O Ministério da Saúde e a gestão do enfrentamento à pandemia de Covid-19 no Brasil

The Ministry of Health and the management of the fight against the COVID-19 pandemic in Brazil

Celmário Castro Brandão Ana Valéria Machado Mendonça Maria Fátima de Sousa Sobre os autores

RESUMO

A pandemia de Covid-19 exige dos governos nacionais e subnacionais medidas de contenção da transmissão, bem como a organização da rede assistencial para a identificação e cuidado aos sintomáticos. O governo brasileiro tem tomado medidas, em grande parte, discrepantes das recomendações dos organismos internacionais, as quais exercem importante influência no desempenho do País frente à pandemia. Este trabalho objetivou apresentar contextualização e discutir a atuação da direção do Ministério da Saúde, em sua relação com a Presidência da República, no enfrentamento à pandemia de Covid-19 no Brasil, por meio de revisão integrativa de informações publicadas em portais de notícias nacionais. Percebem-se medidas negacionistas fortemente orquestradas pela Presidência, que culminaram em consequências prejudiciais ao enfrentamento da pandemia: rotatividade de ministros da saúde, colapso da rede assistencial, fragilização das relações interfederativas, morosidade na vacinação, descaso com a ciência, frágil estratégia de testagem e distribuição de insumos, militarização da saúde, opacidade das informações em saúde, casos de corrupção, dentre outros. O principal desfecho desta atuação pode ser resumido nas tristes estatísticas de casos e óbitos por Covid-19, reforçando o fato de que temos uma necropolítica em curso no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE
Sistema Único de Saúde; Política de saúde; Gestão em saúde; Covid-19

ABSTRACT

The COVID-19 pandemic demands from national and subnational governments measures to contain the transmission, as well as the organization of the assistance network for the identification and care of the symptomatic ones. The Brazilian government has taken measures that are largely at variance with the recommendations of international organizations, which have an important influence on the country’s performance in the face of the pandemic. This study aimed to present a contextualization and discuss the performance of the Ministry of Health’s direction, in its relationship with the Presidency of the Republic, in confronting the COVID-19 pandemic in Brazil, through an integrative review of information published in national news portals. Denial measures strongly orchestrated by the Presidency can be seen, which culminated in harmful consequences to the fight against the pandemic: rotation of health ministers, collapse of the care network, weakening of inter-federal relations, delays in vaccination, disregard for Science, fragile testing strategy, opacity of health information, cases of corruption, among others. The main outcome of this action can be summarized in the sad statistics of cases and deaths by COVID-19, reinforcing the fact that we have an ongoing necropolitics in Brazil.

KEYWORDS
Unified Health System; Health policy; Health management; COVID-19

Introdução

A pandemia de Covid-19, causada pelo vírus Sars-CoV-2, chegou ao Brasil em 26 de fevereiro de 2020, quando foi registrado o primeiro caso da doença no País em um homem que retornou de viagem à Itália. Posteriormente, estudos demonstraram que o vírus já circulava no País desde o início de janeiro de 2020. No início de março do mesmo ano os primeiros casos de transmissão comunitária foram identificados11 Greer SL, King EJ, Fonseca EM, et al. Coronavirus politics: the comparative politics and policy of covid-19. Michigan: University of Michigan Press; 2021..

No início de fevereiro, antes mesmo do primeiro caso, o Ministério da Saúde (MS) – órgão da administração pública federal direta que tem como área de competência a coordenação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a política nacional de saúde – acionou o Plano Nacional de Resposta a Emergências de Saúde Pública e implantou o Centro de Operações de Emergência de Saúde Pública para o novo Coronavírus22 Oliveira e Cruz DM, Carvalho LF, Costa CM, et al. Centro de operações de emergência na COVID-19: a experiência do município do Rio de Janeiro. Rev Panam Salud Publica. 2022; (46):1-5.. O SUS foi criado em 1990 com diretrizes nacionais relacionadas à normatização e redistribuição de recursos, implementação descentralizada e espaços institucionalizados de participação social e negociação intergovernamental (União, estados e municípios)33 Abrúcio FL, Grin EJ, Franzese C, et al. Combate à covid-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev. Adm. Pública. 2020; 54(4):663-77..

O ministro da saúde é nomeado pela Presidência da República, que entre janeiro de 2019 e dezembro de 2022 foi ocupada por Jair Bolsonaro, um político populista, ultraliberal e de extrema direita, eleito em 2018 através de uma aliança entre liberais econômicos e conservadores sociais11 Greer SL, King EJ, Fonseca EM, et al. Coronavirus politics: the comparative politics and policy of covid-19. Michigan: University of Michigan Press; 2021..

Esperava-se que o SUS pudesse ter um bom desempenho na resposta à Covid-19, com sua infraestrutura de vigilância sanitária bem desenvolvida, além da extensa rede de Atenção Primária à Saúde (APS), com mais de 43 mil equipes de Saúde da Família (eSF) e 260 mil Agentes Comunitários de Saúde (ACS), podendo assistir a grande maioria dos casos, que não desenvolvem síndromes graves. Além disso, o Global Health Security Index, um sistema de medição desenvolvido pela Universidade Johns Hopkins, que classifica a preparação dos países para lidar com emergências de saúde pública em seis dimensões e trinta e quatro indicadores, atribuiu ao Brasil o melhor escore da América Latina11 Greer SL, King EJ, Fonseca EM, et al. Coronavirus politics: the comparative politics and policy of covid-19. Michigan: University of Michigan Press; 2021.,44 Nuclear Threat Initiative, Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health. Global health security index: building collective action and accountability. 2019. [acesso em 2021 dez 5]. Disponível em: https://www.ghsindex.org/wp-content/uploads/2019/10/2019-global-health-security-index.pdf.
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No entanto, diferentemente da maioria dos governos subnacionais que logo no início da pandemia fecharam escolas e comércios, cancelaram eventos, entre outras medidas não farmacológicas para reduzir a propagação de casos de Covid-19, Bolsonaro e seus apoiadores – incluindo parlamentares, familiares, ministros, empresários etc. – optaram por não seguir as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e as evidências científicas nesse sentido e desdenharam da pandemia, com a intenção de evitar consequências danosas à economia do País, que já cambaleava11 Greer SL, King EJ, Fonseca EM, et al. Coronavirus politics: the comparative politics and policy of covid-19. Michigan: University of Michigan Press; 2021..

Tal atitude refletiu negativamente na forma como o MS operou na condução da política de enfrentamento à doença no País, da mesma forma que ocorreu nos Estados Unidos e no Reino Unido, quando os respectivos líderes resolveram intervir diretamente na operação das agências nacionais responsáveis pelo controle da Covid-1911 Greer SL, King EJ, Fonseca EM, et al. Coronavirus politics: the comparative politics and policy of covid-19. Michigan: University of Michigan Press; 2021.. Os três países tiveram sérios problemas na contenção da pandemia desde o início, e o Brasil registrou, em dezembro de 2021, mais de 22 milhões de casos e 617 mil mortes confirmadas pelo Painel Coronavírus do MS55 Brasil. Ministério da Saúde. Painel coronavírus. Brasília, DF. [acesso em 2021 dez 1]. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/.
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Desta maneira, considerando a necessidade de superação da atual crise, bem como a iminência de novas de mesma natureza, mostra-se de fundamental relevância a análise do contexto (político, econômico, social e institucional) em que se desenrolou a pandemia, de modo a elucidar os principais entraves à atuação do governo brasileiro que influenciaram na gestão da maior crise sanitária dos últimos tempos. Assim, o objetivo do presente estudo é apresentar contextualização e discutir a atuação da direção do MS, em sua relação com a Presidência da República, no enfrentamento à pandemia de Covid-19 no Brasil.

