Quando não é possível deixar de informar: o processo de trabalho de jornalistas durante a pandemia da Covid-19

Beatriz Joia Tabai Taylon Batista dos Santos Jandesson Mendes Coqueiro Sobre os autores

RESUMO

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa com o objetivo de analisar, a partir do referencial teórico da Análise Institucional Socioanalítica, o discurso dos jornalistas sobre o seu processo de trabalho durante a pandemia da Covid-19. A partir da entrevista projetiva com dez jornalistas, foram apontados que o medo da infecção por Covid-19, a diminuição salarial e a violência se configuraram atravessamentos em seus processos de trabalho. Com isso, os jornalistas buscavam linhas de fuga, como, por exemplo, a meditação e a leitura de obras literárias para enfretamento dos problemas existentes no trabalho. Além disso, os sujeitos afirmaram que o aprendizado com uso de novas tecnologias e o sentimento de estar realizando um trabalho importante se apresentavam como questões que potencializavam o seu labor. Dessa forma, faz-se necessário o fortalecimento de políticas públicas de proteção aos jornalistas, no sentido de valorização da profissão, combate à violência e aumento da qualidade de vida desses profissionais. Deve- se, principalmente, utilizar essa discussão como pauta política de intervenção nos próprios trabalhadores jornalistas, com busca ao enfretamento dos atravessamentos e transformação, uma vez que seus efeitos negativos são complexos, inclusive no que diz respeito à saúde desses indivíduos.

PALAVRAS-CHAVE
Jornalismo; Infecções por coronavírus; Comunicação em saúde

Introdução

O Sars-CoV-2, novo coronavírus, causador da doença Covid-19, foi detectado em 31 de dezembro de 2019 em Wuhan, na China. A Organização Mundial da Saúde (OMS) confirmou a circulação do novo coronavírus em 9 de janeiro de 2020; e no dia seguinte, a primeira sequência de Sars-CoV-2 foi publicada por pesquisadores chineses. Em 16 de janeiro de 2020, foi notificada a primeira importação em território japonês. Em 30 de janeiro desse ano, a OMS declarou a epidemia uma emergência internacional11 World Health Organization. IHR procedures concerning public health emergencies of international concern (PHEIC). Genebra: WHO; 2020..

Desse modo, levando em consideração a elevada infectividade do agente etiológico da Covid-19, a inexistência de imunidade prévia na população humana e de vacina contra esse vírus no início da pandemia fez com que o crescimento do número de casos fosse exponencial. Com isso, foram indicadas Intervenções Não Farmacológicas (INF), com finalidade de inibir a transmissão entre os indivíduos, desacelerar a disseminação da doença e, assim, postergar e diminuir o pico de ocorrência na curva epidêmica22 Anderson RM, Heesterbeek H, Hollingsworth TD. How will country-based mitigation measures influence the course of the Covid-19 epidemic? Lancet. 2020 [acesso em 2020 mar 18]; 395(10228):931-934. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30567-5
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As INF são medidas de saúde pública com alcance individual (lavagem das mãos, etiqueta respiratória, uso de máscara e distanciamento social), ambiental (limpeza rotineira de ambientes e superfícies, procedimentos que ajudam a eliminar os vírus) e comunitário (ações tomadas por gestores, empregadores e/ou líderes comunitários para proteger a população, como, por exemplo, a restrição ao funcionamento de escolas, universidades, locais de convívio comunitário)33 Qualls N, Levitt A, Kanade N, et al. Community mitigation guidelines to prevent pandemic influenza - United States, 2017. MMWR Recomm. Rep. 2017 [acesso em 2020 mar 27]; 66(1):1-32. Disponível em: https://doi.org/10.15585/mmwr.rr6601a1
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Para além das questões sanitárias, a pandemia da Covid-19 trouxe impacto na dinâmica econômica, política, social e cultural. Em se tratando da adoção das INF de alcance comunitário, perceberam-se também alterações nas dinâmicas laborais devido à alta transmissibilidade da Covid-19. Com isso, vários países determinaram que somente serviços públicos e atividades essenciais fossem mantidos.

No Brasil, o Decreto nº 10.282, de 20 de março de 202044 Brasil. Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020. Regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Diário Oficial da União. 20 Mar 2020., colocou que serviços públicos e atividades essenciais são aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, como, por exemplo, assistência à saúde, incluídos os serviços médicos e hospitalares; atividades de defesa nacional e de defesa civil; telecomunicações e internet, entre outros.

