ARTIGO ARTICLE

 

Hábitos de sono relacionados à síndrome da morte súbita do lactente: estudo populacional

 

Sleeping habits related to sudden infant death syndrome: a population-based study

 

 

Lorena Teresinha Consalter GeibI; Magda Lahorgue NunesII

IUniversidade de Passo Fundo, Passo Fundo, Brasil
IIPrograma de Pós-graduação em Medicina e Ciências da Saúde, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O estudo transversal, que descreve os hábitos de sono com risco potencial para a síndrome da morte súbita do lactente, incluiu todas as crianças nascidas vivas em 2003, em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil, com coleta de dados nas Declarações de Nascidos Vivos e em entrevistas, analisados com estatística descritiva e teste de qui-quadrado. Dos 2.634 nascidos vivos, selecionaram-se 2.285 (86,75%), com exclusão de 8,4% e perda de 5,2%. Dentre os hábitos protetores, constatou-se, em 77% dos lactentes, uso de vestuário adequado, 90% envolvidos frouxamente, 69% com cobertas de espessura fina, 98% dormindo no quarto dos pais e 56%, no berço. Dos hábitos com potencial risco, observaram-se decúbito lateral (92%), uso de travesseiro (88%) e os pés distanciados da borda inferior do berço (96%). Nas classes econômicas pobres, o hábito da criança de compartilhar a cama foi significativo (p = 0,00). Assim, num município com baixa prevalência de síndrome da morte súbita, os lactentes são expostos tanto a hábitos de sono protetores como de risco, sugerindo que, em populações desfavorecidas de países em desenvolvimento, outros fatores de risco dessa síndrome devam ser considerados. 

Lactente; Sono; Morte Infantil Súbita


ABSTRACT

This cross-sectional study on sleeping habits with potential risk for sudden infant death syndrome included all live births in Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brazil, in 2003 with data collection from Certificates of Live Birth and interviews, analyzed with descriptive statistics and the qui-squared test. From the 2,634 live births, 2,285 children were selected (86.75%), with 8.4% exclusion and 5.2% losses. Protective habits included 77% of infants with appropriate clothing, 90% loosely wrapped, 69% with thin blankets, 98% sleeping in the parents' bedroom, and 56% in the crib. Potentially risky habits included lateral decubitus (92%), use of a pillow (88%), and feet far from the lower edge of the crib (96%). Among low-income families, bed-sharing with other children was significant (p = 0.00). Thus, in a county with a low prevalence of sudden infant death syndrome, infants are exposed to both protective and risk factors, suggesting that in underprivileged populations in developing countries, other risk factors for this syndrome should be considered. 

Infant; Sleep; Sudden Infant Death


 

 

Introdução

Os hábitos de sono constituem os comportamentos culturalmente aprendidos e sistematicamente adotados pelo indivíduo ou seu cuidador com o propósito de favorecer o início ou a manutenção do sono em associação ou não com o atendimento de outras necessidades humanas básicas, tais como alimentação, hidratação, conforto, segurança, vínculo. A importância desses hábitos para a preservação da saúde infantil emerge com os estudos sobre a Síndrome da Morte Súbita do Lactente (SMSL), intensificados a partir da metade do século XX 1 pelo impacto dessa patologia nos indicadores de mortalidade infantil, especialmente em países desenvolvidos. Nesses países, o reconhecimento da posição prona de dormir e do superaquecimento do ambiente de sono como importantes fatores de risco, independentes da SMSL 2, desencadeou campanhas preventivas preconizando a adoção da posição supina para o sono dos lactentes.

Dentre os hábitos de sono, a posição ventral é considerada o principal fator de risco para a SMSL 2,3. A avaliação da influência da posição de dormir sobre o mecanismo do despertar tem evidenciado que a posição prona diminui o despertar de lactentes sadios nascidos a termo, tanto do sono quieto quanto ativo, com maior impacto entre os dois e três meses de idade ­ fase de maior risco para a SMSL.

