A SAÚDE NO TRABALHO AINDA NÃO É CONSIDERADA COMO UM DIREITO HUMANO, assim como tantos outros direitos que foram negligenciados ao longo do tempo, mas que vêm obtendo algumas conquistas e buscando novas formas de afirmação, sob o manto da expressão direito humano.
Em um tempo internacionalizado pela mídia global, o Brasil espelha uma realidade de governos e sociedades dividida entre os que pensam, lutam e agem pelos direitos humanos e os que os negam e tentam impedi-los. Em se tratando de racismo, misoginia, homofobia e, mais agudamente nesse momento, xenofobia, o conflito de narrativas antagônicas é frequente e muito presente na mídia em geral. O fato traz visibilidade social e ‘esquenta’ o tema, possibilitando aguçar estratégias de luta por maiores conquistas. Não é o que ocorre com o direito humano à saúde no trabalho.
Em agosto de 2025, será realizada a 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (5ª CNSTT). Seu tema central é considerar a saúde no trabalho um Direito Humano. A expectativa é que ela seja um divisor de águas entre o que se fez até aqui e o que poderá ser feito depois.
Na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, a população brasileira e trabalhadora, agarrada com o movimento sanitário do qual o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) era partícipe, tinha clareza de que o que havia antes precisava mudar. E mudou!
Com o Sistema Único de Saúde (SUS), ainda que muito falte, passou a sobrar muito do que não havia. É um pouco disto que a 5ª CNSTT pretende: que passe a haver mais do que há. Outrossim, que haver algo do que não há: o direito à saúde no mundo do trabalho como direito humano.
Por que negar o reconhecimento do direito humano àquele que perde sua saúde e sua vida ao trabalhar? Se há utopia nessa providência, que ela nos sirva para continuar lutando por um mundo com saúde no trabalho, compreendida como direito humano.
Este tem sido o papel do Cebes em seu percurso: providenciar utopias. Desde o seu início, em 1976, a relação saúde-trabalho era um dos ingredientes do Cebes em sua peregrinação utópico-revolucionária pela Reforma Sanitária.
Dois dos clássicos da literatura do campo da saúde do trabalhador têm a marca do Cebes: ‘A saúde nas fábricas’, de Giovanni Berlinguer, lançado pelo Cebes-Hucitec, em 198311 Berlinguer G. A saúde nas fábricas. Tradução brasileira da 5ª edição italiana (publicada em 1977). São Paulo: Cebes-Hucitel; 1983.; e ‘Ambiente de trabalho – a luta dos trabalhadores pela saúde’, de Ivar Oddone (e outros), em 198622 Oddone I, Re A, Marri G, et al., organizadores. ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo: Hucitec; 1986.. Inclusive, a apresentação do segundo livro foi assinada por David Capistrano, um de nossos fundadores.
Na incubadora cebiana de utopias, essas publicações, além de muitas outras, contribuíram para forjar um pensamento contra-hegemônico à medicina do trabalho e à saúde ocupacional, tipicamente privatistas e empresariais, e influenciaram na consignação da expressão saúde do trabalhador na Constituição Federal de 198833 Senado Federal (BR). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF. 1988 out 5; Edição 191-A; Seção I:1-32., como atribuição do SUS e, portanto, como responsabilidade pública do setor saúde.
De lá para cá, os muitos avanços ficaram aquém das conquistas necessárias e de novas formas de afirmação, ao contrário do que tem sido alcançado por diversos movimentos de luta pelos direitos humanos.
O Brasil tem uma dívida profunda com o mundo do trabalho em matéria de saúde. Não se pode sequer cogitar de falar em alguma tragédia sanitária em nosso país sem falar do sofrimento, da doença e da morte no trabalho.