Apesar de configurarem serviços essenciais, é importante ressaltar que tanto o exercício das atividades laborais quanto as condições de trabalho são fontes importantes de exposição ao vírus55 Fiho JMJ, Assunção AA, Algranti E. A saúde do trabalhador e o enfrentamento da Covid-19. Rev Bras. Saúde Ocup. 2020 [acesso em 2020 mar 27]; 45:1-3. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0303-76572020000100100&lng=en Epub Apr 17, 2020. https://doi.org/10.1590/2317-6369ed0000120
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. Por sua vez, a situação de trabalho é território de disseminação da doença66 Baker MG, Peckham TK, Seixas NS. Estimating the burden of United States workers exposed to infectionor disease: a key factor in containing risk of Covid-19 infection. PloS One. 2020 [acesso em 2020 mar 27]; 15(4):1-12. Disponível em: https://doi.org/10.1101/2020.03.02.20030288
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Nesta pandemia, se a necessidade da proteção dos profissionais de saúde ganhou relevante destaque, situação similar não se verificou para outras categorias profissionais. No Brasil, elementos gráficos expondo dados estratificados por sexo, espaço geográfico e faixa etária são elaborados frequentemente com intuito de fornecer subsídios para melhor controle e prevenção da Covid-19, assim como planejamento e alocações de recursos necessários para operacionalizar os sistemas de saúde. Entretanto, os microindicadores de morbidade, nas publicações dessas estatísticas, não são desagregados até o nível da ocupação, o que impede a avaliação de onde e em que circunstâncias os sujeitos testados positivos ou diagnosticados com a doença estavam trabalhando; tampouco oportunizam identificar focos de disseminação relacionados com atividades de trabalho55 Fiho JMJ, Assunção AA, Algranti E. A saúde do trabalhador e o enfrentamento da Covid-19. Rev Bras. Saúde Ocup. 2020 [acesso em 2020 mar 27]; 45:1-3. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0303-76572020000100100&lng=en Epub Apr 17, 2020. https://doi.org/10.1590/2317-6369ed0000120
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Dentre os grupos considerados essenciais e que têm sua atividade laboral destinada à proliferação de informações importantes sobre a Covid-19, o que se configura também uma medida importante para o combate à pandemia, pode-se destacar o papel desempenhado pelos jornalistas, dos quais, no seu exercício profissional, a produção da notícia tem exigido a apuração do fato in loco, com diversas reportagens na rua e contato com outros indivíduos que serviram de fonte para a produção de matérias sobre os assuntos da pauta.

Para além da pandemia da Covid-19, a rotina de trabalho do jornalista é permeada frequentemente pela exposição a diferentes fatores de risco psicossocial, tais como: o convívio com situações de forte impacto emocional, a premência do tempo, a pressão dos editores-chefes pelo ‘fechamento da pauta’, a intensa competição pelo ‘furo de reportagem’ e pela primazia da notícia com seus concorrentes, entre outros77 Beraquet MIG. Qualidade de vida de jornalistas da macro região de Campinas/SP. [dissertação]. Campo Grande: Universidade Católica Dom Bosco; 2005. 145 p.. Tal fato tende a acelerar em situações de pandemia como a da Covid-19.

Um estudo objetivando identificar as condições de trabalho de 557 comunicadores no desempenho de suas funções durante a pandemia da Covid-19 demonstrou que houve aumento das jornadas de trabalho, intensificação da atividade laboral, em que a adoção de equipamentos de proteção individual foi apontada como um complicador da relação trabalhador-empresa-público. Os profissionais se sentiram mais cansados, inseguros com o futuro, temendo o contágio, pela vida dos familiares, a situação de colapso do sistema de saúde. Além disso, demonstraram preocupação com o trabalho, como perda de emprego, redução de salário, entre outras questões que atormentam e tornaram as jornadas mais estressantes88 Figaro R, Barros JV, Silva NR, et al. Como trabalham os comunicadores na pandemia da Covid-19? Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano. 2020; 3:1-39..

Considerando que “as condições de vida e trabalho dos indivíduos e de grupos da população estão relacionadas com sua situação de saúde”99 Buss PM, Filho AP. A Saúde e seus Determinantes Sociais. Physis (Rio J.). 2007 [acesso em 2020 mar 27]; 17(1):77-93. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/msNmfGf74RqZsbpKYXxNKhm/?format=pdf&lang=pt
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, que as INF trouxeram mudanças sociais e econômicas, em especial, para processo de trabalho de profissionais de diversos setores, e levando em consideração que as informações sobre a Covid-19 são constantes, este estudo tem como objetivo analisar, a partir do referencial teórico da Análise Institucional Socioanalítica, o discurso dos jornalistas sobre o seu processo de trabalho durante a pandemia da Covid-19.

Metodologia

Trata-se um estudo de abordagem qualitativa, tendo como referencial teórico-metodológico a Análise Institucional em sua vertente Socioanalítica.

A Socioanálise foi concebida no interior da Análise Institucional - umas das correntes do Movimento Institucionalista -, em 1970, por René Lourau, sendo definida como um método de intervenção em situação que se baseia em analisar as relações que as múltiplas partes no jogo social sustentam com o sistema manifesto e oculto das instituições1010 L’Abbate S. Análise institucional e intervenção: breve referência à gênese social e histórica de uma articulação e sua aplicação à Saúde Coletiva. Mnemosine. 2012; 8(1):194-219.

11 Figueiredo TAM. A Análise Institucional na formação acadêmica da Pós-Graduação em Saúde Coletiva no Espírito Santo. In: L’Abbate S, Mourão ML, Pezzato LM, organizadoras. Análise institucional e Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 607-632.

12 Hess R. O movimento da obra de Lourau (1933-2000). In: Altoé S, organizadora. René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 15-46.
-1313 Monceau G. Pratique socianalytiques et sócio-clinique institutionnelle. L’Harmattan. 2003; (147):11-33.
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As instituições são entendidas como árvores de decisões lógicas que controlam as atividades humanas indicando o que é indiferente, proibido e permitido. As instituições são compreendidas em um movimento que a gera (instituinte), um resultado (instituído) e um processo (institucionalização). Para realizar concretamente sua função reguladora, as instituições se materializam em organizações ou estabelecimentos1414 Baremblitt G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 6. ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012., como, por exemplo, a mídia.

