BRICS na produção e distribuição de vacinas de covid-19 aos países do sul11O artigo é uma versão atualizada e revista do capítulo original "BRICS na produção de vacinas Covid-19: cooperação em saúde ou oportunidades econômicas?" de Anízia Aguiar Neta e Helena Ribeiro, publicado em Di GIULIO, G.; VENTURA, D.F.L.; RIBEIRO, H. (Orgs.) As múltiplas dimensões da crise de Covid-19: perspectivas críticas da Saúde Global e Sustentabilidade, São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP, 2023. As autoras agradecem às organizadoras do livro pela autorização para publicação.

Helena Ribeiro Anizia Aguiar Sobre os autores

Resumo

Este artigo aborda a participação do BRICS na produção e distribuição de vacinas contra covid-19 durante 2020 e 2021, e o compromisso com a priorização do acesso aos países do Sul Global. Faz, ainda, uma reflexão sobre como o grupo lidou com os desafios do compartilhamento de tecnologias e do empoderamento econômico dos países periféricos, sinalizando a disputa de espaço entre a diplomacia da vacina e os interesses econômicos das nações. A análise se deu com base em relatórios institucionais, dados documentais jornalísticos e científicos, e no diálogo destes com os conhecimentos da Diplomacia da Saúde e da Cooperação Internacional em Saúde, demonstrando a complexidade e os desafios do mundo após o surgimento do vírus SARS-CoV-2 e suas variantes.

Palavras-chave:
Vacina; Covid-19; BRICS; Diplomacia da Saúde; Emergência de Saúde

Introdução

As estratégias que os países adotam em uma emergência de saúde de importância internacional são decisivas para o controle da doença. Cueto (2015CUETO, M. Saúde Global: uma breve história. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015. (Coleção Temas em Saúde).) mostra a importância de a Organização Mundial da Saúde (OMS) assumir a responsabilidade de determinar tais situações. O autor esclarece que a propagação dos microrganismos transmissores de doenças pode demandar ações de educação da população para o seu controle - como aconteceu no México durante a epidemia de H1N1, em 2009 -e alerta para possibilidade de alguns governos, ao buscarem proteger interesses particulares, não darem a devida atenção ou adotarem as medidas necessárias em uma emergência de saúde:

Atualmente uma das principais normas para o controle de doenças emergentes e reemergentes é o Regulamento Sanitário Internacional da OMS (RSI), aprovado pela Assembleia Mundial da Saúde em 2005. O Regulamento incorporou metas novas e ambiciosas, como a de transferir à OMS poder de determinação sobre quando um evento era uma emergência internacional de saúde, afastando essa função dos governos, que muitas vezes preferiam esconder epidemias por temor das consequências econômicas e a queda do fluxo turístico. (Cueto, 2015CUETO, M. Saúde Global: uma breve história. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015. (Coleção Temas em Saúde)., p. 74)

A estrutura política e administrativa de cada país do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) influenciou diretamente em suas respostas aos desafios da pandemia de covid-19, e os desdobramentos dessas respostas, positivos ou negativos, continuarão a exercer influência sobre o futuro sanitário das nações. É importante que os danos sociais, econômicos e sanitários sejam interpretados a partir da visão de “um multilateralismo ativo e generoso, […] por meio de uma ativa diplomacia da saúde” (Buss; Fonseca, 2020BUSS, P. M.; FONSECA, L E (Org.). Num mundo em mudança, desafios gigantescos. Apresentação. In: BUSS, P. M.; FONSECA, L. E. (Org.). Diplomacia da saúde e Covid-19: reflexões a meio caminho. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020. p. 13-26. Disponível em: <Disponível em: https://books.scielo.org/id/hdyfg/pdf/buss-9786557080290.pdf >. Acesso em: 2 ago. 2021.
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, p. 15).

O poder econômico e as expertises particulares do BRICS foram evidenciados no contexto pandêmico porque, além da oferta de vacinas contra a covid-19 para o mundo (doze das vinte vacinas produzidas e aprovadas até setembro de 2020 foram concebidas e desenvolvidas no BRICS), estes países produzem Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), tecnologias para diagnosticar, prevenir e tratar a doença, e vacinas para diversas outras patologias do mundo contemporâneo (Buss; Hoirisch; Alcazar, 2021BUSS, P.; HOIRISCH, C.; ALCAZAR, S. Vacinas, Pantagruel e a diplomacia da saúde de Brics. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, 18 fev. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://diplomatique.org.br/vacinas-pantagruel-e-a-diplomacia-da-saude-de-brics/ >. Acesso em: 9 set. 2023.
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).

O BRICS, enquanto bloco econômico, se destacou na corrida para conhecer, tratar e prevenir contra o SARS-CoV-2. Entretanto, o governo brasileiro demorou para agir a tempo de evitar milhares de mortes já no primeiro ano da pandemia, questionou a segurança das vacinas e contribuiu para propagar o vírus (Brum, 2021BRUM, E. Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”. El País, [s.l.], 21 jan. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html >. Acesso em: 9 set. 2023.
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). Enquanto isso a Rússia investia na produção da Sputnik V, e China e Índia inovavam no desenvolvimento de equipamentos, vacinas e medicamentos para fazerem frente à pandemia de Covid-19.

Durante o primeiro semestre de 2020 especialistas em todo o mundo trabalharam arduamente para estabelecer o padrão de transmissão do vírus, a fim de orientar a população sobre maneiras de proteção mútua.

Esta realidade gerou a formulação de frequentes novas orientações a respeito do uso de equipamentos e práticas de proteção individual. A criação de novos protocolos e maneiras de treinar as equipes, bem como a aquisição ou produção de equipamentos inovadores para tratar dos infectados não se mostraram suficientes, o que levou o mundo a repensar políticas, gestão e procedimentos para lidar com uma emergência de saúde global (Dominguez, 2020DOMINGUEZ, B. Alerta Global: Novo coronavírus é a sexta emergência em saúde pública de importância internacional declarada pela OMS. Revista RADIS, [s. l.], n. 210, p. 14-21, 2020.).

O Regulamento Sanitário Internacional (RSI), de 2005, passará por reformulações, de maneira a agregar conhecimentos para subsidiar as nações a lidar com possíveis novas situações dessa natureza. A reformulação do RSI rendeu rico debate durante a 74ª Assembleia Mundial da Saúde, que ocorreu entre 24 de maio e 1º de junho de 2021. Os encaminhamentos da Assembleia resultaram na criação do Grupo de Trabalho dos Estados-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o “Fortalecimento da Preparação e Resposta a Emergências de Saúde da OMS”, cujo objetivo é analisar a elaboração de um possível novo instrumento internacional e pensar as reformulações do RSI (OPAS; OMS, 2021)OPAS - Organização Pan-Americana da Saúde; OMS - Organização Mundial da Saúde. CD59/INF/17 - A. 74ª Assembleia Mundial Da Saúde (AMS), 24 maio/1 jun. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.paho.org/pt/documentos/cd59inf17-74a-assembleia-mundial-da-saude >. Acesso em: 9 set. 2023.
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.

