Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos

Indigenous territories and socio-environmental determination of health: discussing exposure by pesticides

Francco Antonio Neri de Souza e Lima Marcia Leopoldina Montanari Corrêa Silvia Angela Gugelmin Sobre os autores

RESUMO

As etapas que envolvem a cadeia produtiva de commodities agrícolas produzem possibilidades diferenciadas de vulnerabilidade nas populações, afetando a situação de saúde dos povos indígenas. O uso de agrotóxicos é uma atividade intrínseca aos monocultivos. A exposição a essas substâncias gera desfechos negativos agudos e crônicos na saúde humana e contaminação no ambiente. De modo a contribuir com o debate no campo da Saúde Coletiva, o texto direciona as discussões ao estado de Mato Grosso, onde estão vários povos indígenas, enfrentando a produção de commodities e desfechos em saúde relacionados com os agrotóxicos. Para isso, recorremos à determinação socioambiental do processo saúde-doença, organizando uma matriz de indicadores que enfatizam as escolhas e as omissões do Estado nas questões ambientais, incorporando historicidade nos processos de adoecimento. Os impactos da cadeia de commodities agrícolas e as exposições por agrotóxicos em territórios indígenas são um problema intersetorial que se vincula a violação de direitos humanos, direito à terra, à saúde e à segurança alimentar e nutricional. As respostas devem ser consideradas em uma perspectiva articulada entre os setores econômico, político, ambiental e da saúde, com participação e decisão da população indígena nas etapas dos processos.

PALAVRAS-CHAVES
Determinação Social da Saúde; Agronegócio; Agrotóxicos; Praguicidas; Povos indígenas

ABSTRACT

The stages involving the agricultural supply chain produce different possibilities of vulnerability in populations, affecting the health situation of indigenous peoples. The use of pesticides is an activity intrinsic to monocultures. The exposure to these substances generates acute and chronic negative outcomes in human health and contamination in the environment. In order to contribute to the debate in Public Health, the text directs the discussions to the state of Mato Grosso, where are several indigenous peoples, facing the production of commodities and health outcomes associated to pesticides. For that, we resort to the socio-environmental determination of the health-disease process, organizing a matrix of indicators that emphasize the choices and omissions of the State in environmental issues, incorporating historicity in the processes of illness. The impacts of the agricultural commodities chain and exposures by pesticides in indigenous territories are an intersectoral problem that is linked to the violation of basic social rights, such as the right to land, health, and food and nutritional security. The responses must be considered in an articulated perspective between the economic, political, environmental, and health sectors, with participation and decision by the indigenous population in the stages of the processes.

KEYWORDS
Social Determination of Health; Agribusiness; Pesticides; Indigenous peoples

Introdução

A intensa utilização de agrotóxicos nas regiões agrícolas está relacionada com a produção de grãos e fibras, mas também com as questões agrárias, políticas, sanitárias e ambientais que formam uma trama de vias diretas e indiretas de exposições, que devem ser analisadas enquanto processo de contaminação11 Oliveira LK, Pignati WA, Pignatti MG, et al. Processo sócio-sanitário-ambiental da poluição por agrotóxicos na bacia dos rios Juruena, Tapajós e Amazonas em Mato Grosso, Brasil. Saúde E Soc. 2018 [acesso em 2021 abr 19]; 27(2):573-87. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/RkzmB8BHSHZqyjxnKK8xvPL/abstract/?lang=pt.
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. Os resultados das exposições por agrotóxicos aparecem nos corpos como irritações dérmicas, oculares, cefaleia, náuseas, desregulação endócrina, malformações fetais, abortos, mutações genéticas, canceres, distúrbios respiratórios, mentais (depressão e suicídio) e exploração das condições de trabalho22 Mostafalou S, Abdollahi M. Pesticides: an update of human exposure and toxicity. Arch Toxicol. 2017 [acesso em 2021 maio 26]; 91(2):549-99. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs00204-016-1849-x.
https://link.springer.com/article/10.100...
,33 Instituto Nacional de Câncer. Agrotóxicos. In: Instituto Nacional de Câncer. Ambiente, trabalho e câncer: aspectos epidemiológicos, toxicológicos e regulatórios. Rio de Janeiro: INCA; 2021. p. 241-60. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/publicacoes/livros/ambiente-trabalho-e-cancer-aspectos-epidemiologicos-toxicologicos-e-regulatorios.
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, afetando o perfil de morbimortalidade das populações.

O conjunto das operações de produção agropecuária, denominado agronegócio, legitima-se com publicidade, políticas de créditos públicos, isenções tributárias e maior regulação externa nas técnicas de manejo, insumos e logística. Seus produtos ou commodities são coordenados por instituições como governo e mercados futuros, atendendo a uma economia globalizada, não priorizando a produção de alimentos para abastecimento interno, a soberania e segurança alimentar da população brasileira44 Corrêa MLM, Pignati WA, Pignatti MG, et al. Alimento ou mercadoria? Indicadores de autossuficiência alimentar em territórios do agronegócio, Mato Grosso, Brasil. Saúde debate. 2019 [acesso em 2021 abr 19]; 43(123):1070-83. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/pcPNxVk4pjxVzxmRxCMnPVL/?lang=pt.
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,55 Augusto LG, Carneiro FF, Pignati WA, et al. Parte 2 – Saúde, ambiente e sustentabilidade. In: Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015. p. 90-191..

As etapas que envolvem a cadeia produtiva de commodities agrícolas, como soja, milho, algodão e cana-de-açúcar, produzem possibilidades diferenciadas de vulnerabilidade nas populações, afetando a situação de saúde dos povos indígenas em conflitos socioambientais injustos, processos históricos de discriminação, ameaças à integridade dos territórios tradicionais e desestruturação dos sistemas nativos de subsistência e autocuidado66 Rocha DF, Porto MFS, Pacheco T. A luta dos povos indígenas por saúde em contextos de conflitos ambientais no Brasil (1999-2014). Ciênc. Saúde Colet. 2019 [acesso em 2020 ago 13]; 24(2):383-92. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/dSgZJn5NWyKx65vqHDQXfBN/?lang=pt.
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.

As políticas indigenistas dos séculos passados traziam a ideia equivocada da transitoriedade do indígena, que passaria a ser um trabalhador rural integrado à ‘civilização’77 Oliveira JP. Contexto e horizonte ideológico: reflexões sobre o Estatuto do Índio. In: Santos SC, Organizadores. Sociedades indígenas e o direito: uma questão de direitos humanos. Florianópolis: Editora da UFSC; 1985. p. 17-30.
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. O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) surgiu nesse cenário com a intenção de controlar os conflitos pela terra, transformar a população indígena em pequenos produtores agrícolas, sedentarizar esses povos em reservas indígenas e disciplinar o acesso e o uso das terras devolutas. Sob a égide do regime tutelar, o SPI e a Fundação Nacional do Índio (Funai) foram essenciais na conformação da apropriação fundiária existente no País, que permanece até hoje um sistema estatizado, colonizador, desenvolvimentista e excludente88 Lima ACS. Sobre a tutela e participação: Povos indígenas e formas de governo no Brasil, séculos XX/ XXI. Mana. 2015 [acesso em 2021 abr 16]; 21(2):425-57. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/Hq63jTNN9yHhPTQ4PjXjBdw/?lang=pt.
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No Brasil, há 725 Terras Indígenas (TI) em diferentes fases do processo demarcatório99 Instituto Socioambiental. Situação atual das Terras Indígenas. Terras indígenas do Brasil. 2020. [acesso em 2020 jul 24]. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/.
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– cada terra possui particularidades socioculturais, em que as condições de vida estão relacionadas com os processos históricos sociais, econômicos e ambientais1010 Coimbra CEA, Santos RV, Cardoso AM. Povos indígenas e o processo saúde-doença. In: Barros DC, Silva DO, Gugelmin AS, organizadores. Vigilância alimentar e nutricional para a saúde Indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007. p. 47-74. [acesso em 2020 jul 17]. Disponível em https://books.scielo.org/id/fyyqb/pdf/barros-9788575415870-04.pdf.
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. Mato Grosso é um dos estados brasileiros com maior produção de commodities agrícolas. Ao mesmo tempo, é onde vivem 42 povos indígenas99 Instituto Socioambiental. Situação atual das Terras Indígenas. Terras indígenas do Brasil. 2020. [acesso em 2020 jul 24]. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/.
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em 79 TI reconhecidas.

