados, contatos pessoais, sistemas manuais, núcleos hospitalares e grupos por aplicativo (WhatsApp). Em estudo realizado em município de grande porte no estado de São Paulo, também foram identificados arranjos tecnológicos capazes de produzir cuidado centrado no usuário: nesses casos, o complexo regulador foi utilizado de forma coadjuvante na garantia do acesso; e, nos serviços, verificaram-se arranjos com potência para a realização de uma regulação produtora do cuidado em rede3535 Freire MP, Louvison MCP, Feuerwerker LCM, et al. Regulação do cuidado em redes de atenção: importância de novos arranjos tecnológicos. Saúde Soc. 2020; 29(3):e190682.. Assim, a indução da produção viva de arranjos mais dialógicos de articulação entre pontos de atenção na RUE constitui-se em estratégia potente para a continuidade do cuidado.

Percebeu-se que os atores em cena no campo da prática na RUE reinterpretaram e adaptaram os textos da política de saúde formulada. Houve resistências, conflitos e tensões, explícitos ou não, que atravessaram as redes e que puderam reproduzir ou produzir iniquidades. Entretanto, houve produção de cuidado evidenciada pelos distintos movimentos de produção de redes identificados e valorizados pelos gerentes. Como efeitos de primeira ordem, puderam-se identificar, de forma desigual, o acréscimo no financiamento e a implantação ou ampliação de serviços, arranjos e tecnologias. Enquanto efeitos de segunda ordem, observaram-se a ampliação do acesso e uma integralidade restrita, que, embora ocorram de forma também desigual, não deixaram de ser ganhos no processo de consolidação do SUS.

Considerações finais

A aproximação com a RUE em cena mostra limites e possibilidades da indução de uma política pública de saúde formulada em âmbito nacional. Demonstra que uma política, com intencionalidades de ampliação do acesso e produção de atenção integral na sua formulação, tem sua implementação disputada no cotidiano dos serviços, atravessada por forças e interesses diferentes. Mesmo assim, há evidências de movimentos e produções vivas induzidas pela política, ou mesmo para além dela, que qualificam o cuidado em saúde em situações de urgência e emergência.

Conexões frágeis e não regulares entre os serviços ampliam as iniquidades e explicitam a necessidade de articulação entre os componentes em rede. O Samu, compreendido como importante articulador da rede e promotor de qualidade pela regulação médica da emergência, segue com baixa cobertura na região estudada, ainda que seja o mais antigo componente da RUE estruturado no País. As relações entre atenção básica, assistência domiciliar, UPA e hospitais são desafios importantes na produção da rede, e, muitas vezes, são mais produzidas por fluxos informais do que pelas estruturas, desvelando o baixo investimento no fortalecimento dessas conexões tão centrais para a produção da rede.

Arranjos como acolhimento, classificação de risco e regulação são compreendidos e implementados de distintas formas. Uma melhor organização e ampliação do acesso em situações de urgência e emergência foi o resultado mais presente nos vários serviços estudados, como consequência da implantação da RUE. Entretanto, a integralidade aparece comprometida pela desarticulação e descontinuidade do cuidado em rede.

No contexto da prática, fica reforçada a importância de se considerarem as dinâmicas e os cenários locais, os arranjos que organizam cada serviço de saúde e a conexão entre eles, para a construção de políticas públicas que promovam equidade e justiça social. Compreender a RUE enquanto política pública que promova acesso e integralidade e fortaleça a capacidade do SUS de se conectar e defender a vida e o direito à saúde no Brasil.

  • Suporte financeiro: o projeto de estudo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ)
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2021
  • Aceito
    24 Maio 2022
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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