Vozes do desconhecimento: uma Análise de Discurso Crítica dos movimentos antivacinas brasileiros no Facebook

Voices of unknowledge: A Critical Discourse Analysis of Brazilian anti-vaccine movements on Facebook

Tiago Rosa Nogueira Tatiana Rosa Nogueira Dias Maria Ester Simões Rodrigues Éverton Luís Pereira Edith Maria Barbosa Ramos Maria Célia Delduque Sobre os autores

RESUMO

Este artigo teve por objetivo analisar os discursos do movimento antivacina no Brasil, publicados na rede social Facebook durante a pandemia da covid-19. Foram acompanhadas três comunidades do Facebook, entre 2020 e 2022, período coerente com a pandemia da covid-19. Foram selecionadas as comunidades tendo em vista sua identificação com o movimento antivacina e que tivessem mais de 200 participantes, selecionando-se as postagens que traziam palavras ou textos contrários à vacinação. Os trechos de textos foram analisados conforme método da Análise de Discurso Crítica (ADC). Os resultados apontaram para postagens com combinação de desconfiança da ciência, teorias conspiratórias e apelos à liberdade individual. O discurso antivacina foi pautado em discursos, como forma de validação, sendo recorrente o tom violento. O estudo evidenciou a ausência de informação fidedigna à população para contrapor ao discurso sem lastro científico das redes sociais e a importância de estratégias de comunicação em saúde mais eficazes, que considerem as dimensões social e cultural da sociedade, além de iniciativas educacionais que interrompam a credulidade de indivíduos em afirmativas sem crédito na ciência.

PALAVRAS-CHAVES
Movimento contra vacinação; Covid-19; Hesitação vacinal

ABSTRACT

This article aimed to analyze the speeches of the anti-vaccine movement in Brazil, published on the social network Facebook, during the COVID-19 pandemic. Three Facebook communities were monitored in the period between 2020 and 2022, consistent with the COVID-19 pandemic. Communities were selected based on their identification with the anti-vaccine movement and made up of more than 200 participants, selecting posts that contained words or texts contrary to vaccination. The text excerpts were analyzed according to the Critical Discourse Analysis method (CDA). The results pointed to posts with a combination of distrust of science, conspiracy theories and appeals to individual freedom. The anti-vaccine discourse was based on speeches, as a form of validation, with a recurrent violent tone. The study highlighted the lack of reliable information for the population to counter the unscientific discourse on social networks and the importance of more effective health communication strategies, which consider the social and cultural dimensions of society, in addition to educational initiatives that interrupt the credulity of individuals in statements without credit in science.

KEYWORDS
Anti-vaccination movement; COVID-19; Vaccination hesitancy

Introdução

Em 1902, quando o farmacêutico Rodolpho Theóphilo, sem apoio do governo da época, tentava combater a epidemia de varíola em Fortaleza-CE, vacinando a população com seus próprios recursos e convencendo-a da importância do imunizante, ao mesmo tempo que tentou persuadir as autoridades de que “é preciso coragem e paciência para lutar com os cegos de entendimento“11 Neto L. A vacina sem revolta: a luta de Rodolpho Theophilo contra o poder e a peste. São Paulo: Bella Editora; 2022. 226 p.(179), estava, de fato, antecipando-se ao que o futuro apresentaria.

Durante a pandemia, as autoridades de saúde recomendaram a implementação agressiva de estratégias com identificação de casos, quarentena/isolamento, rastreamento de contatos e distanciamento social. Modelos matemáticos demonstraram que a disseminação da covid-19 podia ser rapidamente intensificada se essas intervenções fossem relaxadas. Contudo, todos esses preparativos não contavam com o movimento antivacina22 Kalichman SC, Eaton LA, Earnshaw VA, et al. Faster than warp speed: early attention to COVD-19 by anti-vaccine groups on Facebook. J Public Health (Bangkok). 2022;44(1):e96-e105. DOI: https://doi.org/10.1093/pubmed/fdab093
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.

Os movimentos antivacina ocorrem em todo o mundo e há muito tempo, tendo Oswaldo Cruz experimentado uma forte resistência da população do Rio de Janeiro, em 9 de novembro de 1904, à publicação do Plano de Regulamentação da Aplicação da Vacina Obrigatória contra a Varíola. Atualmente, em especial, durante a pandemia da covid-19, novos contornos surgiram para o movimento antivacina: as redes sociais33 Santos CJ, Carvalho Neto ADPM, Rocha TJM, et al. Vaccine hesitation and the ‘pandemic’ of the unvaccined: What to do to face the new ‘vaccine Revolt’? Medicina (Ribeirão). 2022;55(1):e-192095. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-7262.rmrp.2022.192095
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. A internet deu voz ao público que nunca antes teve um espaço para opinar ou observar as opiniões circulantes na sociedade mundial. Com alternativas que vão muito além do Facebook, Twitter, Instagram e TikTok, as pessoas passaram a gastar cada vez mais tempo interagindo umas com as outras através das redes sociais. Uma pesquisa da ComScore, realizada em 2023, revelou que os quase 1 bilhão de usuários da rede de Mark Zuckerberg gastaram 405 minutos por mês acompanhando os perfis do Facebook44 Veronesi I. Tendências Digitais 2023 [Internet]; 2023 [acesso em 2025 jan 3]. Disponível em: https://www.comscore.com/por/Insights/Apresentacoes-e-documentos/2023/Tendencias-Digitais-2023
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.