Assim, o presente artigo discute as pressões do agronegócio e do uso de agrotóxicos sobre territórios e populações indígenas. De modo a contribuir com esse debate no campo da Saúde Coletiva, o texto direciona as discussões para Mato Grosso, o segundo estado com maior número de TI reconhecidas no Brasil99 Instituto Socioambiental. Situação atual das Terras Indígenas. Terras indígenas do Brasil. 2020. [acesso em 2020 jul 24]. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/.
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e onde estão vários povos indígenas, enfrentando e se mobilizando sobre a produção de commodities agrícolas e desfechos negativos em saúde relacionados com os agrotóxicos.

Metodologia

O modelo de análise para mudanças ambientais de Franco Netto1111 Franco Netto G, Freitas CM, Andahur JP, et al. Impactos socioambientais na situação de saúde da população brasileira: Estudo de indicadores relacionados ao saneamento ambiental inadequado. Tempus Actas em Saúde Colet. 2009 [acesso em 2020 jul 17]; 4(4):53-71. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/25569/2/ImpactosSocAm.pdf.
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utiliza três grupos de determinantes socioambientais, que interagem entre si. Neste estudo, ampliamos as explicações mediante a perspectiva teórica da determinação social do processo saúde-doença1212 Barata RB. Iniqüidade e saúde: a determinação social do processo saúde-doença. Rev USP. 2001 [acesso em 2020 ago 12]; (51):138. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/35108.
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,1313 Borghi CMSO, Oliveira RM, Sevalho G. Determinação ou determinantes sociais da saúde: Textos e contexto na América Latina. Trab Educ E Saúde. 2018 [acesso em 2021 maio 5]; 16(3):869-97. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/jJpLdWtYsCMVV8YQm6PqMFk/abstract/?lang=pt.
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, incorporando historicidade nas dimensões socioeconômicas e agroindustriais, enfatizando as escolhas e as omissões do Estado nas questões ambientais e nos processos de adoecimento. As informações são apresentadas por meio de indicadores em cada um dos grupos, que se articulam, mas não se limitam ao causalismo linear entre os eventos de maneira isolada e pontuais1313 Borghi CMSO, Oliveira RM, Sevalho G. Determinação ou determinantes sociais da saúde: Textos e contexto na América Latina. Trab Educ E Saúde. 2018 [acesso em 2021 maio 5]; 16(3):869-97. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tes/a/jJpLdWtYsCMVV8YQm6PqMFk/abstract/?lang=pt.
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,1414 Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.. Os grupos de determinação socioambiental da saúde nas populações indígenas se expressam nos seguintes níveis:

Grupo 1 – microssocial: vinculado às exposições múltiplas, relacionadas diretamente com os agrotóxicos, seus desfechos negativos na saúde das populações e no ecossistema de territórios indígenas;

Grupo 2 – intermediário: proximidade das TI com plantações de monocultivos. Inseridas em municípios de alta produtividade agrícola e economia agroindustrial, que geram efeitos negativos nos territórios, serviços de atenção à saúde indígena, condições de vida, práticas alimentares (cultivo, caça, coleta e pesca), ambiente (contaminação por agrotóxicos, desmatamentos e queimadas) e práticas curativas tradicionais;

Grupo 3 – macrossocial: dimensão ampla da estrutura globalizada da cadeia produtiva de commodities agrícolas, com cultivo de sementes transgênicas, regulamentações ambientais pouco protetivas, desestruturação da vigilância em saúde. O Estado incentiva a produção com redução de tributos, alterações legislativas, e há forte apelo publicitário/midiático vinculado ao agronegócio. Os desfechos ambientais aparecem com a expansão das lavouras, uso de água para irrigação, mudanças climáticas e epidemias.

Os três grupos interagem e complementam-se, não existindo isoladamente, e operam em hierarquia de processos1414 Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.,1515 Castellanos PL. Sobre o Conceito de Saúde-Doença. Descrição e Explicação da Situação de Saúde. In: Santos EM, Sonia Natal, organizadores. Dimensão técnico-operacional: unidade didático-pedagógica: modelo lógico do programa. Rio de Janeiro: Editora Abrasco; 2005. p. 329-334.. Esse modelo é interdisciplinar, com diferentes níveis de determinação e complexa relação entre as áreas de interlocução, podendo estimular discussões das vulnerabilidades que acometem populações indígenas em escala temporal e espacial distintas (figura 1).

Figura 1
Interação entre grupos hierárquicos da determinação socioambiental do processo saúde-doença em populações indígenas

Os dados foram obtidos em fontes secundárias dos setores da saúde e ambiente, além de legislações que se relacionam com os indicadores. Os dados econômicos e ambientais para o ano de 2018 foram: Volume de exportação das commodities agrícolas1616 Transparency for Sustainable Economies. Top importing countries from Querencia-MT and Sapezal-MT in 2018. [acesso em 2020 ago 10]. Disponível em: https://supplychains.trase.earth/explore.
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dos municípios de Querência e Sapezal, maiores produtores das regiões onde estão os territórios indígenas comentados; Produto Interno Bruto (PIB) agropecuário; área plantada de commodities1717 Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA. Produção Agrícola Municipal de 2018. [acesso em 2020 ago 5]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pib-munic/tabelas.
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; estimativa de uso de agrotóxicos em commodities1818 Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2021 maio 10]; 22(10):3281-93. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/grrnnBRDjmtcBhm6CLprQvN/abstract/?lang=pt.
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; desmatamento1919 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Desmatamento – Amazônia Legal. Terra Brasilis. 2019. [acesso em 2020 jul 16]. Disponível em: http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/downloads/.
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; número de focos de queimadas e material particulado fino (PM2,5)2020 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Impacto das Queimadas / Incêndios e Meteorologia na Saúde. Queimadas 2019. [acesso 2020 jul 10]. Disponível em: https://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/portal.
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. O PM 2,5 foi obtido para os meses de junho a novembro, utilizando média dos valores máximos mensais das regiões (quadro 1).

Quadro 1
Matriz de indicadores utilizados na determinação socioambiental do processo saúde-doença em populações indígenas

Os dados de saúde foram obtidos no Datasus2121 Banco de dados do Sistema Único de Saúde-DATASUS. Informações em saúde TABNET 2018. [acesso em 2020 jul 24]. Disponível em: http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.php?area=02.
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, utilizando a variável raça/cor, categoria indígena, sem especificação do povo, uma vez que não consta no sistema e que o acesso ao Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi) é restrito. As taxas de internações foram calculadas a partir da média dos valores do período entre os anos 2010 e 2018, utilizando como base para os cálculos a população indígena total residente nas regiões do zoneamento socioeconômico, do Censo de 2010, por 10 mil habitantes.

Na análise dos dados de saúde, consideraram-se duas categorias, conforme sua relação à exposição aos agrotóxicos: Agravos agudos – taxa de intoxicação exógena por agrotóxicos, de uso agrícola, doméstico, saúde pública e raticida (Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Sistema Único de Saúde – Sinan/SUS), e taxa de internação por doenças respiratórias, excluindo influenza e tuberculose (Sistema de Informações Hospitalares do SUS – SIH/ SUS); Agravos crônicos taxa de internação por doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas, capítulo IV do CID-10.

