Judicialização e acesso a medicamentos: a essencialidade na saúde e no direito

Litigation and access to medicine: the concept of essentiality in the fields of health and law

Luciana Simas Miriam Ventura João Maurício Brambati Sant’Ana Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro Vera Lúcia Edais Pepe Sobre os autores

RESUMO

A jurisprudência referente ao fornecimento de medicamentos pelo Poder Público importa diretamente para a gestão da assistência farmacêutica. O presente artigo teve como objetivo apresentar a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro sobre a aplicação do termo ‘essencial’ nas ações judiciais com pedidos de medicamentos, e analisar o uso deste conceito no Poder Judiciário, vis a vis sua compreensão na Saúde Pública. Foi realizado estudo qualitativo das decisões judiciais proferidas na segunda instância do Tribunal São observados aspectos correlacionados ao direito à saúde e ao exercício do acesso à Justiça, os quais permitem identificar ideias centrais sobre essencialidade do medicamento para a vida e a soberania absoluta da prescrição médica como respaldo médico-científico para a decisão judicial.

PALAVRAS-CHAVE:
Decisões judiciais; Direito à saúde; Assistência Farmacêutica; Medicamento Essencial; Sistema Único de Saúde

ABSTRACT

The jurisprudence conceming the supply of medicine is an important issue for the management of pharmaceutical services in Brazil. This paper aimed at presenting the jurisprudence from the Court of Justice of the State of Rio de Janeiro, focusing on the term ‘essential’ as included on lawsuits demanding access to medicines. It also examined the utilization of this concept by public health and by the Judicial System by means of a qualitative analysis of final judicial sentences of the appellate courts. Aspects related to the right to health and to the practice of accessing Justice were observed. Main components of these sentences and the main issues that they present on the essentiality of medicines for the maintenance of life and on the absolute sovereignty of the medical prescription as the sole scientific basis for the judicial decision were scrutinized.

KEYWORDS:
Judicial Decisions; Right to health; Pharmaceutical services; Essential Medicine; Unified Health System

Introdução

As interseções entre os campos da Saúde Pública e do Direito têm se intensificado nas últimas décadas, mormente no período pós-Constituição Federal de 1988, com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), sob os ditames da universalidade, integralidade e equidade (BAPTISTA; MACHADO; LIMA, 2009BAPTISTA, T.W.F.; MACHADO, C.V.; de LIMA, L. D. Responsabilidade do Estado e direito à saúde no Brasil: um balanço da atuação dos Poderes. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, 2009, p. 829-839.). A conquista do marco normativo constitucional vinculou-se ao fenômeno denominado ‘judicialização da saúde’, que é decorrente da expressão ‘judicialização da política’ (VIANNA 1999VIANNA, L.W. et al. Ajudicializaçâo da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.). Trata-se da utilização da via judicial para garantia do acesso à saúde, inclusive a assistência farmacêutica (AF), consolidando-se como mecanismo na busca da efetividade dos diretos previstos formalmente em resposta a algumas demandas sociais, coletivas ou individuais.

A atuação do Poder Judiciário tem produzido efeitos nas políticas públicas e, especificamente no tocante aos pedidos para fornecimento de medicamentos, alguns estudos defendem que as intensas e crescentes determinações judiciais individuais interferem na independência dos poderes estatais (BARROSO, 2007BARROSO, L.R., Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista de Direito da Procuradoria Geral/RJ, n. 63, 2007. Disponível em: <http://www.pge.rj.gov.br/sumario_rev63.asp>. Acesso em: 17 fev. 2011.
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; VIEIRA; ZUCCHI, 2007VIEIRA, F.S.; ZUCCHI, P. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Revista de Saúde Pública, v. 41, n. 2, 2007, p. 214-222.). Outros autores entendem que a alternativa individual do uso da via judicial pelo cidadão para garantia do acesso aos serviços e insumos de saúde pode significar instrumento da cidadania, especialmente em circunstâncias de deficiências de gestão dos serviços de saúde ou omissão dos Poderes Públicos no cumprimento do seu dever, por exemplo, de AF (PEPE 2010aPEPE, V.L.E.; OSORIO-DE-CASTRO, C.G.S.; LUIZA, V.L. A judicialização da saúde e os novos desafios da gestão da assistência farmacêutica. Ciência e saúde coletiva, v. 15, n. 5, 2010a, p. 2405-2414.; GANDINI; BARIONE; SOUZA, 2008GANDINI, J.A.D.; BARIONE, S.F.; SOUZA, A.E. A judicialização do direito à saúde: a obtenção de atendimento médico, medicamentos e insumos terapêuticos por via judicial – critérios e experiências. BDJur, Brasília, DF, 2008. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/16694>. Acesso em: 7 fev. 2012.
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; SCHEFFER; SALAZAR; GROU, 2005SCHEFFER, M.; SALAZAR, A.L.; GROU, K.B. O Remédio via Justiça – Um estudo sobre o acesso a novos medicamentos e exames em HIV/AIDS no Brasil por meio de ações judiciais. Série Legislação n.º 3. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, 2005.).