O co-leito, definido como o hábito da criança de dormir na cama com um cuidador principal, geralmente a mãe 4, constitui outro fator de risco para a SMSL quando associado ao hábito tabágico dos pais ou ao uso de drogas 5,6, à prática materna de cobrir a cabeça da criança durante o sono e, eventualmente, à posição prona ou a superfícies macias 5. A cama compartilhada agrava o risco de superaquecimento da criança devido ao calor proveniente do corpo dos pais sob as cobertas, podendo também favorecer a ocorrência de asfixia 6. De outro lado, o hábito de compartilhar o quarto dos pais tem se mostrado protetor 7.

À temperatura corporal atribui-se um papel-chave no mecanismo da SMSL, em virtude de sua interação com os mecanismos do sono, do controle respiratório e do despertar, dada a incapacidade do lactente para acordar em resposta a uma temperatura ambiental acima de 28ºC 8. Observou-se também que os pré-termos apresentam apnéias mais freqüentes nessas temperaturas mais altas 9. Em vista disso, a utilização de duas ou mais camadas de roupas sobre o tórax e o uso de cobertas que propiciem superaquecimento constituem potenciais fatores de risco para a SMSL, da mesma forma que o uso de colchões e travesseiros macios ou cobertores e edredons sob a criança.

Vários estudos demonstraram que a cabeça coberta constitui um fator de risco para a SMSL em razão do estresse térmico ou da sufocação por inalação de gases expirados (rebreathing suffoccation) 10, por essa razão, a American Academy of Pediatrics (AAP) recomenda prender os lençóis e cobertores sob os colchões até a altura do tórax, impedindo que envolvam a face da criança 3. Outra medida protetora é posicionar a criança com os pés encostados na borda inferior do berço, de forma a dificultar seu deslizamento sob as cobertas.

O aleitamento materno e o uso de chupetas têm sido encontrados como fatores de proteção contra a SMSL em modelos de análise univariada. Entretanto, em modelo multivariado, esse efeito se torna pouco significativo para o aleitamento materno, mas não para o uso de chupetas, que, aumentando o tônus parassimpático, diminui o risco da doença 11.

Apesar de a SMSL ser mais comum em grupos sócio-econômicos desfavoráveis e em certos grupos raciais 2, é pouco estudada em países em desenvolvimento e em regiões de grande miscigenação racial. Conseqüentemente, a avaliação dos hábitos de sono também é limitada. No Brasil, os estudos encontrados na literatura foram realizados apenas com grupos étnicos: três com crianças indígenas 12 e um com crianças de uma comunidade negra isolada 13.

No Rio Grande do Sul, caracterizado por grande miscigenação racial e cultural, resultante da imigração européia em finais do século XIX e da vinda de asiáticos no século XX, também não foi encontrado estudo similar. Em vista disso, objetivou-se descrever os hábitos de sono de lactentes de um município do interior do estado com baixa prevalência de SMSL.

 

Pacientes e métodos

Trata-se de um estudo transversal, aninhado em coorte prospectiva de 2.285 nascidos vivos, desenvolvido em Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil, com uma população total de 168.458 habitantes, sendo 97,2% na zona urbana e 2,8% na zona rural. A população é formada por 89% de brancos, sem predominância étnica entre italianos, alemães, portugueses, indígenas, caboclos e outras. O Produto Interno Bruto (PIB) per capita corresponde a R$ 7.080,00, e a renda per capita mensal (IDH-R) é de R$ 405,64 14. Apresenta clima temperado com característica subtropical úmido e temperatura média anual de 17,5ºC. A prestação de serviços de saúde pública ocorre em 37 Unidades de Atendimento Básico, cinco Unidades de Atendimento Especializado, cinco prontos-socorros, cinco hospitais (dois com atendimento de urgência e emergência) e oito Equipes de Saúde da Família. O atendimento pediátrico da rede municipal é realizado em 24 Unidades de Atendimento Básico e em todas as Unidades de Atendimento Especializado 15. A média de nascidos vivos no período de 1996 a 2000 foi de 3.372, com um coeficiente de mortalidade infantil de 18,73 óbitos em cada mil nascidos vivos em 2002 e 21,69 em 2003 16,17.

