Fluxo dos Paresi entre os níveis de atenção à saúde no Distrito Sanitário Especial Indígena de Cuiabá, Mato Grosso

Paresi flux between levels of health attention at the Indigenous Special Sanitary District in Cuiabá, Mato Grosso

Elizângela Vicunã Couto da Silva Cintra Maria Clara Vieira Weiss Maria Ceci Araujo Misoczky Ronaldo Bordin Sobre os autores

RESUMO

Estudo de caso que objetivou descrever o fluxo entre os níveis da atenção à saúde dos Paresi, do Distrito Sanitário Especial Indígena de Cuiabá, no Mato Grosso. O fluxo previsto pelo Plano Distrital de Saúde Indígena não considera a organização local de saúde e a articulação entre as instâncias do Sistema Único de Saúde, situação que foi prevista no fluxo estabelecido pelos profissionais de saúde. A estes soma-se o fluxo estabelecido pelos indígenas. Concluiu-se que o fluxo que consta do Plano Distrital de Saúde Indígena é inaplicável; o estabelecido pelos profissionais de saúde prevê aproximação ao real, mas a não-observação da particularidade gera empecilhos para o acesso a outros níveis de atenção.

PALAVRAS-CHAVE:
Gestão em saúde; Saúde indígena; Administração e Planejamento em Saúde; Políticas públicas

ABSTRACT

A case study that aimed at describing the flow among the levels of attention to the health of the Paresi people, in the Indigenous Special Sanitary District in Cuiabá, Mato Grosso. The flow foreseen by the Indigenous Special Sanitary District does not take into account neither the local health organization nor the instances of the the Brazilian Public Health System, which was foreseen in the flow established by health professionals. Both interact to the established flow by the indigenous themselves. The conclusion was that the Indigenous District Health Plan flow is unsuitable. The conventional flow foresees this approach, but not the particularity observation, which makes it difficult for the access of this population to all levels of attention

KEYWORDS:
Health management; Indigenous Health; Health Policy; Planning and Management; Public Policies

Introdução

A população indígena brasileira quase duplicou na década de 1990, com crescimento de 10,8% ao ano. Ainda assim, representa apenas 0,4% dos brasileiros, num total de 734.000 pessoas (IBGE, 2010INSTITUTO BRASILEIRO DE PESQUISA E ESTATÍSTICA (IBGE). IBGE divulga indicadores demográficos e de saúde no Brasil Disponivel em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias>. Acesso em: 20 abr. 2010.
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) abarcadas na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n.º 254, de 31 de janeiro de 2002. Aprova a política Nacional de Atenção aos Povos Indígenas e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 6 fev. 2002.). A lei 9.836/99 (BRASIL, 1999BRASIL. Lei n.º. 9.836, de 23 de setembro de 1999. Acrescenta dispositivos à Lei 8.080, de 19 setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, instituindo o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. Diário Oficial da União, Brasília, 24 set. 1999..) instituiu o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, determinando à União o financiamento do mesmo, podendo os estados, os municípios e outras instituições governamentais e não-governamentais atuar de forma complementar no custeio e na execução das ações.

Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) foram criados como modelo deste subsistema, sob a gestão da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), visando à promoção de ações de saúde voltadas à diferenciação dos povos indígenas e à complementaridade dos estados e municípios nos níveis mais complexos de atenção à saúde (BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n.º 254, de 31 de janeiro de 2002. Aprova a política Nacional de Atenção aos Povos Indígenas e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 6 fev. 2002.), Apesar de o Subsistema de Saúde Indígena estar instituído legalmente, sua operacionalização depende, em sua maioria, da habilidade e do poder de negociação de pessoas que ocupam cargos de governo para sua efetivação (CHAVES 2006CHAVES, M.B.G.; CARDOSO, A.M.; ALMEIDA, C. Implementação da política de saúde indígena no Polo-base Angra dos Reis. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v 22, n. 2, 2006, p. 295-305.).

