Porque não sei se vocês vão ser capazes de compreender o que eu trago para compartilhar”: trocas entre uma liderança Xavante e dois pesquisadores da área da Saúde Coletiva em tempos quando se esperam melhores ventos nas políticas públicas direcionadas aos povos indígenas

Ricardo Ventura Santos Tsuptó Bupréwen Wairi James R. Welch Sobre os autores

O celular de Ricardo emitiu um som indicando a entrada de uma mensagem. Foi olhar e, junto ao nome de Tsuptó, viu a imagem dele, na qual se destacava o cabelo pintado no belo e brilhante vermelho do urucum que os A’uwẽ (Xavante) tanto apreciam. Tsuptó é o cacique da Aldeia Pimentel Barbosa, localizada na Terra Indígena (T.I.) de mesmo nome, no leste de Mato Grosso (Brasil). Tsuptó e Ricardo se conhecem já se vão mais de três décadas, desde 1990. James esteve em Pimentel Barbosa pela primeira vez no início dos anos 2000. Nesse período, Ricardo, James e outros pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em colaboração com colegas de outras instituições, participaram de inúmeras pesquisas em Pimentel Barbosa, com foco em temas como determinantes sociais da saúde dos povos indígenas, organização social e ecologia histórica, entre outros. No início da década de 1990 eram apenas três aldeias na T.I. Pimentel Barbosa; atualmente são mais de 20. Multiplicaram-se as comunidades e também aumentou substancialmente a população indígena, assim como se aprofundaram os vínculos de confiança e parceria entre os pesquisadores warazu (os “não indígenas”) e os A’uwẽ de Pimentel Barbosa.

Já se iam alguns meses que Tsuptó e Ricardo não se comunicavam. Nem sempre a internet da aldeia ajudava. Talvez por isso, nos poucos segundos envolvidos no apertar de teclas até chegar à mensagem propriamente, que era um áudio, tantas lembranças passaram pela mente de Ricardo. “Oi, aqui é Tsuptó. Estou precisando falar com você”. Iniciaram um diálogo que se desdobrou nos dias seguintes, no qual se tratou de questões como um nova logomarca para a Associação dos Xavante de Pimentel Barbosa, preparar um texto para buscar levantar recursos para um encontro das dezenas de lideranças da T.I. Pimentel Barbosa e da vizinha T.I. Areões e também ajudar a rever uma ata de uma reunião recentemente ocorrida na aldeia de Tsuptó relacionada à área da saúde.

À primeira vista, parecem questões de um cotidiano local, mas que podem ser vistas como representativas, em escala mais ampla, quanto aos caminhos (e por vezes os descaminhos) das políticas públicas voltadas para os povos indígenas no Brasil. Refletem também expectativas que cercam processos políticos recentes, como a criação, no âmbito do recém-empossado Governo Federal, na gestão que se iniciou em janeiro de 2023, do Ministério dos Povos Indígenas; o fato de que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), nova designação da Fundação Nacional do Índio, ter pela primeira vez em sua presidência uma liderança indígena; e o estratégico cargo de dirigente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), no Ministério da Saúde, ser também ocupado por um indígena.

A T.I. Pimentel Barbosa está localizada na chamada “Amazônia Legal”. Mas não é coberta por floresta tropical úmida, como é comum no imaginário social sobre a região amazônica, mas sim por vegetação de cerrado. É um dos biomas do Brasil que mais tem sofrido devastação. Nos dias de hoje, como muitos outros territórios indígenas no país, a T.I. Pimental Barbosa é um enclave de preservação, o que diz muito acerca do papel dos povos indígenas no tocante às prementes questões ambientais e climáticas, temas de interesse global na contemporaneidade. A T.I. Pimentel Barbosa é uma das mais extensas áreas de cerrado preservado em todo o Brasil Central, com seu entorno dominado pelo cultivo de soja e outras monoculturas. Extensas áreas da Amazônia, região com imagens representadas nas capas dos fascículos de 2023 de CSP, são cobertas por cerrado e a atenção para esse bioma precisa ser ampliada.