Diante desta conjuntura, é fundamental a interlocução entre profissionais do sistema de justiça e da saúde para a compreensão das interfaces entre saberes e práticas distintos, porém complementares. Os canais de diálogo que foram – e ainda estão sendo – construídos exigem, por parte de seus operadores, o esforço da concretização da interdisciplinaridade e de efetivação do acesso à saúde, ainda que se mantenham os habitus de cada campus (BOURDIEU, 2000BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.).

Este artigo teve como objetivo apresentar o resultado da pesquisa qualitativa sobre a aplicação do termo ‘essencial’ nas decisões sobre o fornecimento de medicamentos, na segunda instância do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ). A concepção de essencialidade, que se buscou analisar, foi aquela relacionada aos medicamentos como definidores de políticas públicas de saúde, e, neste sentido, visualizar como ocorre a aplicação deste conceito sanitário no âmbito judicial.

A segunda instância do TJ-RJ é composta por órgãos colegiados, os quais, dentre suas atribuições, têm como competência rever as decisões dos juízes de primeira instância. A análise dessas decisões evidencia, de certo modo, o entendimento consolidado sobre determinado assunto. É uma alternativa para compreender o habitus do campo jurídico, enquanto modus operandi próprio, representado pelo discurso oficial dos membros do Poder Judiciário. Examinar os acórdãos do Tribunal significa, portanto, tentar identificar a lógica de um sistema que define padrões, “o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito” (BOURDIEU, 2000, p. 212BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.).

Métodos

Foi realizado um estudo transversal retrospectivo, tendo como unidade de análise o processo judicial referente à ação individual contra o ente estatal (estado ou municípios), com pedido de fornecimento de medicamento, resultante do projeto de pesquisa intitulado ‘A judicialização no acesso a medicamentos no estado do Rio de Janeiro: um olhar sobre o csscncial’, que foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca – protocolo 93/07.

O universo do estudo foram ações judiciais cíveis julgadas em segunda instância, em 2006, e obtidas no serviço de consulta à jurisprudência do sítio do TJ-RJ, por meio dos seguintes descritores: ‘medicamentos’ e ‘essencial’.

Foram perscrutadas 182 decisões judiciais, envolvendo os recursos julgados nas Câmaras Cíveis (apelaçóes, agravos de instrumentos, duplo grau de jurisdição obrigatória e mandados de segurança) contra as sentenças ou decisões liminares, cujas ementas (ou resumos) continham os dois termos.

Foram analisadas as informações referentes aos processos individuais no que tange aos fundamentos legais e argumentativos, visando identificar as circunstâncias nas quais os medicamentos foram considerados essenciais para o Poder Judiciário. A análise de conteúdo teve como referência o trabalho de Bardin (2006)BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2006..

A organização e a análise qualitativa dos dados ocorreram a partir da leitura flutuante do material coletado para a identificação dos principais argumentos das decisões judiciais. Em seguida, foram selecionados os fundamentos jurídico-normativos indicados pelas partes e pelos órgãos julgadores, bem como os tipos de prova utilizados. Só então foram delimitadas categorias que permitissem o exame do conceito de essencialidade, comparativamente com as ideias centrais presentes nos acórdãos.

Admitiu-se, como pressuposto, que o conjunto de categorias deve ser estabelecido a partir de um único princípio de classificação, exaustivo e com respostas mutuamente exclusivas (GOMES, 1999GOMES, R. A análise de dados em pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M.C.S. (org.). Pesquisa Social: reoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 67-80.). Foram identificadas as seguintes relações com a noção de essencialidade aplicada aos medicamentos que se buscou analisar: essencialidade e responsabilidades dos entes federativos; essencialidade e responsabilidades dos gestores de saúde; essencialidade e necessidades de saúde e financeira do demandante.

Resultados e discussão

Medicamentos essenciais na Saúde Pública: algumas considerações indispensáveis para a análise

As leis nacionais explicitam claramente a importância do acesso aos medicamentos e inserem o direito à AF como parte integrante do direito à saúde (BRASIL, 2010cBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM n.º 161, de 21 de janeiro de 2010. Estabelece Termo de Cooperação entre entes públicos, Brasilia, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 2010c.; 1998BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM n,º 3.916 de 10 de novembro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos, Brasília, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 1998.; 1990BRASIL. Lei n. 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, Brasilia, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 1990.; 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Tít. VIII, art. 196, Brasília, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 1988.). Porém, limitar o acesso a determinado insumo no setor público de saúde não significa, necessariamente, deixar de resguardar o direito à saúde. Ao contrário, pode ser um mecanismo de garantia desse direito para aquele indivíduo e/ou demais cidadãos. Para a estruturação de políticas públicas na área da AF, são definidos medicamentos essenciais, pressupondo-se uma análise técnica, que busca viabilizar o acesso equânime e seguro a um rol de medicamentos à maioria das necessidades de saúde de uma determinada população (BRASIL, 2010aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM n.º 4.004, de 16 de dezembro de 2010. Aprova o Formulário Terapêutico Nacional – FTN, Brasilia, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 2010a.; 2010bBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM n.º 1.044, de 5 de maio de 2010. Aprova a 7ª edição da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), Brasilia, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 2010b.).