O processo de ‘distritalização’ da saúde indígena aumentou a cobertura sanitária dos povos indígenas no Brasil; porém, os serviços ofertados ainda são pouco resolutivos (GARNELO, 2004GARNELO, L. Política de saúde dos povos indígenas no Brasil: Análise situacional do período de 1990 a 2004. Porto Velho: CESIR: 2004. (Documento de trabalho, 9).), Os mecanismos de articulação entre a FUNASA e as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde são frágeis, levando à fragmentação entre as ações desenvolvidas, o que possibilita ora duplicidade ora lacuna na atenção aos povos indígenas (CONASS, 2007CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE SAÚDE (CONASS). Atenção Primária e Promoção da Saúde. Brasília: CONASS, 2007.). Nesse sentido, as dificuldades para o atendimento médico e o acesso a serviços laboratoriais na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) estão entre os fatores limitantes no processo de implantação do DSEI do Cuiabá, no Mato Grosso (MARQUES, 2003MARQUES, I.M.S.F. A Política de Atenção à Saúde indígena: implementação do Distrito Sanitário Especial Indígena de Cuiabá - MT. 2003. Dissertação (Mestrado) – Fundação Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2003.).

Este estudo objetivou avaliar as estratégias locorregionais de articulação entre os níveis de cuidado à saúde, realizadas nos contextos locorregionais em Mato Grosso, em especial os Poios Base Rondonópolis e Tangará da Serra no DSEI Cuiabá; o primeiro, referência para os indígenas Bororo (VARGAS, 2008VARGAS, K.D. Avaliação das estratégias loco-regionais de articulação entre os níveis de atenção à saúde: o caso do Polobase Rondonópolis, Distrito Sanitário Especial Indígena Cuiabá (DSEI Cuiabá) – MT. 2008. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2008.) e, o segundo, para os Paresi.

Métodos

Este estudo objetivou analisar as estratégias locorregionais de articulação entre os níveis de cuidado à saúde, realizadas no polo base (PB) Tangará da Serra, que é representado regionalmente pela Casa de Saúde do índio (CASAI) de Tangará da Serra, bem como pelas unidades de atendimento em aldeias, pelo PB Bacaval e pelas unidades de saúde em municípios que possuem terra indígena Parcsi. São eles: Tangará da Serra, Sapezal, Campo Novo do Parecis, Pontes e Lacerda, Diamantino, Nova Marilândia, Conquista D’Oeste e Barra do Bugres.

Consistiu em um estudo de caso (YIN, 2002YIN, R.K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2002.), com coleta de dados via técnica da triangulação, por meio de análise documental, observação e entrevistas semiestruturadas. Após a contextualização, partiu-se para a identificação dos fluxos planejados ao acesso do povo Paresi aos diferentes níveis de atenção à saúde, por meio da análise do Plano Distrital de Saúde Indígena (PDSI) 2005-2007 e do Plano Distrital de Cuiabá 2008-2010 (MATO GROSSO, 2008MATO GROSSO. Coordenação Regional da Fundação Nacional de Saúde. Distrito Sanitário Especial Indígena Cuiabá. Plano Distrital de Saúde Indígena – PDSI 2008-2010. Cuiabá, 2008.), tornando-se possível a identificação dos fluxos planejados. A localização das aldeias indígenas Paresi nos diversos municípios foi solicitada à Fundação Nacional do índio (FUNAI).

A análise das planilhas, que registram o atendimento dos indígenas e seus encaminhamentos, permitiu identificar as aldeias atendidas e as suas unidades de saúde de referência. Identificadas as unidades, procedeu-se à observação direta não-participante nos serviços municipais de Tangará da Serra, nos diferentes níveis de atenção, bem como na central de marcação de consultas especializadas. Nestes locais, após a observação da dinâmica de atendimento, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com usuários indígenas em tratamento, trabalhadores, gestores e líderes locais, ultimando-se compreender sua trajetória no sistema e suas experiências.