Durante o período pandêmico, as redes sociais ganharam protagonismo, porque foram o meio utilizado pelos movimentos contrários à vacinação obrigatória para divulgar suas ideias e se expressar de modo contrário à imunização. Antes mesmo desse protagonismo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já demonstrava preocupação junto às autoridades sanitárias, divulgando em relatório as 10 ameaças para a saúde global, sendo uma delas a hesitação em aceitar o uso de vacinas, que é descrita como relutância ou recusa à vacinação, mesmo quando ela está disponível55 Organização Panamericana da Saúde. Dez ameaças à saúde que a OMS combaterá em 2019. Opas [Internet]. 2019 jan 17 [acesso em 2025 jan 3]; Início. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/17-1-2019-dez-ameacas-saude-que-oms-combatera-em-2019
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O fenômeno, ocorrido em todo o mundo, foi amplamente disseminado no Brasil, fazendo com que despertasse o interesse em conhecer as narrativas utilizadas pelo movimento anti-vacina brasileiro para obter o seu intento de coibir a massiva vacinação contra a covid-19. Quais seriam suas estratégias para convencer e arrebatar simpatizantes para o movimento?

O objetivo deste artigo é apresentar os resultados de pesquisa realizada na rede social Facebook, a fim de mergulhar nas complexas camadas de discursos presentes em grupos antivacina, para desvendar as ideologias e narrativas subjacentes.

Material e métodos

Trata-se de um estudo que adotou metodologia qualitativa, com fonte documental de investigação, consubstanciado em postagens na Plataforma Facebook.

Foram identificados grupos criados entre 2020 e 2022 na Plataforma Facebook, com objetivo declarado na denominação do grupo e caráter público e aberto, em que se pudesse ler as postagens, sem a necessidade de adesão ao grupo ou identificação prévia.

A identificação dos grupos foi realizada na própria Plataforma do Facebook, utilizando-se os termos: ‘Anti vacina’, ‘Antivacinas’, ‘Movimento antivacina’, ‘Vítimas da covid’, ‘Vacinação obrigatória’ e ‘Não a vacina obrigatória’. A escolha dos termos de busca se deu de modo aleatório, tendo havido uma observação prévia dos grupos, para a definição das palavras mais utilizadas nos citados.

Foram selecionados grupos, conforme os critérios: i) mínimo de 200 participantes; ii) operação exclusivamente em língua portuguesa, iii) atividade desde o segundo semestre de 2020 até o primeiro semestre de 2022.

O critério de número de participantes foi tomado pela prévia observação dos grupos na plataforma escolhida, tendo sido encontrado um número elevado de grupos com poucos participantes, o que não geraria resultados mais sólidos.

Foram encontrados 4 grupos que cumpriram os critérios para participar da pesquisa.

As postagens dos grupos foram lidas obedecendo o marco temporal, privilegiando-se as mais antigas, seguidas daquelas nos períodos subsequentes.

Depois de lidas as postagens, foram separadas as mais afeitas ao objeto da investigação, ou seja, identificadas as narrativas mais prevalentes do movimento. Para isso, instituíram-se critérios de inclusão das postagens: i) discursos sobre teorias conspiratórias; ii) liberdade individual; iii) tirania estatal; iv) apelo ao medo; e v) argumentos supostamente científicos.

Para a análise das postagens selecionadas, utilizou-se o método da Análise de Discurso Crítica (ADC), que permite investigar as estruturas discursivas e ideológicas. Esse método enfoca a linguagem como prática social, considerando como os discursos refletem e reproduzem relações de poder e ideologias. A análise centrou-se em identificar e examinar as quatro narrativas mais comuns dentro dos grupos selecionados, com o intuito de entender como tais narrativas contribuem para a construção e disseminação de ideologias antivacinação.

Conforme Wodak and Meyer66 Wodak R, Meyer M. Methods of Critical Discourse Analysis [Internet]. Londos: Sage Publications; 2009 [acesso em 2025 jan 3]. Disponível em: http://www.sagepub.co.uk/iqm
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, a ADC, dependendo de sua epistemologia, seguirá uma teoria de suporte para questões metodológicas, mas o fato de analisar determinado fenômeno social, visibilizando questões de poder e ideologia, torna a pesquisa crítica.

Considerando a Abordagem Dialética-Relacional, de Fairclough77 Fairclough N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora UnB; 2001. 316 p., a Teoria Social do Discurso apresenta um modelo que considera três dimensões: texto, prática discursiva e prática social, observando que, na realidade, o discurso é parte de uma prática social e, portanto, não deve ser analisado como algo isolado, mas pensado como uma rede, em que há implicações entre os elementos da prática social.

Ademais, o texto é a materialização de uma prática social, por meio de mecanismos linguísticos, sendo possível identificar questões ideológicas e hegemônicas a partir do que é escrito e publicado em espaço um público como a web.

Dada a natureza pública das informações analisadas e o foco em grupos acessíveis publicamente no Facebook, este estudo não precisou ser submetido a um Conselho de Ética em Pesquisa, de acordo com a Resolução nº 510, de 7 de abril de 2026, do Conselho Nacional de Saúde88 Ministério da Saúde (BR); Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Diário Oficial da União, Brasília, DF. 2016 maio 24; Edição 98; Seção I:44-46.. No entanto, foram adotadas práticas éticas rigorosas para garantir o anonimato dos participantes e de seus grupos. Todas as identificações pessoais, nomes dos participantes ou quaisquer outras informações que pudessem levar à identificação foram omitidas ou anonimizadas.

