Trabalho docente na medicina em uma universidade federal na região Sul do Brasil

Izabella Barison Matos Lindomar Wessler Boneti Alcindo Antônio Ferla Sobre os autores

Resumo

As políticas públicas brasileiras aproximam-se do paradigma internacional de interação entre ensino e sistemas de saúde preconizando uma formação médica generalista, vinculada ao perfil epidemiológico populacional, e repercutindo no trabalho docente. Este trabalho buscou analisar percepções sobre docência e perspectivas profissionais de professores do curso de medicina de uma universidade federal. Trata-se de estudo descritivo com abordagem qualitativa, contando com questionário, pesquisas documental e bibliográfica e análises na perspectiva da hermenêutica-dialética. A partir dos resultados, construíram-se quatro categorias analíticas que descrevem o trabalho docente na visão de seus atores: marcadores de formação para a docência (o repertório de conhecimento da prática docente é experiencial); imaginários atribuídos à docência (conflito com a imagem ideal previamente concebida); enfrentamentos no cotidiano docente (a formação médica generalista preconizada tem menor reconhecimento social); docência e seu horizonte (busca de maior qualificação). Investimentos - pessoal e institucional - não têm sido suficientes diante de aspectos geradores de insatisfação e percepção de despreparo dos professores no cotidiano da formação médica, denunciando certo mal-estar docente. Pode-se dizer que o trabalho docente é fundamental para a mudança na formação, e que a percepção dos atores de uma experiência concreta aponta déficits na formação pedagógica e na educação permanente.

Palavras-chave:
Docentes de Medicina; Educação Médica; Políticas Públicas

Introdução: formação médica e docência

Na contemporaneidade, países convivem com desafios relacionados à formação, distribuição, remuneração e desempenho de médicos (Scheffer, 2020SCHEFFER, M. C. (Coord.). Demografia Médica no Brasil 2020. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP, 2020.). A literatura constata a inadequação entre a formação dos profissionais de saúde de diferentes cursos, o perfil epidemiológico da população e a forma como o trabalho se organiza nos sistemas e serviços de saúde (Ceccim et al., 2008CECCIM, R. B. et al. Imaginários da formação em saúde no Brasil e os horizontes da regulação em saúde suplementar. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, p. 1567-1578, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000500021
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; Chiarella et al., 2015CHIARELLA, T. et al. A pedagogia de Paulo Freire e o processo ensino-aprendizagem na educação médica. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 39, n. 3, p. 418-425, 2015. DOI: 10.1590/1981-52712015v39n3e02062014
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; Machado; Ximenes Neto, 2018MACHADO, M. H.; XIMENES NETO, F. R. G. Gestão da educação e do trabalho em saúde no SUS: trinta anos de avanços e desafios. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1971-1980, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.06682018
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). No Brasil, as iniciativas oficiais, desde os anos 2000, aproximam-se do paradigma internacional denominado, nas publicações comemorativas aos 100 anos do Relatório Flexner, de “interação ensino e sistemas de saúde” (Frenk et al., 2010FRENK, J. et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an independent world. The Lancet, London, v. 376, n. 9756, p. 1923-1958, 2010. DOI: 10.1016/S0140-6736(10)61854-5
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). Entretanto, é visível o arrefecimento das políticas de mudança no país nos últimos anos, com uma agenda de esvaziamento da ciência e tecnologia, assim como com a retomada de uma agenda corporativista.

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para cursos de medicina (Brasil, 2001BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 4, de 7 de novembro de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 9 nov. 2001. Seção 1, p. 38., 2014BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 23 jun. 2014. Seção 1, p. 8.) orientam que a formação médica contemple fortemente os determinantes sociais em saúde da população, bem como os sistemas e serviços de saúde (Ferla et al., 2017FERLA, A. A. et al. Inovação na formação médica: contribuições para “novos” médicos na atenção básica. In: CETOLIN, S. F. (Org). Saúde Pública: doenças negligenciadas milenares e emergentes. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017. p. 155-174.; Machado; Oliveira; Malvezzi, 2021MACHADO, C.; OLIVEIRA, J. M. de; MALVEZZI, E. Repercussões das diretrizes curriculares nacionais de 2014 nos projetos pedagógicos das novas escolas médicas. Interface, Botucatu, v. 25, e200358, 2021. DOI: 10.1590/interface.200358
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; Meireles; Fernandes; Silva, 2019MEIRELES, M. A. de C; FERNANDES, C. do C. P.; SILVA, L. S. e. Novas Diretrizes Curriculares Nacionais e a formação médica: expectativas dos discentes do primeiro ano do curso de medicina de uma instituição de ensino superior. Revista Brasileira de Educação Médica , Brasília, DF, v. 43, n. 2, p. 67-78, 2019. DOI: 10.1590/1981-52712015v43n2RB20180178
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; Oliveira; Santos, Shimizu, 2019OLIVEIRA, F. P. de; SANTOS, L. M. P.; SHIMIZU, H. E. Responsabilidade social das escolas médicas e representações sociais dos estudantes de medicina no contexto do Programa Mais Médicos. Revista Brasileira de Educação Médica , Brasília, DF, v. 43, n 1, supl. 1, p. 473-483, 2019. DOI: 10.1590/1981-5271v43suplemento1-20190074
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; Pinto et al., 2019bPINTO, H. A. et al. O Programa Mais Médicos e a mudança do papel do Estado na regulação e ordenação da formação médica. Interface, Botucatu, v. 23, supl. 1, e170960, 2019b. DOI: 10.1590/Interface.170960
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). Assim, as DCN em vigor têm ênfase na Atenção Básica (AB), recomendando a inserção dos alunos desde as fases iniciais do curso, com destaque para o campo de conhecimento e de práticas da saúde coletiva, visando a uma maior criticidade e um raciocínio clínico complexo e estimulando maior autoconsciência dos estudantes (Bursztyn, 2015BURSZTYN, I. Diretrizes Curriculares Nacionais de 2014: um novo lugar para a Saúde Coletiva? Cadernos Abem, Rio de Janeiro, v. 11, p. 7-19, 2015.).

A partir destes marcos legais, definiram-se processos educacionais (pedagógicos, metodológicos e institucionais) que podem ser considerados dispositivos produtores de inovação na formação médica (Ferla et al., 2017FERLA, A. A. et al. Inovação na formação médica: contribuições para “novos” médicos na atenção básica. In: CETOLIN, S. F. (Org). Saúde Pública: doenças negligenciadas milenares e emergentes. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017. p. 155-174.). A demografia médica, a formação e o exercício da profissão tiveram regulamentação governamental na última década por meio das DCN (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 23 jun. 2014. Seção 1, p. 8.) e do Programa Mais Médicos (PMM) (Brasil, 2013BRASIL. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 out. 2013. Seção 1, p. 1.). Este, criado pela Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013, teve o propósito de modificar a situação da saúde no país, levando médicos para a AB em locais que não contavam com este profissional, além de induzir a expansão da oferta de vagas de medicina e residência.