Foram realizadas 11 entrevistas no município de Tangará da Serra, sendo dois usuários indígenas em trânsito na CASAI Tangará, cinco profissionais da Associação Halitnã, dois profissionais da rede municipal de saúde, o Secretário Municipal de Saúde e um funcionário da Central de Regulação.

Visitas de campo foram realizadas nos municípios, que, segundo análise documental na CASAI e das entrevistas, também eram referência de saúde para a população Paresi: Campo Novo do Parecis, Nova Marilândia, Sapezal e Conquista d’Oeste. Os municípios de Barra do Bugres e Diamantino foram investigados, mas não foi encontrada referência de atendimento aos Paresi nos mesmos.

Para descrição e sistematização dos dados levantados sobre os fluxos de acesso aos níveis da atenção à saúde, foram utilizados os conceitos de estratégias de Minrzberg e Jorgensen (1995). A partir destes conceitos foram criadas as seguintes categorias operacionais:

  • fluxo planejado, definido no Plano Distrital de Saúde Indígena (PDSI) – 2008/2010 do DSEI Cuiabá para acesso dos Paresi aos níveis de atenção;

  • fluxo formal, definido como estabelecido pelos profissionais de saúde e por organizações autorizadas; as informações foram levantadas junto aos profissionais das unidades com representatividade para o encaminhamento dos Paresi aos serviços de saúde – CASAI Tangará, PB Bacaval e Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena; bem como nos documentos de registro de atendimento dessas unidades;

  • fuxo por conta do usuário Paresi, realizado pelos usuários na busca por serviços de saúde, independentemente dos fluxos formais indicados pelos serviços; as fontes foram entrevistas com usuários, profissionais de saúde dos serviços municipais e análise dos registros de atendimentos municipais.

A última etapa da análise foi a comparação entre os três tipos de fluxos. Para avaliação de adequação, foram utilizados os princípios do SUS, sejam doutrinários (universalidade, integralidade e equidade), sejam operacionais (descentralização e hierarquização das ações).

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Júlio Müller (243/CEP/HUJM/06) e pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) com o protocolo 14916.

Resultados

O PB de Tangará da Serra é a unidade do DSEI Cuiabá responsável pela atenção à saúde do povo Paresi. As terras indígenas Paresi estão localizadas na área de abrangência de sete municípios, distribuídos em três microrregiões de saúde do Mato Grosso. Os municípios de Tangará da Serra, Sapezal, Campo Novo do Parecis, Nova Marilândia e Barra do Bugres estão localizados na Microrregião Médio-Norte; o município de Diamantino está na Microrregião Centro-Norte; e Pontes e Lacerda na Microrregião Oeste Mato-grossense.

A Microrregião do Médio-Norte é a maior referência para atenção à saúde da população indígena Paresi. Possui uma área de abrangência de 66.764 km2 e uma população de 182.470 habitantes, destes, menos de 1% é indígena. Em 1998, constituiu-se o Consórcio Intermunicipal de Saúde (CIS Médio-Norte), que compra atendimentos da rede privada, negociando consultas, internações, cirurgias e Serviços de Apoio à Diagnose e Terapia (SADT), e oferece atendimento nas especialidades de Anestesiologia, Cirurgia Geral, Traumato-ortopedia, Gineco-obstetrícia, Pediatria e Clínica Médica (MATO GROSSO, 2008MATO GROSSO. Coordenação Regional da Fundação Nacional de Saúde. Distrito Sanitário Especial Indígena Cuiabá. Plano Distrital de Saúde Indígena – PDSI 2008-2010. Cuiabá, 2008.).

Fluxos planejados pelo PDSI para a atenção à saúde dos Paresi

O PDSI deve adequaro estabelecido pela Política Nacional de Saúde do Idoso (PNSI) às demandas locais de saúde das populações indígenas, deliberadas pelos Conselhos Locais de Saúde e aprovadas pelo Conselho Distrital de Saúde. O PDSI, uma vez aprovado, deve servir de base para o planejamento das instituições conveniadas com a Funasa para a execução das ações em saúde.