Fukuda-Parr, Buss e Ely Yamin (2021FUKUDA-PARR, S; BUSS, P; ELY YAMIN, A. Pandemic treaty needs to start with rethinking the paradigm of global health security. BMJ Global Health, London, v. 6, 2 p., 2021. DOI: 10.1136/bmjgh-2021-006392
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) entendem que qualquer instrumento proposto a tratar da reformulação do RSI (convenção, acordo ou mesmo um instrumento internacional da OMS) deve considerar este não apenas um momento para pequenas mudanças e soluções temporárias, mas uma oportunidade para propor ações assertivas e sua efetivação.

Buss (2021BUSS, P. Tratado sobre Pandemias, Saúde Global ou Reforma do RSI: reflexões preliminares. In: BUSS, P. Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021.) defende a priorização de sistemas e instrumentos de segurança sanitária sensíveis à proteção da saúde pública e enfatiza que o enfoque central dos regimes globais de segurança sanitária, notadamente o RSI, é a criação de um sistema de alto desempenho para vigilância de surtos de novos patógenos que possa proteger a saúde pública e os interesses econômicos (especialmente o comércio internacional) do Norte Global das doenças que, se presume, acometeriam descontroladamente o Sul Global (Buss, 2021, p. 253)BUSS, P. Tratado sobre Pandemias, Saúde Global ou Reforma do RSI: reflexões preliminares. In: BUSS, P. Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021..

O grupo econômico BRICS vem defendendo ao longo dos anos uma diplomacia comprometida com temas sensíveis e relevantes para os países em desenvolvimento, e que contemple os atuais desafios para garantir a sustentabilidade do planeta (Buss; Tobar, 2017BUSS, P. M.; TOBAR, S. (Org.). Diplomacia em saúde e saúde global: perspectivas latino-americanas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2017.). Isso facilitou o surgimento de uma grande expectativa mundial em relação às contribuições do Grupo no enfrentamento da covid-19, baseada no seu peso político e econômico em nível global, já que em 2020 o PIB do BRICS, impulsionado pela China e pela Índia, totalizou aproximadamente 25% do PIB mundial (US$ 21 trilhões), e sua participação no comércio internacional girou em torno de 20% (US$ 6,7 trilhões).

As demandas políticas, econômicas, sociais e sanitárias geradas ou exacerbadas pela covid-19 exigem das nações uma cooperação internacional forte, com ações intersetoriais e multinível (Rítsar, 2022)RÍTSAR, P. Rússia ultrapassa marca de 3 milhões de casos do novo coronavírus. Russia Beyond BR, 28 dez. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://br.rbth.com/estilo-de-vida/84830-russia-ultrapassa-marca-3-milhoes-coronavirus >. Acesso em: 22. jun. 2022.
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. O BRICS obteve destaque por seu reiterado compromisso em colaborar com o fortalecimento dos sistemas de saúde através da oferta de tecnologias estratégicas para capacitar os países em desenvolvimento.

O compromisso com a vacinação do mundo contra a covid-19, firmado pelo BRICS nas reuniões de cúpula de 2020 e 2021 (Brasil, 2020BRASIL. Nota à Imprensa nº 143: XII Cúpula do BRICS. Brasília, DF: Ministério das Relações Exteriores,2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/2020/xii-cupula-do-brics >. Acesso em: 9 set. 2023.
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, 2021bBRASIL. Nota à Imprensa nº 110: XIII Cúpula do BRICS - Declaração de Nova Delhi. Brasília, DF: Ministério das Relações Exteriores, 2021b. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/xiii-cupula-brics-declaracao-de-nova-delhi >. Acesso em: 9 set. 2023.
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), contribuiu para as expectativas por um salto de qualidade na execução de ações diplomáticas assertivas, cujo principal ingrediente seria a solidariedade nas relações intra e extrabloco. Essa solidariedade deveria ser demonstrada pela valorização e adoção de mecanismos decisivos para a imunização segura e definitiva de todos, especialmente dos países do sul global. Entretanto, Buss esclarece que

uma das principais lacunas expostas durante essa pandemia foi a falta de solidariedade e compartilhamento internacional: o compartilhamento de dados de patógenos, informações epidemiológicas, recursos e tecnologias (particularmente as vacinas tão imprescindíveis). (Buss, 2021BUSS, P. Tratado sobre Pandemias, Saúde Global ou Reforma do RSI: reflexões preliminares. In: BUSS, P. Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021., p. 250)

A Reunião dos Chanceleres do BRICS, em junho de 2021, reiterou a intenção solidária dos países em relação à necessidade de isenção temporária da propriedade intelectual da vacina contra a covid-19, além de desencorajar a implementação de medidas que pudessem dificultar o fluxo de vacinas, produtos de saúde e insumos essenciais. A expectativa era de que este fato contribuísse para desembaraçar a vacinação extensiva a partir do compartilhamento de doses, transferência de tecnologias, desenvolvimento e aperfeiçoamento das capacidades locais de produção, entre outros, tendo como aspecto fundamental a transparência de preços (Brasil, 2021aBRASIL. Nota à Imprensa nº 65: Declaração conjunta do BRICS sobre o Fortalecimento e a Reforma do Sistema Multilateral. Brasília, DF: Ministério das Relações Exteriores, 2021a. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-conjunta-do-brics-sobre-o-fortalecimento-e-a-reforma-do-sistema-multilateral >. Acesso em: 9 set. 2023.
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, 2021bBRASIL. Nota à Imprensa nº 110: XIII Cúpula do BRICS - Declaração de Nova Delhi. Brasília, DF: Ministério das Relações Exteriores, 2021b. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/xiii-cupula-brics-declaracao-de-nova-delhi >. Acesso em: 9 set. 2023.
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).

Embora o BRICS tenha assumido esses compromissos para o enfrentamento da covid-19, seus países foram gravemente afetados pela pandemia, registrando 1 milhão de mortes entre março de 2020, o início da emergência sanitária, e julho de 2021. Nesse contexto de perdas humanas e econômicas, China, Rússia e Índia investiam fortemente em tecnologias para a produção de vacinas, destacando-se entre os maiores produtores mundiais. Parte dessa produção foi destinada aos países pobres, cuja taxa de vacinação alcançou, entre maio e setembro de 2021, apenas 3% da população devido à acumulação de doses pelos países ricos, o que resultou na manutenção do descontrole da doença nos países do Sul Global22Disponível em: <https://data.undp.org/vaccine-equity/>. Acesso em: 26 abr. 2023..

A covid-19 ratificou o potencial do BRICS para apresentar respostas eficazes em emergências de saúde global. Contudo também explicitou as fragilidades dos sistemas de saúde em todo o mundo, e a necessidade de uma urgente reformulação da governança da saúde global, que passe a se mostrar comprometida com a saúde pública e capaz de atuar para além de arranjos precipitados que mais favorecem a privatização da saúde e promovem uma falsa ideia de segurança sanitária (Gostin; Moon; Benjamin, 2020GOSTIN, L.; MOON, S.; BENJAMIN, M. M. Reimagining Global Health Governance in the Age of COVID-19. 2020. AMJ Public Health, Washington, DC, v. 110, n. 11. DOI: 10.2105%2FAJPH.2020.305933
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).