Resultados e discussão

Nas postagens analisadas, foram encontrados itens lexicais que remetem a discursos específicos, entre eles, o discurso da manipulação por meio de tecnologias, como o implante de ‘nano-robôs’ para controle populacional, conforme é possível verificar na figura 1:

Figura 1
Postagens da Comunidade A

Vê-se a expressão lexical ‘Nano-Chip’, indicando que viria ‘misturado na vacina’, com o avaliador na pergunta inicial intensificado com o uso de várias vogais em ‘estraaaaaago’.

Por meio da escolha lexical e do intensificador, há uma apropriação do discurso científico como forma de controle social, corroborando o discurso antivacina, uma vez que o objetivo da vacinação não seria o de controle da doença, mas um controle social, por meio de outras tecnologias como o ‘Nano-Chip’.

Brotas et al.1010 Brotas AMP, Costa MCR, Ortiz J, et al. Discurso antivacina no YouTube: a mediação de influenciadores. Rev Eletron Comun Inf Inov Saúde. 2021;15(1):72-91. DOI: https://doi.org/10.29397/reciis.v15i1.2281
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, em trabalho de investigação, também identificaram a intenção de associar a vacina a veneno, riscos e morte e, do ponto de vista político, às liberdades individuais, planos de poder para redução populacional e lucro da big pharma.

Outro discurso empregado como forma de argumentação, na mesma comunidade, foi o de cunho científico com base em alterações de DNA. São apresentados dois discursos considerados antagônicos como fundamentação da argumentação antivacina. Por meio dos itens lexicais ‘demônios’ e ‘gente maligna’, percebe-se o discurso religioso. Já por meio dos itens lexicais ‘DNA’ e ‘vacinação’, há o discurso científico.

Importante destacar que a problemática sobre o avanço das pesquisas sobre vacinas e os movimentos contrários à ciência e à vacinação já estavam em discussão pelos autores da saúde coletiva desde o início da pandemia da covid-19. Castro1111 Castro R. Vacinas contra a Covid-19: o fim da pandemia? Physis. 2021;31(1):e310100. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312021310100
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destacava o paradoxo existente entre o desenvolvimento das estratégias biomédicas de imunização e os possíveis obstáculos que isso enfrentaria em uma sociedade marcada por concepções conflitantes sobre o assunto.

A utilização de processos verbais, como ‘mudará’, ‘obrigar’, ‘tornar’, intensifica uma possível mudança social de submissão e ‘escravização’ dos seres humanos por um suposto movimento de ‘globalistas’, discurso que será explicado na prática social.

Na Comunidade B, foram encontradas representações do movimento ‘globalista’ por meio de itens lexicais específicos (figura 2).

Figura 2
Postagem da Comunidade B

Na postagem, há indicações da possível elite ‘o SISTEMA/Deep State/Governo Oculto/ Caballa Negra/Illuminati/Maçonaria/Donos do Mundo/banqueiros sionistas (chamem como quiser)’. Por meio das escolhas lexicais, há uma mescla de representações de figuras relacionadas ao governo e ao capitalismo – ‘Deep State’, ‘Governo Oculto’, ‘Donos do Mundo’ e ‘banqueiro’ – com representações relacionadas ao discurso religioso, presentes em ‘Cabala Negra’, ‘Illuminati’, ‘Maçonaria’ e ’sionista’.

A argumentação do discurso do ‘globalismo’ é fundamentada pela utilização de itens lexicais relacionados ao discurso científico, presente no item lexical ‘chipar’, como forma de processo verbal, indicando uma possível ação que seria desenvolvida por essa elite (figura 3).

Figura 3
Postagem da Comunidade B

Em outro post da Comunidade B, também foi encontrada a mescla do discurso religioso com o científico, por meio dos itens lexicais ‘efeitos colaterais’ e ‘evidências’, relacionados ao científico, e ’soro milagroso’ e ’sacrificar’, relacionados ao religioso.

Maciuszek et al.1313 Maciuszek J, Polak M, Stasiuk K, et al. Active pro-vaccine and anti-vaccine groups: Their group identities and attitudes toward science. PLoS One. 16(12):e0261648. DOI: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0261648
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, em trabalho publicado, enfatizam que os adeptos da vacinação apoiam a ciência, confiam na medicina convencional e se preocupam com ameaças à população decorrentes de não vacinados. Já os antivacinação possuem motivaçõe s mais diversas e, por isso, apresentam uma identidade grupal mais fraca. Porém, os autores não identificaram o viés religioso do movimento antivacina em seu estudo.

Importante pensar que, como afirmado pelos autores citados, se as motivações são mais diversas, pode-se pensar, também, que as comunidades de fala acionadas são maiores e mais plurais. Utiliza-se aqui o conceito de comunidade de fala proposto por Dell Hymes1414 Hymes D. Models of the Interaction of Language and Social Life. In: Paulston CB, Tucker GR, editores. Sociolinguistics: the essential readings. Oxford: Blackwell Publ. 2003, p. 35-71, ou seja, comunidades que congregam sujeitos acionados em determinado discurso. Assim, as postagens podem produzir um maior engajamento, mesmo com pouco ou nenhum sentimento de coletividade. Ainda com relação ao movimento do ‘globalismo’, nas postagens da Comunidade B, são acrescidos itens como #contranovaordemmundial, #contraglobalism, #nãoaoglobalismo.