Foram selecionadas para o estudo todas as crianças nascidas vivas no período de fevereiro de 2003 a janeiro de 2004, residentes e domiciliadas na zona urbana. Excluíram-se as crianças nascidas em Passo Fundo, mas domiciliadas em outros municípios (3%); residentes na zona rural (3%), lactentes hospitalizados desde o nascimento (0,26%), as crianças adotadas ou em processo de adoção (0,57%) e os óbitos ocorridos antes da coleta de dados (1,6%). Assim, dos 2.634 nascidos vivos, foram selecionadas, para fazer parte do estudo, 2.411 crianças. Dessas, em 117 casos (4,8%), não foi possível localizar os responsáveis após três tentativas no endereço constante na Declaração de Nascido Vivo (DN) do Sistema de Informações Sobre Nascidos Vivos (SINASC), nos registros hospitalares e ambulatoriais, ou em outra fonte disponível na comunidade; e nove famílias (0,3%) se recusaram a participar do estudo. Ao final, foram incluídos 2.285 nascidos vivos (86,75%), com uma perda de 5,2%, que não provocou viés de seleção.

Coletaram-se os dados por meio de um formulário adaptado do instrumento elaborado por Pinho 18 para identificar os fatores de risco da SMSL em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e do formulário do Maternity Advice Survey, utilizado para um estudo multicêntrico internacional (OMS/SIDS Global Strategy Force), com a coordenação, no Brasil, da Dra. Magda Lahorgue Nunes 19.

Parte dos dados foi obtida nas DN. Para a complementação ou conferência das informações, especialmente aquelas relativas ao endereço, foram consultados os dados informatizados disponíveis nos Serviços de Admissão ou Serviços de Arquivo Médico e Estatística dos hospitais e os cadastros de controle da realização do Teste do Pezinho do posto de saúde responsável pelo controle e busca de faltosos. Outras fontes utilizadas foram os registros existentes nos ambulatórios da rede pública municipal, a lista telefônica e informações obtidas junto aos agentes comunitários de saúde e equipes que atuam no Programa Saúde da Família (PSF), atendentes de creches, estabelecimentos comerciais e moradores mais antigos do bairro ou vila.

Os dados não constantes nas DN e os relacionados à história pregressa da criança e às variáveis do estudo foram obtidos, para todas as crianças, nas entrevistas domiciliares realizadas pela pesquisadora e por estagiários previamente treinados para a coleta dos dados, a qual foi precedida de estudo piloto para verificar o grau de capacitação dos entrevistadores e supervisor de campo, testar a logística do trabalho e a metodologia empregada e verificar a necessidade de ajustes finais para o início do trabalho efetivo. Fez-se a identificação dos hábitos de sono por meio do padrão de sono recordativo da mãe no período de dois meses e meio. A classe econômica foi avaliada pelo Critério de Classificação Econômica Brasil 20, que estima o poder de compra das pessoas e famílias urbanas, dividindo-as nas seguintes classes econômicas, com respectivas rendas médias familiares: A1 (R$ 7.793,00), A2 (R$ 4.648,00), B1 (R$ 2.804,00), B2 (R$ 1.669,00), C (R$ 927,00), D (R$ 424,00) e E (R$ 207,00).

Após a codificação, os dados foram digitados por dois digitadores independentes em banco de dados do programa Excel, versão 2000 (Microsoft Corp., Estados Unidos). Mensalmente, a pesquisadora conferia as bases de dados entre si e com os formulários, identificando os erros de amplitude e consistência, efetuando as correções necessárias. O supervisor de equipe repetiu 7,5% das entrevistas para controle de qualidade, com concordância interobservadores muito boa (kappa = 0,86; IC95%: 0,78-0,94).