O objetivo do artigo é, portanto, fazer uma análise sobre a atuação do BRICS nos dois primeiros anos da pandemia da covid-19 (2020 e 2021), apresentando dados e informações sobre as vacinas produzidas, autorizadas, comercializadas e doadas no e pelo Grupo, e o progresso da vacinação por país durante o ano de 2021, tendo como fio condutor os referenciais da saúde global e da diplomacia da saúde global.

Os procedimentos metodológicos adotados foram busca, coleta e análise de dados e documentos referentes ao tema em diferentes sítios eletrônicos dos países. Utilizou-se relatórios de instituições internacionais de saúde, órgãos de imprensa e organizações da sociedade civil, além de artigos científicos e jornalísticos. O alcance do objetivo foi viabilizado pelo acesso a estudos que buscaram a combinação entre os termos “saúde global” e “diplomacia da saúde global” e o acrônimo BRICS, e pela análise de artigos científicos, jornalísticos e relatórios institucionais que relacionaram estes conhecimentos à covid-19.

A Participação do BRICS na Produção e Distribuição de Vacinas Covid-19

A rápida contaminação das pessoas em todo o mundo, a despeito dos lockdowns, fechamento de fronteiras e medidas afins, levou à transposição de barreiras diplomáticas e à superação de limites econômicos, revelando a capacidade das nações realizarem, em um espaço de tempo jamais imaginado, a única solução capaz de conter a doença: a produção de vacinas e sua rápida distribuição.

O processo produtivo de vacinas exigiu a “adoção de estratégias de paralelismo de fases de P&D” que por meio de um fast track tornou possível a realização desse audacioso projeto em tempo recorde (Homma et. al., 2021HOMMA, A. et al. A Crise de Vacinas e de Insumos e a Produção Local para Enfrentar a Pandemia. In: BUSS, P. M.; BURGER, P. (Org.). Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 165-184.). De acordo com estes autores, o desenvolvimento da vacina contra covid-19 contou com enormes investimentos “de alto risco […] realizados pelos países desenvolvidos, como os projetos apoiados pela Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI), criado em 2017, e a Biomedical Advanced Research and Development Authority (BARDA), criada em 2006” (Homma et. al., 2021, p. 67)HOMMA, A. et al. A Crise de Vacinas e de Insumos e a Produção Local para Enfrentar a Pandemia. In: BUSS, P. M.; BURGER, P. (Org.). Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 165-184..

Complexos e custosos estudos clínicos que envolveram a concepção e produção da vacina possibilitaram reduzir para dez meses um processo que normalmente aconteceria em dez anos, no mínimo, considerando o momento em que a China informou a OMS sobre a circulação do novo coronavírus e a sequência do genoma viral até a data de disponibilização da primeira vacina (Homa et. al., 2021).

A celeridade no processo produtivo contou com a participação fundamental dos países do BRICS. No fim do primeiro semestre de 2020, o governo russo anunciou a produção em grande escala da primeira vacina covid-19, a Sputnik V. Naquele momento a Rússia registrava meio milhão de pessoas infectadas, ocupando o quarto lugar no ranking mundial do número de casos, sendo superada apenas por Estados Unidos, Brasil e Índia (Johns Hopkins University, 2020JOHNS HOPKINS UNIVERSITY. Mortality Analysis. Baltimore, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://coronavirus.jhu.edu/data/mortality >. Acesso em: 09 set. 2023.
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; Ungaretti, 2020UNGARETTI, C. Os BRICS e a COVID-19: Combate à pandemia e cooperação internacional. América Latina Net, 27 nov. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.americalatina.net.br/os-brics-e-a-covid-19-combate-a-pandemia-e-cooperacao-internacional-por-carlos-ungaretti/ >. Acesso em: 09 set. 2023.
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)

Em agosto de 2020 o país, que já atingia a marca de quase um milhão de infectados, apresentou ao mundo o primeiro lote da vacina russa, de vetor recombinante, do laboratório Gamaleya Scientific Research Institute of Epidemiology and Microbiology. Esse anúncio se deu sob acusações de que sua produção havia cometido a violação de vários protocolos científicos, fato que não comprometeu as encomendas feitas por vinte outros países interessados em adquirir a vacina, avaliada pelo próprio governo russo, na ocasião, como bastante eficaz (Hoirisch, 2021HOIRISCH, C. Quo Vadis, BRICS? Colaboração biofarmacêutica, diplomacia vacinal dos BRICs e (des)moticações para o cumprimento dos compromissos acordados sobre vacinas Covid-19. In: BUSS, P. M.; BURGER, P. (Org.). Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 259-271.).

Logo após disponibilização do primeiro lote da Sputnik V, pelo menos trinta países fizeram encomendas à Rússia, que obteve avaliação de bons resultados, ganhando destaque na Revista The Lancet em setembro de 2020, cujo artigo mostrou que os participantes dos testes com a Sputnik V produziram anticorpos e não apresentaram efeitos colaterais (Jones; Roy, 2021JONES, I.; ROY, P. Sputnik V Covid-19 vaccine candidate appears safe and effective. The Lancet, London, v. 397, n. 10.275, p. 642-643, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)00191-4/fulltext >. Acesso em: 09 set. 2023.
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).

O presidente Vladimir Putin chegou a propor o compartilhamento da Sputnik V no BRICS, e fechou um acordo com empresas chinesas para a fabricação das vacinas (Statista, 2021)STATISTA. India: unemployment rate from 1999 to 2021. New York, 2023. Disponível em: <Disponível em: https://www.statista.com/statistics/271330/unemployment-rate-in-india/ >. Acesso em: 9 maio 2022.
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. Este acordo despertou o interesse da Índia, que prontamente encomendou 250 milhões de doses à Rússia, o que pode ser interpretado, do ponto de vista da diplomacia da saúde, como uma tímida demonstração de abertura intra BRICS.

A empreitada russa parecia bastante avançada em relação ao cumprimento da meta de fornecer, junto com países parceiros, vacinas para 800 milhões de pessoas até o fim de 2021. Motivações políticas e recursos do RDIF (Russian Direct Investment Fund) foram insuficientes para que o país alcançasse a meta estabelecida. O principal entrave identificado relacionava-se ao estabelecimento de metas de entrega que, por serem muito ambiciosas, não puderam ser alcançadas; ou ao fato de a Rússia haver superestimado a capacidade tecnológica dos países com quem firmou parceria para a fabricação da vacina, o que levou os possíveis compradores a buscarem outros produtores para suprir suas demandas (Hoirisch, 2021HOIRISCH, C. Quo Vadis, BRICS? Colaboração biofarmacêutica, diplomacia vacinal dos BRICs e (des)moticações para o cumprimento dos compromissos acordados sobre vacinas Covid-19. In: BUSS, P. M.; BURGER, P. (Org.). Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 259-271.).

