O Consea voltou! Ou como resistir em tempos desafiadores

Elisabetta Gioconda Iole Giovanna Recine Sobre o autor

Importantes acontecimentos poderiam ser elencados no “curto período” da história recente do Brasil, de 1º de janeiro de 2019 a 28 de fevereiro de 2023, considerando apenas em uma agenda, a de segurança alimentar e nutricional.

Na Medida Provisória nº 870/2019 (MP 870) 11. Brasil. Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Diário Oficial da União 2019; 1 jan (edição especial)., que reorganizou a estrutura do Governo Federal anterior, constava o que na prática se configurou na extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Mais do que isso, a MP 870 incluía a interrupção de um processo complexo, mas necessário, de implementação de um sistema intersetorial de políticas públicas responsável por articular áreas aparentemente distantes como saúde, educação, desenvolvimento social, economia, justiça, meio ambiente, cultura, entre outras.

Desde então, enfrentamos inúmeros desafios, envolvendo a fragilização de políticas públicas e instituições, a desestruturação da rede de proteção social, o empobrecimento da população, a precarização do trabalho e a experiência global da pandemia de COVID-19. Como já abordado em editorial de CSP em 2019 22. Castro IRR. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a agenda de alimentação e nutrição. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00009919., essa MP provocou uma importante reação pela volta do Consea em âmbitos nacional e internacional. No entanto, a situação não foi revertida.

Ainda em julho desse mesmo ano, um conjunto de organizações, movimentos, coletivos e conselhos estaduais de segurança alimentar e nutricional envolvidos com essa agenda convocou uma Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (CPSSAN). O documento de convocação dessa conferência reafirmou o compromisso com a democracia e com o combate à fome e à miséria, assim como com todos os instrumentos de políticas conquistados. Além disso, declarou que não haveria passividade diante do que se anunciava.

Nós, defensoras e defensores do direito humano à alimentação adequada, estamos firmes, fortes e resilientes e não vamos nos render. Estamos presentes nas cidades, nos campos, nas florestas e nas águas, ocupando espaços (...) e mobilizando a sociedade em prol da agenda de soberania e segurança alimentar e nutricional, em defesa da democracia e pela realização de direitos33. Conferência Nacional, Popular, Autônoma: Por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Carta convocatória. http://conferenciassan.org.br/wp-content/uploads/2020/04/Cartaconvocatoriaconferencia2020.pdf (accessed on 04/May/2023).
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Naquele momento, não era possível saber a dimensão que essas palavras assumiriam nos anos que se seguiram. Originalmente, a CPSSAN seria um processo de mobilização que culminaria em um encontro nacional. Com a pandemia, esse encontro não foi possível. Ainda assim, o compromisso com a mobilização e manutenção da agenda de segurança alimentar e nutricional foi concretizado, pode-se dizer que de maneira ainda mais ampla, em diferentes ações junto ao Congresso Nacional para proteção de programas estratégicos e difusão de medidas emergenciais para garantia do direito humano à alimentação adequada durante a pandemia.

O diálogo com a sociedade também foi sendo aprofundado. Quando já eram conhecidos os números terríveis de insegurança alimentar divulgados pelo 1º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil (VIGISAN) 44. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. VIGISAN. Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia por COVID-19 no Brasil. https://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf (accessed on 04/May/2023).
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, feito em 2020, que identificou 19,1 milhões de pessoas em situação de fome, a CPSSAN realizou um tribunal popular que condenou o Governo Federal representado pelo então chefe do Poder Executivo pela situação de fome no país e proferiu sua sentença com um conjunto de ações emergenciais 55. Conferência Popular: Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Tribunal popular da fome: por um país livre da fome. https://conferenciassan.org.br/wp-content/uploads/2021/10/SentencaVF.pdf (accessed on 04/May/2023).
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. Apesar de essa sentença ter sido anexada a duas ações que estavam no Supremo Tribunal Federal (STF), chegamos, no início de 2022, a 33 milhões de pessoas em situação de fome 66. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. II VIGISAN. Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia por COVID-19 no Brasil. https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf (accessed on 04/May/2023).
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. Nessa mesma direção, organizações, movimentos, coletivos formais e informais que já tinham história ou se formaram nesses últimos anos adotaram explicitamente o fim da fome como bandeira de luta. Pautas antirracistas, indígenas, urbanas, camponesas e contra desigualdades de gênero se ampliaram, articulando processos políticos ao enfrentamento da pobreza e da fome, exacerbadas pela pandemia. Iniciativas originaram ações de solidariedade e experiências inspiradoras que se multiplicaram por todo o país em um sinal evidente de que a chamada “estamos firmes, fortes e resilientes e não vamos nos render” ecoou e levou o campo popular a se mobilizar fortemente para reverter o cenário político.