Assim, numa lógica de regulação do Estado (policy-oriented) e não de formação de médicos para o mercado (market-oriented), o ensino médico vinculou-se ao formato de política pública (Pinto et al., 2019bPINTO, H. A. et al. O Programa Mais Médicos e a mudança do papel do Estado na regulação e ordenação da formação médica. Interface, Botucatu, v. 23, supl. 1, e170960, 2019b. DOI: 10.1590/Interface.170960
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; Rovere, 2015ROVERE, M. R. El Programa Más Médicos: um análisis complementário desde la perspectiva de la salud internacional. Interface, Botucatu, v. 19, n. 54, p. 635-636, 2015. DOI: 10.1590/1807-57622015.0225
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). Entretanto, em que pesem as conquistas iniciais, o PMM teve descontinuidades relevantes, inviabilizando seu prosseguimento na direção originalmente proposta (Pinto et al., 2019aPINTO, H. A. et al. A sustentabilidade do Programa Mais Médicos como política pública. Interface, Botucatu, v. 23, supl. 1, e190003, 2019a. DOI: 10.1590/Interface.190003
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, 2019bPINTO, H. A. et al. O Programa Mais Médicos e a mudança do papel do Estado na regulação e ordenação da formação médica. Interface, Botucatu, v. 23, supl. 1, e170960, 2019b. DOI: 10.1590/Interface.170960
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). No que se refere aos efeitos na formação médica, houve insuficiente expansão de vagas e persistem grandes iniquidades na oferta territorial dos profissionais; as mudanças na graduação são escassamente reguladas, com interrupção de fomento a projetos de inovação, reforçando as lógicas de mercado, seja pela especialização crescente da formação e da prática profissional, seja pela tecnologização dos fazeres pedagógicos; além de ser necessário considerar também os efeitos da redução no financiamento e no combate direto às instituições de ensino, alvo inclusive de discursos desqualificadores das autoridades governamentais (Ferla, 2021FERLA, A. A. Um ensaio sobre a aprendizagem significativa no Ensino da Saúde: a interação com territórios complexos como dispositivo. Saberes Plurais: educação na saúde, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 81-94, 2021. DOI: 10.54909/sp.v5i2.119022
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).

Da mesma forma, as adequações dos currículos às DCN têm apresentado dificuldades, pois demandam a incorporação de outras práticas acadêmicas de docentes, estudantes e técnicos e a criação de outras relações interinstitucionais entre universidades, serviços e sistemas de saúde como cenários de prática.

Registre-se a resistência de docentes (Fonsêca; Souza, 2019FONSÊCA, G. S.; SOUZA, J. V. G. de. A narrativa de um percurso formativo: (re)significando a formação médica. Interface, Botucatu, v. 23, supl. 1, e180059, 2019. DOI: 10.1590/Interface.180059
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), de estudantes (Oliveira; Matos, 2016OLIVEIRA, M. C. de; MATOS, I. B. Educação médica: projeto pedagógico inovador e o imaginário vigente sobre a formação profissional. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO, 5., 2016, Joaçaba. Anais… Joaçaba: Editora UNOESC, 2016. p. 853-860. Disponível em: <Disponível em: https://www.unoesc.edu.br/images/uploads/editora/VColoquio_2016.pdf >. Acesso em: 4 jan. 2023.
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), da corporação médica (Pinto et al., 2019aPINTO, H. A. et al. A sustentabilidade do Programa Mais Médicos como política pública. Interface, Botucatu, v. 23, supl. 1, e190003, 2019a. DOI: 10.1590/Interface.190003
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) e de parte visível da sociedade, com um estereótipo veiculado pelas mídias reforçando a imagem do médico num sistema de referência tradicional (Chehuen Neto et al., 2013CHEHUEN NETO, J. A. et al. Estudantes de medicina sabem cuidar da própria saúde? HU Revista, Juiz de Fora, v. 39, n. 1 e 2, p. 45-53, 2013.; Meireles et al., 2019MEIRELES, M. A. de C; FERNANDES, C. do C. P.; SILVA, L. S. e. Novas Diretrizes Curriculares Nacionais e a formação médica: expectativas dos discentes do primeiro ano do curso de medicina de uma instituição de ensino superior. Revista Brasileira de Educação Médica , Brasília, DF, v. 43, n. 2, p. 67-78, 2019. DOI: 10.1590/1981-52712015v43n2RB20180178
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; Menezes Júnior; Costa; Arruda, 2021MENEZES JÚNIOR, A. da S.; COSTA, A. F. de O.; ARRUDA, M. Educação médica e as diretrizes curriculares nacionais: realidade ou utopia - revisão sistemática literária. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 7, n. 5, p. 50464-50477, 2021.). Ferla et al. (2017FERLA, A. A. et al. Inovação na formação médica: contribuições para “novos” médicos na atenção básica. In: CETOLIN, S. F. (Org). Saúde Pública: doenças negligenciadas milenares e emergentes. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017. p. 155-174.) e Menezes Júnior, Costa e Arruda (2021MENEZES JÚNIOR, A. da S.; COSTA, A. F. de O.; ARRUDA, M. Educação médica e as diretrizes curriculares nacionais: realidade ou utopia - revisão sistemática literária. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 7, n. 5, p. 50464-50477, 2021.) advertem, de diferentes formas, que é preciso estar vigilante, pois forças contrárias podem boicotar o potencial inovador dos Projetos Pedagógicos de Curso (PPC), mesmo quando formulados com base nas DCN e iniciados recentemente, sem o peso da tradição e o desafio da mudança nas instituições.

Por outro lado, a dificuldade de avanços também está assentada no perfil docente, cuja seleção e valorização institucional ainda está associada à lógica da produção especializada e à hierarquia entre pesquisa, ensino e extensão, com escassas iniciativas de desenvolvimento pedagógico orientado para a mudança. Por esse motivo, há necessidade de desenvolvimento de novas habilidades docentes, uma vez que um estudo recente apontou que uma das queixas de estudantes é a ausência de didática dos professores (Menezes Júnior; Costa; Arruda, 2021MENEZES JÚNIOR, A. da S.; COSTA, A. F. de O.; ARRUDA, M. Educação médica e as diretrizes curriculares nacionais: realidade ou utopia - revisão sistemática literária. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 7, n. 5, p. 50464-50477, 2021.). A questão que acompanhou a pesquisa foi a forma como os docentes de um curso com configuração inovadora veem sua atuação, considerando a relevância do fazer docente para a formação médica contemporânea.

Este estudo teve como objetivo analisar percepções do exercício da docência e perspectivas profissionais de professores do curso de medicina em uma universidade pública federal na região Sul do Brasil. A docência será aqui abordada, num contexto de mudanças do ensino médico e do trabalho docente, por meio de quatro categorias de análise: marcadores de formação para a docência; imaginários atribuídos à docência; enfrentamentos no cotidiano docente; e docência e seu horizonte.