A maioria das hashtags relacionadas à vacinação foi negativa, segundo Khadafi et al.1515 Khadafi R, Nurmandi A, Qodir Z, et al. Hashtag as a new weapon to resist the COVID-19 vaccination policy: a qualitative study of the anti-vaccine movement in Brazil, USA, and Indonesia. Hum Vaccin Immunother. 2022;18(1):2042135. DOI: http://doi.org/10.1080/21645515.2022.2042135
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. As hashtags mais populares de oposição à vacinação foram #covidiots (Brasil), #covivaccine (EUA) e #antivaccine (Indonésia). Os autores identificam uma forte relação entre as hashtags usadas nos três países, indicando conexão entre os grupos antivacina.

Quanto ao #BoicoteaChina, a vacina desenvolvida pelo país teve muita resistência em ser aceita no Brasil. A associação de uma vacina contra covid-19 com a China reduziu em 16,4% a intenção de imunização da população1616 Ferrari M. 2020. Brasileiros têm mais resistência a tomar vacinas chinesa e russa, diz estudo. CNN [Internet]. 2020 out 26 [acesso em 2025 jan 3]; Saúde. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/brasileiros-tem-mais-resistencia-a-tomar-vacinas-chinesa-e-russa-diz-estudo/.
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. Essa associação foi amplamente difundida inclusive em discursos da Presidência da República e parlamentares, o que pode acionar a identificação de uma comunidade de fala e de práticas a partir de um certo alinhamento político1414 Hymes D. Models of the Interaction of Language and Social Life. In: Paulston CB, Tucker GR, editores. Sociolinguistics: the essential readings. Oxford: Blackwell Publ. 2003, p. 35-71.

A intertextualidade presente em um texto possibilita a análise da prática discursiva, pois várias vozes são articuladas como forma de compor o que se denominou chamar prática discursiva.

Resende e Ramalho1717 Resende VM, Ramalho V. Análise do discurso crítica. São Paulo: Contexto; 2006. 160 p.(47) apresentam que:

A intertextualidade é uma categoria de análise muito complexa e potencialmente fértil. Bakhtin (2002) enfatizou a dialogicidade da linguagem, postulando que textos são dialógicos em dois sentidos: primeiro, mesmo textos aparentemente monológicos. como os textos escritos, participam de uma cadeia dialógica, no sentido de que respondem a outros textos e antecipam respostas; segundo o discurso é internamente dialógico porque é polifônico, todo texto articula diversas vozes.

Nos textos das comunidades do Facebook, foram percebidas algumas intertextualidades, ora explícitas, ora implícitas, com discursos e textos. A mais evidente, como forma de validação de uma argumentação, é a intertextualidade com textos científicos.

Foram utilizados textos de divulgação da vacinação como forma de invalidação, utilizando os efeitos colaterais como principais argumentos contrários à vacinação, além de desempenharem papel de comparação de outras doenças com o ato de vacinar (figura 4).

Figura 4
Postagem da Comunidade B

Nota-se semelhança nos discursos mesmo em comunidades diferentes. Há uma prevalência do discurso de que a vacinação pode ocasionar outras doenças, fazendo-se considerações ao passado quando houve indicações e validações pela comunidade científica de que produtos da indústria médica causaram má-formação em recém-nascidos. A talidomida, no caso da figura 4, e a relação das vacinas com o autismo – demonstrando que o estudo fraudulento de Andrew Wakefied1818 Shelby A, Ernst K. Story and science: how providers and parents can utilize storytelling to combat anti-vaccine misinformation. Hum Vaccin Immunother. 2013;9(8):1795-1801. DOI: http://doi.org/10.4161/hv.24828
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, em postagens seguintes, continua propagando tal crença até os dias atuais.

Outra intertextualidade empregada foi aquela indicada em um filme específico: Matrix. No filme, é apresentado um personagem que está preso em um ambiente que parece real, mas que, depois de fazer uma escolha, entende que a realidade está sendo programada por máquinas que utilizam os seres humanos como baterias.

As mensagens antivacina usaram predominantemente histórias anedóticas, humor/sarcasmo e figuras de celebridades como técnicas de persuasão, e se concentraram, principalmente, em valores relacionados às categorias de segurança, teorias políticas/conspiratórias e escolha. As mensagens antivacina usaram, principalmente, a gravidade e a suscetibilidade percebidas, que são elementos de apelo ao medo, segundo estudos de Scannell et al.1919 Scannell D, Desens L, Guadagno M, et al. COVID-19 Vaccine Discourse on Twitter: A Content Analysis of Persuasion Techniques, Sentiment and Mis/Disinformation. J Health Commun. 2021;26(7):443-459. DOI: http://doi.org/10.1080/10810730.202L1955050
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No post da figura 5, há uma intertextualidade utilizando imagens dos personagens do filme Matrix, associando-os aos aspectos de vacinação da covid-19. No post, há uma ordem direta, indicada pela frase ’saiam da Matrix’, que utiliza a intertextualidade com a produção cinematográfica citada.

Figura 5
Postagem da Comunidade B

Por meio da intertextualidade com a produção cinematográfica, existe uma representação de que as pessoas não estariam em um ambiente propício a escolhas, pois estariam sem liberdade. E somente por meio de uma ideologia antivacina poderia surgir uma nova possibilidade de ação.