Por intermédio da Socioanálise, os pesquisadores (socioanalistas) oferecem subsídios para análise dos integrantes (participantes do estudo) de uma organização (como empresas de telecomunicação), a respeito de suas relações, convenções, atitudes e práticas habituais. Para que isso aconteça, são utilizados ‘dispositivos analisadores’ (material que estimula o discurso sobre o assunto, por exemplo), que organizam a subversão (outra versão) da instituição (mídia, por exemplo) com ajuda de palavras e da participação dos membros, a fim de que haja o surgimento dos não ditos (aquilo que está velado)1515 Pereira WCC. Movimento institucionalista: principais abordagens. Estud pesqui Psicol. 2007; 7(1):6-16..

O universo deste estudo foi formado por dez jornalistas que trabalhavam como repórteres de rua nos jornais de televisão, em observância aos seguintes critérios de inclusão: 1) possuir graduação em jornalismo; 2) trabalhar como repórter de rua em um telejornal de uma emissora de televisão e; 3) ter realizado ao menos três reportagens na rua sobre a pandemia da Covid-19.

A produção do material se deu por meio de um painel de notícias sobre o processo de trabalho dos jornalistas durante a pandemia da Covid-19, entrevista projetiva e apontamentos de um diário de campo elaborado pelos pesquisadores.

O trabalho de campo implementado de maio a setembro de 2020 foi dividido em duas etapas. A primeira etapa consistiu na confecção de um painel de notícias (dispositivo analisador). Para isso, inicialmente, os pesquisadores fizeram uma escolha aleatória de notícias sobre o trabalho dos jornalistas e a interface com a Covid-19 pela ferramenta de busca do Google na aba notícias.

Buscando contemplar totalmente o espaço de 90 cm de largura por 120 cm de comprimento do painel, os pesquisadores fizeram a escolha, uma a uma, de todas as notícias, o que totalizou sete matérias escolhidas de forma aleatória, ou seja, o total de matérias que coube no painel sem comprometer a resolução do material. O painel serviu de suporte para a realização da entrevista projetiva, uma vez que essa técnica, conforme posto por Goldenberg1616 Goldenberg M. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. 11. ed. Rio de Janeiro: Record; 2009., utiliza recursos visuais para estimular a resposta dos sujeitos pesquisados.

Os assuntos abordados por cada matéria se caracterizavam da seguinte forma: 1) Político ‘debocha’ de jornalistas por estarem trabalhando durante a pandemia da Covid-19; 2) Saúde mental e física dos repórteres durante a pandemia da Covid-19; 3) Interdição das escadas do Planalto, obrigando os jornalistas a se aglomerar; 4) Jornalista que morreu de Covid-19 acusou emissora de televisão de negligenciar o assunto; 5) Ex-repórter de uma emissora sofre de Síndrome de Burnout; 6) Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) enfatiza a importância da segurança dos jornalistas ante a pandemia da Covid-19; 7) Repórter é agredido ao mostrar aglomeração em fila de banco durante a noite em Manaus-AM.

Na etapa seguinte, os pesquisadores fizeram a escolha aleatória do primeiro participante do estudo para realização do convite e esclarecimentos da pesquisa, ocorrendo da seguinte maneira: 1) acesso ao site de uma emissora televisão, identificada neste estudo como emissora A; 2) investigação dos vídeos sobre Covid-19 na barra de ferramentas de busca no site; 3) escolha do primeiro participante do estudo a partir do último vídeo publicado no momento da busca, ou seja, o repórter que estava fazendo a reportagem no último vídeo postado no site foi o primeiro participante do estudo convidado.

Os pesquisadores entraram em contato com o repórter via e-mail profissional, momento em que foi feito o convite para participar do estudo, apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em PDF e explicação sobre os objetivos do estudo. Após aceite do participante, houve o envio do TCLE assinado e digitalizado para o e-mail dos pesquisadores. Em seguida, houve o agendamento da entrevista no horário estabelecido pelo participante do estudo.

A entrevista projetiva, com duração máxima de 60 minutos, deu-se por meio da plataforma de comunicação denominada ‘Google Meet’, que é um dispositivo que permite mensagens instantâneas e chat de vídeo. Para este estudo, os pesquisadores apenas utilizaram a chamada de voz, na qual todo o encontro foi gravado com auxílio de um gravador. O painel de notícias foi apresentado ao participante do estudo no momento da entrevista.

Após a finalização de cada entrevista, o participante do estudo indicou outro jornalista para participar da pesquisa, conforme a técnica denominada ‘bola de neve’, resultando no total de dez participantes do estudo. A técnica bola de neve consiste em identificar um sujeito e solicitar-lhe que indique outro, o qual, por sua vez, indicará outro, e assim sucessivamente, até que se atinja o ponto de redundância - momento em que se observa que as informações obtidas estão suficientemente confirmadas; a partir disso, não mais se justifica a inclusão de outros participantes1717 Mazzotti AJA, Gewandsznajder F. O planejamento de pesquisas qualitativas. In: Mazzotti AJA, Gewandsznajder F. O Método nas Ciências Naturais e Sociais: Pesquisa Quantitativa e Qualitativa. 2. ed. São Paulo: Pioneira; 1999. p. 147-178..

O discurso de cada jornalista foi transcrito, procedendo-se, a seguir, juntamente com os apontamentos do diário de campo, à leitura acurada de todo material.