A implantação da Política Nacional de Medicamentos (PNM), por meio da Portaria MS/GM 3.916/98, apontou como finalidade precípua garantir o acesso da população aos medicamentos considerados essenciais (BRASIL, 1998BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM n,º 3.916 de 10 de novembro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos, Brasília, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 1998.). Destarte, o conceito de essencial passa a ocupar um lugar privilegiado de pedra angular da PNM (PEPE 2010bPEPE, V.L.E.; OSORIO-DE-CASTRO, C.G.S.; LUIZA, V.L. Caracterização de demandas judiciais de fornecimento de medicamentos “essenciais” no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, 2010b, p. 461 -471.). Portanto, o esforço governamental na implementação da PNM prioriza esses medicamentos, uma vez que se dirigem ao tratamento das doenças mais prevalentes da população brasileira (OMS, 2002ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD (OMS). Perspectivas políticas sobre medicamentos de la OMS - 4. Selección de medicamentos esenciales. Geneva: Organización Mundial de la Salud, 2002.; GUERRA, Jr. 2004GUERRA JR., A.A.; ACÚRCIO, F.A.; GOMES, C.A.P.; MIRALLES, M.; GIRARDI, S.N.; WERNECK, G.A.F.; et al. Disponibilidade de medicamentos essenciais em duas regiões de Minas Gerais, Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, v. 15, n. 3, 2004, p. 168-175.; PONTES, Jr., 2007PONTES JR, D.M. A seleção de medicamentos para o monitoramento da qualidade laboratorial no Brasil: articulação entre a Vigilância Sanitária e a Política Nacional de Medicamentos. Dissertação (Mestrado) – Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2007.; PEPE 2008PEPE, V.L.E.; OSORIO-DE-CASTRO, C.G.S.; LUIZA, V.L. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais: um instrumento da Política Nacional de Medicamentos na garantia do acesso. In: BUSS, P.M.; CARVALHEIRO, J.R.; CASAS, C.R.R. (Org.). Medicamentos no Brasil: inovação e acesso. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008. p. 319-334.).

Atualmente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publica a cada dois anos uma lista modelo de medicamentos essenciais e preconiza que todos os países, desenvolvidos ou não, definam a sua relação nacional de medicamentos essenciais, de acordo com o perfil de adoecimento de sua população, e a atualize regularmente. Quatro entre cinco países já possuem suas listas de medicamentos essenciais (WHO, 2011WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). 2011. 10 Facts on Essential Medicines. Disponível em: <http://www.who.intyfeatures/factfiles/essential_medicines/essential_medicines_fcts/en/index.html>. Acesso em: 19 out. 2011.
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).

As listas de medicamentos essenciais, muito além da sua função no atendimento ao perfil de morbidade, subsidiam: o processo de aprovisionamento de medicamentos, a capacitação de pessoal de saúde, a adoção de ações mais efetivas de farmacovigilância, o desenvolvimento de diretrizes terapêuticas e a promoção da produção nacional de medicamentos, com qualidade e baixos custos. Há cerca de três décadas, o conceito de PNM era desconhecido na maioria dos países e informações objetivas sobre preço e uso racional de medicamentos eram extremamente limitadas, especialmente em países em desenvolvimento. Atualmente, 34 anos após a publicação da primeira lista de medicamentos essencias pela OMS, mais de 100 países possuem políticas nacionais de medicamentos em vigor ou em desenvolvimento e 135 países têm seus próprios manuais e formulários terapêuticos com informações atuais, precisas e imparciais (WHO, 2011WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). 2011. 10 Facts on Essential Medicines. Disponível em: <http://www.who.intyfeatures/factfiles/essential_medicines/essential_medicines_fcts/en/index.html>. Acesso em: 19 out. 2011.
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).

No Brasil, a partir de 1999, tem havido periodicidade na atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), As revisões são feitas pela Comissão Técnica e Multidisciplinar de Atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (COMARE), constituída por representantes do Ministério da Saúde, de Universidades, dos Conselhos de Medicina e Farmácia, de associações médicas e de representantes da sociedade civil organizada (PEPE 2008PEPE, V.L.E.; OSORIO-DE-CASTRO, C.G.S.; LUIZA, V.L. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais: um instrumento da Política Nacional de Medicamentos na garantia do acesso. In: BUSS, P.M.; CARVALHEIRO, J.R.; CASAS, C.R.R. (Org.). Medicamentos no Brasil: inovação e acesso. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008. p. 319-334.). A inclusão de determinado medicamento na Rename busca contemplar o perfil epidemiológico da população e os medicamentos para os quais há evidências científicas de eficácia e segurança, seguindo a diretriz preconizada pela OMS, de utilizar a medicina baseada em evidências na escolha.