Os dados de cada município (ambientais, econômicos e de saúde) foram agrupados conforme as 12 regiões do Zoneamento Socioeconômico Estadual de Mato Grosso (ZSEE-MT), com o objetivo de comparar os padrões de uso do solo, a influência dos núcleos urbanos e tipos de produção de cada região, as quais servem como suporte para o Estado na proposição de programas e orientação de empreendimentos do agronegócio2222 Mato Grosso. Secretaria de Estado de Planejamento. Revisão do ZSEE-MT. Caderno 1 Metodologia Geral e Cenários. In: Corsini E, organizador. Zoneamento Socioeconômico Ecológico de Mato Grosso. Cuiabá: Prefeitura; 2018. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: http://www.seplan.mt.gov.br/-/10951395-zoneamento-2018?ciclo=cv_gestao_inf.
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Mudanças ambientais relacionadas a cadeia produtiva de commodities globalizada

O modelo agropecuário participou com 20% do PIB na receita estadual no ano de 2017, atrás apenas do segmento serviços (64%). Entre as regiões com maior PIB agropecuário em 2018 (valor bruto da agropecuária em mil reais), estão a região do ZSEE-MT V-Sudeste com R$ 4,3 milhões, VII-Sudoeste com R$ 3,9 milhões, VIII-Oeste com R$ 3,2 milhões, e III-Nordeste com R$ 2,8 milhões. Em 2020, houve aumento de 24,3% do PIB do agronegócio nacional em relação ao ano anterior, chegando a quase R$ 2 trilhões2323 Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil. PIB do agronegócio 2019 e 2020. Esalq/USP; 2021. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://www.cnabrasil.org.br/publicacoes/.
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. Foi um dos setores mais lucrativos durante a pandemia da Covid-19.

Em 2018, Querência (região IV-Leste) e Sapezal (região VIII-Sudoeste) produziram 2.411.400 toneladas de soja, destacando-se dentre os seis maiores produtores do estado. A produção de commodities agrícolas estadual cresce anualmente, e somente Querência direcionou para outros países mais de 95% do volume da soja, milho e algodão produzidos pelo município. Sapezal exportou 97% do algodão, 86% da soja e 54% do milho produzido.

Essa produção contribuiu para que Sapezal e Querência permanecessem entre os 50 maiores PIB agropecuário do País, 3ª e 45ª posição, respectivamente, em 2018 – impulsionando a indústria de insumos (agrotóxicos, fertilizantes e máquinas) que cresceu 6,91% em 2019, com aumento de faturamento da indústria de agrotóxicos em 23,7% devido ao aumento da área plantada2323 Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil. PIB do agronegócio 2019 e 2020. Esalq/USP; 2021. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://www.cnabrasil.org.br/publicacoes/.
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A quantidade de área plantada é orientada pela Reserva Legal, disposta pelo Código Florestal Brasileiro (Lei nº 12.651/2012, art. 3º, inciso III), que prevê manter área com vegetação nativa, a título de Reserva Legal correspondente a 80% nos imóveis da Amazônia Legal, 35% nos imóveis do Cerrado e 20% em demais regiões do País. As maiores áreas plantadas de commodities em Mato Grosso, regiões X-Centro (3,16 milhões/ha), V-Sudeste (2,73 milhões/ha), XII-Centro-norte (1,78 milhões/ha) e IV-Leste (1,48 milhões/ha), estão localizadas no bioma Cerrado, onde o código florestal permitiu maior desmatamento, anistiou multas de desmatamento ilegal antes de 2008 e dispensou áreas multadas que deveriam ser reflorestadas.

O setor agrícola também se beneficia com a isenção de cinco modalidades de impostos para compra de agrotóxicos. Com renúncias fiscais, a União deixou de arrecadar R$ 9,8 bilhões em 2017, sendo R$ 6,2 bilhões somente de ICMS2424 Fundação Oswaldo Cruz. Agrotóxicos e Saúde. In: Fundação Oswaldo Cruz. Série Fiocruz – Documentos Institucionais Coleção Saúde, Ambiente e Sustentabilidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/colecao-saude-ambiente-e-sustentabilidade.
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. Mato Grosso deixou de arrecadar R$ 1,3 bilhão no mesmo ano. Estima-se que, para cada US$ 1 gasto na compra de agrotóxicos, são gastos US$ 1,28 com tratamentos de saúde por intoxicações agudas2525 Wagner S, Cunha LN, Porto MFS. Uma política de incentivo fiscal a agrotóxicos no Brasil é injustificável e insustentável. ABRASCO e Instituto Ibirapitanga; 2020 p. 49. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2020/02/Relatorio-Abrasco-Desoneracao-Fiscal-Agrotoxicos-17.02.2020.pdf.
https://www.abrasco.org.br/site/wp-conte...
. As isenções de impostos e tributos, no entanto, não contabilizam as externalidades sociais, ambientais e sanitárias que impactam a sociedade55 Augusto LG, Carneiro FF, Pignati WA, et al. Parte 2 – Saúde, ambiente e sustentabilidade. In: Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015. p. 90-191.,2626 Friedrich K, Soares VE, Augusto LG, et al. Agrotóxicos: mais venenos em tempos de retrocessos de direitos. OKARA Geogr Em Debate. 2018 [acesso em 2021 mar 25]; 12(2):326. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/okara/login?source=%2Findex.php%2Fokara%2Farticle%2Fview%2F41320.
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As tentativas de expansão da produção acontecem na medida em que o setor agrícola lucra e avança sobre direitos das populações com desregulações ambientais que são uma ameaça à proteção jurídica ambiental do País, aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e suas culturas2727 Abessa D, Famá A, Buruaem L. The systematic dismantling of Brazilian environmental laws risks losses on all fronts. Nat Ecol Evol. 2019 [acesso em 2021 maio 26]; 3(4):510-1. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41559-019-0855-9.
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. No início da pandemia da Covid-19, o Projeto de Lei Complementar nº 17/2020, de autoria do governador do estado de Mato Grosso, aprovado na Assembleia Legislativa estadual, tentou regularizar o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de fazendas em sobreposição às TI, medida que foi impedida após intensa mobilização social de organizações indígenas e entidades parceiras, por contrariar o art. 231 da Constituição Federal de 1988.

Segundo o documento Conflitos no Campo2828 Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo 2019. Goiânia; 2020. p. 247. (Conflitos no Campo 2019). [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/?task=download.send&id=14195&catid=0&m=0&Itemid=0.
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, em 2019, as ameaças em territórios indígenas estavam vinculadas a atividades de exploração de madeira, minério, expansão agrícola de fazendas ou especulação imobiliária, contabilizando 244 ocorrências de conflito por terra (20% dos registros), em que uma em cada três famílias era indígena. A produção agrícola e as estratégias de expansão de terras não consideram o espaço de reprodução social dos povos locais, transformando as relações de produção ali existentes em espaços para a reprodução do capital, que são excludentes2929 Mapa de conflitos. Dezenas de povos indígenas e ribeirinhos lutam contra Projeto Ferrogrão. Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. 2013. [acesso em 2020 out 13]. Disponível em: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/mt-dezenas-de-povos-indigenas-e-ribeirinhos-lutam-contra-projeto-ferrograo/.
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A região ZSEE Sudoeste e o povo Haliti-Paresi

A intersecção entre os grupos de determinantes socioambientais III e I pode ser visualizada pela situação do povo Paresi, autodenominado Haliti. O território do povo Haliti-Paresi compreende 1,1 milhão de hectares, com população de 2.186 habitantes, distribuídos em 64 aldeias. Historicamente, parte dos indígenas escravizados pelos bandeirantes sofreu com a abertura da rodovia BR-364, perdeu parte de suas terras e passou a ser aliciada como peões nas fazendas. Após mobilização, esse povo conseguiu o reconhecimento das TI pelo governo federal, mas seus territórios estavam fragmentados, distanciando-se do modo de ocupação tradicional. Assim, as atividades de subsistência tornaram-se insuficientes para suprir as necessidades; e uma das estratégias encontradas foi recorrer à produção agrícola mecanizada, a fim de estabelecer autonomia econômica ante as novas condições de vida impostas pela região, um dos polos do agronegócio estadual3030 Haliti-Paresi. Plano de gestão Haliti-Paresi: Território indígena Haliti-Paresi. Opan; 2019. [acesso em 2020 out 16]. Disponível em: https://amazonianativa.org.br/plano-de-gestao-haliti-paresi/.
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Desde a década de 1990, a Associação Halitinã e a Associação Waymare fazem a gestão da produção mecanizada de soja, milho e feijão, em parceria com produtores locais, da região que é uma das mais intensas de produção agrícola do estado. No total, há 9 projetos de lavoura mecanizada, que somam 16.334 hectares plantados, em duas TI, escolhidas conforme critérios debatidos entre as lideranças indígenas. Além disso, instalaram um pedágio na rodovia que passa pela TI.