O corpus discursivo formado pelo conjunto de discursos dos jornalistas foi analisado de acordo com os conceitos da Socioanálise no sentido de acompanhar as linhas que se formaram no decorrer das entrevistas, emergindo, dessa forma, círculos que se desfizeram em ‘O processo de trabalho dos jornalistas durante a pandemia da Covid-19: atravessamentos e potencialidades’.

O estudo foi realizado mediante parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisas da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, sob o registro CAAE 31732620.5.0000.5108.

No sentido de manter o sigilo, cada um dos participantes foi denominado como números cardinais; e o nome das emissoras, por letras do alfabeto.

Resultados e discussão

Caracterização dos participantes do estudo

Participaram do estudo dez jornalistas, sendo apenas duas do sexo feminino. A idade deles variou de 27 a 38 anos. Quanto ao ponto de vista ético/racial, cinco sujeitos autodeclararam-se pardos; quatro, brancos; e um, indígena. Sobre a religião, prevaleceu o catolicismo com cinco sujeitos. Em relação à localização, prevaleceram sujeitos que moram na região Sudeste com seis participantes, dois da região Norte, um da região Sul e um da região Centro-Oeste.

Em relação aos aspectos profissionais, o tempo de trabalho na área do jornalismo variou de quatro a dez anos; o vínculo com a emissora atual, de um a nove anos; e na abrangência das reportagens, prevaleceram as matérias de cobertura estaduais.

O processo de trabalho dos jornalistas durante a pandemia da Covid-19: atravessamentos e potencialidades

A infecção de pessoas pela Covid-19, tendo seus primeiros casos surgidos em dezembro de 2019 em Wuhan, na China, pode ser entendida, na perspectiva da Socioanálise, como um acontecimento, ou seja, um processo e resultado da atividade afirmativa do acaso que se configura como substrato de transformações de pequeno ou grande porte que revolucionam a história em todos os seus níveis e âmbitos1414 Baremblitt G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 6. ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012..

Na ausência de tratamento específico e poucas doses disponíveis da vacina para a Covid-19, as transformações de pequeno e grande porte estão revolucionando a história na medida que desvelam situações históricas de negligência de políticas públicas, incluindo o subfinanciamento do sistema público de saúde, da ciência, da tecnologia e das universidades públicas, além da desvalorização do trabalho e dos trabalhadores1818 Cueto M. O Covid-19 e as epidemias da globalização. História, Ciências e Saúde-Manguinhos. 2020. [acesso em 2020 mar 27]. Disponível em: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/o-covid-19-e-as-epidemias-daglobalizacao/
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. Durante uma epidemia, a organização do trabalho de diversos grupos ocupacionais sofre profundas alterações quanto à jornada de trabalho, realização de horas extras e ritmo de trabalho1919 Schwartz J, King C, Yen M. Protecting Healthcare Workers During the Coronavirus Disease 2019 (COVID19) Outbreak: Lessons from Taiwan’s Severe Acute Respiratory Syndrome Response. Clinical Infectious Diseases. 2020 [acesso em 2020 mar 27]; 255:1-3. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7108122/
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, como no caso do processo de trabalho dos jornalistas que vêm atuando incansavelmente para levar informação sobre a Covid-19 em tempos de pandemia.

Cabe mencionar que, para além das mudanças impostas pela pandemia da Covid-19, os profissionais da comunicação, como os jornalistas, têm enfrentado profundas alterações no mundo do trabalho. A estrutura sociotécnica dos meios de produção se transformou com meios digitais e internet. Esses eventos foram assimilados pelo mercado da comunicação com ampliação da precarização do trabalho, densificação do ritmo da atividade e aumento das horas trabalhadas88 Figaro R, Barros JV, Silva NR, et al. Como trabalham os comunicadores na pandemia da Covid-19? Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano. 2020; 3:1-39., o que pode ter influência direta no processo de adoecimento do indivíduo, uma vez que o trabalho pode ser visto como um determinante social da saúde - e, juntamente com outros fatores, como educação e habitação, por exemplo, impactam na qualidade de vida da população.

Dessa maneira, a pandemia da Covid-19 encontra a área da comunicação em profunda crise, com quadro de perspectivas dramáticas para o mundo do trabalho dos profissionais da comunicação, como, por exemplo, contratos precários, demissões, rebaixamento salarial, densificação do trabalho, o que leva ao estresse, agravado com as incertezas sobre o futuro88 Figaro R, Barros JV, Silva NR, et al. Como trabalham os comunicadores na pandemia da Covid-19? Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano. 2020; 3:1-39..

Os jornalistas entrevistados neste estudo apontaram a diminuição do salário, o aumento da violência durante a atividade laboral e o medo de se infectar pela Covid-19 como atravessamentos vivenciados durante o processo de trabalho na pandemia.

Um atravessamento se configura como um entrelaçamento, interpenetração e articulação de orientação conservadora que serve de exploração, mistificação e dominação1414 Baremblitt G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 6. ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012..