Percurso metodológico

O presente estudo foi realizado em universidade no sul do Brasil (UFFS, 2018UFFS - UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL. Pró-Reitoria de Graduação. Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Medicina. Chapecó: UFFS, 2018.). O curso de medicina em questão foi criado a partir do Plano de Expansão de Cursos de Medicina, regulamentado pela Portaria MEC nº 109, de 5 de julho de 2012 (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Superior. Portaria nº 109, de 5 de junho de 2012. Dispõe sobre a expansão de vagas em cursos de Medicina e criação de novos cursos de Medicina nas Universidades Federais. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 8 jun. 2012. Seção 1, p. 16.).

Trata-se de pesquisa com abordagem qualitativa aplicada (em relação à natureza) e descritiva (em relação aos objetivos). Quanto aos procedimentos, caracteriza-se como pesquisa de campo com questionário, pesquisa documental e pesquisa bibliográfica. O questionário (Apêndice 1) foi aplicado a 36 docentes em atividade, entre junho e agosto de 2018, tendo sido utilizada listagem de correio eletrônico institucional, fornecida pela coordenação acadêmica.

Todos receberam convite por e-mail para participar da pesquisa, com link associado ao e-mail do docente para acessar o questionário, criado no Google Forms, sendo as respostas coletadas por meio de um e-mail neutro, criado para este propósito. O texto da mensagem enviada a todos os participantes continha o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), convidando à participação, explicitando o objetivo da pesquisa, dados do parecer do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), ônus, bônus, benefícios direto e indireto, e que, ao clicar em “sim” no final do texto, o docente acessaria o questionário. Foi estabelecido o prazo de um mês para o retorno do questionário devidamente preenchido, tendo sido necessário estender por mais 30 dias devido à baixa adesão. Após esse período estendido, dos 36 docentes, 15 haviam respondido ao questionário.

Os critérios de inclusão utilizados foram: ser docente no primeiro semestre de 2018 e ministrar componente curricular do domínio conexo ou do domínio específico. Foram excluídos docentes dos componentes do domínio comum - a saber, as disciplinas de: Iniciação à Prática Científica; Produção Textual Acadêmica; Introdução à Filosofia; Estatística Básica; Meio Ambiente, Economia e Sociedade; História Regional. Domínio Conexo: Saúde Coletiva I, Processos Biológicos, Atenção à Saúde: Epidemiologia e Bioestatística; Ciência, Espiritualidade e Saúde. Domínio Específico: Saúde Coletiva II ao VIII; Construção Histórica da Medicina; Morfofisiologia; Seminários Integradores I ao VIII; Processos Patológicos; Diagnóstico e Terapêutica; Clínicas: Criança e Adolescente, Pessoa Idosa, Mulher, Cirúrgica Adulto; Informação e Comunicação em Saúde; Atenção Integral à Saúde Mental; Optativos; Trabalho de Conclusão I ao IV; Ética e Bioética; Medicina Legal; Urgência e Emergência, Estágio Curricular Obrigatório (UFFS, 2018UFFS - UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL. Pró-Reitoria de Graduação. Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Medicina. Chapecó: UFFS, 2018., p. 50-51, 70).

O questionário apresentava três partes: a primeira - caracterização dos participantes - contava com perguntas sobre formação acadêmica e ano de conclusão, última pós-graduação e ano de conclusão, idade, sexo, regime de trabalho e tempo de docência na medicina; a segunda parte continha 10 perguntas abertas sobre percepções da atuação docente (preparo para a docência, o quê e quem têm contribuído para o exercício da docência, quais os desafios e como enfrentá-los); e, por fim, a terceira parte contemplava três perguntas abertas acerca das perspectivas na docência (expectativas e planos de carreira, sendo uma delas “algo que você queira escrever”). O Quadro 1 apresenta características dos participantes da pesquisa, que correspondem a 42% dos docentes (15 de 36) no segundo semestre de 2018.

Quadro 1
Características dos docentes participantes durante a aplicação do questionário (2018/2)

Os dados foram agrupados por semelhança, propiciando a criação de categorias de análise com o aporte na hermenêutica dialética (Minayo, 2014MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.). Foram construídas quatro categorias de análise.

A pesquisa documental centrou-se em três marcos legais: PPC de graduação em medicina Brasil (UFFS, 2018UFFS - UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL. Pró-Reitoria de Graduação. Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Medicina. Chapecó: UFFS, 2018.), as DCN dos cursos de medicina (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 23 jun. 2014. Seção 1, p. 8.) e o PMM (Brasil, 2013BRASIL. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 out. 2013. Seção 1, p. 1.). O projeto foi submetido e aprovado pelo CEP da Universidade Parecer nº 2.498.995, 21/02/2018.

Resultados e discussão

Docência na medicina: Projeto Pedagógico de Curso, marcadores da formação, imaginários, enfrentamentos e expectativas

O PPC foi elaborado e aprimorado em três diferentes momentos e contou com a parceria de secretários da saúde, representações de instituições de saúde de organismos regionais e docentes do curso de medicina de uma universidade comunitária da região e do hospital regional (UFFS, 2018UFFS - UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL. Pró-Reitoria de Graduação. Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Medicina. Chapecó: UFFS, 2018.). As referências em que o PPC se ancora são as das DCN, sendo, portanto, distintas do imaginário de formação hegemônica. Mais especificamente, elas preconizam, por exemplo: não naturalização da compreensão da dinâmica da saúde e da doença, abordagem não biofisiológica da doença e sua não centralidade na proposição de indicações terapêuticas, e atuação em cenários do Sistema Único de Saúde (SUS). Neste último ponto, ressalta-se a necessária experimentação dos diferentes cenários do SUS em sua complexidade - que é orientado no cotidiano de formação deste PPC - a fim de fortalecer o protagonismo dos estudantes na realização das sínteses da aprendizagem e não desenvolver habilidades apreendidas em sala de aula (Ferla, 2021FERLA, A. A. Um ensaio sobre a aprendizagem significativa no Ensino da Saúde: a interação com territórios complexos como dispositivo. Saberes Plurais: educação na saúde, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 81-94, 2021. DOI: 10.54909/sp.v5i2.119022
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).

O currículo do curso apresenta um corpo de conhecimentos organizado em três domínios - comum, conexo e específico -, constantes na matriz de todos os cursos da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em todos os campi. O domínio comum visa à formação crítico-social e apresentação do mundo acadêmico ao estudante; o domínio conexo contempla componentes curriculares de diversas áreas de conhecimento com o objetivo de promover formação numa perspectiva interdisciplinar; e o domínio específico tem seu foco na formação profissional. Com esta proposição, os três domínios são entendidos como “princípios articuladores entre o ensino, a pesquisa e a extensão, fundantes do projeto pedagógico institucional” (UFFS, 2018UFFS - UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL. Pró-Reitoria de Graduação. Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Medicina. Chapecó: UFFS, 2018., p. 13).