Material e métodos

Foi realizado um estudo de abordagem qualitativa por meio de pesquisa documental exploratória de publicações disponíveis em portais de notícias nacionais, cujos conteúdos descreviam a forma como o governo brasileiro conduziu a política de enfrentamento à Covid-19 no País.

Os portais foram acessados por meio do buscador Google, relacionando os principais acontecimentos desde os primeiros meses da pandemia (a primeira publicação data de 11/03/2020) até dezembro de 2021, e considerando as seguintes categorias de publicações: narrativas do presidente da República; medidas político-administrativas da Presidência com impacto direto na atuação do MS e na política de saúde; narrativas de ministros da saúde no que se refere à informação e comunicação à população como um todo; medidas político-administrativas adotadas por ministros da saúde; fatos relacionados ao funcionamento interno do MS.

Foram priorizados conteúdos de publicações que constassem em pelo menos dois portais de notícias distintos, de modo a averiguar a veracidade dos fatos e minimizar vieses de interpretação, sendo então consideradas para o trabalho as matérias que tivessem maior detalhamento das informações. Os portais, autores e datas de publicação foram consolidados e apresentados no quadro 1.

Quadro 1
Codificação, portais e autores dos principais achados relacionados ao enfrentamento à pandemia pelo Ministério da Saúde e Presidência da República

Tendo em vista a diversidade e a quantidade de fontes utilizadas, a disponibilização dos links por notícia tornaria o volume de texto no presente trabalho demasiadamente extenso. Desta forma, garante-se a rastreabilidade das matérias por meio de buscadores da internet (por exemplo, Google) utilizando-se na busca o nome do autor, o portal, a data de publicação e a ideia a ser consultada.

Cada publicação foi então codificada com base no portal em que se encontra disponível e na ordem crescente em que aparece no texto (considerando a existência de mais de uma informação oriunda de um mesmo portal), por portal, para que fossem apresentadas nos resultados.

Os fatos foram então apresentados em ordem cronológica desde o início da pandemia e com base na assunção de cada um dos ministros que estiveram à frente da pasta. Como os fatos relacionados à vacinação foram, em alguma medida, comuns a todos os ministros, o assunto foi tratado em uma seção específica.

Considerando o grande volume de conteúdo, a discussão foi feita considerando pontos-chave selecionados pelos autores que refletiram de maneira mais abrangente e transversal a todas as iniciativas pontuais e políticas desenvolvidas pelo MS, e consequentemente na orientação à população, nos serviços de saúde e na gestão do SUS em todas as esferas governamentais.

O presente trabalho se valeu da sociologia compreensiva de Weber66 Weber M. A utilização dos tipos ideais em sociologia. In: Bourdieu P, Chamboredon JC, Passeron JC. A profissão de sociólogo. Preliminares epistemológicas. Petrópolis: Vozes; 1999. p. 222-8., dentro da qual a perspectiva simbolista da pesquisa compreensiva coloca a leitura dos meios de comunicação como exemplo de mecanismo alternativo a uma sociologia racionalizante, para que se consiga lidar com a multiplicidade de fatos cotidianos incompreensíveis sempre que deixamos de lado tais mecanismos. Ainda, o progresso tecnológico coloca a necessidade de ajustes na instrumentação e no estabelecimento de novos ‘limites’ para a pesquisa social77 Maffesoli M. O conhecimento comum: introdução à sociologia compreensiva. Trinta AR, tradutor. Porto Alegre: Sulina; 2007..

Resultados e discussão

Prioridades iniciais e oportunidades perdidas – APS como porta de entrada?

Um dos desfechos mais danosos da negação à pandemia pelo governo federal brasileiro foi a forma como o MS foi orientado pela Presidência da República e demais atores políticos vinculados a ela (desde familiares do presidente a ministros de outras áreas), influenciando na maneira como a pasta foi conduzida pelos diversos agentes nomeados – em grande medida – sem nenhuma experiência em gestão de políticas públicas, muito menos na área da saúde.

A movimentação dos 4 ministros diferentes que conduziram a instituição ao longo de toda a pandemia evidenciou a persistência do palácio presidencial em ‘acertar’ um nome que conciliasse seus interesses com as necessidades técnicas inerentes à instituição. Evidentemente, pela natureza anti-ciência e anti-política social do modus operandi da Presidência, tal conciliação se mostrou inviável (ESP1 – quadro 1).

Bolsonaro iniciou, em 21 de março de 2020, uma escalada de narrativas que visavam a promoção da cloroquina (e da hidroxicloroquina) como medicamento capaz de tratar a Covid-19 a um baixo custo e sem paralisar a economia, sua maior preocupação. Nesta data o presidente anunciou financiamento para que o laboratório do exército brasileiro aumentasse em 100 vezes a capacidade de produção do medicamento. Desde então o discurso de defesa da cloroquina, entre outras drogas sem qualquer comprovação científica de eficácia para o tratamento da Covid-19, foi constante (OGL1 – quadro 1)88 Sodré F. Epidemia de covid-19: questões críticas para a gestão da saúde pública no Brasil. Trab. Educ. Saud. 2020; 18(3):1-12..

Com formação em medicina, experiência parlamentar e em gestão, Henrique Mandetta foi nomeado o primeiro ministro da saúde no governo Bolsonaro, apesar do histórico de posicionamentos na Câmara Federal contrários a políticas estratégicas para o SUS como o Programa Mais Médicos, e a favor de medidas que fragilizaram o sistema, como a Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, conhecida como ‘PEC do Teto dos Gastos Públicos’ (UOL1 – quadro 1) – da mesma forma que Bolsonaro, contemporâneo de Parlamento. Ao passo em que a Covid-19 começava a ser noticiada na China, Mandetta, por meio da recém-criada Secretaria de Atenção Primária à Saúde do MS, lançou e tentava implementar nos municípios brasileiros o Programa Previne Brasil (PPB)99 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.979, de 12 de novembro de 2019. Institui o programa pre-vine Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da atenção primária à saúde no âmbito do sistema único de saúde, por meio da alteração da portaria de consolidação nº 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017. [acesso em 2021 dez 10]. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.979-de-12-de-novembro-de-2019-227652180.
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, que modificava drasticamente o modelo de financiamento da APS no País.

Com o avançar da pandemia no mundo e sua chegada ao Brasil, o PPB se tornou mais uma grande barreira à gestão e qualificação do SUS para o enfrentamento à pandemia (ESP2 – quadro 1). Sob pena da iminente perda de recursos financeiros imposta pelo programa, gestores e trabalhadores municipais foram submetidos a um modelo de financiamento federal ainda mais complexo que, à sombra da fantasiosa alegação de dar maior autonomia aos gestores municipais, encerrou o financiamento direto dos Gerentes de APS, fundamentais na organização do processo de trabalho nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), e das equipes multiprofissionais (Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica – Nasf AB), potentes na qualificação e promoção da integralidade do cuidado1010 De Seta MH, Ocké-Reis CO, Ramos AIP. Programa previne Brasil: o ápice das ameaças à atenção primária à saúde? Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl2):3781-6..