A Associação Halitinã é a Organização Não-Governamental (ONG) do povo Paresi, conveniada com a Funasa para execução das ações de atenção básica de saúde nas aldeias. A extensão territorial, os territórios indígenas e a distribuição das aldeias fizeram com que a Associação Halitinã subdividisse a área indígena Paresi em três microrregiões de saúde. Cada equipe de saúde é responsável por 15 aldeias, e esta subdivisão foi levada em consideração para o planejamento no PDSI da atenção básica. A responsabilidade pela articulação do acesso à atenção básica fora da aldeia e aos níveis secundário e terciário não é explicitada pelo PDSI.

Os profissionais de saúde das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) trabalham 20 dias nas aldeias a cada mês, considerando-se as prioridades traçadas no PDSI. Estando a EMSI em área, é a primeira referência para os usuários indígenas na sua aldeia. Em sua ausência, a CASAI Tangará da Serra e os PB Tangará da Serra e Bacaval tornam-se as referências.

Na Figura 1 encontra-se o ‘fluxo planejado pelo PDSI’, levando em consideração as localizações territoriais das aldeias, sendo referências para atenção básica o PB Tangará da Serra, o PB Bacaval e os municípios de Tangará da Serra, Campo Novo dos Parecis, Sapezal, Nova Marilândia e Conquista D’Oeste.

Figura 1
Fluxo planejado pelo PDSI para acesso do povo Paresi aos níveis de atenção à saúde, de 2008 a 2010.

Independente do município de origem, as aldeias se referem à CASAI Tangará da Serra e, para acesso aos níveis secundários e terciários da atenção, ao município de Cuiabá, pela articulação da CASAI Cuiabá com a rede de SUS local

Fluxo formal na atenção à saúde dos Paresi

O fluxo formal, referenciado pelos profissionais de saúde aos diferentes níveis de atenção, ocorre de três formas: aos serviços de atenção básica; aos serviços de urgência e emergência e aos serviços especializados. Em qualquer caso, via articulação da CASAI Tangará da Serra ou do PB Bacaval.

As primeiras referências para a atenção básica em aldeia seriam as três EMSI. O atendimento por médicos demanda encaminhamento à CASAI Tangará da Serra ou ao PB Bacaval. Do total de aldeias, 30 possuem como referencia para a atenção básica a CASAI Tangará da Serra, enquanto as 15 aldeias mais distantes apresentam o PB Bacaval. Três aldeias descritas no PDSI 2008-2010 não estão no planejamento de ações de saúde pela ONG Halitinã.

Não há, entretanto, um rigor em relação à aldeia de origem do usuário indígena para essa referência. Na ausência da EMSI, o indígena entra em contato diretamente com a CASAI Tangará da Serra, que viabiliza o deslocamento de uma viatura para o transporte ao município. No caso de aldeias mais distantes, isso pode levar de quatro a seis horas.

Para suprir a inadequação da EMSI, e até mesmo a inexistência do PB Tangará da Serra em área indígena, a CASAI Tangará da Serra estruturou-se em uma unidade assistencial de triagem para os serviços municipais, Ainda, além do atendimento ambulatorial no local, encaminha

Posto de Saúde Central desse município para consultas ambulatoriais, pré-natal, acompanhamento ginecológico, consulta com nutricionistas e realização de vacina e teste do pezinho. Após o atendimento, os indígenas retornam às aldeias de origem (Figura 2).

Figura 2
Fluxo formal de atenção à saúde dos Paresi.

O acesso, por meio do Polo Bacaval, pode ser realizado pelo encaminhamento dos profissionais da EMSI ou por procura espontânea. Funciona com a mesma estrutura da EMSI, sem a presença de médico. O PB Bacaval pouco serve como apoio técnico às equipes, sendo um ponto de articulação com a rede municipal de serviços de saúde de Campo Novo do Parecis e Sapezal, com função muito semelhante à CASAI.