O currículo prevê imersões/vivências semanais em Unidades Básicas de Saúde (UBS) do SUS, da primeira à oitava fase, como parte do conteúdo programático das ementas do componente “Saúde Coletiva”. Tal procedimento atua como desencadeador de processos pedagógicos (Ferla et al., 2017FERLA, A. A. et al. Inovação na formação médica: contribuições para “novos” médicos na atenção básica. In: CETOLIN, S. F. (Org). Saúde Pública: doenças negligenciadas milenares e emergentes. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017. p. 155-174.), cuja aprendizagem da formação médica se dá estreitamente vinculada à prática cotidiana profissional (Ferla et al., 2017FERLA, A. A. et al. Inovação na formação médica: contribuições para “novos” médicos na atenção básica. In: CETOLIN, S. F. (Org). Saúde Pública: doenças negligenciadas milenares e emergentes. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2017. p. 155-174.; Oliveira; Matos, 2016OLIVEIRA, M. C. de; MATOS, I. B. Educação médica: projeto pedagógico inovador e o imaginário vigente sobre a formação profissional. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO, 5., 2016, Joaçaba. Anais… Joaçaba: Editora UNOESC, 2016. p. 853-860. Disponível em: <Disponível em: https://www.unoesc.edu.br/images/uploads/editora/VColoquio_2016.pdf >. Acesso em: 4 jan. 2023.
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), “potencializadora da realidade” (Fonsêca; Souza, 2019FONSÊCA, G. S.; SOUZA, J. V. G. de. A narrativa de um percurso formativo: (re)significando a formação médica. Interface, Botucatu, v. 23, supl. 1, e180059, 2019. DOI: 10.1590/Interface.180059
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, p. 4).

O PPC contempla iniciativas inovadoras como: desenho curricular não-disciplinar (componentes integradores), abordagem construtivista (aprendizagem significativa), uso de metodologias ativas de aprendizagem (estimulando o protagonismo do estudante na sua formação), abordagem ampliada do conceito de saúde (contribuição das ciências humanas e sociais e da epidemiologia) e inserção prioritária na AB do SUS (vivências a partir de situações reais) (Fonsêca; Souza, 2019FONSÊCA, G. S.; SOUZA, J. V. G. de. A narrativa de um percurso formativo: (re)significando a formação médica. Interface, Botucatu, v. 23, supl. 1, e180059, 2019. DOI: 10.1590/Interface.180059
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; Oliveira; Matos, 2016OLIVEIRA, M. C. de; MATOS, I. B. Educação médica: projeto pedagógico inovador e o imaginário vigente sobre a formação profissional. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO, 5., 2016, Joaçaba. Anais… Joaçaba: Editora UNOESC, 2016. p. 853-860. Disponível em: <Disponível em: https://www.unoesc.edu.br/images/uploads/editora/VColoquio_2016.pdf >. Acesso em: 4 jan. 2023.
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).

Porém, este PPC tem se deparado com dificuldades na implantação, implementação e sustentabilidade, com certo estranhamento por parte da comunidade acadêmica diante de um currículo não tradicional/não disciplinar (Fonsêca; Souza, 2019FONSÊCA, G. S.; SOUZA, J. V. G. de. A narrativa de um percurso formativo: (re)significando a formação médica. Interface, Botucatu, v. 23, supl. 1, e180059, 2019. DOI: 10.1590/Interface.180059
https://doi.org/10.1590/Interface.180059...
; Oliveira; Matos, 2016OLIVEIRA, M. C. de; MATOS, I. B. Educação médica: projeto pedagógico inovador e o imaginário vigente sobre a formação profissional. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO, 5., 2016, Joaçaba. Anais… Joaçaba: Editora UNOESC, 2016. p. 853-860. Disponível em: <Disponível em: https://www.unoesc.edu.br/images/uploads/editora/VColoquio_2016.pdf >. Acesso em: 4 jan. 2023.
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). Pode-se dizer seu diferencial está na busca de superação da fragmentação técnica no trabalho e da aprendizagem decorrentes da especialização do conhecimento. Ou seja, ao buscar a substituição da transmissão disciplinar de conhecimentos pela produção compartilhada com transversalidades entre a teoria e a prática, parece haver dificuldades de ordem pedagógica e resistências de ordem política entre os atores. Cursos novos em universidades federais possibilitaram a abertura de vagas e a oferta de concursos públicos voltados para o perfil docente desejado, com delineamento mais preciso. Entretanto, a complexidade da produção de saúde nos territórios de referência das equipes de AB no SUS é desafiadora aos fazeres docentes e confronta os imaginários vigentes (Ferla, 2021FERLA, A. A. Um ensaio sobre a aprendizagem significativa no Ensino da Saúde: a interação com territórios complexos como dispositivo. Saberes Plurais: educação na saúde, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 81-94, 2021. DOI: 10.54909/sp.v5i2.119022
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; Meireles; Fernandes; Silva, 2019MEIRELES, M. A. de C; FERNANDES, C. do C. P.; SILVA, L. S. e. Novas Diretrizes Curriculares Nacionais e a formação médica: expectativas dos discentes do primeiro ano do curso de medicina de uma instituição de ensino superior. Revista Brasileira de Educação Médica , Brasília, DF, v. 43, n. 2, p. 67-78, 2019. DOI: 10.1590/1981-52712015v43n2RB20180178
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; Menezes Júnior; Costa; Arruda, 2021MENEZES JÚNIOR, A. da S.; COSTA, A. F. de O.; ARRUDA, M. Educação médica e as diretrizes curriculares nacionais: realidade ou utopia - revisão sistemática literária. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 7, n. 5, p. 50464-50477, 2021.).

A sintonia entre PPC e a definição de perfil docente é algo difícil de se obter, uma vez que há interposição de regramentos e práticas organizacionais cujo objetivismo na avaliação dos candidatos não consegue incluir a capacidade pedagógica de operar dentro do PPC. É desejável ter maior número de docentes com carga horária de 40 horas e dedicação exclusiva para a condução dos processos formativos de modo integrado e articulado. Contudo, há limitações, dentre as quais a dificuldade em captar médicos com formação em medicina geral de família e comunidade, interessados e disponíveis para assumirem a função docente, que não é atrativa em termos de remuneração (Ceccim et al., 2008CECCIM, R. B. et al. Imaginários da formação em saúde no Brasil e os horizontes da regulação em saúde suplementar. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, p. 1567-1578, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000500021
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; Chehuen Neto et al., 2013CHEHUEN NETO, J. A. et al. Estudantes de medicina sabem cuidar da própria saúde? HU Revista, Juiz de Fora, v. 39, n. 1 e 2, p. 45-53, 2013.), tanto na AB do SUS como na docência.

Dos 36 docentes em atividade no curso, em 2018, mais da metade eram médicos (19) com vínculo institucional público federal de 20 horas, e 17 eram graduados em outros cursos (Enfermagem, Farmácia-Bioquímica, Biologia, Odontologia, Biomedicina, Educação Física, Fisioterapeuta, Fonoaudiologia e História), com vínculo funcional de 40 horas e dedicação exclusiva. Os docentes médicos são majoritariamente especialistas, e os não médicos são doutores. O coordenador do curso, à época da pesquisa, tinha carga horária de 40 horas semanais, era doutor, com experiência de coordenação de curso médico em universidade comunitária.