Em detrimento da estruturação dos serviços para o acolhimento de casos leves, fornecimento de insumos em quantidade para a testagem de pacientes e melhorias no sistema de informações de testagem, bem como do provimento de formação e equipamentos de proteção individual para os trabalhadores, possibilitando assistência e continuidade do cuidado (EXA1; JUSP1 – quadro 1), o PPB impôs que a atenção imediata das equipes fosse voltada a um processo de cadastramento de usuários, até então indiscriminado, de modo que não fossem ainda mais reduzidos os escassos recursos repassados pela União para a gestão da APS.

O cenário se complexificou na medida em que o MS se esquivou de orientar um cadastramento coordenado com o cenário epidemiológico vivenciado no momento. Ou seja, considerando o chamamento para uma força-tarefa voltada ao cadastramento populacional, este poderia ter sido uma oportunidade para identificação de situações de vulnerabilidade social e epidemiológica (decorrentes ou não da pandemia), e consequente promoção do acesso. Entretanto, os parâmetros de cadastro estabelecidos no PPB não significaram acesso e atendimento efetivos, tampouco o cadastramento no modelo simplificado1010 De Seta MH, Ocké-Reis CO, Ramos AIP. Programa previne Brasil: o ápice das ameaças à atenção primária à saúde? Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26(supl2):3781-6.. Ademais, o TeleSUS, estratégia de atendimento pré-clínico e de identificação precoce de sintomas1111 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Telesus. 2020. [acesso em 2021 dez 10]. Disponível em: https://aps.saude.gov.br/ape/corona/telesus.
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, não se comunicava com as equipes no território, inviabilizando a vinculação e continuidade do cuidado aos pacientes.

Em que pese o PPB ainda se encontrar em fase de implementação em 2020 e 2021 – inclusive com uma série de mudanças em sua estrutura e prazos em decorrência da pandemia –, a pandemia não influenciou a revisão dos indicadores no componente de desempenho, tendo sido mantidos os mesmos inicialmente estabelecidos, sem qualquer indicador que permita aferir a qualidade e continuidade do cuidado prestado a pessoas com Covid-19 e no processo de tratamento pós-doença na APS1212 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Manual instrutivo do financiamento da atenção primária à saúde. 2021. [acesso em 2022 out 7]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_instrutivo_financiamento_aps.pdf
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Nesse contexto, com 2 meses de pandemia no Brasil e uma agenda ainda incompleta, Mandetta começou a apresentar discordâncias à postura do presidente Bolsonaro no enfrentamento à pandemia, em especial quanto à ideia de imunidade de rebanho, tratamento precoce e medidas sanitárias de contenção da transmissão da Covid-19, o que motivou sua exoneração do cargo de ministro em 16 de abril de 2020 (G11 – quadro 1).

A fragilização e o ‘isolamento’ do Ministério da Saúde

Apesar da definição legal de que a tomada de decisão e gestão do SUS seja feita de maneira compartilhada, os constantes conflitos gerados pela posição de Bolsonaro contrária às medidas de distanciamento social, refletiram no isolamento do MS, provocando uma completa desarticulação e descoordenação da política33 Abrúcio FL, Grin EJ, Franzese C, et al. Combate à covid-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev. Adm. Pública. 2020; 54(4):663-77.. Tal embate entre os entes causou diversas batalhas judiciais que culminaram com o reconhecimento no Supremo Tribunal Federal (STF) da autonomia dos governadores para promoverem o isolamento social (G12 – quadro 1).

O sucessor de Mandetta escolhido pela Presidência da República foi um médico do setor privado, sem nenhuma experiência na gestão pública. A posse de Nelson Teich, em 17 de abril de 2020, evidenciou internamente o isolamento do MS ao ponto de que os representantes do Conselho Nacional de Secretarias Estaduais de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), apesar de convidados, foram barrados sem qualquer justificativa ao tentarem entrar na cerimônia (VEJ1 – quadro 1).

Em maio de 2020 o Conasems e o Conass lançaram, sem a participação do MS, a 1ª edição do ‘Guia Orientador para o Enfrentamento da Pandemia na Rede de Atenção à Saúde’, primeiro documento orientador de circulação nacional a utilizar o termo ‘distanciamento social’. O MS somente passa a ser signatário deste documento em maio de 2021, já na sua 4ª edição. Segundo Abrúcio e colaboradores33 Abrúcio FL, Grin EJ, Franzese C, et al. Combate à covid-19 sob o federalismo bolsonarista: um caso de descoordenação intergovernamental. Rev. Adm. Pública. 2020; 54(4):663-77. o protagonismo de Mandetta e o isolamento de seu sucessor foram absolutos em um sistema baseado na pactuação intergovernamental, evidenciando grande desarticulação interfederativa, a ponto de

governadores e prefeitos afirmarem que recursos não chegavam, algo anormal para o SUS, considerando a longa trajetória de funcionamento das transferências fundo a fundo. (NEX1 – quadro 1).

Após a posse, Teich passou dias estudando dados sobre a Covid-19, sem apresentar qualquer proposta ou plano de ação nacional. Em meio a esse silêncio, o discurso presidencial ganhava força e o governo publicou decreto onde relacionava os serviços considerados essenciais, que deveriam permanecer em funcionamento, sem mesmo consultar o MS. Tal ação provocou grande constrangimento público no então ministro, haja vista o fato do mesmo ter tomado conhecimento da publicação por meio da imprensa e ter afirmado, em sua defesa, que a responsabilidade sobre a decisão pertencia ao Ministério da Economia (COB1 – quadro 1)88 Sodré F. Epidemia de covid-19: questões críticas para a gestão da saúde pública no Brasil. Trab. Educ. Saud. 2020; 18(3):1-12..

Ao passo em que o Brasil se tornava o epicentro mundial da pandemia, o País seguia praticamente sem nenhuma diretriz do MS, cujo dirigente testemunhava condescendente a indiferença e negação da pandemia mediante tentativas da Presidência da República em sabotar as medidas sanitárias promovidas pelos estados, explicitando que o objetivo central do MS era não produzir ação alguma88 Sodré F. Epidemia de covid-19: questões críticas para a gestão da saúde pública no Brasil. Trab. Educ. Saud. 2020; 18(3):1-12..

Segundo Boaventura Santos1313 Santos BS. A cruel pedagogia do vírus. 1. ed. São Paulo: Boitempo; 2020., desde que o neoliberalismo se tornou a face mais dominante do capitalismo, o mundo tem vivido um permanente estado de crise. Sendo permanente, essa crise acaba se tornando a causa que explica todo o resto – por exemplo, a crise financeira permanente que leva a cortes em políticas sociais (saúde, educação etc.) –, e assim impede que se perguntem suas verdadeiras causas. Logo, o objetivo da crise permanente é não ser resolvida, pois assim ela legitima a concentração de riquezas e aumento das desigualdades sociais. A pandemia vem então apenas a agravar uma situação de crise a que a população mundial tem estado sujeita.

Com menos de 30 dias do início de sua ‘gestão’, Teich pediu exoneração alegando falta de autonomia e discordância da recomendação de uso da cloroquina no tratamento precoce da Covid-19. Apesar de não haver nenhuma surpresa na insistência presidencial para a recomendação do medicamento pelo MS, em live realizada no dia anterior ao pedido de exoneração de Teich, Bolsonaro havia dado ultimato ao ministro, afirmando que o protocolo do MS seria revisado para a introdução da cloroquina já nos primeiros sintomas da doença, “em especial para pessoas mais humildes” (BBC1 – quadro 1). Teich então tem sua breve e vazia passagem pelo MS finalizada em 15 de maio de 2020.