Importaram-se os dados para o pacote estatístico SPSS 10.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos), analisando-os com medidas descritivas. As variáveis categóricas foram avaliadas pelo teste de qui-quadrado, com nível de significância de 0,05.

O projeto de pesquisa foi submetido à apreciação e concordância formal do Secretário Municipal da Saúde e submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, obtendo aprovação. Cada participante ou responsável legal pelo lactente recebeu o termo de consentimento livre e esclarecido, assinando-o caso concordasse em participar da pesquisa.

 

Resultados

Das 2.634 crianças nascidas no período do estudo, 223 (8,4%) não preencheram os critérios de inclusão. Houve perda de 4,85% e 0,3% de recusa. Participaram 2.285 lactentes, 86% situados entre as classes econômicas C, D e E, com média de idade de 78,7 ± 18,5 dias, 51% do sexo feminino, 92% nascidos a termo, peso ao nascer de 3.090 ± 488g. No quinto minuto de vida, 98% receberam Apgar > 8. O aleitamento materno foi iniciado em 97% dos casos e mantido exclusivo por 49% dos lactentes até o momento da coleta de dados. A maior proporção de crianças (68%) havia realizado de uma a três consultas de puericultura; 6,5% não haviam consultado. As intercorrências de saúde atingiram 43% das crianças, sendo mais freqüentes resfriados, pneumonia e cólicas abdominais. Das 2.285 crianças, 58% possuíam irmãos, e dessas, 14 (0,6%) haviam tido irmão com morte súbita, segundo relato materno.

Em relação às características maternas, verificou-se que 63% não exerciam ocupação fora do lar, e 53% realizaram o número mínimo de seis consultas de pré-natal preconizadas pelo Ministério da Saúde. A idade média por ocasião do parto foi de 25,75 anos, variando de 13 a 49 anos. O parto foi vaginal para 54%; 48% tiveram seus filhos em idades entre 21 e 35 anos, 26% com mais de 35 anos e 26% com menos de 20. O intervalo interpartal foi inferior a dois anos em 12% dos casos. O hábito tabágico no pré-natal foi admitido por 20%. As intercorrências na gestação foram relatadas por 66%, sendo mais freqüentes anemia, náuseas, vômitos e infecção urinária.

Em relação aos hábitos de sono, a posição preferencial para dormir foi o decúbito lateral (78%). Os decúbitos ventral e dorsal são evitados pela maior parte das mães e utilizados apenas ocasionalmente por algumas. Nos casos de alternância de decúbito, a posição lateral é utilizada quase sempre, e a dorsal e ventral, com menor freqüência. A posição ventral ­ de maior risco ­ é a menos utilizada nessa população. A maioria das mães (88,5%) declarou nunca colocar a criança nessa posição durante o sono.

A recomendação sobre a posição de dormir foi feita pelo pediatra a 48,5% das mães dos lactentes que realizaram consultas de puericultura. A posição mais recomendada foi o decúbito lateral, seja como única posição (46,5%), seja alternada com o decúbito ventral (0,7%) ou dorsal (0,5%). Das 13 mães que receberam orientação para colocar o lactente para dormir em decúbito dorsal, apenas 1 (7,7%) seguiu a recomendação. Das 1.071 mães que relataram não terem recebido nenhuma recomendação acerca da posição para o sono da criança, 5,6% optaram pelo decúbito dorsal. Independentemente de ter ou não recebido orientação sobre essa questão, a maior parte das mães evitou o decúbito dorsal como posição preferencial para o sono da criança. No entanto, das 34 mães que receberam recomendações para utilizar o decúbito ventral, 21% delas seguiram as recomendações. Entre as mulheres que receberam orientações para utilizar outras posições, somente 1,5% adotaram o decúbito ventral para o sono do lactente. Na ausência de qualquer recomendação, apenas 2,8% das mães optaram pelo decúbito ventral.

