EDITORIAL

 

 

Descoberta por Carlos Chagas, em 1909, no Brasil, a tripanossomíase americana tem assolado vastas extensões do País, provavelmente desde o século XVIII, fincando suas raízes nas condições ambientais e político-sociais que permearam a constituição do povo brasileiro. Logo após sua memorável descoberta, é relevante observar a angústia de Carlos Chagas pelas tremendas proporções que percebia a doença e seus malefícios terem alcançado, vislumbrando com perfeição a grande área que abarcavam, de um lado, e a gravidade da cardiopatia crônica que intuía acometer milhões de indivíduos. Chagas não chegou a ver comprovadas suas apreensões, tampouco os encaminhamentos pela solução do mal que descobrira. Como Oswaldo Cruz, sem esmorecer, empreendeu tripla jornada, ao assumir a sua Instituição, a Faculdade de Medicina e a Saúde Pública do País, incansável batalhador pela saúde de sua gente. Conclamou autoridades, percorreu o mundo proclamando o que descobrira, induziu novas pesquisas, deixou seguidores. Destes, mais tarde, como em Lassance, fez-se medrar, na pequenina Bambuí, um projeto de solução. De São Paulo vieram outros exemplos, equacionou-se a doença de Chagas transfusional. Sessenta anos após a descoberta, e quase cinqüenta anos após a morte de Chagas, o Brasil pôs-se finalmente em campo de maneira racional e inteira contra a endemia chagásica. No trajeto, sempre Chagas e seus discípulos, os imediatos e os tardios, a construir e a fazer implementar os conhecimentos necessários. Uniram-se esforços, conformaram-se parcerias, os países interessados começaram a compartir seus problemas e trabalhos. Avançou-se muito na ciência da tripanossomíase americana, fato inédito, sob liderança brasileira e latino-americana. De todos os aspectos, o mais impactante tem sido o controle da transmissão vetorial, verdadeira batalha em que Emmanuel Dias e Pedreira de Freitas puseram o melhor de seus dias. Hoje, a transmissão foi minimizada em vastas extensões, mas há muito que fazer. Países há em que o controle sequer se iniciou, outros onde não se conhece, ainda, a extensão e a localização do mal. No Brasil, com muito já saneado, fica o desafio dos focos residuais de Triatoma infestans e a inquietude de espécies de difícil controle, particularmente o Triatoma brasiliensis. Esse vetor e sua área de dispersão, o Nordeste do Brasil, constituem o mote central deste volume temático dos Cadernos de Saúde Pública. A propósito, ao comemorar-se o glorioso centenário da Casa de Oswaldo Cruz, a ECLAT ­ European Community & Latin American Network on Biology and Control of Triatomines ­, uma espontânea rede de colaboração internacional, juntou nesta publicação a contribuição de excelentes pesquisadores, em maioria latino-americanos e bastante jovens. Também angustiados e igualmente responsáveis, eles se inclinaram sobre os alentos de Lassance, à sombra de Chagas e de seus companheiros. Como um sonho possível, para seguir a História. Bem perto, no caminho, o camponês latino-americano, em busca de redenção.

 

João Carlos Pinto Dias
Centro de Pesquisas René Rachou
Fundação Oswaldo cruz

Liléia Gonçalves Diotaiuti
Centro de Pesquisas René Rachou

Fundação Oswaldo cruz

 

 

Discovered by Carlos Chagas in 1909 in Brazil, American trypanosomiasis has scourged vast areas of the country, probably since the 18th century, deeply rooted in the environmental, political, and social conditions that have permeated the Brazilian people's history. Soon after his momentous discovery, Carlos Chagas expressed his dismay as he realized both the extent of the damage caused by the disease in the huge area it encompassed and the severity of the resulting chronic cardiopathy that he foresaw as affecting millions of individuals. Chagas did not survive to witness either the full proof of his concerns or the measures taken to combat the disease he had discovered. Like Oswaldo Cruz, he never faltered in tackling the triple task of heading his Institution, the School of Medicine, and Brazil's Public Health system. He was a tireless bulwark in the struggle to improve the Brazilian people's health. He debated with government officials, traveled worldwide publicizing his discovery, spawned new research, and left academic followers to carry on with his work. Amongst these, later on, as in Lassance, a proposal to deal with Chagas disease emerged in the little town of Bambuí. Other examples came from São Paulo, and the problem of transfusion-borne Chagas disease was solved. Sixty years after the original discovery, and nearly fifty years after Chagas' death, Brazil finally launched a rational and all-out struggle against the Chagas endemic. Along the way, Chagas and his disciples (both the initial and subsequent generations) developed and implemented the knowledge needed for this struggle. They joined efforts and forged partnerships, with other countries beginning to share their problems and work experiences. Great progress was made in scientific knowledge of American trypanosomiasis, a unique phenomenon under Brazilian and Latin American leadership. Of all the disease's aspects, the one with the greatest impact has been the control of vector-borne transmission, a veritable battle in which Emmanuel Dias and Pedreira de Freitas invested the best years of their work. Transmission has now been reduced to a minimum in vast stretches of Latin America, but much remains to be done. There are countries in which Chagas disease control has not even begun, and others in which the location and extent of the disease are unknown. In Brazil, where much progress has been made, there remains the challenge of residual Triatoma infestans foci and the problem of difficult-to-control species, especially Triatoma brasiliensis. The vector and its dispersion area in the Northeast of Brazil are the main topic of this special thematic issue of Cadernos de Saúde Pública. As we celebrate the Centennial of the House of Oswaldo Cruz, ECLAT ­ the European Community and Latin American Network on Biology and Control of Triatomines, a spontaneous international collaborative network ­ has provided contributions to this issue by expert researchers, the majority of whom are young Latin Americans. They too are concerned and devoted, taking courage from Lassance and working in the shadow of Carlos Chagas and his colleagues, to dream a possible dream and follow history. Close at hand, along the road, are the Latin American campesinos in their struggle for redemption.

 

João Carlos Pinto Dias
Centro de Pesquisas René Rachou
Fundação Oswaldo cruz

Liléia Gonçalves Diotaiuti
Centro de Pesquisas René Rachou

Fundação Oswaldo cruz

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br