Nos parágrafos a seguir, apresentaremos os resultados e a discussão das quatro categorias de análise que descrevem o trabalho docente na perspectiva de seus atores. A primeira categoria - marcadores de formação para a docência - refere-se à percepção de quando e como se deu o preparo para a docência, que se traduz-se em um conjunto de situações que proporcionaram experiência para o trabalho docente em diferentes momentos da vida pessoal, acadêmica e profissional.

Dos 15 docentes respondentes, a maioria tem menos de 40 anos de idade e, em média, 30 meses de exercício da docência (ressaltando que há uma médica que iniciou o trabalho recentemente, enquanto outra tem 20 anos de docência). Em relação ao conhecimento sobre o PPC, 12 desconheciam quando da realização do seu concurso, embora disponibilizado na homepage da universidade. As motivações que os levaram a realizar o concurso, com a possibilidade de respostas múltiplas, são diversas: por se tratar de uma universidade federal (4 respostas); o PPC e a ênfase na saúde coletiva (3); facilidade da localização (3); temática do concurso (2); por ser uma universidade nova “sem vícios” (1); e por gostar de “dar aulas” (1).

Nesta primeira categoria, foram identificados quatro marcadores, definidos a partir de palavras e expressões significativas, a saber:

  1. Praticando na condição de estudante-aprendiz: período da graduação e da pós-graduação, tido como o mais marcante para aprendizagem docente, apontado por mais da metade (8) dos docentes participantes. Também foram citados cursos de curta duração.

  2. Praticando a docência experiencial: cerca de um terço dos docentes revelou experiências como professor substituto ou vivenciadas no atual cotidiano da sala de aula.

  3. Prática médica profissional: este terceiro marcador corresponde a apenas uma indicação de docente médico, que aponta seu cotidiano profissional como espaço concreto de referência para a docência.

  4. “Nenhum preparo” foi indicado por uma docente médica.

A maioria informou não ter preparo específico para a docência, e tanto médicos quanto não-médicos apresentaram pouca experiência docente. O repertório de conhecimento para a prática docente é sancionado pelos diplomas durante o período de formação e buscado na atuação profissional - portanto, dá-se de forma experiencial. A literatura já identificou que grande parte dos professores universitários, de diferentes cursos, ingressam sem experiência docente prévia, reportando-se ao período obrigatório de estágio docência para bolsistas da pós-graduação stricto sensu (Ribeiro; Cunha, 2010RIBEIRO, M. L.; CUNHA, M. I. da. Trajetórias da docência universitária em um programa de pós-graduação em Saúde Coletiva. Interface, Botucatu, v. 14, n. 32, p. 55-68, 2010. DOI: 10.1590/S1414-32832010000100005
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).

Em resposta à pergunta “o que e quem mais tem auxiliado na docência?”, as percepções dos docentes revelaram que, majoritariamente (9 dos 15 respondentes), a aprendizagem tem se dado com colegas e estudantes, compartilhando experiências, participando em eventos científicos e por meio da experiência prática. Em relação ao contexto docente atual, informaram que a estratégia colaborativa tem auxiliado no enfrentamento da falta de formação.

As respostas dos participantes da pesquisa coincidem com análises encontradas na literatura sobre o trabalho docente na medicina, ou seja, constata-se que vão se tornando docentes e elaborando suas aulas e sua didática a partir das vivências como alunos de graduação e de pós-graduação, inspirando-se nessas experiências (Batista; Silva, 2001BATISTA, N. A.; SILVA, S. H. S. O Professor de Medicina. São Paulo: Edições Loyola, 2001.). Tal afirmação se encontra também no estudo de Ribeiro e Cunha (2010RIBEIRO, M. L.; CUNHA, M. I. da. Trajetórias da docência universitária em um programa de pós-graduação em Saúde Coletiva. Interface, Botucatu, v. 14, n. 32, p. 55-68, 2010. DOI: 10.1590/S1414-32832010000100005
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, p. 5) a respeito de diferentes cursos, o qual afirma que “professores se inspiram, principalmente, nas práticas e nos valores de seus ex-professores e, com essa condição, vão se tornando professores”.

A segunda categoria - “imaginários atribuídos à docência” - explicita características positivas, ou não, referentes à dimensão “ensinar medicina”, reportando-se às expectativas iniciais, num contexto institucional de universidade nova que incorporou as recomendações das DCN e do PMM e atenta às tendências na formação médica. No entanto, o PPC em pauta apresenta-se com desenho curricular diferente daquele cursado quando da graduação realizada pelos docentes, de forma que se sentem desafiados.

Assim, são atribuídas características ao PPC do qual são docentes, tais como desafiador, angustiante, complicado, “caixa de surpresa” e “burocrático”, que podem ser entendidas a partir das justificativas dos participantes. Identificou-se resistência de docentes e estudantes em relação ao PPC que preconiza perfil generalista, citando o despreparo docente - inexperiência em lidar com novas metodologias; desvalorização da saúde coletiva e de docentes não médicos; perfil intimidador dos estudantes, cuja “arrogância” desmotiva à docência. É importante registrar que, numa das respostas ao questionário, um docente médico, ao explicitar sua percepção sobre o PPC, expressou-se da seguinte forma: “Politizado demais […] disciplinas que parecem […] promoção ideológica e partidária”, referindo-se às de domínio comum.

De 12 docentes, três citaram que o ensino é desafiador, sinalizando a ambivalência desta percepção, pois, ao mesmo tempo em que desafia, também desperta e instiga. Outros três docentes apontaram que “ensinar medicina” remete às características positivas que demonstram certa realização e satisfação. Um dos desafios de um curso de medicina com desenho não disciplinar - ou denominado de inovador e focado na aprendizagem significativa - é o estranhamento por parte de docentes. Nas respostas, percebe-se que, ao se candidatarem ao concurso, o imaginário da formação médica costuma ser de um médico especialista em um curso tradicional (disciplinar), e se surpreendem ao constatarem que a realidade é outra: formação de médico generalista e currículo não-disciplinar. Tal resistência, tanto por parte de alunos como de professores, em relação aos novos métodos foi assinalada por estudos nos quais os respondentes relatam se sentirem mais à vontade com métodos tradicionais, por já serem conhecidos (Meireles; Fernandes; Silva, 2019MEIRELES, M. A. de C; FERNANDES, C. do C. P.; SILVA, L. S. e. Novas Diretrizes Curriculares Nacionais e a formação médica: expectativas dos discentes do primeiro ano do curso de medicina de uma instituição de ensino superior. Revista Brasileira de Educação Médica , Brasília, DF, v. 43, n. 2, p. 67-78, 2019. DOI: 10.1590/1981-52712015v43n2RB20180178
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; Menezes Júnior; Costa; Arruda, 2021MENEZES JÚNIOR, A. da S.; COSTA, A. F. de O.; ARRUDA, M. Educação médica e as diretrizes curriculares nacionais: realidade ou utopia - revisão sistemática literária. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 7, n. 5, p. 50464-50477, 2021.).