Além dos entraves citados, a Rússia suscitou dúvidas sobre a real eficácia da Sputnik V, já que o país não obteve a aprovação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Agência Europeia de Medicamentos (EMA), além de ter recebido críticas com relação ao seu custo, três vezes maior do que o da vacina AstraZeneca, por exemplo (Hoirisch, 2021HOIRISCH, C. Quo Vadis, BRICS? Colaboração biofarmacêutica, diplomacia vacinal dos BRICs e (des)moticações para o cumprimento dos compromissos acordados sobre vacinas Covid-19. In: BUSS, P. M.; BURGER, P. (Org.). Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 259-271.).

Os fatores limitantes apresentados pela Rússia durante a produção das primeiras vacinas contra a Covid-19 presumem um certo descrédito do país no cenário global da diplomacia da vacina, embora tenha lançado a Sputnik Light como uma estratégia para recuperar vantagem no jogo diplomático que rege o mercado, mas as chances de sucesso seguiram os passos da Sputnik V.

As colaborações entre Brasil e China se deram em torno dos ensaios clínicos para a produção da bem-sucedida CoronaVac (Sinovac), os quais foram coordenados pelo respeitado Instituto Butantan, vinculado ao governo do estado de São Paulo, e executados a partir do IFA importado da China. Indisposições diplomáticas provocadas pelo governo federal brasileiro interferiram no processo produtivo, tendo prejudicado o fornecimento do IFA por parte da China, que reclamou do Brasil uma postura diplomática à altura da necessidade de imunização do mundo contra a covid-19. Tratativas do governo do estado de São Paulo com a China permitiram a retomada do fornecimento do IFA e a produção em larga escala da CoronaVac em território brasileiro, além de sua distribuição para todo país, após sua aprovação pela Agência de Vigilância Sanitária do Brasil (Anvisa) (Por unanimidade…, 2022)POR UNANIMIDADE, CoronaVac é aprovada pela Anvisa para uso emergencial em crianças de seis a 17 anos. Portal do Butantan, São Paulo, 20 jan. 2022. Disponível em: <Disponível em: https://butantan.gov.br/noticias/por-unanimidade-coronavac-e-aprovada-pela-anvisa-para-uso-emergencial-em-criancas-de-seis-a-17-anos- >. Acesso em: 10 set. 2023.
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A produção da AstraZeneca pelo governo brasileiro, no Instituto Bio-Manguinhos, da Fiocruz, também teve início com o IFA importado da China. Mas, em 2021, já estava em curso uma promissora empreitada para a produção independente em Bio-Manguinhos/Fiocruz (Lang, 2021)LANG, P. Fiocruz recebe registro da vacina 100% nacional. Agência Fiocruz de Notícia, Rio de Janeiro, 7 jan. 2022. Disponível em:<Disponível em:https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-recebe-registro-da-vacina-covid-19-100-nacional >. Acesso em: 10 jan. 2022.
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, a qual viria a se concretizar nos primeiros dias de 2022. O objetivo dos produtores brasileiros era ganhar autonomia, sabendo que uma vacina 100% nacional seria um passo importante para que o país alcançasse a independência tecnológica para prevenir-se da covid-19, a qual era o capital mais ambicionado pelas nações em todo o mundo. A autonomia para a produção do IFA exigiu comprovação de qualidade e eficácia junto à ANVISA. A Fiocruz atendeu a todas as exigências dos órgãos reguladores e obteve a autorização para produzir o IFA em fevereiro de 2022 (Melo, 2022MELO, K. Fiocruz produzirá vacinas 100% nacionais contra covid-19. Agência Brasil, 7 jan. 2022. Disponível em: <Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-01/fiocruz-produzira-vacinas-100-nacionais-contra-covid-19 >. Acesso em: 26 maio 2022.
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). Assim, consolidava-se o projeto da Fiocruz para a produção independente de vacinas covid-19, possibilitando entregar aos brasileiros as doses necessárias para suprir a demanda de 2022, visando, principalmente, o reforço vacinal, imprescindível com o surgimento de novas variantes do vírus SARS-CoV-2.

A contribuição da China na produção de vacinas foi bastante potente, ágil e eficaz, superada apenas pela União Europeia (UE). A produção inicial se deu a partir do vírus inativado, já bastante testado enquanto método, e posteriormente a China diversificou a produção por meio de outros procedimentos, após acordos firmados com países parceiros, como o Fosun-Pharma e BioNTech (Chamas, 2021CHAMAS, C. Propriedade Intelectual e Pandemia: a resposta do sistema multilateral. In: BUSS, P. M.; BURGER, P. (Org.) Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 259-271.).

Além das sete vacinas aprovadas e autorizadas no BRICS até setembro de 2021, a China apresentou outras propostas de vacinas inativadas, como as produzidas pela Minhai Biotechnology Co. e Kangtai Biological Products Co. Ltd., e pela Academia Chinesa de Ciências Médicas, do Instituto de Biologia Médica. Em agosto de 2021 o país já tinha 22 propostas de vacina em fase de estágio clínico, sendo que nove estavam na fase 3 (Hoirisch, 2021HOIRISCH, C. Quo Vadis, BRICS? Colaboração biofarmacêutica, diplomacia vacinal dos BRICs e (des)moticações para o cumprimento dos compromissos acordados sobre vacinas Covid-19. In: BUSS, P. M.; BURGER, P. (Org.). Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 259-271.). Críticos e estudiosos consideraram a possibilidade de a diplomacia da vacina servir para projetar a China, ainda mais no cenário internacional, em uma disputa de hegemonia com os EUA (Jabbour; Rodrigues, 2021JABBOUR, E.; RODRIGUES, B. S. A “Nova Economia do Projetamento” no combate à Covid-19 e as capacidades estatais chinesas como força política estratégica. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 1-29, 2021.). É fato que a China privilegiou a Ásia na doação de vacinas covid-19, deixando clara a intenção de retomar “antigas rotas do comércio por meio de uma rede de projetos de infraestrutura para a Ásia Central, o Sudeste Asiático, o Oriente Médio e a África” (A iniciativa…, 2022)A INICIATIVA chinesa Belt and Road é sustentável? Climainfo, [s.l.], 2019. Disponível em: <Disponível em: https://climainfo.org.br/2019/04/25/china-iniciativa-belt-and-road-bri-verde/ >. Acesso em: 22 ago. 2022.
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O Quadro 1 apresenta as principais vacinas autorizadas e produzidas nos países que constituem o BRICS até setembro de 2020, e a cobertura vacinal destes em 2021.