A adoção do conceito de medicamentos essenciais e a elaboração de listas prioritárias têm permitido desenvolver a consciência de que a seleção de um número maior de medicamentos não é necessariamente melhor e, principalmente, de que medicamentos novos podem não representar avanços terapêuticos (GUERRA 2004GUERRA JR., A.A.; ACÚRCIO, F.A.; GOMES, C.A.P.; MIRALLES, M.; GIRARDI, S.N.; WERNECK, G.A.F.; et al. Disponibilidade de medicamentos essenciais em duas regiões de Minas Gerais, Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, v. 15, n. 3, 2004, p. 168-175.), Para Wannmarcher (2006)WANNMARCHER, L. Medicamentos essenciais: vantagens de trabalhar com este contexto. In: OMS (Org.). Boletim uso racional de medicamentos: temas selecionados. Brasília, OMS, 2006. p. 6., as políticas de medicamentos essenciais objetivam promover disponibilidade, acesso, sustentabilidade, qualidade e uso racional de medicamento, uma vez que só são incluídos aqueles que tenham tempo de uso necessário à detecção de efeitos adversos e potenciais riscos.

O uso do conceito essencial no Poder Judiciário: aspectos gerais

Dos 3.456 acórdãos proferidos em 2006 pelas 20 Câmaras Cíveis, que compõem a Segunda Instância do TJ/RJ, somente 185 continham o termo ‘essencial’ vinculado aos medicamentos pleiteados em face do Poder Público, A não-representatividade quantitativa do termo nas ementas das decisões dos órgãos julgadores e a representatividade desigual entre as Câmaras apontaram para o uso aleatório do termo, reforçando-se a importância da pesquisa qualitativa para compreender o uso do conceito ‘essencial’ nas decisões judiciais.

Percebeu-se, também, que as decisões foram proferidas com freqüência, reiterando-se os fundamentos de decisões anteriores, por se tratar de ‘matéria pacificada’ pelo TJ/RJ e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), como autoriza o art, 557, do Código de Processo Civil (CPC)11Dispõe o referido art. 557, do CPC, que o relator do processo “negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou deTribunal Superior”. Portanto, sem levar o caso a julgamento por outros magistrados do mesmo Tribunal. (BRASIL, 1973BRASIL. Lei n. 5.869 de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil, Brasília, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 1973.), combinado com as disposições da Súmula 253, do Superior Tribunal de Justiça22O enunciado 253 das Súmulas do STJ determina: “O art. 557, do CPC, que autoriza o relator a decidir o recurso, alcança o reexame necessário”. As repercussões práticas deste enunciado sáo: aplica-se a processos movidos em face da Administração Pública, nos quais é obrigatório o reexame das sentenças pelo Tribunal, mesmo que o ente público não tenha recorrido da decisão que lhe foi desfavorável; este exame náo é feito pelo Colegiado, mas por apenas um de seus membros – o desembargador relator do processo. (BRASIL, 2001BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 253. Brasilia: STJ, 2001. Disponível em: <http:/www.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp>. Acesso em: 22 fev. 2011.
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). Isso implica que, algumas vezes, o conteúdo específico daquela demanda judicial não é sequer debatido nas Câmaras Cíveis colegiadas, demonstrando-se o alto grau de uniformização e automatização das decisões, O fato de se tratar atualmente de matéria pacificada permite inferir que o próprio sentido de essencialidade para o Judiciário também está pacificado, conquanto possua variáveis importantes a serem problematizadas.

As decisões judiciais analisadas, em sua maioria, utilizam o termo ‘essencial’ como adjetivo para o medicamento solicitado, significando indispensável e imprescindível, necessário à garantia de sobrevida do requerente, mas não buscam identificar uma espécie de medicamento, nem diferenciá-lo por grupos ou categorias, tal como ocorre na gestão da saúde pública.

O fato de o Tribunal não utilizar o termo em seu sentido técnico-sanitário não significa que seu uso seja irrelevante na decisão judicial. Ao contrário, pode-se identificar a relação do termo com elementos centrais da deliberação judicial, como a prova de necessidade da terapia reivindicada, a terapia e a hipossuficiência do autor, bem como os aspectos da responsabilidade dos entes federativos no cumprimento da prestação de saúde.

Essencialidade e responsabilidades dos entes federativos na AF

A natureza do direito à saúde como direito fundamental e as implicações decorrentes dessa especial qualificação são destacadas nas decisões. Neste sentido, o termo ‘essencial’ serve para enfatizar a relevância do direito à saúde, de natureza constitucional, e que seu cumprimento vise garantir um bem maior, que é a vida do cidadão. Portanto, os dispositivos referentes ao direito à saúde são considerados de eficácia plena e aplicação imediata. Isto implica em afirmar que a existência de outros dispositivos legais e normas administrativas regulamentando a Constituição Federal não impedem que os magistrados apreciem o pedido do cidadão a determinado procedimento ou insumo de saúde necessário ao seu tratamento, no sistema público.