Sobre a redução dos salários durante a pandemia, os jornalistas entrevistados fizeram as seguintes declarações:

Aqui [emissora] foi por questões financeiras mesmo. Então eles disseram que era para reduzir salário por conta da questão econômica, mas a gente está trabalhando menos, a gente está trabalhando só com 6 horas e intervalo de 15 horas [...] A gente fala que jornalista não é só jornalista enquanto está aqui dentro da TV, nós somos jornalistas 24 horas, não ganhamos para trabalhar 24 horas, mas consequentemente a rotina acaba sendo levada nesse sentido. Sempre tem uma coisinha que você pode fazer e ajudar. A ideia é ajudar o próximo telejornal. (Jornalista 1, região Centro-Oeste).

Tive redução de carga horária e de salário. Então, é mais um impacto econômico também que invadiu a minha casa. Não foi só na casa dos outros que eu conto história todos os dias, mas também dentro da minha casa, nos meus dois empregos. (Jornalista 5, região Sudeste).

As reduções dos salários e das jornadas de trabalho foram instituídas pelo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, da Lei nº 14.020, de 6 de julho de 2020, que autoriza os empregadores a alterar salários e jornada laboral durante a pandemia da Covid-19 no Brasil, reduzidos em 25%, 50% ou 70%, com uma complementação salarial também concedida pelo governo2020 Brasil. Lei n˚ 14.020, de 06 de julho de 2020. Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. Diário Oficial da União. 6 Jul 2020.. Certamente, os efeitos mais nefastos de tal medida são reservados aos trabalhadores cuja renda é destinada imediatamente a gastos habituais, como alimentação2121 Silva WF, Ruiz JLS. A centralidade do SUS na pandemia do coronavírus e as disputas com o projeto neoliberal. Physis (Rio RJ). 2020 [acesso em 2020 mar 27]; 30(3):1-8. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/5LqczYMjkxnqZXGfXfckxTK/?lang=pt
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- um dos produtos que mais tiveram aumento durante a pandemia2222 Preços dos alimentos dispararam durante a pandemia. Portal a tarde. 2020 set 11. [acesso em 2020 dez 10]. Disponível em: http://atarde.uol.com.br/economia/noticias/2138478-precos-dos-alimentos-dispararam-durante-a-pandemia
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De acordo com levantamento realizado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)2323 Brasil. Federação Nacional dos Jornalistas. MP 936: Mais de 4 mil jornalistas do país tiveram impactos salariais durante a pandemia. Brasília, DF: FENAJ. 2020., 3.930 jornalistas que trabalham com carteira assinada, nas bases de 16 sindicatos do País, tiveram redução de salário e de jornada durante a pandemia. Outros 81 jornalistas tiveram seus contratos de trabalho suspensos, e 205 foram demitidos. Entretanto, esses dados podem ser subnotificados já que correspondem a pouco mais da metade da quantidade de Sindicatos de Jornalistas que representam a categoria no País e que é de responsabilidade das empresas notificarem as entidades sindicais sobre a ocorrência de acordos individuais.

Cabe ressaltar ainda que a renda também é um importante determinante social da saúde, ou seja, influencia no processo saúde-doença do indivíduo; e quando existem diferenças ou desigualdade nos processos de distribuição de renda, há um impacto na saúde visualizado pela escassez de recursos dos indivíduos e pela ausência de investimentos em infraestrutura comunitária (educação, transporte, saneamento, habitação, serviços de saúde etc.), decorrentes de processos econômicos e de decisões políticas99 Buss PM, Filho AP. A Saúde e seus Determinantes Sociais. Physis (Rio J.). 2007 [acesso em 2020 mar 27]; 17(1):77-93. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/msNmfGf74RqZsbpKYXxNKhm/?format=pdf&lang=pt
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, como o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda.

Além disso, mesmo com salários reduzidos e justificados, algumas vezes, pela redução da carga de trabalho presencialmente nas emissoras de televisão, conforme depoimento do jornalista 1, segundo Travancas2424 Travancas IS. O mundo dos jornalistas. São Paulo: Summus; 1993., a profissão pressupõe a entrega de um tempo pessoal de forma integral ao trabalho, pois existe uma cobrança implícita, se não explícita, que ser jornalista significa trabalhar 24 horas, e não só quando se está no jornal fazendo matéria de rua. Esse processo pode ser compreendido na Socioanálise como exploração, isto é, procedimento de expropriação das forças, meios e resultados dos métodos produtivos efetuados pelos setores dominantes (empresas de comunicação) sobre os produtores (jornalistas)1414 Baremblitt G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 6. ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012..

Outro atravessamento vivenciado pelos jornalistas durante a pandemia da Covid-19 é a violência durante suas atividades laborais, conforme exposto nos trechos a seguir:

[...] Nossa, agressões verbais, várias. Posso dizer por mim, na rua, desde o início da pandemia que isso se tornou um caos, nós tivemos que inclusive mudar os nossos procedimentos, acabamos evitando de sair mais para a rua ou em lugares com grande concentração de pessoas, para evitar esses tipos de agressões. Mas, sofri várias, perdi as contas de quantas sofri durante esses 4 meses de pandemia. Tive uma tentativa de agressão física que só não se consolidou, porque a esposa do rapaz que ia partir para a agressão o segurou. Eu tive um colega que estava fazendo uma reportagem aqui no centro do município 3 e sofreu uma agressão física de ser empurrado. As agressões acho que verbais, às vezes elas doem tanto quanto se fosse uma agressão física, sabe? Porque elas acabam atingindo você como ser humano e você como profissional, te colocando em descrédito daquilo que você está fazendo, sendo questionado se realmente aquilo que você está fazendo é o certo. (Jornalista 3, região Sul).