Mesmo pertencendo ao município de Sapezal, que recusa atenção básica aos usuários da aldeia Katyola Winã, esses têm acesso aos serviços de saúde em Campo Novo do Parecis. Esta situação se estabelece pela dificuldade de articulação com o serviço municipal. Para acesso aos serviços de emergência, das 15 aldeias atendidas no PB Bacaval, as de Buriti e Nova Esperança têm encaminhamento para Sapezal, as restantes, para Campo Novo do Parecis. Não existem barreiras formais de acesso para urgência e emergência.

Para acesso aos serviços de urgência e emergência, por meio da CASAI Tangará da Serra, os usuários são encaminhados à Unidade Mista e, se necessário, o indígena é hospedado na CASAI Tangará da Serra até sua reabilitação e retorno à aldeia.

O acesso aos serviços especializados é realizado pelo encaminhamento aos municípios de Tangará da Serra (à Unidade Mista, nos casos de Cardiologia, Ortopedia ou Pediatria; ao Posto Central, para exames de colposcopia e preventivo do colo uterino), Campo Novo do Parecis ou, mais raramente, à Cuiabá. Caso ocorra necessidade de internação, dá-se entrada na Unidade Mista e encaminhamento para o Hospital das Clínicas ou Materday (internações para procedimentos obstétricos, pediátricos ou de neonatos).

Na Central de Regulação, a CASAI Tangará da Serra possui cota para utilização dos serviços e, havendo demora para a sua efetivação, a Associação Halitinã tem lançado mão do pagamento ao setor privado.

Para acesso aos serviços de alta complexidade, os indígenas são encaminhados pela CASAI Tangará à CASAI Cuiabá – apenas dois casos no período de janeiro a junho de 2007.

Para as aldeias que possuem como referência o Polo Bacaval, o acesso aos serviços de saúde especializados ocorre pelo Campo Novo do Parecis, cujo Posto Central oferece as especialidades de Ortopedia, Pediatria e Ginecologia, ou por encaminhamento à Central de Regulação municipal. De forma diferente do constatado no município de Tangará da Serra, os serviços municipais de Campo Novo são resolutivos, e as especialidades mais solicitadas pela população indígena (Oftalmologia e Cardiologia) são vinculadas à rede de SUS local e ao consórcio intermunicipal.

Para casos de internação, parto e exames, como raios X e ultrassom, a unidade solicitada é o Hospital Público do município. Não havendo resolubilidade nesse município, o caso é repassado à CASAI Tangará da Serra, que articula com a rede de SUS deste município para a resolução.

A população indígena participa do Conselho Municipal de Saúde, e os representantes de saúde municipal também têm participado das reuniões locais de saúde indígena no Território Paresi.

Fluxo por conta dos Paresi para atenção à saúde

São fluxos por conta do usuário os realizados pela aldeia Estação Rondon, no acesso aos serviços de saúde no município de Nova Marilândia; das aldeias Juininha, Três Lagoas e Uirapuru, no município de Conquista D’Oeste; e da aldeia Queimada, no Programa Saúde da Família (PSF) Itamarati, em Campo Novo do Parecis.

Nos registros de atendimento das unidades da CASAI Tangará da Serra e da Secretaria de Saúde de Campo Novo do Parecis, há usuários que possuem o PB Bacaval como referência e são atendidos na CASAI Tangará da Serra, sendo o inverso também verdadeiro. Há ainda usuários indígenas de outros PB do DSEI Cuiabá sendo atendidos ou na CASAI Tangará ou nas unidades municipais de referência do PB Bacaval, como, por exemplo, a busca de atendimento no município de Nova Lacerda, vizinho à Conquista D’Oeste, para atendimento de saúde (Figura 3).