As decisões, em geral, são pautadas pelos artigos 196 e 198, da Constituição Federal brasileira (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Tít. VIII, art. 196, Brasília, Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 1988.), combinados com o 296, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro (CE/RJ) (RIO DE JANEIRO, 1989RIO DE JANEIRO (Estado). Constituição do Estado do RJ, Rio de Janeiro, Diário Oficial do Estado do RJ, 1989.). Um aspecto relevante observado é a não-referência a normas administrativas, tais como Decretos, Portarias e Resoluções, mesmo quando existentes acerca do tema, como expressa a decisão judicial destacada:

Não me parece que sejam relevantes eventuais portarias do Ministério da Saúde ou convênios de qualquer natureza que busquem partilhar de forma objetiva aquilo que a Constituição não partilhou. Também não é digna de consideração a natureza excepcional ou ordinária do medicamento. Trata-se de prestigiar a vida através de mecanismos de solidariedade social [...] àqueles integrantes da comunidade que não possuem condições econômicas. Não se pode simplesmente condenar à morte cidadãos que não dispõem de recursos com argumentos sobre a natureza ou o custo do medicamento. (Proc. n.º 2006.009.0188-1 VBV X Município do RJ e Estado do RJ, Proc. n.º 2006.009.0143-8 VHCC X Estado do RJ e Município do RJ, Proc. n.º 2006.009.0162-2 MMFX ças de primeiro grau confirmadas pelo TJ/RJ). (RIO DE JANEIRO, 2012RIO DE JANEIRO (Estado).Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acórdão em Reexame Necessário, processo n.º 2006.009.0188-1, Apelante: Estado do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro. 16ª Câmara Cível. 2012. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw?MGWLPN=DIGITAL1A&LAB=CONxWEB&PGM=WEBPCNU88&PORTAL=1&N=200600901881&protproc=1>. Acesso em: 04 abr. 2012.
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).

Embora aplique-se algumas disposições da Lei Federal n.º 8.080/90, entende-se que, se a Constituição Federal não distingue responsabilidades no tocante à AF, não cabe à lei infraconstitucional fazê-lo para efeitos de acesso do cidadão aos benefícios estabelecidos constitucionalmente. Deste modo, no âmbito da demanda judicial, a responsabilidade municipal, por exemplo, pode não se restringir aos medicamentos básicos e essenciais constantes de listagem padronizada na forma preconizada na CE/RJ.

Neste sentido, o Poder Judiciário adota a tese da responsabilidade solidária entre os entes federativos na AF, refutando as contestações do Estado do Rio de Janeiro e dos Municípios reclamados no tocante às pactuaçóes existentes ao fornecimento de medicamentos. O argumento central das decisões judiciais é que o SUS pressupõe cooperação técnica e financeira entre os entes, mas a lei constitucional não se refere à responsabilidade destes de forma distinta, tratando-se de divisão de competência administrativa que não deve atingir o direito fundamental do cidadão. Isso significa que o paciente pode reivindicar a AF a qualquer dos entes da Federação, pois o entendimento unânime é que todos são solidariamente responsáveis, e as pactuaçóes e normas administrativas são válidas somente entre esses entes. Esse entendimento está cediço na jurisprudência local, consolidada na Súmula n.º 65 do TJ/RJ33O enunciado da Súmula n.º 65 do TJ/RJ estabelece: “Deriva-se dos mandamentos dos artigos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988 e da Lei n.º 8080/90, a responsabilidade solidãria da União, Estados e Municípios, garantindo o fundamental direito a saúde e consequente antecipação da respectiva tutela” (2003). (RIO DE JANEIRO, 2003RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Súmula n.º 65. Direito à saúde. 2003. Banco do conhecimento. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/institucional/dir_gerais/dgcon/pdf/verbetes_comp/direito_a_saude.pdf>. Acesso em: 04 abr. 2012.
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).

Um segundo aspecto da decisão destacada é a recusa ao argumento comum de defesa dos entes federativos de que o SUS deve fornecer apenas os medicamentos padronizados nas normas administrativas, sob pena de gerar iniquidade no sistema. Destaca-se, por exemplo, que “inexiste sentido social e ético nos argumentos contidos na RENAME” (Apelação Cível n.º 2006.001.5501-0, 15ª Câmara Cível, TJ-RJ), consolidando-se o entendimento de que o cidadão deve ter acesso ao medicamento necessário para seu tratamento, estando este padronizado ou não no sistema público.

Essencialidade e responsabilidades dos gestores de saúde

Uma defesa comum dos gestores é que o cidadão, em geral, não comprova judicialmente a negativa administrativa de fornecimento do medicamento pleiteado. Os gestores alegam que o procedimento administrativo poderia atender ao cidadão, com menos transtornos para a gestão e o coletivo. Um exemplo recorrente na discussão é que o gestor, ao dar cumprimento imediato a determinado mandado judicial, pode comprometer o atendimento de outro cidadão, com igual direito, e, ainda, aumentar o custo público, quando tem que adquirir o medicamento diretamente no mercado varejista para atender à ordem judicial.

As decisões analisadas não acolhem os argumentos mencionados, enfatizam que não é necessário que o cidadão, antes de distribuir a ação judicial, ingresse com procedimento administrativo requerendo o medicamento, pois o esgotamento da via administrativa não é visto como prerrequisito para ajuizamento da demanda judicial Algumas sentenças são enfáticas no seguinte sentido:

[...] a vinda da parte ao Judiciário resulta de fato notório, qual seja o de que embora poucas vezes se negue a fornecer a droga necessária, o Poder Público reiteradamente, com sua omissão, propicia a descontinuidade do tratamento, numa permanente mora com o cidadão, de todo interessado, destarte, em se munir de título executivo judicial (Proc n.º 2006,009.0188-1 VBV X Município do RJ e Estado do RJ -Proc n.º 2006.009.0162-2 MMF X Estado RJ). (RIO DE JANEIRO, 2006aRIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acórdão em Reexame Necessário, processo n.º 2006.009.0162-2. Apelante: Estado do Rio de Janeiro. 7ª Câmara Cível. 2006a. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblinkmgw?MGWLPN=DIGITAL1A&LAB=CONxWEB&PGM=WEBPCNU88&PORTAL=1&N=200600901622&protproc=1>. Acesso em: 04 abr 2012.
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).