[...] e de repente, um dia, quando eu ouço um xingamento na rua, uma pessoa me chamando de ‘nome pejorativo atribuído à emissora’ e gritando atrás de mim, eu começo com uma dor muito forte e eu percebo que isso é um estresse. (Jornalista 4, região Sudeste).

Durante a pandemia, fui hostilizado várias vezes, atrapalhavam o trabalho da gente na hora que a gente ia gravar, principalmente quando eu aparecia com o microfone da empresa. [...] Tem situação de colega que chora depois da reportagem ou durante a reportagem. Eles até selecionam, aqui na empresa, quem pode fazer determinado tipo de reportagem, quando tem que pegar flagrante, por exemplo, porque realmente tem abalado muito a saúde mental dos repórteres. (Jornalista 6, região Norte).

[...]. Hoje nós trabalhamos com o nosso carro que não é mais plotado. Antes tinha a identificação da emissora no carro e fomos obrigados a tirar a identificação, principalmente por causa dessas agressões que a gente estava passando e a gente ainda passa, por exemplo, se a gente está gravando na rua, fazendo um link ao vivo, as pessoas ainda passam de carro e agridem. (Jornalista 9, região Sudeste).

A violência relacionada com o trabalho é configurada como uma atitude voluntária de um sujeito ou grupo contra outro sujeito ou grupo que cause danos psicológicos ou físicos, ocorrida no ambiente laboral, ou que envolva relações estabelecidas no trabalho ou atividade concernente ao trabalho, podendo ser considerada também como forma de negligência em relação às condições de trabalho; privação e infração de princípios fundamentais e direitos trabalhistas e previdenciários; e omissão de cuidados, socorro e solidariedade diante de algum infortúnio, caracterizados pela naturalização da morte e do adoecimento relacionados com o trabalho2525 Oliveira RP, Nunes MO. Violência relacionada ao trabalho: uma proposta conceitual. Saúde soc. 2008 [acesso em 2020 dez 10]; 17(4):22-34. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902008000400004&lng=en
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Quanto aos trabalhadores jornalistas, segundo a Fenaj2626 Brasil. Federação Nacional dos Jornalistas. Violência contra os jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil: relatório 2019. Brasília, DF: FENAJ; 2020., as situações de violência são organizadas da seguinte forma: assassinatos; prisões/detenções; atentados; violência contra organização sindical; censuras; cerceamentos à liberdade de expressão por meios judiciais; impedimentos ao exercício profissional; agressões verbais; ameaças/intimidações; e agressões físicas.

O Brasil é o segundo país das Américas com maior número de jornalistas mortos em decorrência da situação de trabalho2727 Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. CPJ coloca Brasil, Paraguai e México em lista de países mais letais para jornalistas em 2014. São Paulo: Abraji; 2015.. Segundo a Fenaj2626 Brasil. Federação Nacional dos Jornalistas. Violência contra os jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil: relatório 2019. Brasília, DF: FENAJ; 2020., em 2019, foram registrados 114 casos de descredibilização da imprensa e 94 de agressões diretas a profissionais, totalizando 208 casos de violência. O número é 54,07% maior do que o registrado em 2018, quando ocorreram 135 casos de agressões a jornalistas.

Em 2020, a situação agravou-se. Houve uma verdadeira explosão da violência contra jornalistas e contra a imprensa. Foram registrados 428 episódios, 105,77% a mais do que em 2019. A descredibilização da imprensa, como no ano anterior, foi a violência mais frequente: 152 casos, o que representa 35,51% do total2828 Federação Nacional dos Jornalistas. Violência contra jornalista e liberdade de imprensa no Brasil: Relatório 2020. Brasília, DF: FENAJ; 2021..

Além disso, o medo de infecção pela Covid-19 também perpassa o cotidiano laboral dos jornalistas, conforme percebido nos trechos a seguir:

[...] mas a gente sabe que a gente está na rua e que isso [a infecção] pode acontecer. Eu tenho um pouco de receio justamente pela questão dos meus pais. Eu moro com os meus pais, então, eu por mim, tenho tranquilidade sobre a questão de ficar doente, claro que ninguém quer, agora meu pai não, meu pai vai fazer 62 [anos] esse ano, minha mãe tem 56 [anos] e eles não têm uma saúde boa. Então, eu posso estar na rua, me contaminar, ir pra casa, levar pra eles, e, sem sentir, acabar prejudicando a vida deles. Então eu tenho essa preocupação com a família por conta de justamente ser esse vetor e elevar essa situação pra dentro de casa. (Jornalista 1, região Centro-Oeste).

[...] porque você tem medo da doença e ela é muito mais desconhecida do que é hoje. Então eu não vejo a minha família há aproximadamente um ano. Eu faria isso no início do ano, porém teve a pandemia. Então, eu não consegui ir no meu aniversário, nem no Dia das Mães. Então, isso mexe muito com nosso emocional. (Jornalista 4, região Sudeste).

[...] na rua tenho medo sim, porque, às vezes, a gente está em contato, vai entrevistar alguém, por exemplo, uma pessoa que está com parente dentro da unidade de saúde com suspeita da Covid-19. Quando deu aquele pico mesmo, em que as pessoas não conseguiam transferência pra UTI, a gente entrevistava essas pessoas e ficava com receio, porque, por exemplo, era a esposa do rapaz que estava lá dentro do hospital ou era o filho. Então, em maior ou em menor medida, essa pessoa teve um contato com o parente infectado e estava ali, muito próximo da gente. (Jornalista 8, região Sudeste).