O conjunto de prejuízos acumulados nas políticas públicas de segurança alimentar e nutricional nos últimos anos não pode ser conferido apenas à ausência de um espaço institucional de participação social, expresso pelo Consea. Entretanto, essa ausência certamente confirmou a impermeabilidade do Governo Federal em reconhecer uma situação evidente e a importância de dialogar com a sociedade civil para se aproximar de maneira mais qualificada da realidade e, a partir daí, identificar soluções 77. Recine E, Fagundes A, Silva BL, Garcia GS, Ribeiro RCL, Gabriel CG. Reflections on the extinction of the National Council for Food and Nutrition Security and the confrontation of Covid-19 in Brazil. Rev Nutr 2020; 33:e200176..

Durante o processo eleitoral de 2022, houve intensa mobilização de diferentes setores populares para incluir suas propostas no delineamento das prioridades programáticas. Como não poderia deixar de ser, 33 milhões de pessoas com fome, fila em busca de ossos e inflação dos alimentos povoaram noticiários e programas. A realidade gritava inclusive na mídia tradicional, mas a sociedade civil organizada demandava compromissos explícitos para superar a situação, mantendo-se ativa por esses anos coerentemente e atuando durante todo o período de transição. O fim de 2022 chegou carregado de expectativas de todas as matizes e dimensões, entre elas, a retirada do Brasil do “mapa da fome” e a volta do Consea. E assim aconteceu: a Medida Provisória nº 1.154/202388. Brasil. Medida Provisória nº 1.154, de 1º de janeiro de 2023. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Diário Oficial da União 2023; 1 jan (edição especial). reinstalou o Consea na Presidência da República, recriou o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, revalorizou a agenda de direitos humanos e criou os Ministérios da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas. Não há desafio que secundarize o sinal evidente de que tempos de superação e novos desafios se anunciavam.

Em 28 de fevereiro, houve a cerimônia de reinstalação do Consea, que retornou com a mesma composição do momento da sua extinção. Foi possível, finalmente, declarar o compromisso com o fim da fome no Brasil e a necessidade de articular ações emergenciais com a garantia do acesso à alimentação saudável, além de medidas de transferência de renda, geração de empregos, combate ao racismo e a desigualdades de gênero e valorização do salário mínimo. Foi destacada a urgência de uma política de abastecimento com estoques reguladores para que alimentos da agricultura camponesa e familiar, diversificada e agroecológica, que respeitem hábitos e culturas alimentares e valorizem a biodiversidade sejam acessíveis 99. Recine E. Reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) na Presidência da República. https://c501ea3a-6dd6-44e1-8c27-217077e147d7.usrfiles.com/ugd/c501ea_21b904cc42244109b4cefc2990cad4d8.pdf (accessed on 04/May/2023).
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Após essa cerimônia, houve a primeira plenária do Consea. Os dois primeiros temas abordados se relacionaram às medidas que estavam sendo tomadas para o enfrentamento da tragédia humanitária vivida pelo povo yanomami e à apresentação, por parte do governo, do delineamento inicial de uma estratégia ampla de superação da fome. A experiência de o país ter superado a fome em pouco mais de uma década e ter perdido esses resultados em poucos anos foi condutora da definição dos dois eixos estratégicos do Consea: a defesa de medidas emergenciais de superação da fome, articuladas a ações endereçadas às raízes das desigualdades no Brasil, e a superação da fome com comida de verdade. Tanto uma diretriz como outra tem como eixos transversais o colapso climático, a luta antirracista e contra as desigualdades de gênero e a defesa da terra e do território a quem tem direito. Essa primeira plenária se encerrou com a convocação da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que teria ocorrido em novembro de 2019.