Importante salientar que a maioria das decisões analisadas é resultante de recursos que chegaram ao Tribunal pelo mecanismo processual denominado Duplo Grau Obrigatório, por se tratar de processo em face da Fazenda Pública. Isto é, os réus não recorreram voluntariamente da decisão de primeiro grau, sendo assim, em tese, acataram a decisão de primeiro grau, que desconsiderou a inexistência de pedido administrativo ou a comprovação de negativa do fornecimento.

Os magistrados presumem que se a parte autora propôs a demanda judicial

é porque alguma dificuldade ou obstáculo administrativo ela encontrou para o recebimento dos medicamentos, sendo fato notório a dificuldade do Ente Federativo em fornecer medicamentos aos necessitados. (RIO DE JANEIRO, 2006bRIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acórdão na Apelaçâo Cível, processo n.º 2006.009.0162-2. Apelante: Estado do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro. 16ª Câmara Cível. 2006b. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw?MGWLPN=DIGITALA&LAB=CONxWEB&PGM=WEBPCNU88&PORTAL=1&N=200600133807&protproc=1>. Acesso em: 04 abr. 2012.
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).

Foi possível observar que determinadas decisões utilizam expressamente o ‘princípio da ponderação de interesses’ em conflito no caso concreto, e afirmam a prevalência do direito e interesse individuais do autor, à vida e à saúde, diante de regras orçamentárias e administrativas. Os custos relativos à concessão dos medicamentos, por via judicial, são denominados pelos desembargadores como despesa corrente dentro dos critérios da Lei 8666/93 (Licitações). Desse modo, a ordem judicial determinando a compra de um medicamento não constante das listas e protocolos do setor saúde não é encarada como uma intromissão na gestão de saúde pública, nem um tipo de violação à Tripartição dos Poderes.

Outra medida observada é a aplicação de uma multa diária no caso de descumprimento pela Fazenda Pública de fornecer ‘medicamento essencial’ e de uso contínuo, com o intuito de conferir efetividade à tutela jurisdicional. De acordo com seus julgadores, a gravidade do fato, a urgência na entrega dos medicamentos e o risco do retardo no cumprimento da ordem judicial justificam a imposição de multa diária para seu cumprimento, contrariando o argumento estatal do risco de enriquecimento sem causa por parte do cidadão. Ademais, outro instrumento judicial utilizado para garantir a efetividade da tutela é a penhora de bem público.

Essencialidade e necessidades de saúde e econômica do demandante

Os órgãos julgadores destacam que os autores processuais necessitam de medicamentos de uso essencial e contínuo, sem os quais não podem garantir sua sobrevida. A caracterização do quadro clínico do paciente, a configuração da urgência e a necessidade do fármaco baseiam-se em declarações do médico indicado pelo requerente. Neste sentido, uma das principais constatações da pesquisa foi perceber a ‘sacralização’ da prescrição médica, que, em momento algum, foi questionada em sede judicial, mediante contraditório pelos gestores demandados. As decisões abordadas não fazem referência a solicitações de perícias judiciais, nem aceitam a produção de outros meios probatórios, bastando a prova documental acostada aos autos.

Além disso, a essencialidade relacionada à necessidade de saúde do demandante faz com que sejam identificadas condenações por períodos bastante abrangentes, como a determinação do fornecimento de medicamentos para o tratamento do paciente ‘enquanto deles necessitar’ ou ‘de qualquer outro (medicamento) que se fizer necessário’, desde que respaldadas por receita médica. Em resposta à contestação dos réus de que a condenação é genérica, e, portanto, juridicamente inválida, os órgãos julgadores têm entendido que não se trata de condenação genérica, pois especifica a enfermidade, nos limites do pedido do autor processual. Sustentam, ainda, que nada justifica obrigar o demandante a mover a máquina judiciária toda vez que houver alteração na prescrição medica-mentosa ou aparecimento de um novo medicamento mais eficaz no mercado.