[...] a única coisa que foi acrescentada no meu psicológico foi o medo, porque é o medo do contágio, que todo mundo tem. (Jornalista 10, região Sudeste).

Dessa forma, é importante considerar que o medo em meio a uma pandemia, conforme relatados pelos jornalistas 1, 4, 8 e 10, aumenta os níveis de ansiedade e estresse nos sujeitos e intensifica os sintomas daqueles com transtornos psiquiátricos preexistentes2929 Shigemura J, Ursano RJ, Morganstein JC, et al. Public responses to the novel 2019 coronavirus (2019-nCoV) in Japan: mental health consequences and target populations. Psychiatry Clin Neurosci. 2020 [acesso em 2020 dez 10]; 74(4):281-282. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32034840/
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. Além disso, o número de pessoas com saúde mental afetada tende a ser maior que o número de pessoas afetadas pela infecção. Experiências anteriores em pandemias mostraram que as implicações para a saúde mental podem ter tempo mais longo e prevalência maior que a própria epidemia e que as repercussões psicossociais e econômicas podem ser incalculáveis se for considerado sua ressonância em diferentes contextos3030 Reardon S. Ebola’s mental-health wounds lingerin Africa. Nature. 2015 [acesso em 2020 dez 10]; 519:13-14. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25739606/
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Cabe ressaltar que todos os atravessamentos relatados pelos jornalistas, como o medo da infecção pelo novo coronavírus, a redução salarial e a violência, por exemplo, levam esses trabalhadores, na perspectiva da Socioanálise, a uma antiprodução, ou seja, as potências produtivas - naturais, psíquicas e sociais - são capturadas pelas grandes entidades de controle e reprodução (o Estado, o Capital, por exemplo), e suas forças são voltadas contra si mesmas, levando-as à repetição estéril ou autodestruição1414 Baremblitt G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 6. ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012.. Isso pode ser percebido, por exemplo, nas dificuldades apresentadas na realização das atividades laborais, como visualizado no depoimento do jornalista 4:

Eu começo a trocar palavras, às vezes, no ar e tenho medo de entrar ao vivo para fazer com naturalidade uma coisa que antes eu fazia com o ‘pé nas costas’. Quando você começa a ter problemas ligados à língua, que você fala, isso começa a trazer um sofrimento muito grande e isso, às vezes, aconteceu porque você está tão estressado, com tanto medo. (Jornalista 4, região Sudeste).

Levando em consideração o depoimento do jornalista 4, vale frisar que o trabalho do jornalista é caracterizado por um complexo processo de produção que se inicia pela percepção, seleção e transformação de um acontecimento (matéria-prima), resultando em uma notícia (produto)3131 Traquina N. Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular; 2004.. Além disso, há uma intensificação das demandas de trabalho em tempos de pandemia que causa impacto direto nas rotinas produtivas, na qualidade do produto, e, especialmente, no bem-estar desses jornalistas, ou ainda, de forma mais grave, força-os a colocar suas vidas em risco, cobrindo o cotidiano de ambientes ligados à doença (cemitérios, hospitais e espaços públicos com aglomerações)3232 Lubianco J. Sem Trabalho Remoto: repórteres fotográficos estão na linha de frente da cobertura da pandemia de Covid-19 na América Latina. LatAm Journalism Review. 2020. [acesso em 2020 dez 10]. Disponível em: https://latamjournalismreview.org/pt-br/articles/sem-trabalho-remoto-reporteres-fotograficos-estao-na-linha-de-frente-da-cobertura-da-pandemia-de-covid-19-na-america-latina/
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. Entretanto, os participantes deste estudo mencionaram a prática de meditação e leitura de livros literários, por exemplo, como linhas de fuga para manter-se bem, melhorar a qualidade de vida e a produtividade no trabalho.

Uma linha de fuga é um vetor de desorganização, uma redistribuição dos possíveis que desembocam em uma transformação ao menos parcial, improgramável, ligada ao imprevisível estabelecimento de espaços-tempos, de agenciamentos institucionais inéditos; fazer fugir algo, fazer fugir um sistema34, em conformidade com os relatos a seguir:

Eu já fazia meditação, então, nesse tempo, eu estou buscando fazer mais ainda. Essa crise de ansiedade foi bem recentemente - semana passada - e realmente me atrapalhou, não só na vida pessoal, mas na profissional também, e, desde então, eu já faço terapia, aumentei para mais um dia na semana até passar um pouco esse período em que eu estou me sentindo mais ansiosa. Passei a tomar um calmante natural, porque eu não tomo nenhum outro remédio, então, pode ser um placebo, mas para mim foi bom, porque eu não tomo nada e só de tomar alguma coisa eu já fico mais tranquila. Comecei a fazer aula de yoga por vídeo e tentando dormir melhor, mas não tem muito o que fazer além disso. Tentando voltar para a consciência, para o momento. (Jornalista 2, região Sudeste).

[...] comecei a aproveitar meu tempo pra ler outras literaturas de jornalismo diferente, de política, acabei colocando minhas séries em dia, jogando videogame, fazendo coisas que eu não tava fazendo pra poder dar uma desconectada. (Jornalista 5, região Sudeste).