Sobretudo, a prática construtivista de colocar seu trabalho em análise, como educação permanente, não parece ser uma postura comum, revelando a incorporação de uma imagem rígida de si. Sob outra perspectiva analítica, a prática docente como trabalho reivindica educação permanente para a travessia das fronteiras disciplinares e a produção de alteridade como dispositivo pedagógico de aproximação com o trabalho necessário ao SUS (Ceccim; Ferla, 2008CECCIM, R. B.; FERLA, A. A. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, p. 443-456, 2008. DOI: 10.1590/S1981-77462008000300003
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).

Ainda nesta segunda categoria, incluímos as análises de respostas à pergunta sobre quais eram os atributos que qualificam um bom professor para o curso de medicina. Para os quatro docentes médicos, ser um bom professor requer domínio do conhecimento e a capacidade de difundi-lo, apoiando-se na qualidade técnica e na experiência prática, que “pesa mais que títulos”, como mencionado por dois deles. Os outros dois entendem que estar consciente da formação de generalistas (ou, de acordo com a expressão citada, “um novo médico”) é o que pode simbolizar o bom professor. Já para os 11 docentes graduados em outras profissões, os atributos mais citados remetem às posturas de maior flexibilidade, sugerindo desenvolver capacidade de diálogo e adaptação às inovações requeridas pelas políticas públicas. Compreender e defender o PPC e ter conhecimento da área e experiência docente também completam a imagem ideal do bom professor.

Se analisarmos o que seria “um bom professor”, a literatura e os dados são congruentes. Autores dirão que é aquele que ensina com “segurança e competência profissional […] rigorosidade metódica, tanto no estímulo da capacidade crítica do aluno, quanto no ensino de conteúdos e atitudes éticas” (Chiarella et al., 2015CHIARELLA, T. et al. A pedagogia de Paulo Freire e o processo ensino-aprendizagem na educação médica. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 39, n. 3, p. 418-425, 2015. DOI: 10.1590/1981-52712015v39n3e02062014
https://doi.org/10.1590/1981-52712015v39...
, p. 421). Outros estudos têm mostrado que alguns parecem apresentar certa idealização da atuação docente, que é buscada no modelo formativo das escolas médicas tradicionais (Ceccim et al., 2008CECCIM, R. B. et al. Imaginários da formação em saúde no Brasil e os horizontes da regulação em saúde suplementar. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, p. 1567-1578, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000500021
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). Nessa direção, uma pesquisa comparando dois cursos de medicina - um no Brasil e outro em Portugal - afirma que, no caso brasileiro, “perduram as práticas conservadoras adaptadas às políticas educacionais vigentes” (Menezes Júnior; Bzrezinski, 2015MENEZES JÚNIOR, A. da S.; BZREZINSKI, I. Políticas curriculares na formação médica: aproximações e distanciamentos entre Brasil e Portugal. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 773-796, 2015. DOI: 10.1590/1981-7746-sip00059
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, p. 785).

Ao identificar representações sociais acerca do docente e do seu trabalho em cursos que formam profissionais liberais (direito, engenharia e medicina), Volpato (2009VOLPATO, G. Marcas de profissionais liberais que se tornaram professores-referência. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 90, n. 225, p. 333-351, 2009.) registra que as experiências concretas e seus valores internalizados constituem seus sistemas de referências. Para Tardif (2000TARDIF, M. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências em relação à formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 13, p. 5-24, 2000.), o saber ligado à experiência de trabalho e de tradições específicas ao ensino da profissão não forma um repertório de conhecimentos únicos em torno de uma disciplina ou de uma tecnologia ou concepção de ensino. É histórico que a competência técnica seja citada como a característica mais importante para a docência, mas, para além desta, é preciso que haja competência pedagógica (Chiarella et al., 2015CHIARELLA, T. et al. A pedagogia de Paulo Freire e o processo ensino-aprendizagem na educação médica. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 39, n. 3, p. 418-425, 2015. DOI: 10.1590/1981-52712015v39n3e02062014
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).

A terceira categoria - “enfrentamentos no cotidiano docente” - expõe a natureza metodológica e pedagógica das dificuldades, relacionadas ao contexto hostil, de sobrecarga de trabalho e de conciliar atividades. Essas dificuldades constituem expressões dos desafios apontados que retomam o reconhecimento da inexperiência docente. É compreensível, pois as DCN em vigor pressupõem metodologias de ensino mais envolventes e participativas em relação à postura do estudante e do docente. A literatura tem apresentado alguns estudos, já mencionados neste artigo, que apontam dificuldades das escolas médicas em implantar estratégias mais contemporâneas de aprendizagem, calcadas nas DCN (Meireles; Fernandes; Silva, 2019MEIRELES, M. A. de C; FERNANDES, C. do C. P.; SILVA, L. S. e. Novas Diretrizes Curriculares Nacionais e a formação médica: expectativas dos discentes do primeiro ano do curso de medicina de uma instituição de ensino superior. Revista Brasileira de Educação Médica , Brasília, DF, v. 43, n. 2, p. 67-78, 2019. DOI: 10.1590/1981-52712015v43n2RB20180178
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; Menezes Júnior; Costa; Arruda, 2021MENEZES JÚNIOR, A. da S.; COSTA, A. F. de O.; ARRUDA, M. Educação médica e as diretrizes curriculares nacionais: realidade ou utopia - revisão sistemática literária. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 7, n. 5, p. 50464-50477, 2021.).

O contexto hostil pode ser evidenciado por meio da expressão “arrogantes”, usada por docentes para descrever a postura de alguns estudantes, o que ilustra um contexto no qual o PPC não é necessariamente o que imaginavam na formação médica. Isto ocorre porque o padrão que estudantes geralmente imaginam a respeito da educação médica é distante do PPC em pauta e próximo ao que é convencionado num modelo mais tradicional (Ceccim et al., 2008CECCIM, R. B. et al. Imaginários da formação em saúde no Brasil e os horizontes da regulação em saúde suplementar. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, p. 1567-1578, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000500021
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; Chehuen Neto et al., 2013CHEHUEN NETO, J. A. et al. Estudantes de medicina sabem cuidar da própria saúde? HU Revista, Juiz de Fora, v. 39, n. 1 e 2, p. 45-53, 2013.). Parte das resistências, tanto de estudantes como de docentes, deriva do fato da formação médica generalista ter menor reconhecimento social e menor prestígio (Chehuen Neto et al., 2014CHEHUEN NETO, J. A. et al. Estudantes de medicina sabem cuidar da própria saúde? HU Revista, Juiz de Fora, v. 39, n. 1 e 2, p. 45-53, 2013.). Além de não apresentar atratividade, é “alvo de desprezo” (Bursztyn, 2015BURSZTYN, I. Diretrizes Curriculares Nacionais de 2014: um novo lugar para a Saúde Coletiva? Cadernos Abem, Rio de Janeiro, v. 11, p. 7-19, 2015., p. 18) e não está no horizonte profissional pós-conclusão da graduação (Meireles; Fernandes; Silva, 2019MEIRELES, M. A. de C; FERNANDES, C. do C. P.; SILVA, L. S. e. Novas Diretrizes Curriculares Nacionais e a formação médica: expectativas dos discentes do primeiro ano do curso de medicina de uma instituição de ensino superior. Revista Brasileira de Educação Médica , Brasília, DF, v. 43, n. 2, p. 67-78, 2019. DOI: 10.1590/1981-52712015v43n2RB20180178
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).