Outro discurso apresentado na Comunidade C tem conexão com a liberdade, que foi empregado utilizando uma intertextualidade com a lei. Na postagem: ‘Salve esta foto no seu celular para mostrar como justificativa de recusa caso alguém queira lhe obrigar a tomar uma certa vacina-lixo feita às pressas por ai’.

A foto a que se refere é do texto do art. 15 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 20022020 Presidência da República (BR). Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União [Internet], Brasília, DF. 2002 jan 11 [acesso em 2025 jan 3]; Edição 8; Seção I;1. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm
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, que instituiu o novo Código Civil, que dispõe: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”.

Apresentando o texto literal do Código Civil, a intenção argumentativa foi a de que as pessoas estariam livres para optar por não se vacinar e que, caso alguma autoridade tivesse a intenção de obrigar a inoculação, as pessoas poderiam mostrar a lei para fundamentar a recusa.

Broniatowski et al.2121 Broniatowski DA, Jamison AM, Johnson NF, et al. Facebook Pages, the ‘Disneyland’ Measles Outbreak, and Promotion of Vaccine Refusal as a Civil Right, 2009-2019. Am J Public Health. 2020;110(supl3):S312-S318. DOI: http://doi.org/10.2105/AJPH.2020.305869
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, em estudo, afirmam que a narrativa das páginas antivacinas na internet alternam o discurso de segurança das vacinas para liberdades civis. A utilização de dispositivo do Código civil apenas reforça esse entendimento.

Em postagem na Comunidade identificada como C, houve a publicação do seguinte texto:

Não ao passaporte de imunização! Não aceite o controle estatal sobre o seu corpo! Ninguém pode ser obrigado nem coagido a receber tratamento, vacinas ou ser inoculado com qualquer substância sem seu consentimento. É o fim da liberdade! Resista!2222 Comunidade C – Contra a vacinação obrigatória [Internet] 2024 [acesso em 2024 mar 7]. Disponível em: https://www.facebook.com/groups/1542331419271651
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Esse post apresenta uma intertextualidade com discurso apresentado pela mídia de como seria uma abordagem policial, indicando que todos teriam apenas ‘o direito de receber a vacina e ficar calado independente do que acontece com você’.

Observa-se que a argumentação em favor da liberdade individual não é um fenômeno recente. Personalidades históricas como Lauro Sodré, Vicente de Souza, Barbosa Lima e Rui Barbosa, durante a crise sanitária na cidade do Rio de Janeiro, em 1904, manifestaram-se contra a obrigatoriedade da vacinação. Esses discursos enfatizavam o respeito ao direito individual de escolha, sublinhando a importância de preservar a autonomia pessoal frente às intervenções de saúde pública2323 Carvalho JM. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras; 2019. 192 p..

Utilizando a intertextualidade com textos científicos, cinematográficos e legais, as postagens conseguem estabelecer uma relação de confiança com o público leitor, permitindo uma representação da vacinação proposta pelo Estado. Em função de serem diversos, os discursos acionam diferentes comunidades de fala, gerando, dessa forma, uma grande possibilidade de engajamento.

O fato é que o movimento antivacina se voltou contra uma hegemonia capitalista, apesar de apresentar argumentos contra o comunismo. Foi estabelecida uma elite, composta por governo, empresários mundiais e até cientistas, que estariam fomentando uma indústria de enriquecimento global. Há alguns estudos que apontam que isso seria um populismo anticientífico2424 Monari ACP, Araújo KM, Souza MR, et al. Legitimando um populismo anticiência: análise dos argumentos de Bolsonaro sobre a vacinação contra Covid-19 no Twitter. Liinc Rev. 2021;17(1):e5707. DOI: https://doi.org/10.18617/liinc.v17i1.5707
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ou uma ciência relacionada ao populismo2525 Mede NG, Schafer MS. Science-related populism: Conceptualizing populist demands toward science. Public Underst Sci. 2020;29(5):473-491. DOI: https://doi.org/10.1177/0963662520924259
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, em que a ciência e quem mais estiver contra os seus interesses seriam a elite, enquanto aqueles que estão de acordo com os meus interesses seriam o ‘povo’.