Figura 3
Fluxo por conta dos Paresi para atenção à saúde.

A aldeia Estação Rondon está na área de abrangência dos municípios de Diamantino e Nova Marilândia. Não estando a EMSI na área, os usuários se deslocam até o município de Nova Marilândia. Diferentemente dos relatos quanto ao fluxo formal, apontou-se uma descontinuidade nas ações da equipe que atende essa microrregião, o que levaria ao aumento na busca pelos serviços municipais de saúde.

Não há, como nos fluxos estabelecidos por meio da CASAI e PB Bacaval, o transporte ou acompanhamento profissional desses pacientes às Unidades de Saúde. Caso o usuário necessite de algum procedimento não-oferecido em Nova Marilândia, ele é encaminhado pela Central de Regulação ao município de Arenápolis. Uma indígena residente no município se responsabiliza, de forma voluntária, pelo agendamento e repasse dessas informações aos indígenas nas aldeias.

Quando o município de Arenápolis não possui a complexidade necessária para o problema, a Central de Regulação de Nova Marilâdia entra em contato e encaminha o paciente à CASAI Tangará da Serra, frequentemente, devido à pouca resolubilidade de saúde e pela dificuldade de transporte dos indígenas até Arenápolis. As aldeias Juininha, Três lagoas e Uirapuru estão na área de abrangência dos municípios de Pontes e Lacerda e Conquista d’Oeste. O fluxo por conta do usuário se estabelece quando o indígena se desloca até o município de Conquista D’Oeste para acesso aos serviços de saúde. Não há, como nos fluxos estabelecidos pela CASAI Tangará da Serra e pelo PB Bacaval, o acompanhamento profissional desses usuários até as unidades de saúde do município, nem o encaminhamento e transporte para esta referência. Os usuários indígenas Paresi utilizam transporte próprio ou de ônibus escolar até Conquista D’Oeste.

Analisando os arquivos dos PSFs do município, praticamente toda a população Paresi da região foi atendida no município. As datas confirmam periodicidade nos atendimentos, e todos são por demandas da atenção básica. As entrevistas dos profissionais de saúde municipais apontam para a dificuldade de atendimento devido às barreiras culturais e à necessidade do fortalecimento de atividades que supram essas deficiências.

A Secretaria Municipal de Saúde de Conquista D’Oeste aloja os indígenas nas dependências de uma das suas unidades de saúde até a resolução do problema. Caso o indígena necessite de algum procedimento que não é oferecido no município, ele é encaminhado ao serviço municipal de saúde de Cáceres e, caso não ocorra resolução, à CASAI Tangará da Serra.

A Aldeia Queimada está localizada na área de abrangência do município de Tangará da Serra, mas alguns indígenas da aldeia procuram o PSF Itamarati (PSF rural), pertencente ao Município de Campo Novo do Parecis. O transporte é feito pelo próprio indígena.

Discussão

Fluxo planejado

De forma majoritária, as aldeias Paresi têm como primeira referência de saúde o PB Tangará da Serra e, após, a CASAI Tangará da Serra, apesar da grande dispersão territorial desta etnia.

A acessibilidade se caracteriza como o ajuste entre as necessidades em saúde e os recursos necessários para atendê-las; é resultante da combinação dos fatores de dimensões que podem influenciar o acesso às ações de saúde. A dimensão geográfica da acessibilidade reflete a distância entre a população e seu recurso e mede-se pelo tempo que é dispendido para acesso aos serviços de saúde (FEKETE, 1995FEKETE, M. C. Estudo da acessibilidade na avaliação dos serviços de saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde (org.). Desenvolvimento gerencial de unidades básicas de saúde no distrito sanitário: Projeto Gerus. Brasília: Ministério da Saúde/Organização Pan-americana de Saúde, 1995, p. 177-184.). Como as terras indígenas Paresi ocupam uma vasta extensão territorial e, ao definir como primeira referência o PB Tangará da Serra, externo à mesma, criam-se barreiras de acessibilidade geográfica, limitantes ao acesso universal e equânimes à atenção à saúde.