Nos primeiros três meses de vida, o quarto dos pais é o ambiente utilizado para o sono de 97% dos lactentes estudados. O co-leito ocorre em 44%; os outros 56% utilizam berço próprio. Esse hábito de dormir distribui-se de forma desigual entre as classes econômicas, com ocorrência significativamente maior nos estratos mais pobres (Tabela 1).

 

 

A maior parte dos lactentes (77%) dorme com duas ou menos peças de roupa sobre o tórax e utiliza cobertas em espessura e quantidade que não favorecem o superaquecimento, especialmente do pólo cefálico, uma vez que são cobertos apenas por baixo dos braços (40%) (Tabela 2).

 

 

A forma de envolvimento da criança pelas cobertas permite a livre movimentação dos braços em 90% dos casos. Apenas 2,8% das mães costumam colocar a criança em saco de dormir. Dois terços da população declara utilizar apenas o lençol para revestir o colchão em que a criança dorme, sendo esse de densidade firme (46%) ou intermediária (31%). As demais habitualmente utilizam os seguintes itens sob o lençol: cobertor de lã ou edredom (11%), capa de colchão de lã (10%) ou capa de colchão de plástico (8%). O travesseiro é sempre utilizado por 88% das crianças (Tabela 2).

Dos 1.280 lactentes que dormem em berços próprios, 96% são posicionados com os pés distantes da borda inferior do berço, em vez de ter os pés encostados na borda inferior do berço, conforme é recomendado para evitar o deslocamento sob as cobertas e a suscetibilidade à inalação de gases expirados, ou à exposição ao superaquecimento ou a acidentes.

O uso de bicos e chupetas é habitual para 19% dos lactentes; 37% nunca os utilizam; e os demais o fazem esporadicamente.

Em relação ao uso de brinquedos na cama, constatou-se que 76% nunca os adotam, e 16% o fazem rotineiramente. Cabe salientar que, nessa variável, foram considerados todos os objetos transicionais, como ursos de pelúcia, fraldas, bonecas, entre outros, utilizados para induzir o sono e que permanecem na cama durante o período de sono do lactente.

 

Discussão

Em Passo Fundo, a posição ventral, considerada de maior risco para a SMSL, é evitada por 88,5% das mães, o que pode explicar, em parte, a baixa prevalência da doença, como acontece nas culturas em que essa posição é raramente utilizada 21,22. Por outro lado, a posição lateral mostrou ser a posição preferencial para o sono dos lactentes, com uma ocorrência de 78%, muito próxima à encontrada por Pinho 18,19 em Porto Alegre, no grupo de casos de SMSL (67%) e controles (77%). Estudos observacionais têm evidenciado que o risco de SMSL é maior quando o lactente dorme na posição lateral do que na posição dorsal 23, em vista da maior probabilidade de rolar para a posição ventral do que para a posição dorsal 24. A European Concerted Action on SIDS (ECAS) investigou estudos de caso-controle em vinte regiões da Europa, utilizando mais de sessenta variáveis obtidas das histórias clínicas de 745 casos de SMSL e de 2.411 controles e constatou riscos altamente significativos associados com a posição de dormir. A posição lateral mostrou-se muito mais instável que a posição dorsal, e a odds ratio (OR) estimada para a troca da posição lateral para a ventral foi 45,4 (23,4-87,9) e quase o dobro quando seu uso não era habitual 25. Ainda que a escolha da posição de sono dos lactentes possa ser multifatorial, neste estudo, as recomendações fornecidas pelo pediatra parecem ter influenciado a decisão materna. Das mães orientadas (48,5%) por esse profissional, 96% declararam que o decúbito lateral foi recomendado como a melhor posição para o lactente dormir. Muitas delas referiram espontaneamente que a razão alegada para tal conduta era o risco de aspiração de conteúdo gástrico. Embora seja compreensível essa preocupação, os dados epidemiológicos de países onde as crianças tradicionalmente dormem em posição supina, como a Ásia, revelam que a aspiração não é problema 26,27. Na Austrália, em 196 casos de mortes infantis, não foi encontrado nenhum caso de aspiração entre crianças que dormiam em decúbito lateral ou dorsal, mas três casos quando em decúbito ventral 28. Nos Estados Unidos, as mortes pós-neonatais relacionadas com aspiração declinaram de 1,39 para 0,93 por 100 mil nascidos vivos entre 1991 e 1996 (p = 0,01), período em que a prevalência do decúbito dorsal aumentou naquele país 29. Estudos fisiológicos de refluxo espontâneo ou induzido sugerem que crianças saudáveis estão aptas a proteger suas vias aéreas quando colocadas em posição dorsal e, de fato, o fazem, não havendo aumento de risco de aspiração, uma vez que sua deglutição e despertar estão intactos 30,31.