Independentemente da escolha desse povo em produzir commodities, impasses jurídicos e relações de poder assimétricas, é importante discutir as circunstâncias e as determinações que levaram à tal decisão, além dos possíveis conflitos com direitos indígenas já promulgados. Também é importante refletir se a adoção da agricultura, poluente e historicamente excludente, tem assegurado sustentabilidade e subsistência das comunidades, proteção aos territórios e manutenção das condições de vida. Segundo relatos dos Haliti, houve aumento do número de casos de malformação fetal nos últimos anos e preocupações quanto ao modelo agrícola químico-dependente adotado por eles3030 Haliti-Paresi. Plano de gestão Haliti-Paresi: Território indígena Haliti-Paresi. Opan; 2019. [acesso em 2020 out 16]. Disponível em: https://amazonianativa.org.br/plano-de-gestao-haliti-paresi/.
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Mudanças ambientais pela proximidade da produção agrícola com os territórios indígenas

O desmatamento na Amazônia Legal seguiu em crescimento no período de 2010 a 2019. Entre as regiões do ZSEE-MT com maior desmatamento no ano de 2018 estão as regiões: I-Noroeste 1 (47.309 ha), IV-Leste (33.092 ha); XII-Centro-norte (26.656 ha) e V-Sudeste (24.208 ha), mostrando as direções da expansão da fronteira agropecuária mato-grossense, totalizando 235.140 hectares desmatados, sendo 58% na Amazônia e 42% no Cerrado.

Mato Grosso contabiliza a maior quantidade de queimadas, com 251.835 focos de calor acumulados de 2010 a 2018, principalmente na estação seca. Em 2019 e 2020, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), houve aumento de 86% de queimadas na Amazônia Legal2020 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Impacto das Queimadas / Incêndios e Meteorologia na Saúde. Queimadas 2019. [acesso 2020 jul 10]. Disponível em: https://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/portal.
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. Essas queimadas antrópicas iniciadas por agropecuaristas são para expandir pastagens para criação de gado e limpar áreas destinadas ao plantio3131 Ignotti E, Hacon S, Junger WL, et al. Air pollution and hospital admissions for respiratory diseases in the subequatorial Amazon: a time series approach. Cad. Saúde Pública. 2010 [acesso em 2021 abr 19]; 26(4):747-61. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/KSZQ8NPcWXrqTVvPwTZDynp/?lang=en.
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– e, em alguns casos, como forma de intimidação aos povos tradicionais e pequenos agricultores familiares, na tentativa de expulsá-los dos seus territórios. À medida que aumentam as áreas de desmatamentos e queimadas, também há a conversão dessas áreas em pastagens ou lavouras.

Em 2018, focos de queimadas ocorreram nos três biomas de Mato Grosso totalizando 35.122 pontos. Na Amazônia, foram 17.654 (50,3%); no Cerrado, 11.653 (33,2%); no Pantanal, 1.862 (5,3%). No mesmo ano, as regiões do ZSEE-MT com mais focos foram: V-Sudeste (19.555 focos), VII-Sudoeste (3.253 focos), II-Norte (2.827 focos) e IV-Leste (2.008 focos). Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), em 2019, as áreas com menos desmatamentos e queimadas foram as TI e as Unidades de Conservação.

As partículas de material sólido das queimadas e, também, de materiais líquidos como o aerossol das pulverizações de agrotóxicos permanecem na atmosfera (cerca de duas semanas) e são facilmente inaláveis, causando danos à saúde, como doenças respiratórias, principalmente em crianças e idosos2020 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Impacto das Queimadas / Incêndios e Meteorologia na Saúde. Queimadas 2019. [acesso 2020 jul 10]. Disponível em: https://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/portal.
https://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas/...
, aumentando o risco relativo de internação para crianças (em 6%) e idosos (6,8%) no período da seca3131 Ignotti E, Hacon S, Junger WL, et al. Air pollution and hospital admissions for respiratory diseases in the subequatorial Amazon: a time series approach. Cad. Saúde Pública. 2010 [acesso em 2021 abr 19]; 26(4):747-61. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/KSZQ8NPcWXrqTVvPwTZDynp/?lang=en.
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As regiões do ZSEE-MT que apresentaram maiores valores de material particulado – PM2,5 na atmosfera, no ano de 2018, foram II-Norte (353 μm/m³ de PM2,5), VII-Sudoeste (308 μm/m³), XII-Centro-norte (283 μm/m³), III-Nordeste (276 μm/m³). As áreas de maior concentração de PM2,5 não são coincidentes às de maior quantidade de queimadas, mas algumas apresentam maior uso de agrotóxicos. A resolução Conama nº 491/2018 estabelece como nível de atenção a concentração de 250 μm/m³ de PM2,5, e nível de alerta a concentração de 420 μm/m³ de PM2,5 (média de 24 horas).

Em 2018, Mato Grosso foi o estado que mais comercializou agrotóxicos3232 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Venda de agrotóxicos e afins no período de 2000 a 2018. (Relatórios de comercialização de agrotóxicos). Brasília, DF; 2019. [acesso em 2020 jul 15]. Disponível em: http://www.ibama.gov.br/agrotoxicos/relatorios-de-comercializacao-de-agrotoxicos#sobreosrelatorios.
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, com estimativa de pulverização de 226,4 milhões de litros de agrotóxicos em produtos formulados no mesmo ano, sendo 98,4% (222,9 milhões de litros) utilizados nas commodities agrícolas soja, milho, algodão e cana-de-açúcar1818 Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2021 maio 10]; 22(10):3281-93. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/grrnnBRDjmtcBhm6CLprQvN/abstract/?lang=pt.
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. A figura 2 apresenta as regiões com maior uso de agrotóxico e a localização das TI no estado.

Figura 2
Mapa de estimativa de uso de agrotóxicos por regiões do Zoneamento Socioeconômico e Ecológico (ZSEE) e a localização de terras indígenas, Mato Grosso, 2018

Com base na figura, vemos que as regiões que sofreram o processo intenso de colonização pelas frentes de expansão agrícola e pela construção da BR-163 Cuiabá-Santarém na década de 1970 apresentam menor número de TI (regiões II-Norte; XII-Centro-Norte; X-Centro; e VI-Sul). A região V-Sudeste possui extensas áreas plantadas para commodities, intenso uso de agrotóxico, focos de queimadas e o segundo maior PIB agropecuário de Mato Grosso. Dentre as regiões que mais utilizaram agrotóxicos em 2018, destacam-se: X-Centro (45.383.065 litros), V-Sudeste (43.453.597 litros), XII-Centro-norte (24.957.583 litros), IV-Leste (23.382.508 litros) e VII-Sudoeste (21.133.076 litros).

As pulverizações aéreas de agrotóxicos são orientadas pela Instrução Normativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) nº 02/2008, que estabelece uma distância mínima de 500 metros de habitações e de 250 metros de fontes de água para pulverização. Em Mato Grosso, havia orientações para pulverização terrestre com distância mínima de 300 metros em áreas de povoações, mananciais de captação de água, moradias isoladas e nascentes. Essa distância foi reduzida para 90 metros dos mesmos locais, segundo Decreto estadual MT nº 1.651/2013.

A Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 294/2019 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que aprovou o novo marco regulatório de classificação toxicológica de agrotóxicos, com base em um sistema global, realocou os produtos extremamente tóxicos para outras categorias consideradas menos tóxicas2626 Friedrich K, Soares VE, Augusto LG, et al. Agrotóxicos: mais venenos em tempos de retrocessos de direitos. OKARA Geogr Em Debate. 2018 [acesso em 2021 mar 25]; 12(2):326. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/okara/login?source=%2Findex.php%2Fokara%2Farticle%2Fview%2F41320.
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, sem novas avaliações. Esse marco regulatório está alinhado ao Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, que flexibiliza o sistema normativo regulatório de agrotóxicos no Brasil, buscando reduzir custos para o setor produtivo e pressionando dispositivos protetivos à saúde humana e ao ambiente2424 Fundação Oswaldo Cruz. Agrotóxicos e Saúde. In: Fundação Oswaldo Cruz. Série Fiocruz – Documentos Institucionais Coleção Saúde, Ambiente e Sustentabilidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/colecao-saude-ambiente-e-sustentabilidade.
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,2626 Friedrich K, Soares VE, Augusto LG, et al. Agrotóxicos: mais venenos em tempos de retrocessos de direitos. OKARA Geogr Em Debate. 2018 [acesso em 2021 mar 25]; 12(2):326. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/okara/login?source=%2Findex.php%2Fokara%2Farticle%2Fview%2F41320.
https://periodicos.ufpb.br/index.php/oka...
,2727 Abessa D, Famá A, Buruaem L. The systematic dismantling of Brazilian environmental laws risks losses on all fronts. Nat Ecol Evol. 2019 [acesso em 2021 maio 26]; 3(4):510-1. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41559-019-0855-9.
https://www.nature.com/articles/s41559-0...
. Cabe salientar que a quantidade de uso de agrotóxicos segue aumentando em Mato Grosso1818 Pignati WA, Lima FANS, Lara SS, et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para a Vigilância em Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2017 [acesso em 2021 maio 10]; 22(10):3281-93. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/grrnnBRDjmtcBhm6CLprQvN/abstract/?lang=pt.
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,3232 Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Venda de agrotóxicos e afins no período de 2000 a 2018. (Relatórios de comercialização de agrotóxicos). Brasília, DF; 2019. [acesso em 2020 jul 15]. Disponível em: http://www.ibama.gov.br/agrotoxicos/relatorios-de-comercializacao-de-agrotoxicos#sobreosrelatorios.
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, é acompanhada pela liberação de novos registros de agrotóxicos no País, com pouca ou nenhuma fiscalização de uso pelo governo estadual.

As regiões Sudeste e Leste do ZSEE-MT e o Território Indígena do Xingu

No modelo explicativo proposto, as intersecções entre os grupos II e III resultam em diferentes vulnerabilidades relacionadas com a proximidade das lavouras agrícolas que usam agrotóxicos, impulsionadas pelo mercado global de commodities. As regiões Sudeste e Leste contam com 20 TI, sendo o Xingu o de maior extensão territorial.

O Território Indígena do Xingu (TIX) é formado por um complexo de TI: Wawi, Batovi, Pequizal do Naruvôtu e Parque Indígena do Xingu (PIX). Este último tem uma área de 2,64 milhões de hectares, onde residem 16 povos, que contabilizavam 6.090 pessoas em 201399 Instituto Socioambiental. Situação atual das Terras Indígenas. Terras indígenas do Brasil. 2020. [acesso em 2020 jul 24]. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/pt-br/.
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,3333 Associação Terra Indígena do Xingu. Plano de gestão do território indígena do Xingu. Instituto Socioambiental; 2016. [acesso em 2020 abr 14]. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/plano-de-gestao-do-territorio-indigena-do-xingu.
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. Atualmente, possui cerca de 36 organizações indígenas, entre elas, a Associação Terra Indígena Xingu (Atix), fundada em 1995. Essas associações fazem gestão de grandes projetos com instituições externas não indígenas, em temas como geração de renda, infraestrutura, cidadania e representação política.

As lideranças Xinguanas têm discutido desmatamento, avanço das lavouras sobre os territórios indígenas, mortandade de peixes em rios próximos às lavouras, derivas de pulverização de agrotóxicos sobre TI; e apresentam propostas de trabalho intersetoriais para garantir o cumprimento da legislação ambiental no entorno do território3333 Associação Terra Indígena do Xingu. Plano de gestão do território indígena do Xingu. Instituto Socioambiental; 2016. [acesso em 2020 abr 14]. Disponível em: https://acervo.socioambiental.org/acervo/publicacoes-isa/plano-de-gestao-do-territorio-indigena-do-xingu.
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Na TI Wawi do povo Khisêtjê, que já foram chamados Suya, a comunidade mudou o local da aldeia por causa do ‘cheiro de veneno’ vindo das lavouras, que estão nos limites da TI. O desmatamento para plantio de grãos aumenta, e há relatos de agravos à saúde, como febre, dor de cabeça, coceira na pele e adoecimento de crianças3434 Nascimento N. Uso abusivo de agrotóxicos ameaça sobrevivência de povos indígenas e quilombolas. Brasil de Fato. 2018. [acesso em 2020 abr 14]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/12/13/agronegocio-ameaca-sobrevivencia-de-povos-indigenas-e-quilombolas.
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. Tal mudança é um processo complexo, que envolve realocação de todas as pessoas, obtenção de novos recursos materiais e infraestrutura para construção das casas, polo de saúde e escola, adequação de novas roças e pomares, rotas pelo rio e por estradas, que influenciam na chegada de materiais de fora da aldeia e a saída da produção econômica da comunidade (como óleo de pequi, mel, pimenta, artesanato, entre outros). Afeta ainda o atendimento de saúde dentro e fora da aldeia, entrada de insumos e mobilidade dos profissionais de saúde, remoção de pacientes para tratamentos fora da aldeia. O ‘cheiro de veneno’ também é relatado na aldeia Tangurinho do povo Kalapalo localizada em outra região, ao sul do PIX, a menos de um quilômetro de distância das lavouras.

A percepção de agrotóxicos no ar, relatada por essas comunidades, indica a mobilidade de resíduos de agrotóxicos na atmosfera. Além disso, parte dessas substâncias são voláteis, podendo contaminar nuvens e água de chuva3535 Moreira JC, Peres F, Simões AC, et al. Contaminação de águas superficiais e de chuva por agrotóxicos em uma região do estado do Mato Grosso. Ciênc. Saúde Colet. 2012 [acesso em 2020 jul 20]; 17(6):1557-68. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/MCvJrMZph58DbrLtftmkRCk/?lang=pt.
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; ademais, por escoamento superficial e lixiviação, podem contaminar córregos, rios e o ecossistema aquático. Exemplo disso é a contaminação de cágados e tracajás (Testudines), avaliados na bacia Xinguana, os quais apresentaram resíduos de oito tipos de agrotóxicos em concentrações maiores que os limites estabelecidos para recursos proteicos de consumo humano nacional e internacional, afetando a saúde das populações que consomem esses alimentos3636 Teófilo Pignati M, Souza LC, Mendes RA, et al. J. Levels of organochlorine pesticides in Amazon turtle (Podocnemis unifilis) in the Xingu River, Brazil. J Environ Sci Health Part B. 2018 [acesso em 2020 jul 20]; 53(12):810-6. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03601234.2018.1505077?journalCode=lesb20.
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O contexto delineado nos leva a refletir sobre as implicações da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 215/2000 sobre o direito à terra para povos indígenas, uma vez que essa proposta transfere competência exclusiva ao Congresso Nacional para aprovar a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas e a ratificação das demarcações já homologadas, alinhadas ao PL nº 490/2007 pressionado pela Frente Parlamentar da Agropecuária, que representa o agronegócio no Congresso Nacional.