Por meio dos discursos, o movimento constrói informações que passam a ser divulgadas: o ‘globalismo’ visa à criação de uma comunidade internacional interconectada, em uma Nova Ordem Mundial, um plano secreto elaborado por elites poderosas para estabelecer um governo mundial autoritário. Essa narrativa frequentemente se mistura com outras teorias da conspiração, como o controle populacional e a vigilância em massa. A teoria do Great Reset é uma teoria incongruente de um governo mundial socialista autoritário, liderado por uma elite de capitalistas e políticos influentes, que ganhou adeptos na internet, apesar das evidentes contradições teóricas. Essa ideia sugere a existência de uma conspiração secreta em andamento globalmente. Propaga a alegação sem base de que o Great Reset faz parte de um esquema maquiavélico orquestrado pela elite global, que supostamente planejou e controlou a pandemia de covid-19. Dentro dessa narrativa, as medidas de confinamento não visavam a mitigar a disseminação do vírus, mas induzir de forma calculada a uma crise econômica, pavimentando o caminho para a instauração de um regime socialista global, ainda que operando em prol de capitalistas poderosos. Essa teoria da conspiração encontrou ressonância entre diversos grupos, incluindo ativistas antivacinação, opositores das medidas de confinamento, curandeiros new age e indivíduos de espectros políticos extremos, tanto da direita quanto da esquerda. Isso se insere no contexto de uma suposta iniciativa das elites globais para reestruturar as economias e sociedades do mundo, sob o pretexto da recuperação pós-pandemia, mas com o verdadeiro objetivo de consolidar o poder e aumentar a vigilância e o controle sobre a população2626 Robinson O, Sardarizadeh S, Goodman J, et al. ‘Great Reset’: como um plano econômico virou teoria da conspiração global. UOL [Internet]. 2021 jun 30 [acesso em 2025 jan 3]; Notícias. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2021/06/30/great-reset-como-um-plano-economico-virou-teoria-da-conspiracao-global.htm
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As teorias da conspiração receberam um novo impulso, especialmente com a pandemia da covid-19, através da mídia conspiratória marginal. Thomas e Zhang2727 Thomas E, Zhang A. Bill Gates and the Mark of the Beast: How Covid-19 Catalyses Existing Online Conspiracy Movements [Internet]. [local desconhecido]: Australian Strategic Policy Institute; 2020 [acesso em 2025 jan 3]. Disponível em: https://www.aspi.org.au/
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reforçam que as alegações mais disseminadas são que Bill Gates estaria envolvido numa conspiração global, parte da Nova Ordem Mundial e do Grande Reset, para implantar microchips nas vacinas contra a coronavirus disease. Segundo os proponentes dessa teoria, esses microchips funcionariam como a ‘Marca da Besta’, mencionada no apocalipse bíblico, permitindo não apenas o rastreamento, mas, também, o controle absoluto sobre a população mundial. Essas afirmações são completamente infundadas e foram refutadas por especialistas em saúde pública e tecnologia ao redor do mundo2828 Orsi C. Negacionismo & desafios da ciência. São Paulo: Editora de Cultura; 2022. 112 p..

O que se observa é que o movimento antivacina utiliza suas narrativas negacionistas, definidas como a recusa de consensos científicos bem estabelecidos, sem fornecer argumentos sólidos ou que se baseiem em evidências, de forma reiterada. Os que negam a ciência acreditam que os consensos científicos são meras opiniões combinadas entre profissionais que têm interesses obscuros comuns2929 Pilati R. Ciência e Pseudociência: por que acreditamos apenas naquilo em que queremos acreditar. São Paulo: Contexto; 2022. 160 p., contribuindo para o descrédito da ciência.

Existem diversos exemplos ao longo da história do mau uso ou de interpretações preconceituosas do conhecimento científico que ajudam a compreender a desconfiança por parte da população. Já se utilizou a ciência como justificativa para a segregação racial, pesquisas abusivas, genocídios e diversos outros exemplos nefastos. Entre os cientistas, há aqueles que se envolvem em práticas antiéticas para obter vantagens, especialmente em laboratórios de desenvolvimento de medicamentos, onde manipulam descobertas científicas de maneira imprópria para maximizar seus lucros. Além disso, há charlatões que abusam de sua autoridade científica e da confiança das pessoas para alcançar benefícios financeiros e poder3030 Takimoto E. Como dialogar com um negacionista. São Paulo: Livraria da Física; 2021. 152 p.. Todas essas situações contribuem para a desconfiança na ciência aos olhos do público leigo.

Além do mais, o descontentamento com o conhecimento acadêmico tem outras razões. Vivemos em um mundo moldado pela ciência moderna, mas, frequentemente, sua serventia não é compartilhada de forma equitativa3131 Peres F, Rodrigues KM, Silva TL. Literacia em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 154 p., ou seja, os supostos benefícios, com frequência, não são democratizados e não chegam ao cidadão comum.

No Brasil, uma pesquisa do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos revelou uma queda significativa no percentual de pessoas que veem a ciência e a tecnologia como benéficas para a humanidade. Em 2015, 54% acreditavam que a ciência trazia benefícios para a sociedade, mas esse número caiu para 31% em 20193131 Peres F, Rodrigues KM, Silva TL. Literacia em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 154 p..

Em outro estudo, em que aproximadamente 140 mil pessoas foram entrevistadas, a conclusão foi de que, no Brasil, 73% desconfiam da ciência e 23% acreditam que a produção científica contribui pouco para o desenvolvimento econômico e social do País. Questões religiosas influenciaram significativamente as respostas, com quase metade dos entrevistados afirmando que a ciência contraria suas crenças religiosas, e a maioria preferindo seguir a religião nesses casos3131 Peres F, Rodrigues KM, Silva TL. Literacia em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 154 p..

Com o passar do tempo, a ciência foi se desenvolvendo de uma forma que acabou se encastelando em seu mundo, as pesquisas e os debates ficaram isolados em bolhas, e o distanciamento do público geral foi se tornando uma realidade, acarretando um vácuo de representatividade, já que o público não especializado na ciência não se vê representado. Essa percepção contribui para uma crise geral de legitimidade da ciência, similar à desconfiança com relação ao governo, às instituições e à imprensa, alimentada tanto por críticas de certa forma válidas quanto por discursos infundados e convicções pessoais3131 Peres F, Rodrigues KM, Silva TL. Literacia em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 154 p..