Quanto ao tipo de insumo que o ente federativo está obrigado a fornecer ao demandante, embora não estivesse incluído no objeto específico da presente análise, foi o material colhido na pesquisa permitiu observar uma divergência jurisprudencial com relação ao fornecimento de fraldas descartáveis. Desdobramos este assunto por considerar uma amostra relevante para demonstrar o entendimento do TJ/RJ acerca da responsabilidade do Estado na AF. Uma primeira corrente propugna que este fornecimento não pode ser considerado essencial no tratamento de saúde. Assim,

embora triste a situação da autora, não se pode exigir do Estado além daquilo que está obrigado, [...] quando se sabe que podem ser substituídas por fraldas comuns, de uso comum por este Brasil afora. (RIO DE JANEIRO, 2006cRIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acórdão no Agravo de Instrumento, processo n.º 2005.001.54086, Agravante: Município do Rio de Janeiro. 15ª Câmara Cível. 2006c. Disponível em: <http://srv85.tjrj.jus.br/ConsultaDocGedWeb/faces/ResourceLoader.jsp?idDocumento=0003D313BBFA1908F3C72006B74519D886FE01A9C3281C3EX Acesso em: 04 abr. 2012.
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)

Responsabilizando-se o Estado, em ‘sentido lato’, apenas pelo fornecimento do medicamento. Em contraposição, uma segunda vertente jurisprudencial defende que, embora não possa ser considerado medicamento, trata-se de produto essencial para tratamento do demandante, não somente para manutenção de sua indispensável higiene pessoal, como também para fins de prevenção contra outras doenças e garantia da qualidade de vida (RIO DE JANEIRO, 2006dRIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Acórdão na Apelação Cível, processo n.º 2006.001.4519-5. Apelante: Município de Teresópolis. 2ª Câmara Cível. 2006d. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/scripts/weblink.mgw?MGWLPN=DIGITAL1A&LAB=CONxWEB&PGM=WEBPCNU88&PORTAL=1&N=200600145195&protproc=1>. Acesso em: 04 abr. 2012.
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).

Outro aspecto recorrente nas decisões analisadas relaciona essencialidade à hipossuficiência do reivindicante. A lei brasileira prevê o benefício da gratuidade de justiça, que confere isenção no pagamento das custas judiciais para aqueles que não possuem condições financeiras de arcar com despesas processuais sem prejuízo do próprio sustento e de sua família. A hipossuficiência para efeitos de acesso gratuito ao Judiciário deve ser comprovada com documentos que demonstrem a renda e as despesas do requerente e de sua família, e não se confunde com o direito à concessão do medicamento, essencial ou de qualquer outra natureza, decorrente do direito à saúde, que, no Brasil, é universal e gratuito, independentemente, das condições econômicas do usuário.

Isso significa que o cidadão que reivindica o medicamento pode ter direito – ou não – à gratuidade das custas judiciais, de acordo com sua condição econômica, Mas esta condição de hipossuficiência econômica não é legal válida para a concessão do medicamento, isto é, a hipossuficiência econômica é um requisito para o não-pagamento das despesas do processo, mas não para a garantia do direito à saúde, previsto constitucionalmente,

Embora o SUS esteja pautado nos princípios da integralidade e universalidade, e a gratuidade de acesso esteja garantida para todos, a condição financeira do demandante é um argumento frequente nas decisões judiciais, tal como observado em outros estudos (ROMERO, 2008ROMERO, L.C. Judicializaçâo das políticas de assistência farmacêutica: o caso do Distrito Federal. Textos para discussão 41. Brasília: Consultoria Legislativa do Senado Federal, 2008.). Neste sentido, a hipossuficiência econômica dos requerentes é considerada uma justificativa judicial bastante relevante, sendo destacada em diversas decisões judiciais que o Estado não pode recusar o fornecimento de medicamentos ‘àqueles ainda mais necessitados’.

Considerações finais

A consolidação de robusta jurisprudência do TJ/RJ, no tocante ao direito do cidadão ao fornecimento de medicamentos pelo Estado, foi um objeto precioso de pesquisa, especialmente para a gestão da AF e da prestação jurisdicional. O estudo dos argumentos jurídicos explicitados nos acórdãos do TJ/RJ sobre este tema permitiu avançar na compreensão do uso do conceito ‘essencial’ nos sistemas jurídico e sanitário.

O uso do termo essencialidade foi comum ao campo jurídico e sanitário; todavia, os significados não foram convergentes, o que pode denotar uma dificuldade de interlocução entre os operadores do Direito e os representantes dos entes federativos.

Percebeu-se, ao longo da pesquisa, que o Poder Judiciário aplicou o termo ‘essencial’ em suas decisões como adjetivo equivalente à ‘indispensável’ à garantia do direito à saúde do paciente. Os relatos foram pautados na apreciação de situações e necessidades individualizadas, fundadas no parecer do médico prescritor, portanto não buscavam identificar uma espécie de medicamento, nem diferenciá-lo por grupos ou categorias. Por isso, observou-se, inclusive, que o conceito essencial era estendido a outros produtos e insumos também pleiteados, como, por exemplo, as fraldas descartáveis.

Desse modo, torna-se um qualificador bastante extenso e de cunho subjetivo, com fronteiras conceituais fluídas. O propósito de utilização neste patamar pelo operador jurídico é caracterizar o medicamento como um bem essencial, evidenciando-se seu grau de urgência e relevância para a saúde e vida dos autores das demandas judiciais, no sentido de legitimar a atuação do órgão julgador. Por outro lado, o conceito de essencial, para a Saúde Pública, considera a coletividade a sociedade como um todo, buscando contemplar o tratamento das doenças mais prevalentes em cada localidade. Portanto, diferencia-se do olhar da Saúde Pública, que encara o conceito essencial como elemento estruturante na classificação e organização de políticas públicas.