Participantes da pesquisa citaram desmotivação e sensação de intimidação diante de estudantes que menosprezam o componente da saúde coletiva e a pertinência de docentes não médicos. Como se sabe, a saúde coletiva é um campo teórico prático que, historicamente, não tem muito prestígio na formação em medicina. Bursztyn (2015BURSZTYN, I. Diretrizes Curriculares Nacionais de 2014: um novo lugar para a Saúde Coletiva? Cadernos Abem, Rio de Janeiro, v. 11, p. 7-19, 2015., p. 8) assinala que o desafio é ofertá-la de forma “atraente e que produza sentido para os estudantes”. Nesta direção, Menezes Júnior, Costa e Arruda (2021MENEZES JÚNIOR, A. da S.; COSTA, A. F. de O.; ARRUDA, M. Educação médica e as diretrizes curriculares nacionais: realidade ou utopia - revisão sistemática literária. Brazilian Journal of Development, Curitiba, v. 7, n. 5, p. 50464-50477, 2021.) salientam que saúde pública/saúde coletiva são consideradas como de baixa tecnologia e, portanto, são preteridas a partir de um imaginário que glorifica o que apresenta mais tecnologias.

É possível entender a sobrecarga de trabalho pelo fato de as universidades trabalharem em uma lógica organizacional-institucional e de distribuição do conhecimento historicamente díspar da atualmente desejada. O excesso de burocracia como entrave no cotidiano da formação, embora citado especificamente somente por um docente, é uma tendência de práticas gerencialistas, que estão cada vez mais presentes na vida de docentes e discentes e acabam sendo incorporadas nas universidades (Vicente; Lima; Porto, 2019VICENTE, M. de A.; LIMA, I. G. de; PORTO, M. V. Trabalho docente e desafios na atualidade: entrevista com Álvaro Moreira Hypólito. Revista da Faeeba, Salvador, v. 28, n. 55, p. 183-201, 2019. DOI: 10.21879/faeeba2358-0194.2019.v28.n55.p183-201
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).

Para os médicos, a docência parece não se configurar como prática profissional, apenas como complemento à clínica; já os docentes não-médicos se ressentem da desconsideração de suas áreas na formação médica. Embora satisfação ou insatisfação tenham componentes subjetivos, pode-se extrair certa concretude do que ocasiona tais sentimentos: relação entre colegas, estudantes, condições de trabalho e da própria atuação docente (Lemos; Passos, 2012LEMOS, M. de C. e; PASSOS, J. P. Satisfação e frustração no desempenho do trabalho docente em enfermagem. Revista Mineira de Enfermagem, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 48-55, 2012.).

A quarta e última categoria - “docência e seu horizonte” - contempla percepções que explicitam desencantos, mas sinalizam boas perspectivas. Dos 15 participantes, 10 registraram desencantos: salário baixo, impossibilidade de maior dedicação ao ensino e pesquisa, decepção com a docência, ritmo exigido pela vida acadêmica, críticas à saúde coletiva, experiência anterior melhor do que a com a medicina, falta de receptividade de colegas e estudantes, conciliação de vínculos empregatícios. Tais sentimentos de desvalorização já tinham sido identificados em respostas anteriores. Registre-se que uma docente citou o apelo ao psiquiatra e ao uso de medicamentos para enfrentamento de problemas referentes ao sofrimento psíquico que teve em função do trabalho docente.

Algumas expressões utilizadas pelos participantes foram citadas em momentos anteriores e também identificadas na literatura: dificuldades devido aos baixos salários, não reconhecimento dos pares, administrar “exigências da carreira universitária […] e a relação docente-aluno de maneira a contribuir de forma positiva no aprendizado” (Lemos; Passos, 2012LEMOS, M. de C. e; PASSOS, J. P. Satisfação e frustração no desempenho do trabalho docente em enfermagem. Revista Mineira de Enfermagem, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 48-55, 2012., p. 50).

Conciliar atividade profissional médica com a docência tem se revelado um equilíbrio difícil para médicos docentes, cujo vínculo funcional com a universidade é de 20 horas semanais. Os não-médicos, com vínculo funcional de 40 horas semanais (dedicação exclusiva), ressentem-se da desconsideração de suas áreas - ditas básicas ou de conhecimento mais geral, cujos componentes não são ministrados por médicos - quando comparadas às específicas da medicina, tidas como prioritárias na formação de futuros médicos. Chehuen Neto et al. (2013CHEHUEN NETO, J. A. et al. Estudantes de medicina sabem cuidar da própria saúde? HU Revista, Juiz de Fora, v. 39, n. 1 e 2, p. 45-53, 2013., p. 22), em estudo sobre a formação médica generalista, descrevem esta situação citando que “disciplinas gerais têm menos prestígio” perante estudantes.

Quando analisados os dados dos médicos docentes e os não médicos, parece haver hierarquização dos componentes (disciplinas), sendo os mais importantes aqueles atrelados ao que se concebe como fundamental para a formação de médicos na contemporaneidade. Ademais, atitudes desrespeitosas de estudantes e colegas podem ser traduzidas em disputas internas, revelando embates teóricos, conceituais e ideológicos sobre o papel docente e a formação médica para além do foco assistencial, ou seja, questionando o próprio PPC.

Pode-se identificar alguns possíveis reflexos acerca do perfil docente formado por médicos especialistas, com vínculos de 20 horas, que tiveram formação médica tradicional “hegemônica” (de cinco participantes médicos, quatro apresentaram entendimentos semelhantes). É provável que as exigências de maior proatividade, engajamento e cooperação na formação, num contexto de educação problematizadora que tem como foco o paradigma da integralidade em saúde, agudizem resistências da comunidade acadêmica, como já foi identificado na literatura (Chiarella et al., 2015CHIARELLA, T. et al. A pedagogia de Paulo Freire e o processo ensino-aprendizagem na educação médica. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 39, n. 3, p. 418-425, 2015. DOI: 10.1590/1981-52712015v39n3e02062014
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).