Quadro 1
Vacinas contra covid-19 autorizadas/aprovadas e produzidas em BRICS até setembro de 2020, e a cobertura vacinal por país até dezembro de 2021

A participação da África do Sul na concepção das vacinas Comirnaty (BNT162b2), Vaccine Janssen (JNJ-78436735; Ad26.COV2.S) e CoronaVac (Sinovac) foi considerada louvável no âmbito do BRICS, e há a expectativa de que uma cooperação entre Brasil, Índia, China e África do Sul possibilite avanços importantes nesse processo. Apesar disso, os números da vacinação na África do Sul no ano de 2021 foram baixos (Reuters, 2022)REUTERS. COVID-19 Global Tracker: África do Sul. Londres, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.reuters.com/world-coronavirus-tracker-and-maps/pt/countries-and-territories/south-africa/ >. Acesso em: 23 mai. 2022.
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. No mês de fevereiro o país registrou apenas 0,05% de pessoas vacinadas, chegando a 6,1% no mês de julho e fechando o ano com um pouco mais de 18,5%. O país cogitou, em certo momento, tornar a vacinação obrigatória, pois a população demonstrou, em todo o período pandêmico, ceticismo em relação ao poder imunizante da vacina (Bridge Consulting, 2022)BRIDGE. China COVID 19 Vaccine Tracker. Beijing, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://bridgebeijing.com/our-publications/our-publications-1/china-covid-19-vaccines-tracker/ >. Acesso em: 10 set. 2023.
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A pandemia provocou forte impacto sobre a economia da África do Sul e a população sentiu seus reflexos imediatos, como o aumento da pobreza e do desemprego. Esta realidade deve exigir do governo nacional medidas econômicas que façam frente às demandas expressas nas manifestações dos movimentos sociais que, segundo Essop e Von Holdt (2020ESSOP, T; VON HOLDT, K. Covid na África do Sul: a resposta popular. CADTM - Comité para abolição das dívidas ilegítimas, 31 ago. 2020. Disponível em: <Disponível em: http://www.cadtm.org/covid-na-africa-do-sul-a-resposta-popular >. Acesso em: 27 jan. 2022.
http://www.cadtm.org/covid-na-africa-do-...
) tiveram, no contexto da covid-19, uma coalizão tão expressiva que fez recordar os tempos de Mandela.

O grande destaque entre os países do BRICS na produção e distribuição de vacinas foi a China, que assumiu desde o início da pandemia o compromisso de tornar o imunizante um bem público global. A performance chinesa pode ser analisada com base nos dados obtidos a partir do rastreamento da distribuição de doses realizado pelo Bridge Consulting44O Bridge Consulting é uma consultoria independente e orientada a missões que acompanham o impacto da China na saúde global, com foco em doenças infecciosas, saúde mental, mudanças climáticas e outras. Após a realização da pesquisa que deu origem a este artigo, mudanças na estrutura desta Consultoria levaram a alterações nas citações dos estudos que o subsidiaram.. Os dados foram obtidos por meio de consultas às fontes oficiais do governo chinês, possibilitando compreender o impacto da diplomacia chinesa sobre a saúde global no contexto da covid-19 e conhecer a quantidade de vendas55Refere-se às doses de vacinas contratualmente comprometidas que os países beneficiários compraram comercialmente de desenvolvedores de vacinas chinesas. bilaterais e multilaterais (1,75 bilhão), doações66Referem-se às doses que uma entidade chinesa (governo, desenvolvedor de vacinas, Cruz Vermelha etc.) se comprometeu a doar a um país beneficiário. (197 milhões) e entregas77Referem-se às doses que foram fisicamente enviadas da China para o país receptor. Disponível em: <www.bridgeconsulting.com.br>. Acesso em: 05 fev. 2022 (1,40 bilhão) feitas às regiões da Europa, África, América Latina e Ásia-Pacífico, além da distribuição global realizada pela China.

Os dados mostram que o fornecimento de vacinas chinesas para estas regiões se deu a partir de contribuições bilaterais e alcançaram, até janeiro de 2022, 115 países, tendo sido a Ásia-Pacífico a região mais beneficiada em número de doses recebidas, o que favoreceu 39 de seus países, seguida pela América Latina, com 20 países receptores. Já a África, teve 46 países beneficiados, mas este número não é significativo quando consideradas as demandas nacionais, como mostra a Tabela 1 (M=Milhões de doses):

Tabela 1
Número de doses de vacinas contra covid-19 fornecidas pela China e número de países beneficiados até janeiro de 2022 por região geográfica

Estudos realizados pelo Bridge Consulting (2022)BRIDGE. China COVID 19 Vaccine Tracker. Beijing, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://bridgebeijing.com/our-publications/our-publications-1/china-covid-19-vaccines-tracker/ >. Acesso em: 10 set. 2023.
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mostram que a Europa foi a região que menos recebeu doses da China até o fim de 2021, situação que encontra uma possível explicação no fato de a European Medicines Agency (EMA), responsável por avaliar e supervisionar os medicamentos na União Europeia, não haver aprovado as vacinas de origem chinesa a tempo de responder às demandas urgentes da pandemia. Entretanto, a autonomia dos reguladores médicos nacionais para autorizar a aquisição de vacinas em situações emergenciais foi usada por alguns países da Europa Central e Oriental durante a pandemia de covid-19, o que possibilitou à Europa destinar as 57 milhões de doses recebidas da China a 10 de seus países, dentre as quais 3 milhões foram obtidas por doação.

O número de doses das vacinas chinesas comercializadas para a Europa até o fim de 2021 está calculado em 123 milhões, a grande maioria obtida através de um acordo assinado pela Turquia, em novembro de 2020, que negociava a compra de 100 milhões de doses da Sinovac, as quais foram redistribuídas (por doação e venda) para países como a Bósnia-Herzegovina, Azerbaijão, Albânia e outros (Bridge, 2022)BRIDGE. China COVID 19 Vaccine Tracker. Beijing, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://bridgebeijing.com/our-publications/our-publications-1/china-covid-19-vaccines-tracker/ >. Acesso em: 10 set. 2023.
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O fornecimento de vacinas contra a covid-19 da China para a África foi regido pela Cooperação Sul-Sul, que respaldou a China a enviar doses para 19 países africanos. Em 30 de novembro de 2021, durante a 8ª Reunião Ministerial do Forum on China-Africa Cooperation (Focac), a África recebeu a promessa de 1 bilhão de doses da China, sendo que 600 milhões seriam por doação e o restante fornecido por meio de “produção conjunta por empresas chinesas e países africanos relevantes”. No entanto, dados atualizados no fim de 2021 mostraram que “dos 196 milhões de doses vendidas e 69 milhões de doações prometidas à África, a China entregou 122 milhões, dos quais 28 milhões foram doações” (Bridge, 2022)BRIDGE. China COVID 19 Vaccine Tracker. Beijing, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://bridgebeijing.com/our-publications/our-publications-1/china-covid-19-vaccines-tracker/ >. Acesso em: 10 set. 2023.
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Os dados evidenciam os limitados recursos dos países africanos, que tornaram críticas as condições de acesso à vacina covid-19 até o fim de 2021. Apesar disso, a África pôde contar com o acesso a uma parcela do imunizante através da Iniciativa Covax, ainda insuficiente, que forneceu ao Continente 114 milhões de doses da vacina nesse período.