Interesses e consequências diretas da militarização do MS

O desgaste causado na imagem do governo federal pelas duas exonerações de ministros em meio à pandemia, somadas ao reconhecimento da autonomia dos estados e municípios para a definição das regras sobre isolamento e distanciamento social, colocaram o presidente em uma condição de não poder errar – no que se refere à promoção da sua agenda político-ideológica, ou seja, no relaxamento das regras de distanciamento social – na escolha do próximo ministro. Por tal motivo, Bolsonaro buscou um nome de sua extrema confiança e dentro de sua ‘limitada’ rede de apoio, que possuía perfil semelhante ao de boa parte dos demais nomeados, seja dentro do próprio MS ou em outras áreas do governo.

Desde os últimos meses da gestão Mandetta, Bolsonaro e aliados passaram a fazer diretamente diversas indicações para a composição do MS, aumentando sua governança dentro da instituição. O próprio Mandetta relatou ter sofrido pressão para a substituição de quadros do alto escalão ministerial, por indicação de um dos filhos do presidente, com respaldo de Bolsonaro. Não por acaso estas substituições ocorreriam na Secretaria de Atenção Primária à Saúde, Secretária de Atenção Especializada em Saúde e Secretaria Executiva, gestoras de cerca de 80% do orçamento do MS (OGL2 – quadro 1).

Como exemplo, um empresário da ‘ala ideológica’ bolsonarista que fazia parte do chamado ‘gabinete paralelo’ – composto por agentes sem vinculação formal com o governo, mas que assessoravam a Presidência – chegou a realizar diversas reuniões internas no MS antes mesmo de qualquer nomeação e a vocalizar que recebera a missão de ‘forrar’ o Brasil de cloroquina. Após dizer que o MS faria recontagem dos mortos por ter havido ‘inflação’ nos números, causando repúdio por diversas instituições, pediu desculpas e desistiu do cargo (G13 – quadro 1).

Acirrou-se então um processo de militarização do MS, definido por Souza1414 Souza DO. A militarização do ministério da saúde no Brasil: passos rumo ao retrocesso em plena pandemia. Rev. Urug. Cienc. Polit. 2020; 29(2):33-54.(35) como “sua ocupação por indivíduos sem expertise em saúde pública, notadamente militares”. O afastamento de servidores de carreira com conhecimento técnico-científico dos espaços de tomada de decisão causou fragilidade técnica no MS e teve a intenção de abrir espaço para agentes despreparados e submissos às idiossincrasias do presidente, capazes de cumprir suas ordens sem o pudor de ignorar a ciência. Até o final do primeiro semestre de 2020, eram 25 cargos do MS ocupados por militares; dos ocupantes, 21 não possuíam experiência na saúde1414 Souza DO. A militarização do ministério da saúde no Brasil: passos rumo ao retrocesso em plena pandemia. Rev. Urug. Cienc. Polit. 2020; 29(2):33-54.,1515 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde; Rede Unida; Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares; Associação Brasileira de Enfermagem. Nota de repúdio à ocupação militar do Ministério da Saúde! [acesso em 2021 set 15]. Disponível em: http://cebes.org.br/2020/05/nota-de-repudio-a-ocupacao-militar-do-ministerio-da-saude/.
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(ASC1 – quadro 1).

A militarização do MS trouxe também consigo a defesa de interesses privados, deixando o Brasil à mercê dos ataques de agentes alheios, mais preocupados em atender os interesses do capital internacional por meio da privatização do SUS do que as necessidades de saúde da população brasileira1414 Souza DO. A militarização do ministério da saúde no Brasil: passos rumo ao retrocesso em plena pandemia. Rev. Urug. Cienc. Polit. 2020; 29(2):33-54.. Dois exemplos muito claros desse movimento foram a edição do Decreto nº 10.530, que privatizava mais de 4.000 UBS a pedido do próprio MS, revogado posteriormente, mas com promessa de reedição (G14 – quadro 1); além da criação da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), que terceiriza a força de trabalho na APS.

Alguns dos maiores interessados nesse processo de privatização, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, vêm avançando com uma proposta de cobertura universal de saúde, que pressupõe uma cesta explícita de serviços baseada no poder de compra do indivíduo, gerando ‘classes’ de cidadãos e serviços pobres para pessoas pobres, ou seja, marginalizando ainda mais grupos populacionais desfavorecidos1616 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar ACA, et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciênc. saúde coletiva. 2018; 23(6):1763-76.. A ideia altera completamente o modelo de proteção social adotado pelo Estado brasileiro, desvirtuando a perspectiva de universalidade e integralidade plenas1616 Giovanella L, Mendoza-Ruiz A, Pilar ACA, et al. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciênc. saúde coletiva. 2018; 23(6):1763-76..

A ocupação militar mais significativa no MS é a da cadeira do próprio ministro, quando, desde a saída de Nelson Teich, o presidente Bolsonaro garantiu a permanência do General Eduardo Pazuello, anunciado dias antes pelo próprio Teich como Secretário Executivo, para que ‘mantivesse a agenda da pasta’. Decorridos quase vinte dias de vacância do cargo, em 2 de junho de 2020, Pazuello foi nomeado ministro interino da saúde.

Pazuello, que também não possui nenhuma trajetória na área da saúde, foi apresentado pelo governo como um especialista em logística, porém posteriormente foi revelado que o general não possuía nenhuma formação nesta área (JDB1 – quadro 1) e o próprio assumiu, alguns meses após sua nomeação, que “nem sabia o que era o SUS”.

Como prova de fidelidade a Bolsonaro, quiçá como grande cartada para a sua alçada à titularidade definitiva no MS, Pazuello lançou, 5 dias após a sua assunção enquanto ministro interino, o protocolo contendo a indicação de utilização de cloroquina, incluindo dosagens em casos leves a graves da Covid-19. Ao longo do dia, o MS foi questionado sobre a politização do assunto e como resposta foi publicada uma Nota Informativa assinada por todos os secretários do MS, em uma tentativa de passar uma imagem de respaldo técnico para a ação. A curiosidade fica por conta do fato de que a nota, contendo 11 páginas de conteúdo técnico extremamente detalhado (apesar das frágeis evidências científicas), foi assinado por todos os secretários no intervalo entre 20:36 e 23:36 horas da noite do mesmo dia de lançamento do protocolo, que ocorreu pela manhã.

Outro ‘trunfo’ de Pazuello foi a tentativa de ocultação dos números de casos e mortes notificadas ao MS e divulgadas pela instituição. Sabidamente o ministro estava alinhado com declarações do presidente que vinha acusando ministros anteriores de forjarem dados e pressionando o MS e até mesmo a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para modificarem os dados e sua forma de apresentação, inconformado com a queda de sua popularidade em consequência da elevação nos números (COB2; VEC1 – quadro 1). O presidente chegou a incitar apoiadores a invadirem hospitais e Unidades de Terapia Intensiva (UTI) para verificarem se eram reais os altíssimos números de internados em todo o País (YNT1 – quadro 1). Isso de fato ocorreu, infelizmente, incluindo casos em que deputados estaduais invadiram hospitais e agrediram trabalhadores que cuidavam dos pacientes internados (YNT1 – quadro 1).