Um resultado preocupante foi que os pediatras recomendaram seis vezes mais o decúbito ventral do que o dorsal. Este último, surpreendentemente, só foi recomendado a 0,1% das mães e teve a menor adesão, o que parece reforçar o medo de expor a criança aos riscos de possíveis aspirações de conteúdo gástrico. Esse medo parece ser determinante na adesão ao decúbito lateral, quer quando o pediatra recomenda essa posição (95%) ou outra (80%), quer, até mesmo, quando nenhuma recomendação é feita em relação à melhor posição para o sono do lactente (80%). No entanto, quando o pediatra recomenda o decúbito ventral, 20% das mães seguem a recomendação. Ainda que não seja um percentual muito expressivo, sinaliza a influência do profissional na formação dos hábitos de sono na infância e no seu enraizamento cultural. Em vista disso e considerando ter sido a posição lateral a mais recomendada em Passo Fundo, cabe lembrar que a AAP, ao modificar, em 1996, as recomendações sobre a posição de dormir com vistas à prevenção da SMSL, inicialmente feitas em 1992, estabeleceu que, se a posição lateral ­ de risco menor que a ventral e maior do que a dorsal ­ fosse utilizada, os cuidadores deveriam ser aconselhados a colocar o braço da criança para frente para diminuir a probabilidade de ela rolar para a posição prona. De outro lado, a AAP esclarece que essa e outras recomendações são direcionadas somente às crianças sadias, devendo o pediatra considerar os riscos e benefícios para cada criança. Por fim, salienta tratar-se apenas de recomendações, que não devem ser tomadas como padrão de cuidados médicos, podendo ser adaptadas às circunstâncias individuais. O que deve prevalecer, portanto, são práticas seguras de cuidado infantil.

Um hábito de sono muito controverso é o co-leito, adotado por 44% da população estudada. Ainda que essa prática não seja legitimada pela equipe de saúde, como atestam as recomendações escritas fornecidas por uma das maternidades de Passo Fundo, é a única alternativa para grande parcela da população, que não dispõe de camas, berços ou espaço físico suficientes para acomodar cada um dos moradores. Isoladamente, o co-leito tem se revelado um fator de risco de pequena magnitude para a SMSL em metanálise de casos-controle (RR = 1,42; IC95%: 1,12-1,79) 32, mostrando-se, em alguns estudos, como fator de proteção a essa patologia 33,34. A AAP tende a considerá-lo como um fator de risco sinérgico ao uso de substâncias psicoativas, às superfícies macias de dormir e à inadequação dos padrões de segurança das camas projetadas para adultos, razão pela qual recomenda evitá-lo na presença desses outros fatores 35.