A América Latina (AL) foi a segunda região mais contemplada com as vacinas chinesas, sob a égide da Cooperação Sul-Sul e da Iniciativa Belt and Road, uma estratégia de desenvolvimento do governo da China que “visa reviver antigas rotas do comércio por meio de uma rede de projetos de infraestrutura para a Ásia Central, o Sudeste Asiático, o Oriente Médio e a África” (A iniciativa…, 2022)A INICIATIVA chinesa Belt and Road é sustentável? Climainfo, [s.l.], 2019. Disponível em: <Disponível em: https://climainfo.org.br/2019/04/25/china-iniciativa-belt-and-road-bri-verde/ >. Acesso em: 22 ago. 2022.
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. Além de receber o IFA para a produção de algumas vacinas, a AL se destacou por sua participação no desenvolvimento da Coronavac, que teve 230 milhões de doses vendidas para 8 países de sua região, além de prover 834 milhões de doses em nível global (Bridge, 2022)BRIDGE. China COVID 19 Vaccine Tracker. Beijing, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://bridgebeijing.com/our-publications/our-publications-1/china-covid-19-vaccines-tracker/ >. Acesso em: 10 set. 2023.
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No quesito exportação, a China foi o país menos expressivo até dezembro de 2021 (31,5% do total produzido), enquanto, neste mesmo período, a União Europeia exportou 62,6% de suas vacinas, e os Estados Unidos 51,2%. Entretanto, a China ainda é o país que mais forneceu, através de vendas e doações, para a América do Sul: até o final de dezembro, 36,4% das doses enviadas eram provenientes da China, enquanto a UE havia fornecido 29,8%, os EUA 5,6%, e a Rússia 4,4% das doses (Nolte, 2022NOLTE, D. Vamos relativizar o sucesso da “Diplomacia das Vacinas” da China. Latinoamérica21, São Paulo, 23 jan. 2022. Disponível em: <Disponível em: https://latinoamerica21.com/br/vamos-relativizar-o-sucesso-da-diplomacia-das-vacinas-dachina/ >. Acesso em: 2 mar. 2022.
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).

Estudos da Economist Intelligence Unit (2021)EIU - ECONOMIST INTELLIGENCE UNIT. What Next for Vaccine Diplomacy? London, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.eiu.com/n/campaigns/q2-global-forecast-2021/ >. Acesso em: 3 maio 2022.
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, ao analisarem a diplomacia da vacina da China em relação à América Latina, mostraram que a habilidade do governo chinês na comercialização, bem como a publicidade em torno de suas entregas, criou, na opinião pública, uma impressão de grande solidariedade por parte da China. Entretanto, os dados são de que apenas 165 milhões, das quase 600 milhões de doses produzidas até maio de 2021, foram destinadas aos países latino-americanos e, desse número, apenas um pequeno percentual foi obtido através de doação. Este fato parece reforçar a ideia de que a diplomacia chinesa teria usado a pandemia de covid-19 em uma nova arena política para a disputa entre China e Estados Unidos por hegemonia global.

Dados de Our World in Data (Mathieu et al., 2022)MATHIEU, E. et al. United States: coronavirus pandemic country profile. Our World in Data, [s.l.], 2020. Disponível em: <Disponível em: https://ourworldindata.org/coronavirus/country/united-states >. Acesso em: 17 mai. 2023.
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mostram que a China se antecipou aos Estados Unidos na distribuição e doação de vacinas covid-19. Os EUA passaram a atuar ativamente no jogo diplomático da vacina, com a exportação e doação de doses, apenas depois de junho de 2021, quando a campanha de vacinação no mundo já estava a pleno vapor, fato que possibilitou à China assumir a liderança sobre os EUA, que deixaram uma lacuna na diplomacia das vacinas no primeiro semestre daquele ano. No segundo semestre de 2021, entretanto, a diplomacia das vacinas foi completamente alterada pela disponibilização de doses para a América Latina por parte dos EUA e da Europa, superando a China, que teve sua viabilidade abalada devido à baixa exportação, influenciada pelas altas demandas internas.

A Ásia foi a região mais contemplada pelas vacinas chinesas, tanto em vendas quanto em doações: a China computou, até o fim de 2021, a entrega de 854 milhões de doses ao continente, sendo 74 milhões através de doação. É importante destacar que a China vendeu, no período em pauta, 925 milhões de doses e doou outros 103 milhões, o que mostra que a Ásia foi amplamente beneficiada pela produção chinesa, embora nos últimos meses de 2021 o rastreamento do Bridge Consulting tenha revelado uma diminuição nas entregas, possivelmente em função da detecção do aumento do número de casos de covid -19 na China. Isto se deu porque, mesmo o país tendo investido fortemente na vacinação extensiva de sua população, o surgimento das variantes Delta e Ômicron provocou novos surtos. As novas variantes levaram a China a manter suas próprias reservas e ritmo de imunização, deixando em segundo plano as demandas dos países que buscavam o reforço de suas vacinas ou a combinação destas com as de outros fabricantes.

Independentemente do fato de a China ter diminuído as entregas, as demandas por suas vacinas não pararam de crescer, assim como as promessas e acordos feitos pelo governo chinês para a oferta de doses. Como exemplo, destacamos os 50 milhões de doses prometidos pelo presidente Xi Jinping aos países da Ásia Central: Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Uzbequistão, por ocasião do 30º aniversário das relações diplomáticas entre a China e esses países, em 2021 (China…, 2022)CHINA e países da Ásia Central prometem construir comunidade com futuro compartilhado. Xinhua Português, [s.l.], 26 jan. 2022. Disponível em: <Disponível em: http://portuguese.news.cn/2022-01/26/c_1310441370.htm >. Acesso em: 10 set. 2023.
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A Tabela 2 ratifica a importante contribuição da China para a imunização dos países da Ásia. Embora o país demonstre interesses políticos e econômicos na governança global e na consolidação de estratégias para alcance de objetivos de natureza material mais pragmáticos, como a “colaboração em pesquisa e o contrabalanço do expansionismo ocidental no jogo da geopolítica” (Hoirisch, 2020, p. 214), a vacinação foi um fator importante para a retomada das atividades econômicas desses países e um passo inicial para o controle da pandemia.

Tabela 2
Doses de vacina covid-19 vendidas, doadas e entregues pela China a países ao redor do mundo entre o início da produção e o fim de 2021

Jabbour et al. (2020JABBOUR, E. et al. A (Nova) Economia do Projetamento: o conceito e suas novas determinações na China de hoje. Geosul, Florianópolis, v. 35, n. 77, p. 17-48, 2020.) e Jabbour e Rodrigues (2021)JABBOUR, E.; RODRIGUES, B. S. A “Nova Economia do Projetamento” no combate à Covid-19 e as capacidades estatais chinesas como força política estratégica. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 1-29, 2021. apresentam o conceito de “Nova Economia do Projetamento” para representar os interesses econômicos da China no contexto da pandemia de covid-19. A venda de vacinas para a Indonésia é um exemplo da influência chinesa na recuperação econômica de países asiáticos. O país recebeu, até o fim de 2021, 98,4 % das doses compradas da China, uma aquisição essencial para este que é o quarto país do mundo em população. A Indonésia, cuja economia é marcada pela forte presença de pequenos agricultores, não recebeu doses em regime de doação por parte da China. As vacinas entregues garantiram, entretanto, a continuidade das atividades de exploração das riquezas minerais, de madeira, petróleo bruto e gás natural, abundantes no país.