Efeitos na saúde humana relacionados com os agrotóxicos e as mudanças ambientais

O nível microssocial representa os desfechos vinculados aos agrotóxicos na saúde das populações indígenas. No Brasil, estão autorizados 399 ingredientes ativos de agrotóxicos agrícolas3737 Friedrich K, Silveira GR, Amazonas JC, et al. Situação regulatória internacional de agrotóxicos com uso autorizado no Brasil: potencial de danos sobre a saúde e impactos ambientais. Cad. Saúde Pública. 2021 [acesso em 2020 ago 9]; 37(4):e00061820. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/4jh7ZyXMVtDsMYVMhSYShZL/?lang=pt.
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, dos quais 120 têm relação com danos à saúde, sendo 67,2% associados a danos crônicos. Além disso, 80% dos agrotóxicos autorizados no Brasil não têm permissão de uso em pelo menos três países de base agrícola que compõem a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)3737 Friedrich K, Silveira GR, Amazonas JC, et al. Situação regulatória internacional de agrotóxicos com uso autorizado no Brasil: potencial de danos sobre a saúde e impactos ambientais. Cad. Saúde Pública. 2021 [acesso em 2020 ago 9]; 37(4):e00061820. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/4jh7ZyXMVtDsMYVMhSYShZL/?lang=pt.
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Os agrotóxicos glifosato, 2,4-D, acefato, mancozebe, atrazina, malationa, clorpirifós, imidacloprido, paraquate e carbendazim estão entre os mais utilizados em Mato Grosso. Destes, acefato, malationa e clorpirifós são inseticidas do grupo Organofosforado (OF), com maior toxicidade aguda, ação neurotóxica e inibição da atividade das enzimas colinesterases, afetando o Sistema Nervoso Central (SNC), o Sistema Nervoso Periférico (SNP) e as junções neuromusculares33 Instituto Nacional de Câncer. Agrotóxicos. In: Instituto Nacional de Câncer. Ambiente, trabalho e câncer: aspectos epidemiológicos, toxicológicos e regulatórios. Rio de Janeiro: INCA; 2021. p. 241-60. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/publicacoes/livros/ambiente-trabalho-e-cancer-aspectos-epidemiologicos-toxicologicos-e-regulatorios.
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,3838 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretrizes brasileiras para o diagnóstico e Tratamento de intoxicação por agrotóxicos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_brasileiras_diagnostico_tratamento_intoxicacao.pdf.
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, podendo levar à falência respiratória em síndromes intermediárias3939 Paraná. Secretaria de Estado da Saúde do Paraná, Superintendência de Vigilância em Saúde, Centro Estadual de Saúde do Trabalhador. Protocolo de avaliações das intoxicações crônicas por agrotóxicos. Curitiba, 2013. [acesso em 2021 maio 25]. Disponível em: http://www.abrasco.org.br/UserFiles/Image/PDF%20protocolo%20avaliacao%20intoxicacao%20agrotoxico.pdf.
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. Ressalta-se que a maior taxa de internação por doença respiratória foi na região VII-Sudoeste, onde há maior produção de algodão, cultura agrícola que usa grande quantidade de clorpirifós.

Segundo o Sinan, no Brasil, entre 2007 e 2016, foram notificados 6.408 casos de intoxicação relacionados com o herbicida glifosato. As maiores notificações foram no primeiro e no último trimestre de cada ano3838 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretrizes brasileiras para o diagnóstico e Tratamento de intoxicação por agrotóxicos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_brasileiras_diagnostico_tratamento_intoxicacao.pdf.
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, acompanhando o período de cultivo da soja transgênica, resistente ao glifosato. Das intoxicações não associadas ao trabalho, 76,7% foram por via digestiva, 13% por via respiratória e 5,8% por via cutânea4040 Brasil. Ministério da Saúde. Casos notificados de intoxicações exógenas relacionados ao glifosato no Brasil, no período de 2007 a 2016. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018 nov. Report No.: 50. [acesso em 2021 abr 10]. Disponível em: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/dezembro/04/BE-2018-31-Glifosato.pdf.
http://portalarquivos2.saude.gov.br/imag...
. O glifosato apresenta potencial genotóxico, alérgico, hepatotóxico3939 Paraná. Secretaria de Estado da Saúde do Paraná, Superintendência de Vigilância em Saúde, Centro Estadual de Saúde do Trabalhador. Protocolo de avaliações das intoxicações crônicas por agrotóxicos. Curitiba, 2013. [acesso em 2021 maio 25]. Disponível em: http://www.abrasco.org.br/UserFiles/Image/PDF%20protocolo%20avaliacao%20intoxicacao%20agrotoxico.pdf.
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e está no grupo 2A – Provável carcinógeno para humanos, segundo a Agência Internacional para Pesquisa em Câncer – Iarc/OMS33 Instituto Nacional de Câncer. Agrotóxicos. In: Instituto Nacional de Câncer. Ambiente, trabalho e câncer: aspectos epidemiológicos, toxicológicos e regulatórios. Rio de Janeiro: INCA; 2021. p. 241-60. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/publicacoes/livros/ambiente-trabalho-e-cancer-aspectos-epidemiologicos-toxicologicos-e-regulatorios.
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O herbicida 2,4-D é amplamente utilizado no cultivo da soja, é o segundo mais comercializado no estado. Atua como desregulador endócrino, que afeta os processos hormonais, com efeitos estrogênicos, androgênicos e antitireoidiano; e danos ao sistema reprodutivo, desencadeando “indução de abortos espontâneos, baixo peso ao nascer, malformações esqueléticas e urogenitais”3838 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Diretrizes brasileiras para o diagnóstico e Tratamento de intoxicação por agrotóxicos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/diretrizes_brasileiras_diagnostico_tratamento_intoxicacao.pdf.
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(71). Esse herbicida está no grupo 2B – Possível carcinógeno, segundo a Iarc/OMS33 Instituto Nacional de Câncer. Agrotóxicos. In: Instituto Nacional de Câncer. Ambiente, trabalho e câncer: aspectos epidemiológicos, toxicológicos e regulatórios. Rio de Janeiro: INCA; 2021. p. 241-60. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/publicacoes/livros/ambiente-trabalho-e-cancer-aspectos-epidemiologicos-toxicologicos-e-regulatorios.
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O herbicida paraquate foi recentemente reavaliado pela Anvisa, e recomendada sua proibição a partir de setembro de 2020 pela RDC nº 177/2017, mas segue em uso no Brasil. Tem potencial tóxico para o fígado, rim, estômago, intestino e sistema respiratório4141 Lewis KA, Tzilivakis J, Warner DJ, et al. An international database for pesticide risk assessments and management. Hum Ecol Risk Assess Int J. 2016 [acesso em 2021 abr 10]; 22(4):1050-64. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10807039.2015.1133242?journalCode=bher20.
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Os agrotóxicos mais utilizados em 2018 em Mato Grosso, que puderam ser quantificados por município, foram os herbicidas glifosato, 2,4-D e paraquate, comuns em ordem de maior uso nas regiões X-Centro, V-Sudeste, IV-Leste, XII-Centro-norte e VIII-Oeste. O herbicida atrazina foi mais utilizado nas regiões X-Centro, XII-Centro-norte, V-Sudeste, VIII-Oeste e VII-Sudoeste. Já o inseticida clorpirifós, nas regiões V-Sudeste, VII-Sudoeste, X-Centro, VIII-Oeste e IX-Centro-oeste.