Nos dias que se seguiram ao contato inicial entre Tsuptó e Ricardo, se conversou também sobre como foram os últimos anos na aldeia. A pandemia de COVID-19, que tanto afetou os povos indígenas, reduziu as idas dos pesquisadores a Pimentel Barbosa. Tsuptó falou das dificuldades na atenção à saúde, das muitas crianças e idosos doentes e das complexidades de levar os casos mais graves para as unidades de saúde nas cidades próximas, por falta de transporte. Mencionou também sua crescente preocupação quanto aos recursos de caça, pesca e coleta na T.I., percebidos como afetados pelo desmatamento no entorno. Mas ele também falou com orgulho dos rituais, que continuam centrais na vida social A’uwẽ.

Ricardo perguntou em uma das mensagens: “Tsuptó, por que uma nova logomarca, se vocês já tem uma?”. Ele respondeu que lideranças A’uwẽ estão planejando viajar em breve à Brasília para colocar suas muitas reivindicações, assim como conhecer as novas autoridades à frente das agências governamentais que lidam com as políticas indigenistas. Para tal, estão realizando reuniões para definir uma pauta de pontos para discussão. Falou da esperança de que a situação melhore, inclusive no tocante a avanços no processo de reconhecimento, por parte do Governo Federal, da T.I. Wedezé, um território contíguo à T.I. Pimentel Barbosa, que foi subtraído deles nos anos 1960-1970. Ricardo e James conhecem bem essa situação, pois participaram em 2009-2010 como especialistas, juntamente com Carlos Coimbra Jr. e Nancy Flowers, na preparação de um laudo para o reconhecimento oficial da T.I. Wedezé, processo que continua inconcluso na Justiça Federal 11. Welch JR, Santos RV, Flowers NM, Coimbra Jr. CEA. Na primeira margem do rio: território e ecologia do povo Xavante de Wedezé. Rio de Janeiro: Museu do Índio/Fundação Nacional do Índio; 2013.. As investigações que membros da equipe de pesquisadores realizaram durante anos, cujo um dos produtos foi um livro prefaciado pelo próprio Tsuptó 22. Coimbra Jr. CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavánte in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002., se tornou importante fonte de informações' para a preparação desse laudo. Pesquisa científica e impactos sociais em estreito diálogo.

Os assuntos nas trocas de mensagens encapsulam muito da desesperança com o que aconteceu em anos recentes, marcados pelo desmonte de políticas públicas. Mas também exprimem a expectativa por uma atuação mais eficiente por parte do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas. Tratada nos diálogos, a questão da ata para documentar uma reunião para troca de agentes indígenas de saúde e de saneamento, demandada pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) que assiste os Xavante, pode ser vista como um exemplo crítico, e ao mesmo tempo iluminador. De forma contundente, evidencia quão autocentrado, em seus referenciais de atuação cotidiana, pode vir a ser o aparato estatal, mesmo quando as políticas públicas são explicitamente voltadas para contextos que envolvem alteridades. Como cacique, Tsuptó teve que digitar o texto da ata em seu celular e pediu uma ajuda dos pesquisadores warazu para revê-la. O aparato legal da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas tem sua documentação repleta de referências a conceitos como interculturalidade e respeito às diferenças culturais 33. Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas. Brasília: Ministério da Saúde/Fundação Nacional de Saúde; 2002.,44. Pontes AL, Machado FRS, Santos RV, organizadores. Políticas antes da política de saúde indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.. Talvez nem seja preciso enfatizar quão icônica é uma ata enquanto símbolo da burocracia (ocidental). Por que não implementar formas culturalmente mais sensíveis (e acessíveis) de registrar as decisões das comunidades indígenas no âmbito da operacionalização das políticas públicas? É um exemplo, dentre muitos, de questões que precisam ser repensadas no tocante ao dia-a-dia de execução das políticas de saúde.

Garantia e reparação de injustiças sociais e ambientais, expectativas por serviços de saúde mais estruturados e eficientes, preocupação com a proteção dos territórios, percepção quanto à insegurança alimentar... A lista de preocupações é longa e, a propósito, não é recente. Mas Tsuptó voltou sua atenção também para pensar em uma nova logomarca para se ter em um período quando se espera um processo de revigoramento das políticas públicas dirigidas aos povos indígenas. Ele quer utilizá-la nos documentos a serem enviados para Brasília em preparação às viagens que espera acontecer nos próximos meses para discutir as reivindicações dos A’uwẽ de Pimentel Barbosa.