Pazuello passou a apresentar no painel virtual público apenas o número de mortes das últimas 24 horas, ao invés do consolidado da pandemia, tendo sido retirados os coeficientes de incidência de contaminação e óbitos, a taxa de letalidade da Covid-19 e a ferramenta de download dos dados, essencialmente para a realização de análises estatísticas (G15 – quadro 1). Além disso, o boletim diário passou a ser divulgado depois da exibição do telejornal de maior audiência no País, produzido por uma rede de televisão considerada pelo Presidente como uma grande inimiga sua (ASC1 – quadro 1). Apesar do MS receber ordem judicial do STF para a retomada do sistema anterior de computação dos casos, a desmoralização do sistema de informação do MS já se consolidara, culminando com a criação de uma plataforma conjunta, produzida pela imprensa, pesquisadores e gestores estaduais, a partir de dados dos sistemas descentralizados de informações do SUS (ASC1 – quadro 1).

O militarismo representado por Pazuello ainda implementou uma ‘linha dura’ no MS, com uma política de medo e perseguição a servidores, atrapalhando o trabalho técnico. Segundo nota enviada aos servidores pela comissão de ética do MS, “que apenas cumpre ordens”, redes sociais seriam monitoradas, devendo “ser usadas com cuidado” (COB3 – quadro 1). Servidores que atuavam próximos ao ministro foram obrigados a assinar um termo que pudesse enquadrá-los na Lei de Segurança Nacional, sancionada à época da ditadura militar, com caráter intimidatório (COB4 – quadro 1).

Além disso, apesar da existência de lei instituindo obrigatoriedade do uso de máscaras de proteção individual em espaços públicos e privados, não era raro encontrar dirigentes do MS não utilizando o equipamento, inclusive dentro do próprio Ministério (FSP1; POD1 – quadro 1). Enquanto isso, um grande número de servidores testava positivo – inclusive o próprio ministro Pazuello – e, em janeiro de 2021, o MS informou ter recebido 228 atestados médicos de servidores com Covid-19, sendo que neste número não estão inclusos trabalhadores terceirizados e bolsistas, que são maioria no MS. Em março de 2021, três óbitos foram relatados na instituição (COB5; G16; ESP3 – quadro 1).

Enquanto marchava seguindo fielmente a cartilha de Bolsonaro na tentativa de apresentar à sociedade alternativas milagrosas de cura, Pazuello recebeu um grupo de interessados em promover a aplicação retal de ozônio como terapia da Covid-19, fato cujo desfecho foi da vocalização de piadas homofóbicas por parte do próprio presidente (ESP4; MTP1 – quadro 1).

A cortina de fumaça de cloroquina e a tragédia amazonense

Detentor de grande admiração e seguidor político-ideológico do então presidente dos EUA (Donald Trump), Bolsonaro, da mesma forma que o americano, ensaiou uma saída da OMS a acusando de agir motivada por ideologias políticas ao emitir alertas e orientações sobre enfrentamento à pandemia (COB6 – quadro 1). Numa clara evidência da inércia de reciprocidade na relação entre os presidentes, ou até mesmo de menosprezo por parte do governo americano, Trump afirmou que continuaria a remeter parte dos 66 milhões de comprimidos de cloroquina ao Brasil, mesmo após a FDA revogar a autorização para a utilização da droga no País pela sua ineficácia e riscos associados ao uso (FSP2 – quadro 1).

A esta altura, a quantidade de cloroquina distribuída pelo governo brasileiro aos estados chegou a quintuplicar nos meses coincidentes com a recepção de cerca de 3 milhões de comprimidos doados pelo governo americano e por uma empresa brasileira. O MS alegou que essa distribuição acontecia sob demanda dos estados, o que foi negado pelas secretarias estaduais, que se viram na obrigação de devolvê-los ao MS para não arcarem com os custos do fracionamento do medicamento, necessário à distribuição na apresentação recebida, ou da perda de validade e consequente descarte dos mesmos (ESP5; FSP2; G17 – quadro 1).

Compondo o cenário, o isolamento do País se firmava por meio do fechamento das fronteiras americanas a brasileiros no momento em que a OMS passou a considerar o Brasil como epicentro da pandemia na América Latina, evidenciando o não incomum descrédito na capacidade do governo brasileiro em dar resposta à crise política e sanitária, o que maculou a crença do governo brasileiro no que era considerado seu principal modelo de política pública, o modelo americano77 Maffesoli M. O conhecimento comum: introdução à sociologia compreensiva. Trinta AR, tradutor. Porto Alegre: Sulina; 2007..

À medida que o MS sob gestão de Pazuello tentou avançar na promoção e distribuição da cloroquina, o Tribunal de Contas da União divulgou relatório apontando a ausência de diretrizes estratégicas por parte do comitê de enfrentamento à crise do governo federal, criado em março de 2020. O relatório apontou, ainda, que apesar de haver previsão de membros do MS no comitê, não havia garantia de que profissionais da área da saúde estivessem ocupando estas cadeiras, tendo em vista que os cargos do alto escalão do MS não vinham sendo ocupados por profissionais com essa formação (G18 – quadro 1).

Posteriormente, o Conselho Nacional de Saúde, maior órgão do controle social no SUS, apontou a não utilização de 5,6 bilhões de reais que deveriam ser utilizados pelo MS no combate à pandemia, dos quais aproximadamente 75 milhões não poderiam mais ser utilizados devido ao fato de que as medidas provisórias que os originaram não haviam sido convertidas em lei, pela inação do governo junto ao Congresso Nacional (G19 – quadro 1).

Seguindo os fatos que colocavam em xeque a experiência de Pazuello em logística, apesar dos constantes anúncios de testagem em massa no País, o MS distribuía baixíssima quantidade de testes, alcançando apenas 20% da capacidade de testes previstos para julho de 2020, um dos períodos de pico da pandemia. Além disso, foram entregues testes faltando reagentes, chegando a cerca de 10 milhões de testes cujo uso se encontrava impossibilitado pela falta do insumo (ESP6; ESP7 – quadro 1).

Posteriormente, outros 6,8 milhões de testes, com custo de 290 milhões de reais, foram encontrados estocados em um galpão do aeroporto de Guarulhos (SP), prestes a perder a validade, sem ser distribuídos aos municípios (G110 – quadro 1). Outro relatório, da Controladoria Geral da União, identificou que, ao longo de 2020, não foi identificada a entrega de pelo menos 336 respiradores utilizados no tratamento de pacientes de Covid-19 em UTI, com valor equivalente a 18 milhões de reais. No mesmo relatório foi apontada ainda a inutilização de 30 toneladas de medicamentos por má gestão, no valor de cerca de 170 milhões de reais, estocados pelo MS (CNN1 – quadro 1). Enquanto isso, estratégias reconhecidamente eficientes para auxiliar na contenção da pandemia, como a testagem em massa da população, não eram colocadas em prática e pessoas vinham a óbito por falta de leitos de UTI, para os quais os respiradores eram indispensáveis.

Nesse contexto, no início de 2021 ocorre em diversos estados do País um colapso generalizado do sistema de saúde pela alta no número de casos e internações. No estado do Amazonas a situação se tornou ainda mais crítica pelo desabastecimento de oxigênio nas unidades hospitalares, levando um grande número de pessoas a agonizarem asfixiadas pela ausência ou pela redução do fluxo do gás que lhes era fornecido, na tentativa de economizá-lo (G111 – quadro 1). Tal fato levou 19 pessoas à morte em uma só noite (entre 13 e 14/01/21), sem contar a grande quantidade de pessoas acometidas com sequelas permanentes por hipóxia (CDD1 – quadro 1).