O Observatório de Segurança e Saúde no Brasil, mantido pelo Ministério Público do Trabalho, em conjunto com a Organização Internacional do Trabalho, mostra que, de 2012 a 2022, a cada quatro horas, morreu um trabalhador e que, a cada minuto, um trabalhador brasileiro com carteira assinada se acidentou ou adoeceu devido ao trabalho. Ainda não existem estatísticas oficiais sobre o trabalho informal, mas são conhecidos os efeitos negativos à saúde mental advindos da precarização do trabalho, especialmente vinculada à violência no trânsito, cada vez mais relevante no contexto das novas relações de trabalho, a exemplo do que ocorre com os entregadores de aplicativo, assim como na ida e vinda de inúmeros trabalhadores para os seus locais de trabalho.
No entanto, o que é direito humano e como nossa sociedade em sua diversidade o compreende? A definição desse termo simples, mas complexo ao mesmo tempo, põe em debate o que é relevante para a humanidade na luta pela dignidade em determinado momento. Considerando nosso atual estágio civilizatório e nossas aspirações, o direito estabelecido nos cânones atuais não é suficiente para estabelecer que é indigno que pessoas adoeçam e morram no trabalho e que muito pouco ou quase nada se faça em decorrência desses crimes.
É com esse espírito que o Cebes propõe uma Conferência Livre de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano, preparatória para a 5ª CNSTT, um resgate oportuno e um reencontro com suas aspirações transformadoras.
Além do Direito Humano como tema central, a 5ª CNSTT debaterá três temas (eixos orientadores): 1) Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT); 2) Novas relações de trabalho e a saúde do trabalhador e da trabalhadora; e 3) Participação popular na saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras para o Controle Social.
A Conferência Livre do Cebes traz como ponto de ênfase para o debate a compreensão de que os três eixos orientadores deverão ser atravessados pelo tema principal – saúde no trabalho como direito humano. Ou seja, a política nacional que contemple as novas relações de trabalho, ombreadas pela participação popular, deverá buscar uma transformação fundada na saúde do trabalhador e da trabalhadora como direito humano.
Seguindo essa linha, baseada em alguns textos que vêm debatendo o tema, a Conferência Livre do Cebes propõe quatro questões para o debate, exibidos a seguir.
1 – O Direito Humano deve reger a saúde no trabalho?
A doença e a morte no trabalho, quando pre-veníveis e não prevenidas pela saúde pública, constituem-se em injustiça, baseada no direito que as rege, ferindo gravemente o princípio da equidade. Além disso, o direito que rege a saúde no trabalho posto nos dias atuais (trabalhista, previdenciário, sanitário, ambiental, civil, penal, econômico e outros) é um direito que não faz justiça – objetivo maior num Estado Democrático de Direito: direito que faça justiça.
Dessa forma, o Núcleo Saúde-Trabalho-Direito (NSTD) do Cebes reivindica que a ocorrência de mais de 2 mil mortes e do meio milhão de adoecimentos anuais de pessoas trabalhadoras seja elevada ao patamar de crime contra a humanidade conforme o Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 200244 Presidência da República (BR). Decreto-Lei nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2002 set 16; Edição 187; Seção I:3-18., e que, a partir de então, sejam tomadas medidas concretas que protejam trabalhadores e trabalhadoras mortos e mutilados pelo trabalho.
2 – Conceber a saúde no trabalho como um direito humano, em essência, possibilita uma representação simbólica contra-hegemônica da questão?
A relação saúde-trabalho, em essência, é uma expressão da relação capital-trabalho, construída objetivamente sobre as bases da exploração econômica de quem compra sobre quem vende a força do trabalho. As consequências históricas que se mantêm na negociação capital-trabalho perpetuam a exploração econômica sob a forma de dominação jurídico-política: tripartismo; culpabilização dos trabalhadores por seu adoecimento e morte; arbitragens e sentenças judiciais tendenciosas; advocacia predatória; gestão do trabalho opressora/opressiva; desresponsabilização empresarial; entre outras.
Ora, se o adoecimento e a morte dos trabalhadores e das trabalhadoras expressa relações assimétricas, faz-se necessário expandir as estratégias de defesa e de luta contra o capital. Evocando o princípio da equidade na luta contra as injustiças e os crimes contra a humanidade, o NSTD do Cebes propõe que o Estado brasileiro expanda esse princípio fundamental para além do SUS e assuma seu papel na defesa das trabalhadoras e trabalhadores.