O Paquistão recebeu, até o fim de 2021, 84% das vacinas que comprou da China, o que foi relevante para que o país, cuja economia é subdesenvolvida e baseada no setor de comércio e serviços, com boa parte da mão de obra na atividade agrícola, (Guitarrara, 2022)GUITARRARA, P. Paquistão. Brasil Escola. Disponível em: Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/paquistao.htm . Acesso em: 16 jun. 2022.
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, retomasse suas atividades mais rapidamente.

O Irã recebeu da China todas as doses compradas e ainda um bom excedente. As vacinas foram importantes para garantir a continuidade das atividades econômicas iranianas, que se baseiam em grandes reservas de combustíveis fósseis. O país é responsável pela segunda maior oferta de gás natural do mundo e detém a quarta maior reserva de petróleo. A oferta destes recursos energéticos no mercado dá grande relevância geopolítica ao país, fator que contribuiu para que fosse beneficiado pela diplomacia da vacina chinesa (Hoirisch, 2020, 2021; Ungaretti, 2020UNGARETTI, C. Os BRICS e a COVID-19: Combate à pandemia e cooperação internacional. América Latina Net, 27 nov. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.americalatina.net.br/os-brics-e-a-covid-19-combate-a-pandemia-e-cooperacao-internacional-por-carlos-ungaretti/ >. Acesso em: 09 set. 2023.
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).

Não foram encontrados registros de entregas das doses adquiridas por Turquia e Chile até o fim de 2021. Entretanto as promessas de doações da China foram expressivas para alguns países da Ásia, como Camboja, Laos, Nepal e Sri Lanka (que também não receberam as doses prometidas por doação até o fim de 2021). Filipinas, um país de economia agrícola, mas considerado um dos tigres asiáticos por causa de sua indústria e turismo bastante expressivos, recebeu doses a mais, um estímulo para impulsionar a retomada da economia. Vietnã, cuja base econômica é, como a maioria dos países asiáticos, a agricultura, e que tem baixa industrialização e baixa renda per capita, e Myanmar, que, embora seja considerado um país de economia emergente, mantém forte base agrícola, também receberam, em regime de doação, mais doses do que as prometidas. Bangladesh, também considerado de economia emergente, recebeu apenas 41 milhões de doses, um número inferior ao total de doses compradas e prometidas em doação pelo governo da China. Dentre os países da África, o Marrocos foi o único que recebeu vacinas da China até o fim de 2021. A compra realizada pelo Egito não foi entregue, e o Zimbábue também não recebeu a entrega dos 12 milhões de doses prometidas para aquele período.

Tratando-se de ações diplomáticas de forte impacto no contexto da covid-19 e seus efeitos sobre a saúde global, merece destaque o fato de que a China “endossou a proposta de suspensão dos direitos materiais para vacinas” (Proposta…, 2021PROPOSTA para suspender patente de vacinas trava na OMC. Deutsche Welle, [s.l.], 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/sem-apoio-do-brasil-proposta-para-suspender-patente-de-vacinad-trava-na-omc/a-56859401 >. Acesso em 3 de maio 2022.
https://www.dw.com/pt-br/sem-apoio-do-br...
; China…, 2021CHINA anuncia apoio à quebra de patentes das vacinas contra Covid-19. G1, Rio de Janeiro, 17 maio 2021. Bem Estar. Disponível em: <Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2021/05/17/china-anuncia-apoio-a-quebra-de-patentes-das-vacinas-contra-covid-19.ghtml >. Acesso em: 10 set. 2023.
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). Essa atitude não foi apoiada pelos outros países do BRICS, o que mostrou uma contradição ao discurso original do Grupo e a falta de solidariedade com os países da periferia global (Buss, 2021BUSS, P. Tratado sobre Pandemias, Saúde Global ou Reforma do RSI: reflexões preliminares. In: BUSS, P. Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021.).

De todo modo, o posicionamento e a atitude da China foram importantes para amenizar a crise provocada pela vacinação deficitária dos países do Sul global, embora não faça jus à solidariedade necessária no que diz respeito ao compartilhamento de tecnologias e à oferta de vacinas para o conjunto da população mundial.

Considerações Finais

No mundo arrasado pela covid-19 prevalecem comportamentos que apontam para um real “apartheid das vacinas”. As iniciativas internacionais mostraram-se insuficientes para fazer frente às demandas globais, e alguns países da África permaneceram sem conseguir vacinar nem mesmo os profissionais da saúde até o fim de 2021, enquanto países como Estados Unidos e Canadá contribuíram timidamente com a doação de doses excedentes.

A covid-19 exacerbou a crise sanitária mundial e serviu, paradoxalmente, para aumentar os lucros da indústria da saúde, especialmente das nações mais poderosas, que tiveram o seu poder político e econômico ampliado pela obtenção de lucros incalculáveis com a venda de vacinas para os países pobres. Os fabricantes de imunizantes obtiveram vultosos recursos públicos, com benefício de incentivos fiscais que aumentaram em muito o capital de empresas como a Moderna, a Pfizer e a BioNtech, cujas somas, em 2021, chegaram a 41 bilhões de dólares acima do custo de produção de suas vacinas (Egan, 2021)EGAN, M. Pfizer e Moderna podem faturar US$ 32 bilhões com vacinas contra covid em 2021. CNN Business, [s.l.], 12 dez. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://cnnbrasil.com.br/economia/pfizer-e-moderna-podem-faturar-32-bilhoes-com-com-vacinas-contra-covid-e-2021 >. Acesso em: 02 maio 2023.
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O monopólio das indústrias farmacêuticas é, na verdade, a razão do não compartilhamento dos conhecimentos e tecnologias dos medicamentos, vacinas, ingredientes farmacêuticos ativos etc., levando os países pobres a dependerem de seus produtos e limitando o acesso às vacinas covid-19.

Os interesses dos poderosos agentes financeiros também foram bastante beneficiados no contexto pandêmico, o que deverá influenciar na manutenção das características de fragmentação dos sistemas públicos e universais de saúde. É igualmente preocupante o desabastecimento geral dos serviços de saúde, especialmente nos países em desenvolvimento, cuja história revela a constante imposição de sobrecarga de trabalho, a descontinuidade na gestão, gerando serviços precários e entregas insatisfatórias. Esses fatores concorrem para que os países não alcancem uma atenção mais alinhada com as necessidades das populações que deles dependem, não apenas em contextos pandêmicos, mas no cotidiano da vida.