O governo federal foi então responsabilizado pela falta do oxigênio (G112 – quadro 1), pois desde o dia 08 de janeiro de 2021, conforme informação da própria Advocacia Geral da União (AGU), tanto a empresa fornecedora quanto o governo do estado já haviam comunicado formalmente ao MS acerca da incapacidade de suprir a crescente demanda pelo gás. O próprio ministro Pazuello esteve na capital, no dia 11 de janeiro, em agenda de lançamento do plano de enfrentamento à Covid-19 no estado, momento em que chegou a referir ciência do problema, entretanto não tomou nenhuma medida para evitar o caos, sendo apenas enviadas pequenas remessas de cilindros do gás em voos da força aérea brasileira (FSP3; COB7; NEX2 – quadro 1).

Na oportunidade da visita, o ministro insistiu na defesa do tratamento precoce com a ineficaz cloroquina como forma de resolução do problema, tendo, inclusive, em 14 de janeiro de 2021, enviado 120 mil comprimidos da droga ao estado. Enquanto isso, Bolsonaro dizia ter feito a sua parte, e dias antes, parlamentares da base e familiares do presidente comemoraram o recuo na promoção do lockdown pelo governo do estado (CNN2; NEX2 – quadro 1).

A atenuação do problema somente se deu por meio da remoção de pacientes para outros estados, mesmo que tardiamente, iniciada em 15 de janeiro, e pelas doações de dinheiro e de oxigênio por parte de trabalhadores do SUS, voluntários de todo o País e até mesmo governos de outros países, como o da Venezuela, com o qual Bolsonaro não mantinha relação amistosa (CNN2; NEX2 – quadro 1). Também no dia 15 chegou à capital do estado o primeiro carregamento de tanques de oxigênio que há dias aguardavam o transporte do estado de São Paulo (SP) (FSP3; COB7; NEX2 – quadro 1).

Tamanha foi a crise e o desgaste público causado pela inaptidão de Pazuello na resolução da catástrofe ocorrida no Amazonas que o presidente precisava dar uma resposta pública à altura, assim, o então ministro foi exonerado em 23 de março de 2021. Entretanto, levando em conta seu histórico de equívocos à frente da Pasta e as constantes defesas públicas de seu nome pelo presidente da República, ficou evidente que Pazuello representou apenas um nome capaz de cumprir todas as ordens do presidente sem qualquer questionamento, ou seja, alguém fiel ao presidente Acima de Tudo, inclusive acima da vida da população brasileira.

Mais do mesmo

Novamente, Bolsonaro se encontrou na posição de buscar alguém que desse sequência ao trabalho de Pazuello, sendo fiel à sua cartilha. Por ser o quarto ministro da saúde a ocupar o cargo em meio à gravidade da pandemia, o presidente optou por um nome da área da saúde. A primeira escolha não foi exitosa, tendo em vista a negativa pública de uma cardiologista e acadêmica indicada pelo presidente da Câmara dos Deputados. A profissional, que recebeu ameaças de morte por ter se negado a ocupar o cargo, após reunião com o presidente, justificou a recusa por motivos técnicos e por ter sua vida pautada na ciência (CNN3; COB8 – quadro 1).

Então, o cardiologista Marcelo Queiroga, indicado por um dos filhos do presidente, assumiu o MS na mesma data em que saiu a exoneração oficial de Pazuello. Queiroga, que anteriormente se posicionava contra a cloroquina e a favor do isolamento social, após a nomeação adotou tom ameno, evitou críticas à posição do governo, elogiou a gestão de Pazuello e afirmou que “a política é do governo Bolsonaro e não do ministro da saúde... o ministro executa”, que “não pode ser política de governo fazer lockdown” e que médicos têm autonomia para prescrever o tratamento precoce (CNN4; CNN5; CNN6 – quadro 1).

Queiroga anunciou, em seguida, a criação de uma secretaria especialmente voltada ao combate à pandemia (COB9 – quadro 1), o que aconteceu cerca de 45 dias após o anúncio e, para seu comando, foi indicada uma infectologista e epidemiologista com formação e experiência na resposta a pandemias. Uma semana após seu anúncio, Bolsonaro ordenou a exoneração da profissional pela irredutibilidade em sua posição contrária à utilização de cloroquina. Na nota de exoneração, o MS afirmou que seguiria à procura de ‘outro nome com perfil profissional semelhante: técnico e baseado em evidências científicas’ (G113; MTP2; MTP3; G114 – quadro 1).

Queiroga também teve que lidar com o problema da falta de anestésicos injetáveis, relaxantes musculares e sedativos utilizados na intubação de pacientes hospitalizados nos estados, incluindo-se em hospitais de gestão federal. Nesse período, o Brasil alcançava o pico histórico de casos e internações por Covid-19. O Centro de Operações de Emergência do MS já havia emitido alertas desde maio de 2020 sobre a iminência deste desabastecimento, contudo, o MS continuava a priorizar a distribuição de cloroquina (ESP8 – quadro 1).

Trabalhadores, gestores e várias entidades profissionais de diversos estados cobravam resolução para a situação de desabastecimento dos medicamentos, inclusive alertando da necessidade de buscá-los no mercado internacional. Mas as medidas adotadas pelo MS e até mesmo pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foram insuficientes e o desabastecimento perdurou em algumas unidades, até que a curva de casos reduzisse significativamente como resultado do início da vacinação (ESP8; G115; G116 – quadro 1).

Também na gestão de Queiroga foram identificadas perdas de insumos e medicamentos por má gestão no MS, com conhecimento do ministro. Apenas considerando testes de Covid-19 estocados no aeroporto de Guarulhos (SP) com validade expirada, foram desperdiçados 77 milhões de reais, isso sem contar os medicamentos, testes rápidos e vacinas de outras doenças (ESP9 – quadro 1).

Com o início da redução no número de mortes por Covid-19 no País em decorrência da vacinação1717 Faria CD, Neto FARS, Machado YJ. Relação entre a vacinação contra a Covid-19 e a mortalidade no Brasil. Braz J Glob. Health. 2021; 2(1).,1818 Fleury S, Fava VMD. Vacina contra Covid-19: arena da disputa federativa brasileira. Saúde debate. 2022; 46(esp1):248-64. iniciada em 17 de janeiro de 2021, Bolsonaro passou a pressionar o MS para que emitisse parecer indicando a desobrigação do uso de máscaras por vacinados e pessoas que já haviam contraído o vírus (COB10 – quadro 1). As exigências de Bolsonaro incomodaram o ministro, que afirmou internamente que a suspensão da obrigatoriedade do uso de máscaras poderia impulsionar a disseminação do vírus pelo País, já que mesmo pessoas vacinadas e/ou que já tiveram a doença poderiam contrair o vírus novamente. Entretanto, ao saber do descontentamento do presidente com sua resistência, Queiroga passou a afirmar que “em breve teremos a desobrigação de usar máscaras” (MTP4; COB11 – quadro 1).

Em setembro de 2021, retratando bem a postura do governo no enfrentamento à pandemia de Covid-19, ao menos 4 membros da comitiva presidencial que viajou à Assembleia Geral da ONU, em Nova York, testaram positivo para o vírus (entre eles, Queiroga) e tiveram que permanecer em quarentena nos EUA antes de retornar ao Brasil. Frequentemente, os membros da comitiva eram vistos em passeios pela cidade sem a utilização de máscaras. Ainda, o presidente e sua comitiva tiveram que fazer refeições na rua por terem sido impedidos de entrar no restaurante do evento por afirmarem não ter sido vacinados – apesar de Bolsonaro ter imposto sigilo de até 100 anos em seu cartão de vacinação (COF1; UOL2; G117 – quadro 1).