No Rio Grande do Sul, as variações climáticas podem requerer um número maior de peças de vestuário sobre o tórax do lactente para prevenir o aparecimento das doenças respiratórias, que parecem ser fator precipitante para a SMSL. Contudo, nesta investigação, o excesso de vestuário não foi expressivo (0,4%); o mesmo ocorreu com a espessura e a quantidade das cobertas de cama utilizadas sobre a criança, o que pode ser atribuído às temperaturas amenas ocorridas no período do estudo, com médias de 22,2ºC no verão, 13,6ºC no outono, 16,3ºC no inverno e 20,8ºC na primavera 36. Vêem-se, pois, poucas variações no ano de 2003 e o inverno com médias mais brandas do que o outono. O risco maior de cobrir completamente a criança, envolvendo a cabeça, foi constatado em 7% da população, que, somado aos 12,5% que cobriam parcialmente a cabeça, mostra indícios de uma prática que deve ser revisada para propiciar a perda fisiológica de calor corporal, favorecida pelo decúbito dorsal e cabeça descoberta. No caso dessa parcela de lactentes de Passo Fundo nos quais predomina a posição lateral e a cabeça é parcial ou completamente coberta, o mecanismo de termorregulação pode ficar comprometido. Além das cobertas de cama, constatou-se o uso de fraldas (16%) utilizadas sempre sobre a face/cabeça da criança durante o sono. Um estudo conduzido de 1992 a 1994 pela Consumer Product Safety Commission (CPSC) em nove estados americanos constatou que 8% das vítimas da SMSL foram encontradas com as cabeças completa ou parcialmente cobertas e eram mais velhas (média de 5,1 meses) do que aquelas encontradas com as cabeças descobertas (média de 2,8 meses) 37.

A forma de envolvimento também é adequada em 90% dos lactentes por permitir a sua livre movimentação. Crianças que dormem em decúbito dorsal podem ter menos despertares durante o sono quieto do que quando enroladas com restrição dos movimentos dos quadris ou da parede torácica 38. Em Passo Fundo, esse é um hábito de sono em franca modificação, pois as gerações imediatamente anteriores costumavam envolver os neonatos e lactentes com restrição de movimentos de membros superiores e inferiores. A presença da avó no domicílio da criança não parece interferir nessa mudança. Acredita-se que a inovação no vestuário, com peças de roupas mais confortáveis e protetoras do que os antigos cueiros, seja um dos fatores contribuintes para a adequação dessa prática de cuidado infantil. Essa inovação, contudo, não se aplica ao saco de dormir, cuja aceitação é muitíssimo limitada como agasalho para o sono (2,8%).

Em relação aos itens de cama utilizados sob o lactente, evidenciou-se que os mesmos percentuais da população que mantêm vestuários e cobertas adequadas ao clima e colchões firmes ou intermediários utilizam sob o lactente apenas o lençol, evitando, assim, a possibilidade de superaquecimento ou de reinalação de gases expirados, o que poderia ocorrer naquela parcela da população que utiliza rotineiramente itens macios, tais como cobertor de lã ou edredons (11%) e capa de colchão de lã (10%), ou mesmo colchões macios (22%).

Uma situação diferenciada ocorreu com o uso habitual de travesseiros (88%). Ainda que, em muitos casos, esses travesseiros tivessem uma espessura de aproximadamente 2cm e perfurações com o mesmo diâmetro para "não sufocar" (sic), na observação direta do local de dormir, constatou-se uma ampla variação de padrões, incluindo o uso de travesseiros de adultos, macios, criando uma depressão circular em torno da cabeça do lactente, com interferência na perda de calor e na obstrução parcial das narinas. Foram relativamente comuns casos de lactentes dormindo em posição lateral, sem a projeção anterior do braço e com uma das narinas cobertas pelo travesseiro, independentemente de sua espessura. Nesses casos, um microambiente asfixiante era criado pela reinalação do CO2 expirado, o que, em crianças na janela de vulnerabilidade para a SMSL, poderia dificultar o despertar.

Outra prática de sono potencialmente danosa é a colocação do lactente com os pés distantes da borda inferior do berço, o que pode facilitar seu deslizamento sob as cobertas, acarretando as mesmas conseqüências apontadas anteriormente de reinalação e superaquecimento.