A conferência será responsável pela definição das propostas a serem enviadas ao Governo Federal para a elaboração do 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A urgência de uma estratégia que articule diferentes ações e setores para enfrentamento da fome inclui a necessidade de um plano de médio e longo prazo que possibilite transformações do sistema alimentar ancoradas no conceito de sindemia global de desnutrição, obesidade e mudanças climáticas 1010. Swinburn BA, Krask VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: The Lancet Commission report. Lancet 2019; 393:791-846.. Uma vez que esses três grandes desafios contemporâneos compartilham como determinante o sistema alimentar hegemônico, enfrentar esses desafios requer uma abordagem sistêmica de transformação. Se determinantes são compartilhados, não é mais suficiente ter uma política ou um programa bem executado isoladamente, é preciso que os processos e resultados de um repercutam e sejam potencializados com processos e resultados de outras ações.

É notável a trajetória de prioridades expressas, por exemplo, nos resultados das cinco conferências nacionais ao longo dos anos. Tanto os lemas que as convocaram quanto seus resultados sempre apontaram para avanços estratégicos e pautaram o futuro institucional e temático, além de contribuírem para a visibilidade de diferentes sujeitos sociais 1111. Silva BL, Gabriel CG, Nickel DA, Machado ML, Martins MC, Bricarello LP, et al. Participatory construction of the food security agenda in Brazil: interests and priorities from re-democratization to institutional dismantling. Rev Chil Nutr 2023; 50:27-41.. O Consea abriga uma importante diversidade de sujeitos sociais que articulam demandas, conhecimentos e práticas em um mesmo espaço, permitindo o diálogo democrático das diferenças e o alcance de concordâncias. O momento atual, nacional e global, requer o aprofundamento da representatividade social e da articulação. Políticas e programas precisam ser pensados a partir dos problemas, e não dos setores (sim, estou falando de intersetorialidade!), para alcançar outro patamar do pensar e fazer política pública, garantir direitos e, assim, lidar com desafios históricos com os saberes do presente.

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    Brasil. Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Diário Oficial da União 2019; 1 jan (edição especial).
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    Castro IRR. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a agenda de alimentação e nutrição. Cad Saúde Pública 2019; 35:e00009919.
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    Conferência Nacional, Popular, Autônoma: Por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Carta convocatória. http://conferenciassan.org.br/wp-content/uploads/2020/04/Cartaconvocatoriaconferencia2020.pdf (accessed on 04/May/2023).
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    Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. VIGISAN. Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia por COVID-19 no Brasil. https://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf (accessed on 04/May/2023).
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    Conferência Popular: Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Tribunal popular da fome: por um país livre da fome. https://conferenciassan.org.br/wp-content/uploads/2021/10/SentencaVF.pdf (accessed on 04/May/2023).
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    Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. II VIGISAN. Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia por COVID-19 no Brasil. https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf (accessed on 04/May/2023).
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    Recine E, Fagundes A, Silva BL, Garcia GS, Ribeiro RCL, Gabriel CG. Reflections on the extinction of the National Council for Food and Nutrition Security and the confrontation of Covid-19 in Brazil. Rev Nutr 2020; 33:e200176.
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    Brasil. Medida Provisória nº 1.154, de 1º de janeiro de 2023. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Diário Oficial da União 2023; 1 jan (edição especial).
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    Recine E. Reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) na Presidência da República. https://c501ea3a-6dd6-44e1-8c27-217077e147d7.usrfiles.com/ugd/c501ea_21b904cc42244109b4cefc2990cad4d8.pdf (accessed on 04/May/2023).
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    Swinburn BA, Krask VI, Allender S, Atkins VJ, Baker PI, Bogard JR, et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: The Lancet Commission report. Lancet 2019; 393:791-846.
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    Silva BL, Gabriel CG, Nickel DA, Machado ML, Martins MC, Bricarello LP, et al. Participatory construction of the food security agenda in Brazil: interests and priorities from re-democratization to institutional dismantling. Rev Chil Nutr 2023; 50:27-41.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2023
  • Aceito
    16 Maio 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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