Vacinação – do planejamento à CPI

Em princípio, é necessário destacar o processo de desqualificação e perda de protagonismo do Programa Nacional de Imunizações (PNI) ao longo da pandemia. Com quase 50 anos de existência, o PNI é internacionalmente premiado e se destaca historicamente, em termos de formulação, gestão e logística, sendo totalmente capaz de conduzir desde a negociação com fabricantes até a vacinação e respectiva vigilância (ESP2 – quadro 1). Entretanto, desde 2015 tem sido observada queda constante nas coberturas vacinais1818 Fleury S, Fava VMD. Vacina contra Covid-19: arena da disputa federativa brasileira. Saúde debate. 2022; 46(esp1):248-64..

Como a imunização é a principal estratégia reconhecidamente efetiva para reduzir o número de casos, é importante salientar que a equipe técnica do PNI foi excluída do debate sobre a vacinação contra Covid-19, o que justifica as diversas falhas identificadas no plano de vacinação. Além disso, o PNI passou por longo período sem coordenação ou com coordenadores sem qualquer experiência em imunizações, enquanto os coordenadores qualificados que passaram pelo programa se demitiram ou foram demitidos por conta da politização da pauta. Também influenciou no desempenho do programa a ausência de um esforço governamental em termos de comunicação sobre vacinas, além da fragilização da APS, centralmente pelas mudanças na composição de equipes, do modelo de financiamento e o fim do Programa Mais Médicos. Por fim, as falas do presidente desqualificando a vacina, desincentivando a vacinação e afirmando não a ter tomado (MTP5; VEJ2; ESP2; ESP10; FSP4 – quadro 1).

Antes mesmo de o Brasil ter disponível a primeira dose de vacina, o MS enfrentava dificuldades em adquirir seringas e agulhas para a aplicação dos imunizantes. Ao final de dezembro de 2020, apenas 2,4% do total de 331 milhões desses insumos haviam sido adquiridos pelo órgão devido a erros no processo de compras (ODI1; UOL3 – quadro 1).

Também no início de dezembro de 2020, o MS ainda não havia apresentado qualquer plano que orientasse o processo de aquisição ou aplicação de vacinas no País. Somente após cobranças na Câmara dos Deputados e determinação pelo STF, o MS finalmente o fez (G118 – quadro 1). Entretanto, o plano foi considerado como parcial e equivocado por parte de entidades e profissionais da área, não havendo clareza, por exemplo, dos grupos prioritários e de quando a vacinação destes começaria (G119 – quadro 1).

Além disso, os pesquisadores convidados para participar das reuniões de discussão do plano tiveram suas participações limitadas, com microfones cortados e perguntas não respondidas. Em que pese este fato, o plano foi enviado ao STF contendo os nomes dos pesquisadores que sequer haviam tido acesso prévio ao documento, tomando conhecimento de sua existência apenas pela imprensa (G120; FIM1 – quadro 1).

A aquisição de vacinas pelo Brasil se deu de maneira letárgica e envolta em processos de corrupção e incompetência. Desde agosto de 2020, o MS havia recebido proposta de venda de 70 milhões de doses de vacinas com início das entregas previsto para o mesmo ano. Entretanto o MS sequer respondeu a qualquer uma das 3 tentativas de contato do fabricante para a negociação, retardando o início da vacinação no País, o que poderia ter minimizado a maior onda de casos e mortes iniciada no mês de março de 2021, quando o contrato com a mesma fabricante foi finalmente assinado (BBC2 – quadro 1).

O descompromisso foi tamanho que até mesmo um reverendo e sua instituição religiosa, alheios ao MS, foram autorizados a negociar um total de 400 milhões de doses de vacinas com uma empresa americana. O valor da dose nessa negociação era de 17,50 dólares, valor três vezes superior ao pago pelo próprio MS em negociação direta pela mesma vacina, com um laboratório indiano (UOL4; G121 – quadro 1).

Ainda na ocasião dessa negociação feita pelo reverendo, posteriormente foi revelado que o diretor de logística do MS, considerado muito próximo à Presidência da República e apadrinhado político pelo líder do governo na Câmara dos Deputados, exigiu o pagamento de propina no valor de 1 dólar por cada dose negociada. Na cotação da época em que o pedido foi feito isso equivaleria a aproximadamente 2,2 bilhões de reais. Encontram-se ainda em andamento outras investigações sobre corrupção na aquisição de vacinas envolvendo agentes do MS (UOL4; FSP5; G122 – quadro 1).

Bolsonaro também desautorizou Pazuello de proceder com a intenção de compra de uma vacina produzida por um laboratório chinês, chegando também a causar conflitos diplomáticos e comerciais com comentários xenofóbicos pela origem da vacina (AGB1 – quadro 1). O presidente afirmou que não compraria a vacina chinesa mesmo ela sendo aprovada pela Anvisa e comemorou em uma rede social a suspensão dos testes pela instituição, em decorrência da morte de um dos voluntários, que posteriormente soube-se tratar de um suicídio (OGL3; EXT1 – quadro 1).

Ainda houve uma tentativa do MS de aprovar o plano de imunizações constando apenas previsão de vacinação com vacina de outro laboratório, sabidamente insuficiente para cobrir toda a população brasileira (FIM1 – quadro 1). Bolsonaro, que sempre sustentou ser contra as medidas de isolamento social por defender que a economia do País não poderia parar, também retardou a única medida sanitária que poderia promover a retomada da atividade econômica em 2021 (VEC2 – quadro 1).

O embate que o governo travou contra a vacina chinesa agravou-se também pelo fato de que a parceria efetivada no Brasil com o laboratório fabricante havia sido feita por meio de um Instituto vinculado ao governo do estado de São Paulo, cujo governador era um dos políticos que rompeu com o presidente após o início da pandemia e que se colocou como pré-candidato ao cargo de Bolsonaro nas eleições de 2022. No fim das contas, apesar de Pazuello ter afirmado que todos os estados teriam início da vacinação simultaneamente e ter enviado ofício ao Instituto paulista pedindo o confisco de doses para isso (REF1; DPE1 – quadro 1), a disputa pelo marketing eleitoreiro foi vencida pelo governador, que aplicou a primeira dose de vacina em um cidadão brasileiro em seu estado, em uma cerimônia sem a participação do governo federal.

Tendo em vista a relutância e improficiência do governo federal para adquirir vacinas e promover a conscientização da população acerca da necessidade de vacinação, governos estaduais e municipais começaram a fazer movimentos de compras individuais e articuladas (como feito pelo Consórcio Nordeste), bem como suas próprias campanhas publicitárias incentivando a vacinação, além da instituição da vacinação como obrigatória para o acesso a uma série de órgãos e serviços da administração pública e da iniciativa privada1818 Fleury S, Fava VMD. Vacina contra Covid-19: arena da disputa federativa brasileira. Saúde debate. 2022; 46(esp1):248-64..

Para isso, Bolsonaro sofreu duas derrotas no STF: o reconhecimento da constitucionalidade de obrigatoriedade da vacina, podendo ser determinada pela União, estados ou municípios; o reconhecimento de que estados e municípios poderiam fazer a aquisição e distribuição de imunizantes em caso de falhas no PNI ou insuficiência de doses (CJU1; AGB2 – quadro 1).