Uma prática segura de sono é a ausência de brinquedos na cama da criança, que, em Passo Fundo, é observada em 76% dos lactentes. Um estudo comparando duas culturas diferentes, americana e coreana, verificou que o uso de chupeta é mais comum entre os lactentes com menos de seis meses de idade, ao passo que objetos macios são usados com maior freqüência por crianças mais velhas, independentemente da cultura de origem 39. No aspecto desenvolvimental, os objetos de transição adquirem maior importância aproximadamente dos nove meses aos três anos de idade, quando a criança desloca-se de forma gradual de uma situação de maior dependência para um novo estágio de autonomia física e psicológica. Nessa fase de transição, o objeto de apego assume a característica de substituto materno ou de representação psicológica da mãe e auxilia a criança a adormecer e a retomar o sono nos despertares, que normalmente ocorrem após à meia-noite 40. Considerando esses aspectos e o fato de os hábitos de sono terem sido avaliados aos dois meses e meio de vida do lactente, era esperada uma baixa ocorrência de brinquedos na cama. A pergunta foi inserida na entrevista para detectar o uso de qualquer objeto, incluindo peças de roupa (fraldas, "paninhos" etc.) utilizados próximos e, especialmente, sobre a face do lactente, o que poderia favorecer a reinalação de CO2. Foram detectados 368 casos (16%) com esse hábito. Em crianças americanas abaixo de quatro anos, a prevalência de objetos transicionais foi maior naquelas que adormeciam sozinhas (57%) quando comparadas com as que adormeciam na presença de um cuidador (30%) 41. De um modo geral, nas culturas nas quais o co-leito é uma prática comum, o uso de objetos transicionais é raro, o que é explicado pelo maior contato físico entre mães e filhos durante o dia e à noite e pelo adormecer com o cuidador, prática que torna dispensável a representação materna 42.

O uso de bicos/chupetas é apontado como fator de proteção à SMSL por contribuir com o aumento da atividade parassimpática durante o sono 11. O ECAS Study, após o ajuste de outros fatores, encontrou uma OR de 0,74 (0,58-0,95) quando a chupeta era sempre usada 27. Entretanto, seu uso é desaconselhado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela AAP por interferir no aleitamento materno, como demonstram estudos epidemiológicos e etnográficos 43,44.

 

Conclusão

Numa população urbana com baixa prevalência de casos de SMSL e grande miscigenação racial, os hábitos de sono do lactente caracterizam-se pela adoção do decúbito lateral como posição preferencial de dormir, sendo também o mais recomendado pelos pediatras e aquele com maior escolha ou adesão das mães à recomendação pediátrica. Com hábitos de sono protetores, observou-se que os lactentes dormem habitualmente no quarto dos pais e no berço, utilizam vestuário e cobertas que evitam o superaquecimento e, nas classes econômicas mais pobres, adotam o co-leito. Por outro lado, algumas práticas domiciliares, no manejo do ambiente de sono infantil, constituem-se em potenciais fatores de risco para a SMSL, como a posição do lactente no berço e a exposição à reinalação de CO2, tornando necessária a recomendação aos pais para a supressão de travesseiros, de fraldas sobre as narinas e a colocação do lactente com os pés encostados na borda inferior do berço. A constatação de que os lactentes são expostos tanto a hábitos de sono protetores como de risco sugere que, em populações desfavorecidas de países em desenvolvimento, outros fatores de risco para a SMSL devam ser considerados.

 

Colaboradores

L. T. C. Geib contribuiu com o planejamento do estudo, coleta, análise e interpretação dos resultados e redação do artigo. M. L. Nunes contribuiu com o planejamento, análise e interpretação dos dados e revisão da versão final.

 

Referências

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Correspondência
L. T. C. Geib
Universidade de Passo Fundo
Rua Tiradentes 400, apto. 601, Passo Fundo
RS 99010-260, Brasil
lorena@upf.br

Recebido em 18/Nov/2004
Versão final reapresentada em 23/Mai/2005
Aprovado em 17/Ago/2005

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br