Se, por um lado, o Executivo da Saúde tem falhado em garantir o acesso satisfatório da população aos medicamentos, inclusive àqueles selecionados como prioritários, a despeito do esforço empreendido nos últimos anos no sentido de aumentar os recursos financeiros para esse setor; por outro, o Judiciário, em geral, tende a desconsiderar as políticas públicas de saúde quando da sua tomada de decisão (SANTANA 2011aSANTANA, J.M.B. et al. Essencialidade e assistência farmacêutica: considerações sobre o acesso a medicamentos mediante ações judiciais no Brasil. Revista Panamericana de Salud Publica, Washington, v. 29, n. 2, 2011a.; VIEIRA; ZUCCHI, 2007VIEIRA, F.S.; ZUCCHI, P. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Revista de Saúde Pública, v. 41, n. 2, 2007, p. 214-222.; BORGES, 2007BORGES, D.L.C. Uma análise das ações judiciais para o fomecimento de medicamentos no âmbito do SUS: o caso do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2005. Dissertação (Mestrado) – Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2007.; MARQUES; DALLAR1, 2007MARQUES, S.B.; DALLARI, S.G. Safeguarding of the social right to pharmaceutical assistance in the state of São Paulo, Brazil. Revista de Saúde Pública, v. 41, n. 1, 2007, p. 101-107.) e a relacionar a efetivaçao do direito à AF com a oferta de qualquer um dos milhares de medicamentos disponíveis no mercado (VIEIRA, 2008VIEIRA, F.S. Ações judiciais e direito à saúde: reflexão sobre a observância aos princípios do SUS. Revista de Saude Pública, v. 42, n. 2., 2008, p. 365-369.), desde que ditado por um médico responsável (SANTANA 2011bSANTANA, J.M.B. et al.. Rational therapeutics: health-related elements in lawsuits demanding medicines. Revista de Saúde Pública, Sâo Paulo, v. 45, n. 4, 2011b.).

Constatou-se a ênfase ao direito à saúde, protegido constitucionalmente, e o reconhecimento do direito do cidadão ao acesso aos medicamentos para seu tratamento, independentemente da padronização estabelecida pelas instâncias do SUS. Foi destacada a condição de hipossuficiência econômica do solicitante, no sentido de que o Estado não pode recusar o fornecimento de medicamentos aos mais necessitados, afirmando-se a prevalência do direito individual do autor à vida e à saúde, diante de regras orçamentárias e administrativas, que limitam o acesso a determinados medicamentos.

Como as decisões judiciais não faziam referência a solicitações de perícias judiciais ou à produção de outras provas pelos réus (Município e Estado do RJ), que pudessem contestar as prescrições médicas apresentadas, foi possível verificar que, com relação aos processos analisados, há fraco contraditório processual.

A problematização dessas questões correlacionadas com o exercício do acesso à justiça permite compreender alguns aspectos das demandas de acesso a medicamentos. Igualmente, o estudo possibilitou identificar ideias centrais sobre a essencialidade do medicamento para a vida e a soberania absoluta da prescrição médica como respaldo médico-científico para a decisão judicial, o que pode ser relativizado, se forem utilizados os argumentos da AF, os quais levam em consideração o uso racional de medicamentos para a segurança do usuário.

Recentes estratégias de cooperação entre os dois campos têm sido realizadas no Estado do Rio de Janeiro. Uma delas é a implantação, em 2009, dos Núcleos de Assessoria Técnica no Tribunal de Justiça. Estes Núcleos funcionam com profissionais de saúde pagos pela Secretaria de Saúde e Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro, analisando-se as ações judiciais nas Varas de Fazenda Pública. Estudos posteriores poderão indicar os efeitos deste tipo de cooperação em ambos os campos e para a população como um todo.

Agradecimentos

A Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), pelo financiamento da pesquisa que originou este trabalho.

  • Suporte financeiro: Não houve
  • 1
    Dispõe o referido art. 557, do CPC, que o relator do processo “negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou deTribunal Superior”. Portanto, sem levar o caso a julgamento por outros magistrados do mesmo Tribunal.
  • 2
    O enunciado 253 das Súmulas do STJ determina: “O art. 557, do CPC, que autoriza o relator a decidir o recurso, alcança o reexame necessário”. As repercussões práticas deste enunciado sáo: aplica-se a processos movidos em face da Administração Pública, nos quais é obrigatório o reexame das sentenças pelo Tribunal, mesmo que o ente público não tenha recorrido da decisão que lhe foi desfavorável; este exame náo é feito pelo Colegiado, mas por apenas um de seus membros – o desembargador relator do processo.
  • 3
    O enunciado da Súmula n.º 65 do TJ/RJ estabelece: “Deriva-se dos mandamentos dos artigos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988 e da Lei n.º 8080/90, a responsabilidade solidãria da União, Estados e Municípios, garantindo o fundamental direito a saúde e consequente antecipação da respectiva tutela” (2003).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2012

Histórico

  • Recebido
    Nov 2011
  • Aceito
    Jan 2012
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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