Após estas subsequentes derrotas jurídicas e políticas do governo, vendo diversos países avançarem no processo de vacinação, inclusive alguns outrora negacionistas como os EUA, as diligências para a aquisição de vacinas começaram a fluir. Pazuello se esforçava então para passar uma imagem de que haviam adiantadas negociações e compras em grande quantidade, porém fora desmentido diversas vezes pelos fabricantes e pelas circunstâncias (REF2; G123; ESP11 – quadro 1). O ministro perguntou então em um discurso “pra que essa ansiedade, essa angústia?” para o início da vacinação. A essa altura o vírus já havia matado mais de 100 mil brasileiros (VEJ3 – quadro 1).

Quando, após todos esses percalços, o MS passou a receber de forma gradativa vacinas de diferentes laboratórios (como é comum na logística de vacinação no MS), foram cometidos subsequentes equívocos quanto a orientação para uso e distribuição dos imunizantes, o que acarretou em retardo ainda maior do calendário vacinal e até mesmo a aplicação de milhares de doses de vacinas vencidas (G124; FSP6; G125; FSP7 – quadro 1).

Com o avançar da vacinação, a pedido de Bolsonaro, Queiroga reviu a orientação dada pelo MS nos dias anteriores e desorientou a vacinação de adolescentes sem comorbidades, o que causou ainda maior tensão entre gestores e principalmente entre pais e responsáveis por esse público que já havia se vacinado ou que pretendia fazê-lo. A atitude de Queiroga causou manifestações do Conass, Conasems e diversos representantes de entidades que fazem parte da Câmara Técnica Assessora de Imunização Covid-19 do MS, que ameaçaram deixar o órgão assessor caso o ministro não se retratasse. A grande maioria dos estados e municípios resolveu ignorar a nova orientação dada por Queiroga e seguiram vacinando os adolescentes normalmente (OGL4; COB12; PBH1 – quadro 1).

Em dezembro de 2021, sobretudo por conta das incertezas relacionadas à variante ômicron do vírus, a Anvisa passou a recomendar ao governo brasileiro a exigência do chamado ‘passaporte vacinal’ para viajantes que pretendam entrar no Brasil. Bolsonaro novamente se posicionou contrariamente à medida, então Queiroga propôs, para aliviar as cobranças, apenas a realização de quarentena de 5 dias para quem chegasse ao País. Segundo o ministro, “às vezes é melhor perder a vida do que perder a liberdade” (G126; G127 – quadro 1).

Diante dos ‘desacertos’ do governo federal, a partir de janeiro de 2021, senadores entraram com pedido de abertura de Comissão Parlamentar de Inquéritos (CPI) no intuito de apurar as ações e omissões do governo na gestão do enfrentamento à pandemia. Entretanto, o presidente do Senado, que foi apoiado por Bolsonaro na eleição da presidência da Casa, retinha e questionava o mérito do pedido. Somente após determinação do STF o pedido foi acatado pelo Senado, em abril de 2021 (G128 – quadro 1).

Após quase seis meses de trabalho, cerca de 50 depoimentos, 251 quebras de sigilo e mais de 60 reuniões, o relatório final da CPI foi aprovado pedindo o indiciamento de 77 pessoas (incluindo ex-ministros, ministros, políticos, servidores públicos, empresários e membros do gabinete paralelo), além do presidente da República e duas empresas (AGS1 – quadro 1).

Em linhas gerais, os 15 macro assuntos principais investigados pela CPI foram: gabinete paralelo; imunidade de rebanho; tratamento precoce; oposição às medidas não farmaco-lógicas; falsa alegação de supernotificação de casos; recusa e atraso na aquisição das vacinas; crise do estado do Amazonas; o caso da vacina indiana; hospitais federais do Rio de Janeiro; caso de corrupção em contratos do MS, desde 2018, com operadora de logística; análise orçamentária da pandemia no Brasil; negligência do governo na atenção aos indígenas; impactos da pandemia sobre mulheres, população negra e quilombolas; desinformação na pandemia (fake news); empresa de planos privados de saúde acusada de realizar testes com a cloroquina em pacientes com o apoio do governo e de esconder óbitos relacionados aos testes, entre outros (POL1 – quadro 1).

Três dos principais membros do governo com indicativo de investigação pelo relatório final da CPI foram: Bolsonaro – acusado de homicídio qualificado, crime contra a humanidade, charlatanismo, incitação ao crime, prevaricação, infração de medida sanitária preventiva, falsificação de documento particular e emprego irregular de verbas públicas, genocídio de indígenas, violação de direito social e incompatibilidade com dignidade e honra e decoro do cargo; Eduardo Pazuello – homicídio qualificado, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação, comunicação falsa de crime, genocídio de indígenas, crime contra a humanidade; e Marcelo Queiroga – epidemia culposa com resultado em morte e prevaricação (FSP8 – quadro 1).

Considerações finais

O presente trabalho buscou apresentar uma contextualização acerca da atuação da direção do MS, em sua relação com a Presidência da República, no enfrentamento à pandemia de Covid-19. Em momentos de tamanha complexidade multifatorial vivenciada pelas sociedades tal como a pandemia, a sociologia compreensiva concebe a essencialidade de se preservar as singularidades dos atos e das situações para uma melhor apreensão da experiência social, e dos sentidos que emergem das ações humanas.

Com base no material analisado, depreende-se que um conjunto de medidas negacionistas e equivocadas sob diversos aspectos – rotatividade de ministros da saúde; fragilização do financiamento e da atuação regular da APS; colapso da rede assistencial; ruptura do pacto federativo do SUS e conflituosidade nas relações com estados e municípios; inércia, corrupção e morosidade no processo de compra e distribuição de vacinas; descaso com a ciência; debilitação da estratégia de testagem e distribuição de insumos; militarização da saúde; opacidade e desacreditação das informações em saúde; descoordenação da política de enfrentamento à pandemia; dentre outros – fortemente orquestradas pelo presidente da República, culminaram em prejuízos ao bom desempenho do MS em sua função de coordenar nacionalmente a política de enfrentamento à Covid-19 e, consequentemente, ao bom desempenho geral do País neste sentido.

Tendo sido superado ao custo de milhares de vidas o processo de negligência por parte do governo brasileiro na aquisição dos imunizantes, o empenho de trabalhadores e gestores da APS na operacionalização da vacinação permitiu que o número de casos e óbitos diários, que já chegou próximo a 100 mil e 4.200, respectivamente, nos primeiros 5 dias de outubro de 2022 reduzissem para cerca 7 mil casos e 100 mortes diárias55 Brasil. Ministério da Saúde. Painel coronavírus. Brasília, DF. [acesso em 2021 dez 1]. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/.
https://covid.saude.gov.br/....
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Ao perceber, por meio deste estudo, que o desgoverno brasileiro contribuiu fortemente com a atribuição ao País de uma das maiores taxas de mortalidade por Covid-19 no mundo, e que essas mortes refletem o processo histórico de acirramento das desigualdades no País, incidindo fortemente sobre populações socialmente marginalizadas, é possível concluir que ao longo da pandemia esteve em curso uma necropolítica no Brasil.

Espera-se que o presente trabalho contribua com a construção de aprendizados fundamentais para a reedificação das instituições gestoras e para a história do SUS, possibilitando não apenas a superação desta pandemia, mas também das que ainda estão por vir. Gestores, políticas e políticos do atual governo e dos próximos demandarão de ciência e de experiência para que sua população, sobretudo os segregados pela raça, gênero ou classe social não seja dizimada por asfixia social.

  • Suporte financeiro: não houve

  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2021
  • Aceito
    30 Jan 2023
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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