Existem demonstrações desse distanciamento que se evidenciam de diversas formas. Os guetos científicos acabam por ter uma dinâmica de comunicação apenas entre os indivíduos que pertencem à mesma comunidade. Um exemplo é a percepção de que as mudanças frequentes nas orientações das autoridades sanitárias durante evento de surto são resultado de incompetência ou confusão, quando em verdade consistem das incertezas que são inerentes ao próprio desenvolvimento do conhecimento científico, que é insatisfatoriamente comunicado à população. A diferença entre o conhecimento dos especialistas e dos não especialistas está baseada em dois aspectos principais3232 Hernández Rincón EH, Lamus Lemus F, Díaz Quijano DM, et al. Resistencia de la población hacia la vacunación en época de epidemias: a propósito de la COVID-19. Rev Panamer Salud Púb. 2022;46(1):1-9. DOI: https://doi.org/10.26633/RPSP.2022.148
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O primeiro aspecto é a discrepância entre o tempo que o conhecimento científico leva para evoluir e o tempo que a sociedade leva para absorver esse conhecimento, o que acaba limitando a capacidade das pessoas de entenderem informações relacionadas às práticas da ciência e da tecnologia. O rápido avanço científico e tecnológico, especialmente nas últimas décadas, faz com que o conhecimento e as tecnologias se tornem obsoletos de forma rápida, e, na área da saúde, não é diferente. Um medicamento que era considerado o melhor tratamento para uma dada doença, de repente, pode ser desconsiderado devido à introdução de um novo medicamento no mercado. De maneira semelhante, um dado alimento, anteriormente visto como pouco saudável, pode, de um dia para o outro, ser recomendado como parte de uma dieta balanceada e saudável, demonstrando que a melhor estratégia para prevenir uma doença transmissível pode mudar de um dia para o outro3232 Hernández Rincón EH, Lamus Lemus F, Díaz Quijano DM, et al. Resistencia de la población hacia la vacunación en época de epidemias: a propósito de la COVID-19. Rev Panamer Salud Púb. 2022;46(1):1-9. DOI: https://doi.org/10.26633/RPSP.2022.148
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O segundo aspecto trata das diferentes formas de produção de conhecimento entre cientistas e a população em geral. Cientistas e indivíduos não vinculados ao processo de produção científica aprendem de maneiras diferentes. Um cientista passa muitos anos em ambientes de aquisição de conhecimento formal, como escolas, universidades e cursos de pós-graduação, e se acostuma a basear a produção de seu conhecimento na busca de evidências, análise de tendências, estimativas baseadas em dados existentes e observação de padrões, além de outros aspectos próprios da construção do conhecimento científico. O cientista também se acostuma com dois princípios que são básicos para a ciência: as incertezas e o processo de constante evolução do conhecimento científico. Ou seja, para um cientista, a revisão quase diária de orientações durante uma crise sanitária e as mudanças de orientação resultantes do surgimento de novas evidências são processos naturais e esperados. Em contrapartida, para a população em geral, essa situação é frequentemente vista com desconfiança, como se indicasse despreparo, desconhecimento e/ou insegurança por parte dos cientistas, técnicos ou especialistas3232 Hernández Rincón EH, Lamus Lemus F, Díaz Quijano DM, et al. Resistencia de la población hacia la vacunación en época de epidemias: a propósito de la COVID-19. Rev Panamer Salud Púb. 2022;46(1):1-9. DOI: https://doi.org/10.26633/RPSP.2022.148
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Existe um crescente distanciamento entre as demandas de conhecimento científico presentes nas informações sobre saúde e o grau de conhecimento que as pessoas a quem essas informações são destinadas realmente possuem. Esse é o ponto de partida e a principal justificativa para desenvolver e implementar estratégias de literacia em saúde de indivíduos e grupos3030 Takimoto E. Como dialogar com um negacionista. São Paulo: Livraria da Física; 2021. 152 p., 3131 Peres F, Rodrigues KM, Silva TL. Literacia em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 154 p., 3232 Hernández Rincón EH, Lamus Lemus F, Díaz Quijano DM, et al. Resistencia de la población hacia la vacunación en época de epidemias: a propósito de la COVID-19. Rev Panamer Salud Púb. 2022;46(1):1-9. DOI: https://doi.org/10.26633/RPSP.2022.148
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, o que poderia aproximar o público em geral da comunidade científica.

De outra banda, durante a pandemia, foram observados discursos de políticos em várias regiões do globo que corroboram a tese antivacina, além de figuras influentes e formadores de opinião, que impactaram as crenças e atitudes da população com relação à confiança nas vacinas. Exemplos notáveis incluem Donald Trump, nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro, no Brasil, Boris Johnson, no Reino Unido, e Narendra Modi, na índia3333 Lakshmanan R, Sabo J. Lessons from the Front Line: Advocating for Vaccine Policies at the Texas Capitol During Turbulent Times. J Appl Res Child. 2019;10(2). DOI: https://doi.org/10.58464/2155-5834.1402
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, revelando a politização da saúde.