A definição de Cuiabá como referência para media e alta complexidade prevista para as aldeias Paresi não considerou a configuração local de saúde (Plano Diretor de Regionalização – PDR e Programação Pactuada e Integrada – PPI) para esses serviços. Tangará da Serra é referência regional de saúde para as ações de média complexidade do Médio-Norte, e isso em nenhum momento é citado no PDSI; Pontes, Lacerda e Cáceres também são referências para média complexidade, mas igualmente são desconsideradas como referências para esta etnia.

De acordo com o PDR de Mato Grosso (2008)MATO GROSSO. Coordenação Regional da Fundação Nacional de Saúde. Distrito Sanitário Especial Indígena Cuiabá. Plano Distrital de Saúde Indígena – PDSI 2008-2010. Cuiabá, 2008., não há necessidade de encaminhamento para média complexidade para Cuiabá, mas o PDSI, ao tratar o subsistema de forma isolada, o fez. Além disso, não é visível no PDSI a compreensão da necessidade de articulação entre o subsistema de saúde indígena e o sistema municipal de saúde para tornar viável a atenção integral à população Paresi. Na atenção básica, por exemplo, observa-se a total responsabilização das equipes para o desenvolvimento de suas ações, não considerando a complementaridade das ações municipais, já prevista pela Política Nacional de Saúde Indígena e Portaria 2.656/2007 (BRASIL, 2007BRASIL. Ministérioda Saúde. Portaria n.º 2.656, de 17 de outubro de 2007. Dispõe sobre as responsabilidades na prestação da atenção à saúde dos povos indigenas no Ministério da Saúde e regulamentação dos Incentivos de Atenção Básica e Especializada aos Povos Ind ígenas. Diário Oficial da União, Brasiília, 22 out. 2007.).

O PDSI planeja equipes para atenção à saúde indígena sem profissional médico e sem número suficiente de profissionais com permanência na área. Tal composição sugere uma inadequação do modelo planejado à extensão territorial, o que pode levar a uma inadequada cobertura dos serviços e à demanda por serviços fora das terras indígenas.

O fluxo definido no PDSI para atenção à saúde dos Paresi, pela pouca capacidade adaptativa à realidade, caracteriza-se como uma estratégia planejada distanciada das exigências e necessidades da população indígena Paresi, evitando-se as dificuldades do acesso geográfico, econômico e cultural.

Fluxos formais indicados pelos profissionais de saúde

O fluxo estabelecido pelos profissionais de saúde se caracteriza pelo surgimento de várias estratégias que tentam adaptar-se a um cenário diverso. Uma delas é a reconfiguração da CASAI Tangará em unidade assistencial, frente à inexistência do PB Tangará da Serra em terras indígenas Paresi e de profissionais na EMSI. Ao contrário do planejado no PDSI, o PB Tangará não é referencia de saúde para a EMSI, devido à sua própria constituição, e a CASAI Tangará, além de ser uma unidade de apoio para os indígenas em tratamento fora de aldeia, passa a ser uma unidade assistencial.

Foi comum, nas entrevistas, a referência às equipes de saúde responsáveis pela atenção básica em aldeia como equipes volantes de saúde, lógica de organização à saúde realizada pela Funai, contrapondo-se aos pressupostos do atual modelo de atenção à saúde indígena, com ênfase na promoção de saúde. A quantidade de encaminhamentos por falha na atenção básica ou pela ausência de profissionais é um reforço à continuidade destas práticas assistenciais. A contratação, na CASAI, de um medico para atendimento da população Paresi, ao invés de ir diretamente aos serviços municipais de atenção básica, encobre um cenário de desrespeito ao princípio da universalidade.