Os agravos à saúde

A tabela 1 sistematiza as mudanças socioambientais e agravos à saúde por região do ZSEE-MT. Houve sete intoxicações por agrotóxicos entre indígenas, de 2010 a 2018, com quatro (57%) intoxicações no ano de 2015. As regiões IV-Leste e VI-Sul, ambas com dois registros. Em Mato Grosso, pessoas com residência próxima a lavouras agrícolas de milho e algodão tiveram quase duas vezes mais intoxicações agudas comparadas com as que residiam em outros locais4242 Silva DO, Ferreira MJM, Silva SA, et al. Exposição aos agrotóxicos e intoxicações agudas em região de intensa produção agrícola em Mato Grosso, 2013. Epidemiol e Serviços Saúde. 2019 [acesso em 2021 abr 19]; 28(3). Disponível em: https://www.scielo.br/j/ress/a/sgcfPz9rZztGX6mQDptBvfF/?lang=pt.
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. No entanto, há subnotificação de intoxicações por agrotóxicos de maneira geral55 Augusto LG, Carneiro FF, Pignati WA, et al. Parte 2 – Saúde, ambiente e sustentabilidade. In: Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Dossiê ABRASCO: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; Expressão Popular; 2015. p. 90-191., agravando-se ainda mais quando a subnotificação se refere às populações indígenas.

Tabela 1
Indicadores socioambientais, agravos à saúde relacionados com a exposição aos agrotóxicos, por região do ZSEE-MT

Um estudo sobre o uso de agrotóxicos em TI foi realizado com o povo Xukuru de Pernambuco. Os agrotóxicos estão historicamente relacionados com o modelo socioeconômico e de industrialização dessa região; e para os Xukuru, a utilização do ‘veneno’ foi uma alternativa para se inserirem no processo de desenvolvimento econômico local. Também denominam o agrotóxico como remédio, e 46% dos indígenas entrevistados relataram dores de cabeça, vômitos, tonturas, ‘moleza no corpo’, ‘língua grossa’, ‘salivação excessiva’ após aplicação de agrotóxicos, 10% relataram ter sofrido intoxicação pelo produto. Os entrevistados também associaram o caso de leucemia de uma indígena com a exposição aos agrotóxicos4343 Gonçalves GMS, Gurgel IGD, Costa AM, et al. Uso de agrotóxicos e a relação com a saúde na etnia Xukuru do Ororubá, Pernambuco, Brasil. Saúde E Soc. 2012 [acesso em 2021 abr 19]; 21(4):1001-12. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sausoc/a/zfXpPwHmTvHLvyhNrFdLKJK/abstract/?lang=pt.
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Os desfechos respiratórios na população apontam que as exposições a inseticidas OF, piretróides e organoclorados estão associadas com agravos pulmonares4444 Ye M, Beach J, Martin JW, et al. Pesticide exposures and respiratory health in general populations. J Environ Sci. 2017 [acesso em 2021 maio 26]; (51):361-70. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1001074216313444?via%3Dihub.
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,4545 Sak ZHA, Kurtuluş Ş, Ocakli B, et al. Respiratory symptoms and pulmonary functions before and after pesticide application in cotton farming. Ann Agric Environ Med. 2018 [acesso em 2021 maio 26]; 25(4):701-7. Disponível em: http://www.aaem.pl/Respiratory-symptoms-and-pulmonary-functions-before-and-after-pesticide-application,99561,0,2.html.
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. Os dados sobre doenças respiratórias em indígenas de Mato Grosso registram 905 internações entre 2010 e 2018, com variação dos casos entre os anos analisados, sendo o maior registro em 2014, com 149 internações (16,4%). As maiores taxas de doenças respiratórias (tabela 1) foram nas regiões VII-Sudoeste (116 internações por 10 mil/ hab), região I-Noroeste 1 (25 por 10 mil/ hab), IV-Leste (23 por 10 mil/hab). A região VII-Sudoeste foi a segunda com maior quantidade dos indicadores PM2,5 na atmosfera, focos de queimadas e uso do inseticida OF clorpirifós. O PM2,5 de agrotóxicos pulverizado na atmosfera aumenta irritações no nariz, garganta, olhos e peito4545 Sak ZHA, Kurtuluş Ş, Ocakli B, et al. Respiratory symptoms and pulmonary functions before and after pesticide application in cotton farming. Ann Agric Environ Med. 2018 [acesso em 2021 maio 26]; 25(4):701-7. Disponível em: http://www.aaem.pl/Respiratory-symptoms-and-pulmonary-functions-before-and-after-pesticide-application,99561,0,2.html.
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. Nessa região, estão os Pareci, que cultivam soja e milho dentro de suas terras.

Os dados sobre doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas mostram 742 internações na população indígena entre 2010 e 2018, com maior registro no ano de 2015 com 93 internações (13,07%). Como as internações variam de um ano para outro, se considerarmos o ano de 2019, o aumento foi de 19,3% em Mato Grosso. As maiores taxas de internações no período foram nas regiões IV-Leste (32 casos por 10 mil/hab), VII-Sudoeste (19 por 10 mil/hab), VIII-Oeste (17 por 10 mil/hab). A região IV-Leste é a região do ZSEE-MT com maior valor médio de desmatamento por hectare entre 2010 e 2018, está entre as quatro regiões com maior número de focos de queimadas, que mais plantam commodities agrícolas e que usam agrotóxicos, como o paraquate. A produção agrícola “predatória em relação ao ambiente ou às relações econômicas e sociais, causam imposição de padrões alimentares”33 Instituto Nacional de Câncer. Agrotóxicos. In: Instituto Nacional de Câncer. Ambiente, trabalho e câncer: aspectos epidemiológicos, toxicológicos e regulatórios. Rio de Janeiro: INCA; 2021. p. 241-60. [acesso em 2021 maio 26]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/publicacoes/livros/ambiente-trabalho-e-cancer-aspectos-epidemiologicos-toxicologicos-e-regulatorios.
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(252), e contrariam o art. 1º do Decreto nº 6.040/2007 e o art. 4º, inciso III, da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) (Decreto nº 7.272/2010). A região IV-Leste é onde vivem os Xavante, tradicionalmente caçadores e coletores, de relação intrínseca com o Cerrado.

Imposição e exposição aos agrotóxicos em territórios indígenas

A região IV-Leste possui numericamente a maior população indígena do estado, composta principalmente pelo povo Xavante. Foi a região do ZSEE-MT que apresentou valores altos para os indicadores aqui analisados, permanecendo sempre entre as quatro regiões com maior desmatamento, área plantada, foco de queimadas, uso de agrotóxicos e maiores taxas de internações para doenças respiratórias e por doenças nutricionais e metabólicas.

Entre as TI do povo Xavante, Marãiwatsédé é a única que fica na região III-Nordeste. No entanto, cabe mencioná-la devido à pesquisa sobre os agrotóxicos, conduzida entre 2013 e 2015 após denúncia de óbitos de duas crianças com suspeita de intoxicação por agrotóxicos4646 Lima FANS, Pignati WA, Pignatti MG. A extensão do ‘agro’ e do tóxico: saúde e ambiente na terra indígena Marãiwatsédé, Mato Grosso. Cad. Saúde Colet. 2020 [acesso em 2021 abr 15]; 28(1):1-11. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/YMpNvxjbJqky6cmtFJCVfty/?lang=pt.
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. O processo histórico e produtivo da região de base agropecuária, aponta caminhos que se relacionam com os múltiplos desfechos sociais e de saúde desse povo.