A politização ou, por que não, a partidarização, tornou-se ainda mais clara no estado americano do Texas, onde o movimento antivacina se estabeleceu de forma ainda mais evidente, já que exerce influência significativa na esfera política. O artigo ‘Lessons from the Front Line’3434 Fernandes J, Lanzarini NM, Homma A, et al. Vacinas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 110 p. demonstra a organização e o financiamento dos ativistas antivacina, que conseguiram implementar legislação contrária à vacinação em um ambiente político turbulento, colocando em risco a segurança da saúde pública. Esse movimento começou a ganhar força nos primeiros anos do Século XXI, atingindo um ponto crucial em 2003, com a aprovação da Lei 2292 durante a 78ª Sessão Legislativa Regular. Essa lei permitiu que os pais optassem por não vacinar seus filhos nas escolas com base em convicções filosóficas. Desde então, o movimento tem ampliado sua influência nas políticas de vacinação do Texas, trabalhando em conjunto com legisladores republicanos, no sentido de enfraquecer as políticas de imunização estabelecidas3434 Fernandes J, Lanzarini NM, Homma A, et al. Vacinas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. 110 p..

Por mais delirantes que possam parecer o negacionismo científico e as teorias da conspiração contidas no discurso antivacina, e que continuam sendo repetidos mesmo quando existem provas contrárias, não se pode entender esse fenômeno exclusivamente como resultado de problemas psicológicos ou de pessoas que estejam em situação de vulnerabilidade ao medo e à desconfiança. Além dos fatores socioculturais, que podem estar presentes, a negativa científica geralmente é formulada e influenciada por ações político-ideológicas deliberadas de certos grupos, que atuam promovendo a dúvida e o medo, distorcendo e manipulando informações com o objetivo de capturar emoções, atraindo indivíduos para versões fictícias da realidade e mobilizando-os em favor de seus próprios interesses.

A dificuldade de contato da ciência com o mundo cotidiano gera a sua negação pela população, e os discursos carismáticos vão ocupando as lacunas deixadas. Ou seja, existem duas situações: a grande dificuldade da ciência de dialogar com o público e, por outro lado, a existência de líderes carismáticos que exercem influência sobre a população.

Sendo assim, a população, distante dos pesquisadores de produção científica, fica vulnerável aos discursos antivacina disseminados nas redes e muitas vezes endossados por políticos carismáticos que se posicionam e são identificados como detentores da verdade. Nesse contexto, somando a profusão de informações na internet e a popularização, polarização e partidarização das redes sociais, fica evidente a necessidade urgente de se estabelecer um diálogo mais efetivo da Saúde com a população. A ciência precisa se tornar popular, precisa se aproximar das pessoas.

Considerações finais

O movimento antivacina esteve presente no momento histórico da pandemia da covid-19. Embora não seja um movimento novo, não há dúvidas de que o advento da internet e das redes sociais abriu espaço à disseminação em escala global dos seus objetivos.

O estudo demonstrou que o movimento antivacina, no Brasil, utilizou uma potente forma de divulgação de narrativas para a sociedade, na tentativa de divulgar sua ideologia pelo Facebook.

Por meio da ADC foi possível identificar o problema social, a hesitação vacinal por parte da população, que acabou sendo potencializada pela influência do discurso antivacina.

Concorda-se que é paradoxal a forma como o movimento antivacina se posiciona: por um lado, rejeita a ciência, a medicina fundamentada em evidências e os ensaios clínicos relacionados a vacinas; por outro lado, vale-se paradoxalmente de declarações de cientistas para legitimar suas posições3535 Nobre R, Guerra LDS, Carnut L. Hesitação e recusa vacinal em países com sistemas universais de saúde: uma revisão integrativa sobre seus efeitos. Saúde debate. 2022;46(esp1):303-21. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-11042022E121
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O discurso antivacina está embasado em discursos como a tese ‘globalista’, efeitos colaterais, em sua maioria, inexistentes, mutações promovidas pela alteração do DNA e direito à liberdade individual de escolha. Estabelece um tom agressivo para suas argumentações, utilizando-se de dados da ciência, da religião e de políticos como embasamento.

Os achados deste estudo revelam que os discursos atuais sobre saúde têm muitas semelhanças com as narrativas do passado, adaptan-do-se aos contextos contemporâneos somente quando necessário. Esse padrão sugere que, ao compreender e evitar os equívocos do passado, podemos descobrir abordagens efetivas para resolver os dilemas atuais relacionados à comunicação em saúde.

O distanciamento da ciência do cidadão comum, em combinação com os discursos carismáticos de políticos, contribui para a hesitação vacinal, demonstrando a necessidade de melhorar a comunicação em saúde, com linguagem clara, simples, direta e, acima de tudo, baseada em evidências, objetivando elaborar conteúdos que esclareçam a população de maneira mais assertiva. Evitar a simples invalidação de argumentos antivacina, preferindo promover um diálogo isento de inclinações ideológicas ou políticas, é imperativo para garantir que a mensagem seja acessível a todos os segmentos da sociedade. Um discurso enviesado pode comprometer a universalidade da comunicação, resultando em resistência à vacinação. A educação em saúde, na perspectiva da vacinação, deve ser ampliada a diversos públicos, e nas plataformas sociais digitais, a literacia sanitária é inadiável.

A chave está na educação em saúde: ela precisa ser simples, direta e, acima de tudo, baseada em evidências. É preciso entender que a saúde não pertence a esse ou aquele grupo político: ela é de todos e para todos.

É sobre ter a chance de viver uma vida plena e saudável, pois, no fim das contas, cuidar da saúde é cuidar das pessoas ao nosso redor, é construir uma comunidade mais forte e unida. Porque, quando se trata de bem-estar, todos estamos no mesmo barco.

  • Suporte financeiro:

    não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2025
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2025

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2024
  • Aceito
    19 Fev 2025
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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