3 – Os movimentos sindicais, associativos, populares, familiares, cooperativos relacionados diretamente com o trabalho devem se associar aos movimentos sociais identitários na luta pela saúde no trabalho como direito humano? Se sim, de que forma?
O tema da interseccionalidade entre os movimentos identitários carece de inclusão da saúde no trabalho, em si, como um direito humano. Ocorrências de violação de direitos humanos no ambiente de trabalho, quando reconhecidas, são, praticamente, consideradas como questões identitárias e assim são reivindicadas (racismo, misoginia, homofobia, capacitismo, etarismo etc.). Na ausência de identitarismo, as transgressões são absorvidas pela organização do trabalho sob outra ordem sócio-institucional-jurídica e, por isso, são desconsideradas e perpetuadas.
Assim, o NSTD do Cebes propõe, no que tange à saúde das pessoas trabalhadoras, que os espaços de controle e participação social previstos na Lei nº 8.142/90 (Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora – CISTT)55 Presidência da República (BR). Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF. 1990 dez 31; Edição 249; Seção I:25694-25695. garantam a participação dos movimentos identitários, de maneira que o diálogo entre essas questões seja ampliado.
4 – Se a saúde no trabalho deve ser considerada um direito humano, o que deve ser feito?
Enfrentar a barbárie no mundo do trabalho é associar-se aos que resistem, nas conjunturas nacional e internacional, contra a destruição dos direitos humanos nas distintas esferas de preconceito, discriminação, estigma, ofensa, injúria, atentado contra a vida, exploração, opressão etc. O mundo do trabalho é hoje fábrica de sofrimento, exclusão, incapacidade e destruição, inclusive do ambiente, de relações familiares e sociais.
Esses são alguns dos desafios que se impõem nos dias atuais. Para enfrentá-los, é indispensável atualizar e fortalecer a PNSTT, no sentido de que ela consiga cumprir a tarefa para a qual foi criada. Isto é, que ela seja uma indutora da transversalização do campo da saúde do trabalhador por todo o SUS, da atenção básica à alta complexidade, e que atenda às dimensões biopsicossociais dos efeitos do trabalho, e não apenas de doenças e acidentes. Dessa forma, aumentam-se as possibilidades de o SUS ser um espaço que contribua para a concretização do direito humano à saúde no trabalho.
Para além da PNSTT, porque em si mesma é insuficiente para o propósito aqui defendido, a lógica da saúde do trabalhador como direito humano deve ser pautada em outras instâncias, envolvendo todos os setores do Estado e da sociedade civil. Em âmbito governamental, isso significa integrar pastas, para além do Ministério da Saúde, mas sem retirar o seu papel estruturante.
A garantia desse direito perpassa a participação popular sob a forma de protagonismo da classe trabalhadora. Se é a classe trabalhadora que sofre diretamente os efeitos da exploração-opressão e que, portanto, tem o seu direito humano violado, o protagonismo desse debate/luta não pode ser delegado a qualquer outro sujeito.
Em face do sofrimento daqueles que nos antecederam ou que hoje são vítimas dessas injustiças, unidos àquelas pessoas trabalhadoras que estão por vir, o NSTD do Cebes conclama toda a sociedade a debater e lutar para que a saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras seja alçada ao patamar dos direitos humanos.
Referências
- 1Berlinguer G. A saúde nas fábricas. Tradução brasileira da 5ª edição italiana (publicada em 1977). São Paulo: Cebes-Hucitel; 1983.
- 2Oddone I, Re A, Marri G, et al., organizadores. ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo: Hucitec; 1986.
- 3Senado Federal (BR). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF. 1988 out 5; Edição 191-A; Seção I:1-32.
- 4Presidência da República (BR). Decreto-Lei nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2002 set 16; Edição 187; Seção I:3-18.
- 5Presidência da República (BR). Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF. 1990 dez 31; Edição 249; Seção I:25694-25695.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
26 Maio 2025 - Data do Fascículo
Apr-Jun 2025