A situação dos A’uwẽ, desde o contato permanente nos anos 1940, foi sempre difícil, usurpadora e injusta, envolvendo inclusive abrupta redução da população e perdas de territórios. Na prática, os A’uwẽ, assim como outros povos indígenas do Brasil Central, já experimentavam os nefastos efeitos do “contato antes do contato” desde muitas décadas, já que as epidemias de doenças infecciosas, entre outras consequências, chegaram antes mesmo das primeiras interações mais diretas 22. Coimbra Jr. CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavánte in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002.. Mas a altivez A’uwẽ não esmoreceu.

A nova logomarca da Associação dos Xavante de Pimentel Barbosa é uma ponte de significados entre o passado e o presente. Tendo como moldura a representação de uma danho’rebzu’a (que é uma “gravata” cerimonial utilizada pelos homens), a imagem principal é de uma liderança Xavante chamada Sere’wã’rã, que era irmão de um dos avôs de Tsuptó. Ele foi registrado em uma fotografia tirada nos anos seguintes ao contato. Sere’wã’rã tem um dos braços estendidos a frente, ao mesmo tempo que seus lábios parecem articular a expressão de uma palavra. Tsuptó diz que ele estava falando, na língua A’uwẽ, algo equivalente a “parem”. Na nova logomarca, essa imagem tão potente, ao mesmo tempo que representativa da violência colonial, comunica vicissitudes de tempos presentes. Como Tsuptó comentou, pode ser vista como um “nos respeitem”.

Sem dúvida, é um passado-presente acerca do qual a nação brasileira continua muito devedora em relação aos povos indígenas. Tsuptó mencionou em uma de suas mensagens sobre a tristeza de saber sobre mais uma tragédia, decorrente do garimpo ilegal e outras formas de violência, que se abate sobre os Yanomami. Ao mesmo tempo, ressaltou que é importante se atentar para a difícil situação enfrentada por muitos outros povos indígenas no país. Garimpo e extração de madeira ilegais não são problemas na região onde está localizada a T.I. Pimentel Barbosa, mas o amplo uso de agrotóxicos nas extensas monoculturas no entorno 55. Capella R, Nunes D, Guida Y, Damasco F. Indigenous territories of the Brazilian Amazon facing agribusiness expansion: a pesticide exposure susceptibility index based on census data. Environ Chall (Amst) 2023; 11:100702., assim com a própria tendência de se tornar uma “ilha” de cerrado, com limitados corredores ecológicos, tem efeitos diretos sobre o ambiente.

A sentença que dá título a esse editorial é de Sereburã, um ancião muito respeitado da comunidade de Pimentel Barbosa, e que faleceu alguns anos atrás. Está em um livro, de autoria dos próprios A’uwẽ, no qual contam sua história e seus mitos 66. Sereburã, Hipru, Rupawe, Serezabdi, Sereñimirãmi. Wamrêmé Za’ra, nossa palavra. Mito e história do povo Xavante. São Paulo: Editora do SENAC; 1998.. Para Tsuptó, a expectativa é que os ares de transformação que são sinalizados a partir de Brasília venham a chegar nas pontas, nas comunidades. Que a sociedade brasileira seja capaz de compreender as demandas trazidas pelos povos indígenas em suas lutas por respeito, justiça social, garantia de seus territórios e políticas públicas mais efetivas. Está na Constituição Federal de 1988, mas ainda longe de se traduzir de forma efetiva no cotidiano.

_____

  • 1
    Welch JR, Santos RV, Flowers NM, Coimbra Jr. CEA. Na primeira margem do rio: território e ecologia do povo Xavante de Wedezé. Rio de Janeiro: Museu do Índio/Fundação Nacional do Índio; 2013.
  • 2
    Coimbra Jr. CEA, Flowers NM, Salzano FM, Santos RV. The Xavánte in transition: health, ecology, and bioanthropology in Central Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press; 2002.
  • 3
    Fundação Nacional de Saúde. Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas. Brasília: Ministério da Saúde/Fundação Nacional de Saúde; 2002.
  • 4
    Pontes AL, Machado FRS, Santos RV, organizadores. Políticas antes da política de saúde indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.
  • 5
    Capella R, Nunes D, Guida Y, Damasco F. Indigenous territories of the Brazilian Amazon facing agribusiness expansion: a pesticide exposure susceptibility index based on census data. Environ Chall (Amst) 2023; 11:100702.
  • 6
    Sereburã, Hipru, Rupawe, Serezabdi, Sereñimirãmi. Wamrêmé Za’ra, nossa palavra. Mito e história do povo Xavante. São Paulo: Editora do SENAC; 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2023
  • Aceito
    10 Mar 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br