Apesar dos atravessamentos no cotidiano de trabalho dos jornalistas durante a pandemia, os sujeitos relataram o aprendizado e o sentimento de realizar um trabalho importante como questões que potencializam o seu labor.

Para a Socioanálise, uma potência é definida como a capacidade de produzir, inventar e transformar, designando, em geral, a magnitude das forças geradoras do novo radical, criador de vida1414 Baremblitt G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 6. ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012., conforme depoimentos:

[...] o que eu tiro de positivo é ter essa resposta da população, que acompanha e que acredita no que a gente está falando. (Jornalista 1, região Centro-Oeste).

[...] Houve uma quebra de paradigma. Eu me senti extremamente confortável em aprender coisas novas em mexer em novos recursos tecnológicos, acho que isso foi muito bacana. Eu acho que a gente vai acabar usando muitas dessas novas técnicas que a gente acabou aprendendo. (Jornalista 3, região Sul).

[...] Então, tentamos trazer alguma coisa de diferente para a gente realmente poder fazer o nosso trabalho de forma eficiente, que é provocar o telespectador, que é chamar a atenção dele, que é informar. Quando a gente vê a maioria esmagadora usando máscara na rua, não é só o medo, também é informação. (Jornalista 5, região Sudeste).

Um ponto positivo, eu acho que os colegas têm olhado um pouco mais para o outro, talvez não num nível de compreensão tão grande, mas tem conseguido olhar mais pro outro e tem percebido essa questão da união. (Jornalista 7, região Norte).

Essas questões conduzem uma potência que estimula o desejo enquanto criação e liberdade de ação de cada jornalista, o que se constitui a sua subjetividade na elaboração de novas estratégias no seu cotidiano de trabalho, em oposição às práticas molares1414 Baremblitt G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 6. ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012., ou seja, ações entremeadas de regularidade, estabilidade, da conservação e da reprodução, na qual operam equipamentos sedentários de captura.

Assim, conforme depoimentos dos jornalistas participantes deste estudo, é possível perceber que, apesar dos atravessamentos vivenciados durantes a pandemia da Covid-19, esses sujeitos conseguem, por meio da autoanálise - um saber acerca de si mesmos, suas necessidades, desejos, demandas, problemas, soluções e limites1414 Baremblitt G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. 6. ed. Belo Horizonte: FGB/IFG; 2012., proposto pela Socioanálise -, observar as potencialidades apresentadas no cotidiano laboral e utilizar estratégias para impulsionar um jornalismo ético e democrático, que possa ser perceptível no dia a dia das pessoas pela disseminação das notícias. Isso aconteceu também, porque esses jornalistas, mediante análise da implicação, perceberam a relação que eles estabelecem com a instituição mídia.

Considerações finais

A pandemia da Covid-19 acentuou as mudanças comportamentais em toda a sociedade, obrigando aos trabalhadores adequação dos processos de trabalho, especialmente, àqueles que cumprem funções essenciais, como os jornalistas.

Dessa forma, neste estudo, foram apresentados os resultados das entrevistas realizadas com dez jornalistas que atuam na cobertura da pandemia da Covid-19, o que constatou a existência de diversos atravessamentos - medo de infecção pelo vírus, alteração salarial e violência por exemplo - que dificultam a qualidade de vida dos jornalistas e a produtividade em seu labor. Apesar disso, os jornalistas afirmaram que o aprendizado e o sentimento de realizar um trabalho importante se configuram como elementos que potencializam o seu processo de trabalho.

Os depoimentos empreendidos por cada jornalista constituíram sentimentos e percepções sobre o trabalhar levando informações para a população em meio à pandemia da Covid-19. Esses depoimentos e histórias moldam, de maneira atenta, os ditames de atuar em serviços amplamente atacados por governantes, as fragilidades enfrentadas pela imposição da pandemia e a acelerada cobrança por informações em tempo real.

Faz-se necessária a potencialização de políticas públicas de proteção aos jornalistas, no sentido de valorização da profissão, combate à violência e aumento da qualidade de vida desses profissionais. Deve-se, principalmente, utilizar essa discussão como pauta política de intervenção nos próprios trabalhadores jornalistas, com busca ao enfretamento dos atravessamentos e transformação, uma vez que seus efeitos negativos são complexos, inclusive no que diz respeito à saúde desses indivíduos.

Do ponto de vista da saúde coletiva, é importante ressaltar que, apesar de os jornalistas buscarem linhas de fuga para amenizar os problemas decorrentes do intenso processo de trabalho durante a pandemia da Covid-19, faz-se necessário pensar em ações de promoção em saúde em que assegurem não apenas a saúde individual de cada profissional do jornalismo, mas também ação coordenada intersetorial que envolva educação, habitação, renda, trabalho, alimentação, educação, acesso a bens e serviços essências, lazer, entre outros determinantes sociais da saúde.

Além disso, é preciso seguir acompanhando os desdobramentos do processo de trabalho dos jornalistas no pós-pandemia, agrupando descobertas e reflexões que auxiliem a discussão sobre os atravessamentos enfrentados por essa categoria profissional em seu cotidiano de trabalho e as repercussões na saúde desses trabalhadores trazidas durante o processo de trabalho na pandemia da Covid-19. Faz-se necessária, dessa forma, a realização de mais estudos que busquem como objeto a interface entre o trabalho dos jornalistas e a área da saúde.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2021
  • Aceito
    02 Ago 2021
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