Percebe-se que a universalidade é frágil em quase toda a região. O direito ao acesso está relegado às habilidades individuais dos ocupantes de cargos estratégicos, à concepção de solidariedade desses gestores e à troca de favores, em detrimento do direito garantido constitucionalmente.

O acesso é difícil nos municípios de Tangará da Serra e Sapezal, mas, uma vez nos serviços em Tangará da Serra, há dificuldade para acesso aos outros níveis de atenção à saúde. Precisando entrar na fila na Central de Regulação, como os outros munícipes, a demora gerada nessa situação fez com que os profissionais se utilizassem do incentivo hospitalar e da rede privada para acessibilidade ao sistema.

Uma situação de inequidade vivenciada pela população nos dois principais municípios de referência, Tangará da Serra e Campo Novo do Parecis, é o não-tratamento dos indígenas pelos profissionais, de acordo com as especificidades dos conceitos de vida e do adoecer indígena nos serviços. Os profissionais de saúde destes dois municípios, quando entrevistados, afirmaram que não há nenhum tratamento diferenciado a esta população quando estão utilizando os serviços municipais de saúde. Confirmaram, ainda, que todos são tratados nas unidades sem qualquer observância da sua particularidade.

Há de se destacar que, raramente, observou-se o preconizado pelo PDSI, quanto aos encaminhamentos de média e alta complexidade para Cuiabá.

Fluxo por conta dos Paresi para atenção à saúde

As experiências relatadas sobre a construção do caminho em busca do atendimento apontam para a dificuldade da efetivação dos princípios da universalidade, equidade e integralidade.

As dificuldades quanto aos meios de transporte, à ausência de unidades que procedem ao acolhimento de usuários indígenas e aos prejuízos na acessibilidade devido a barreiras étnicas demonstram a falta de percepção para o singular, a equidade e o sentido de justiça social As práticas relatadas nesse fluxo foram de busca por procedimentos de assistência em situações de adoecimento. A baixa articulação entre os níveis de atenção e as organizações que os compõem fragmenta o sistema de saúde e inviabiliza a atenção integral.

Conclusões

Os fluxos encontrados na atenção à saúde do Paresi evidenciaram o surgimento de estratégias produzidas tanto por profissionais de saúde, quanto por usuários para compensar as deficiências presentes no PDSI. Esses achados confirmam que o distanciamento da realidade no processo de elaboração do plano é uma postura pouco flexível para a dinâmica apresentada no campo.

No fluxo formal encaminhado de profissionais de saúde, foram criadas inúmeras estratégias para adaptação à realidade do campo e, assim, garantir o acesso à saúde pelo povo Paresi.

No PB Tangará da Serra, os princípios doutrinários do SUS são constantemente tensionados, em razão do impasse para a garantia do acesso em alguns municípios, ora detectado pela recusa do atendimento, ora pelo acesso de forma discriminatória ou sem a observação da suas particularidades étnicas.

No caso, o DSEI Cuiabá,

supervisionando o processo de emergência (cujos multados podem, às vezes, ser deliberados), os administradores devem supervisionar também o padrão de convergência e divergência, e saber quando devem fomentar a mudança e quando resistir a da (MINTZBERG; JORGENSEN, 1995, p. 39MINTZBERG, H.; JORGENSEN, J. Una estrategia emergente para la política pública. Revista Gestion y Política Pública, v. 4, n. 1, jan/jun, 1995, p. 25-46.).

Particularmente, deve-se considerar a capacidade organizativa dos Paresi para as tomadas de decisão que lhes dizem respeito. Essa prática permitiria a aprendizagem, a partir das estratégias produzidas pelos profissionais e pelos usuários, e a qualificação do processo de planejamento da atenção à saúde desta população.

  • Suporte financeiro: CNPq (nº 401862/2005-4 – Chamada/Edital: APQ Ed 492005 F IV-Auxflio à Pesquisa – Faixa IV)

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2012

Histórico

  • Recebido
    Ago 2011
  • Aceito
    Jan 2011
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