As expectativas em relação ao bloco econômico BRICS permaneceriam inalteradas não fosse a criação do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento de Vacinas, inaugurado em março de 2022, que se propõe a fortalecer significativamente “a capacidade global de preparação e resposta a pandemias de várias doenças” (Golub, 2022GOLUB, D. Países do BRICS inauguram Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Vacina. Russia Beyond, Moscou, 24 mar. 2022. Ciência e tecnologia. Disponível em: <Disponível em: https://br.rbth.com/ciencia/86524-paises-brics-inauguram-centro-pesquisa-desenvolvimento-vacinas >. Acesso em: 3 maio 2023.
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), sendo “um bom exemplo de cooperação internacional no campo da ciência” (Blade Nzimande, ministro do Ensino Superior, Ciência e Tecnologia da África do Sul) (Golub, 2022)GOLUB, D. Países do BRICS inauguram Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Vacina. Russia Beyond, Moscou, 24 mar. 2022. Ciência e tecnologia. Disponível em: <Disponível em: https://br.rbth.com/ciencia/86524-paises-brics-inauguram-centro-pesquisa-desenvolvimento-vacinas >. Acesso em: 3 maio 2023.
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O Centro de Pesquisas e Desenvolvimento de Vacinas do BRICS se propõe a reunir as melhores práticas dos cinco países do bloco para atuar no desenvolvimento de medicamentos, a partir da combinação de suas expertises na pesquisa para a concepção de vacinas. O objetivo é aumentar a prevenção e o controle de doenças infecciosas, e disponibilizar suas tecnologias para contribuir com a recuperação dos danos da pandemia sobre os países do BRICS e sobre todos aqueles em desenvolvimento (Golub, 2022GOLUB, D. Países do BRICS inauguram Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Vacina. Russia Beyond, Moscou, 24 mar. 2022. Ciência e tecnologia. Disponível em: <Disponível em: https://br.rbth.com/ciencia/86524-paises-brics-inauguram-centro-pesquisa-desenvolvimento-vacinas >. Acesso em: 3 maio 2023.
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).

Mesmo com as esperanças renovadas após esta iniciativa do BRICS, a realidade de 2022 ainda permaneceu inalterada em relação a 2020, quando a pandemia de covid-19 chegou de maneira arrasadora a todos os continentes. E mesmo que os países do BRICS tenham se destacado no fast track da produção de vacinas, e que o ano de 2021 tenha se encerrado com mais de 40% da população mundial vacinada com a segunda dose, e que, além disso, a China tenha feito doações que significaram o passo inicial para a imunização de alguns países, como aconteceu com aqueles da Ásia mencionados anteriormente, o balanço da pandemia é bastante negativo.

As perdas humanas não são recuperáveis e as econômicas dependem de uma disposição que parece estar longe do interesse dos países de economia dominante. Não se observaram, até o fim de 2021, mudanças concretas no modelo de governança da saúde global que se mostrassem sensíveis para realizar o mínimo: a imunização de todos os países. Tampouco observaram-se ações de cooperação internacional que tenham se mostrado eficazes no compartilhamento de vacinas pelos países do norte global, algo perfeitamente possível, já que uma grande quantidade de vacinas se perde nesses países.

O desafio está, de fato, na extrapolação da capacidade solidária dos países ricos em relação aos países pobres, o que não se concretizou até o momento. Pelo contrário, os países ricos continuaram agindo para neutralizar qualquer iniciativa que visasse a suspensão, mesmo que temporária, dos direitos de propriedade intelectual. Esta suspensão teria tornado possível ampliar o acesso ao conhecimento científico e viabilizado aumentar a capacidade de produção, no nível local dos países em desenvolvimento, para desenvolver medicamentos, vacinas ou quaisquer outros meios que possam contribuir para cessar as infecções por covid-19.

O mundo ainda espera por mais iniciativas do BRICS baseadas em uma cooperação forte, intra e extrabloco. Cabe aos países mais poderosos o papel de influenciar e agir no sentido de uma distribuição mais equilibrada de vacinas, de maneira a alcançar os países localizados na periferia da economia global. À China, por exemplo, se renovam os anseios de que suas vacinas sejam amplamente acessíveis, o que significaria fazer valer as afirmações do presidente Xi Jinping sobre “tornar as vacinas chinesas um bem público global” (Xi Jinping…, 2020)XI JINPING promete vacina e US$ 2 bilhões contra o coronavírus. G1, Rio de Janeiro, 18 maio 2020. Bem Estar. Disponível em: <Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/18/xi-jinping-promete-vacina-e-us-2-bilhoes-contra-o-coronavirus.ghtml >. Acesso em: 10 set. 2023.
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/...
. Para tanto, as disputas por poder ou dominação econômica devem ceder lugar à solidariedade para salvar vidas e ajudar as economias dos países periféricos, tão seriamente afetadas pela covid-19.

As importantes contribuições do BRICS no processo de imunização contra a o SARS-CoV-2 e as reiteradas declarações do seu forte propósito de colocar um ponto final na pandemia não impediram que estudiosos da Diplomacia da Saúde (Buss; Fonseca, 2020BUSS, P. M.; FONSECA, L E (Org.). Num mundo em mudança, desafios gigantescos. Apresentação. In: BUSS, P. M.; FONSECA, L. E. (Org.). Diplomacia da saúde e Covid-19: reflexões a meio caminho. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020. p. 13-26. Disponível em: <Disponível em: https://books.scielo.org/id/hdyfg/pdf/buss-9786557080290.pdf >. Acesso em: 2 ago. 2021.
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) interpretassem como insuficientes as respostas do Grupo às complexas demandas geradas ou exacerbadas pela crise sanitária.

No que se refere à resposta brasileira, há necessidade de maiores investimentos em todas as áreas da saúde, a partir de uma convergência política de alto nível, envolvendo os líderes do BRICS. O desafio é para que mais recursos do New Development Bank (NDB) sejam destinados para responder a crise econômica e social agravada pela pandemia e estruturar o país para possíveis novas situações pandêmicas.

Referências

  • 1
    O artigo é uma versão atualizada e revista do capítulo original "BRICS na produção de vacinas Covid-19: cooperação em saúde ou oportunidades econômicas?" de Anízia Aguiar Neta e Helena Ribeiro, publicado em Di GIULIO, G.; VENTURA, D.F.L.; RIBEIRO, H. (Orgs.) As múltiplas dimensões da crise de Covid-19: perspectivas críticas da Saúde Global e Sustentabilidade, São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP, 2023. As autoras agradecem às organizadoras do livro pela autorização para publicação.
  • 2
    Disponível em: <https://data.undp.org/vaccine-equity/>. Acesso em: 26 abr. 2023.
  • 3
    Disponível em: <https://covid19.who.int/table>. Acesso em: 2 maio 2022.
  • 4
    O Bridge Consulting é uma consultoria independente e orientada a missões que acompanham o impacto da China na saúde global, com foco em doenças infecciosas, saúde mental, mudanças climáticas e outras. Após a realização da pesquisa que deu origem a este artigo, mudanças na estrutura desta Consultoria levaram a alterações nas citações dos estudos que o subsidiaram.
  • 5
    Refere-se às doses de vacinas contratualmente comprometidas que os países beneficiários compraram comercialmente de desenvolvedores de vacinas chinesas.
  • 6
    Referem-se às doses que uma entidade chinesa (governo, desenvolvedor de vacinas, Cruz Vermelha etc.) se comprometeu a doar a um país beneficiário.
  • 7
    Referem-se às doses que foram fisicamente enviadas da China para o país receptor. Disponível em: <www.bridgeconsulting.com.br>. Acesso em: 05 fev. 2022

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2023
  • Aceito
    18 Set 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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