Em 1966, os Xavante foram exilados de suas terras para implantação de projetos agrícolas pelo grupo Ometto; posteriormente, a terra foi negociada para a holding italiana Agip-Petroli do Brasil. Pressionada na Eco-92, essa empresa devolveu a terra aos indígenas, o que impulsiona atividades de grilagem e invasões, organizadas por políticos e servidores públicos da região. Depois de décadas na posse de não indígenas, várias disputas jurídicas e lobby de parlamentares, a mobilização do povo Xavante pressionou o estado a reconhecer e a devolver suas terras tradicionais – isso ocorreu em 2004. No entanto, os conflitos permaneceram mesmo após o processo de desintrusão total em 2013, período em que o território foi utilizado para retirada de madeira, pastagem, pecuária e plantio de grãos4646 Lima FANS, Pignati WA, Pignatti MG. A extensão do ‘agro’ e do tóxico: saúde e ambiente na terra indígena Marãiwatsédé, Mato Grosso. Cad. Saúde Colet. 2020 [acesso em 2021 abr 15]; 28(1):1-11. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/YMpNvxjbJqky6cmtFJCVfty/?lang=pt.
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,4747 Paret CG, Fanzeres A. Marãiwatsédé: Terra de Esperança. Cuiabá: ANSA – OPAN; 2012. [acesso em 2020 jun 3]. Disponível em: https://issuu.com/amazonianativa/docs/livro_xavante_web.
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, sendo que, no ano da desintrusão, 66,64% da área estava desmatada.

Nos limites da TI Marãiwatsédé, havia lavouras em atividade localizadas na porção sul e centro, produzindo soja e milho próximo a cursos de água que eram utilizados pelos Xavante. Na aldeia Marãiwatsédé, houve relatos de ‘cheiro de agrotóxico’ no ar e sintomas de garganta seca e tosse no período de atividade agrícola, mencionados desde 20134646 Lima FANS, Pignati WA, Pignatti MG. A extensão do ‘agro’ e do tóxico: saúde e ambiente na terra indígena Marãiwatsédé, Mato Grosso. Cad. Saúde Colet. 2020 [acesso em 2021 abr 15]; 28(1):1-11. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/YMpNvxjbJqky6cmtFJCVfty/?lang=pt.
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No decorrer da pesquisa, foi investigada presença de resíduos de agrotóxicos na água em um local onde seria construída uma nova aldeia e no qual foram relatados sinais e sintomas de náusea e diarreia, em alguns casos com presença de sangue, após o consumo constante dessa água. Dentre 12 agrotóxicos avaliados nas amostras de água, o resultado foi positivo para o inseticida permetrina na concentração de 0,19 μg/L. Embora o valor encontrado na amostra estivesse em conformidade com a portaria de potabilidade de água brasileira, esse agrotóxico não é autorizado na União Europeia desde o ano 2000 devido à sua toxicidade, rápida absorção por via oral, irritabilidade de vias aéreas, dérmicas e oculares, atividade neurotóxica e por ser altamente tóxico para comunidades aquáticas e abelhas. As lavouras nesses territórios eram fontes fixas de poluição ambiental e dos sistemas hídricos que adentravam a TI4646 Lima FANS, Pignati WA, Pignatti MG. A extensão do ‘agro’ e do tóxico: saúde e ambiente na terra indígena Marãiwatsédé, Mato Grosso. Cad. Saúde Colet. 2020 [acesso em 2021 abr 15]; 28(1):1-11. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/YMpNvxjbJqky6cmtFJCVfty/?lang=pt.
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As interlocuções entre os grupos de determinações I, II e III, neste caso, mostram que o modelo de apropriação socioambiental praticado pelo agronegócio é sistêmico e anula outras possibilidades de produções agrícolas, econômicas e sociais nos territórios indígenas; caracterizando a exposição aos agrotóxicos como uma imposição que gera agravos nas condições de vida e reprodução social, desconsiderando os direitos constitucionais dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas. O agronegócio pretende ampliar a área plantada de commodities reduzindo as TI, os territórios quilombolas e Unidades de Conservação por meio da PEC nº 215/2000, do PL nº 490/2007 e do PL nº 2.633/2020. Há também aumento da produtividade da área plantada pelo uso de insumos como agrotóxicos, que pretende ser impulsionado com o PL nº 2.699/2002. Há ainda que considerar a pulverização aérea de agrotóxicos, próximos ou em territórios indígenas, como estratégia de intimidação dos produtores rurais a estes povos e outras comunidades.

Os resultados apresentados no presente artigo corroboram a aplicação de tais estratégias dentro do estado de Mato Grosso; e, mais especificamente, como elas, pressionam social, econômica e fisicamente povos e comunidades tradicionais que estão cercadas pelo agronegócio, especialmente as indígenas.

Considerações finais

O modelo explicativo buscou identificar as pressões do agronegócio e do uso de agrotóxicos sobre povos indígenas em Mato Grosso, incorporando a historicidade nas dimensões socioeconômicas e agroindustriais que estão impactando o ambiente, com efeitos diretos ou indiretos na saúde. A exposição aos agrotóxicos é mais uma das atividades poluidoras da cadeia de produção de commodities agrícolas. Os agrotóxicos selecionados representam uma parte ínfima do que é utilizado nas lavouras do estado, que estão misturados com tantas outras moléculas de agrotóxicos pulverizadas no ambiente e que contaminam a água, a biota e os alimentos. Ainda há poucas informações nos bancos de dados públicos sobre intoxicações por agrotóxicos entre os diversos povos indígenas. Igualmente os desfechos ambientais e em saúde relatados pelas comunidades indígenas relacionados com os agrotóxicos precisam ser considerados nas avaliações, porque os territórios indígenas estão cercados por lavouras, que são fontes fixas e sazonais de poluição por agrotóxicos.

As queimadas e o desmatamento, comuns nas mesmas regiões do ZSEE-MT, também têm relação com a abertura de novas áreas destinadas à produção de commodities e pecuária extensiva nas regiões de entorno das TI, ou seja, fazem parte do processo de ocupação da terra pelo agronegócio. Essas pressões sobre os territórios indígenas intensificam conflitos fundiários com tentativas de legalização da usurpação das terras por meio de instrumentos legislativos como a Portaria da Advocacia-Geral da União (AGU) nº 303/2012 e os outros já citados, impondo um modelo de produção agropecuário ‘químico-dependente’. Esse modelo pode inviabilizar os modos de vida, funções ecossistêmicas, a autossuficiência alimentar, com dependência econômica.

A abordagem utilizou informações agrupadas por regiões do ZSEE-MT, que orienta empreendimentos agroindustriais impactantes ao ambiente e à saúde. O novo zoneamento está em discussão e deve ser aprovado ainda este ano, fato que poderá trazer mais repercussões para os povos indígenas. A escolha de análise pela determinação socioambiental do processo saúde-doença na população indígena mostra que a exposição aos agrotóxicos é um problema histórico, dinâmico e intersetorial, vinculado à violação de direitos humanos e ao direito originário à terra, à água, à saúde, à alimentação dos indígenas preconizados na Constituição Federal de 1988. Além de apresentar que uma hierarquia na organização de grupos sociais que determinam os processos que geram problemas na saúde humana.

As pesquisas sobre efeitos negativos relacionados com os agrotóxicos apresentam desafios no âmbito da saúde coletiva, porque há disputas com o campo econômico e político para manutenção da produção de commodities agrícolas. Os estudos sobre agrotóxicos em TI são escassos no País, visto que os limites interpostos por diferentes instâncias governamentais limitam o acesso à produção de dados. É necessário ampliar o escopo das pesquisas a partir de uma ciência socialmente crítica, participativa, capaz de também oportunizar espaços de autonomia para os povos indígenas em suas próprias investigações.

Modelos teóricos de leitura interdisciplinar dos territórios e processos de trabalho, na relação entre saúde, desenvolvimento econômico, social e ambiental, estão além da visão epidemiológica tradicional. Agronegócio, uso de agrotóxico, conflitos territoriais e saúde não podem ser pensados como elementos dissociados. Pensar políticas públicas de vigilância de base territorial e participativa em territórios indígenas, vigilância de populações expostas aos agrotóxicos, assim como ações intersetoriais de combate à pulverização aérea, definição de áreas livres de uso de agrotóxicos e garantia das terras homologadas e saudáveis aos povos indígenas, são alguns dos desafios colocados para a saúde coletiva e integrados neste estudo.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2020
  • Aceito
    02 Set 2021
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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