Com base em artigo recente, pode-se afirmar que, ao se depararem com o PPC ao ingressar na universidade em questão, discentes e docentes revelem diferentes percepções: encantamento, estranhamento, insegurança e resistência. Embates entre colegas, pela hierarquização de conteúdos priorizados na formação médica, indicam disputas entre componentes do domínio específico e do domínio conexo, criando tensões entre práticas pedagógicas, seus ministrantes e estudantes, que colocam em questão o PPC proposto (Oliveira; Matos, 2016OLIVEIRA, M. C. de; MATOS, I. B. Educação médica: projeto pedagógico inovador e o imaginário vigente sobre a formação profissional. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO, 5., 2016, Joaçaba. Anais… Joaçaba: Editora UNOESC, 2016. p. 853-860. Disponível em: <Disponível em: https://www.unoesc.edu.br/images/uploads/editora/VColoquio_2016.pdf >. Acesso em: 4 jan. 2023.
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).

Em relação às expectativas profissionais, desenvolvimento/progressão na carreira, dos 15 docentes participantes, seis responderam que suas expectativas estavam sendo alcançadas, embora se ressintam por não disporem de mais tempo para se dedicarem. Cinco responderam que as suas expectativas estavam sendo atingidas em parte, pois gostariam de realizar mais pesquisa; e os quatro restantes alegaram desânimo, insatisfação, desestímulo e frustração.

Ao serem perguntados sobre quais eram os planos relativos à docência como carreira, dos cinco médicos, um indicou realização de pós-doutorado, três pretendiam cursar mestrado/doutorado, uma vez que detêm a certificação de especialistas, e um disse não ter certeza. Dos 10 docentes não médicos com doutorado, somente dois apontaram o pós-doutorado; dos oito restantes, seis entendem que devem investir na sustentabilidade da proposta do PPC de diferentes maneiras: “fortalecer o ensino e a pesquisa e a extensão”, “contribuir para a formação médica generalista”, “defender a proposta”, “adotar metodologias ativas de aprendizagem”, “seguir no campo das racionalidades”. Dois docentes estão num momento de impasse, evidenciado pelas frases “não tenho expectativas” ou “já pensei abandonar a carreira”.

Apesar de sensações desmobilizadoras - desencantos e algumas frustrações difusas - há sinalizações de algumas atividades que mobilizam os docentes: o fato de orientar estudantes em atividades de pesquisa e extensão, estar contribuindo para a formação médica mais comprometida com o perfil epidemiológico da população brasileira e a consciência e o interesse em melhorar o seu desempenho como docente.

Considerações finais

A formação de médicos generalistas e vinculados ao perfil epidemiológico da população no âmbito da graduação são orientações de mudança no paradigma atual no Brasil e em outros países, o que repercute no trabalho docente. No entanto, professores, estudantes e instituições não têm apresentado o preparo necessário para as inovações demandadas para a educação médica. Adicionalmente, os retrocessos recentes na condução dos sistemas nacionais de saúde e educação colocam em xeque os avanços acumulados nas primeiras décadas dos anos 2000, fortalecendo alianças corporativas e o enfraquecimento das orientações de mudanças.

Ao analisarmos as percepções sobre docência e perspectivas profissionais de professores do curso de medicina de uma universidade federal, foi possível criar quatro categorias de análise. Em relação a estas, pode-se dizer que tanto a formação docente in acto como a formação profissional médica parecem constituir-se em sistemas de referência para a docência, suprindo ausência formativa específica que, de maneira autônoma, expressa-se em aprendizado. Assim, boa parte da atuação docente é buscada em modelos formativos próprios.

Sobre as expectativas iniciais, diante de um PPC diferente da graduação dos docentes, percebeu-se que eles se sentem desafiados, ao mesmo tempo em que entendem que os atributos que qualificam um bom professor incluem domínio e capacidade de difundir conhecimento, apoiando-se na qualidade técnica e na experiência prática, além de capacidade de diálogo.

Os docentes participantes revelam, em vários momentos, a natureza das dificuldades, que são metodológicas e pedagógicas, relativas principalmente à inexperiência docente e a necessidade de aggiornamento metodológico. O contexto da formação, em seus diferentes cenários, é indicado como hostil devido à postura arrogante de estudantes, à recepção “não tão boa” ao componente saúde coletiva e a disputas entre componentes do domínio específico e domínio conexo, que revelam a hierarquização de conteúdos na formação médica.

Embora o horizonte da docência aponte percepções que indicam insatisfações e desencantos, participantes sinalizam boas perspectivas na persistência da continuidade da qualificação para a docência. Tenta-se superar algumas sensações desmobilizadoras que emergem no cotidiano da formação por meio de algumas motivações, como, por exemplo, contribuir para uma formação médica mais comprometida com o perfil epidemiológico da população brasileira.

Os investimentos - pessoal e institucional - não têm sido suficientes diante de aspectos geradores de insatisfação e percepção de despreparo dos professores no cotidiano da formação médica, denunciando certo mal-estar docente. O tema em destaque aqui parece ser o de compreender a docência também como trabalho docente e ampliar investimentos na formação pedagógica e na aprendizagem no trabalho, por meio de educação permanente, por exemplo.

Entre as limitações do estudo, destaca-se que as percepções sempre são contextualizadas pela experiência dos indivíduos e, portanto, diferentes contextos podem reconfigurar as respostas obtidas para a análise. As contribuições deste estudo orientam-se para o fortalecimento da institucionalidade do PPC, que aponta sinais de inovação praticados no cotidiano da formação médica. No entanto, são necessários ajustes constantes por meio de mecanismos de monitoramento e de avaliação, a fim de preservá-los.

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Apêndice 1

Questionário - Docentes da medicina da Universidade Federal da Fronteira Sul

Identificação numérica......

Caracterização

Formação acadêmica:

Graduação: .......................................................... Conclusão: .........

Pós-Graduação: ................................................... Conclusão: .........

Pós-Graduação: ................................................... Conclusão: .........

Idade: ........... anos

Gênero: ......................

Regime de trabalho: 20h ( ); 40 ( ); 40 DE ( )

Tempo de docência: ............. Medicina ( ) Medicina na UFFS . Outro curso ( )

Em relação às percepções sobre a docência:

  1. 1. Já conhecia o curso, ao inscrever-se no concurso?

  2. 2. O que influenciou na escolha deste concurso para candidatar-se à docência?

  3. 3. Como ocorreu seu preparo para a docência?

  4. 4. Ensinar medicina na UFFS é...

  5. 5. Qual a sua percepção inicial sobre o curso?

  6. 6. Esta percepção inicial mudou na medida em que o curso avançou?

  7. 7. O que mais tem auxiliado o exercício da docência?

  8. 8. Quem (pessoa) mais tem contribuído para o exercício da docência?

  9. 9. Quais atributos qualificam um bom professor para o curso de Medicina da UFFS?

  10. 10. Quais os principais desafios que você enfrenta na sua prática docente?

Em relação às expectativas/perspectivas profissionais?

  1. 11. Suas expectativas profissionais na docência estão sendo alcançadas?

Sim. Justifique ...............................................................................................

Não. Justifique ...............................................................................................

  1. 12. Quais são os seus planos de carreira como docente?

  2. 13. Algo que você queira escrever .................................................................

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Jun 2021
  • Revisado
    17 Abr 2022
  • Revisado
    18 Jul 2022
  • Revisado
    18 Out 2022
  • Aceito
    19 Dez 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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