Gênero e Sexualidade na Graduação em Saúde Coletiva do Brasil

Jéssica Maiza Nogueira Silva Danilo Borges Paulino Gustavo Antonio Raimondi Sobre os autores

Resumo

A formação em Saúde Coletiva objetiva formar profissionais da saúde com conhecimentos voltados para a promoção, prevenção e gestão dos sistemas de saúde. Entretanto, no direcionamento para a abordagem das questões de gênero e sexualidade ainda se observa um aparente silenciamento desse debate nos cursos. O objetivo é compreender a presença ou não de conteúdos que contemplem aspectos de gênero e sexualidade nesta formação, utilizando a análise qualitativa, por meio da Pesquisa Documental e Análise de Conteúdo, a partir do levantamento e análise dos Projetos Pedagógicos Curriculares dos cursos de graduação em Saúde Coletiva no Brasil. Foram analisados 16 projetos dos 21 cursos existentes, sendo constatado, principalmente, que 12 cursos possuem disciplinas que discutem as questões de gênero e sexualidade ao longo da graduação, ora de forma obrigatória, ora optativa. Conclui-se que o debate de gênero e sexualidade ocorre em grande parte das Instituições que apresentam o curso de Saúde Coletiva. Entretanto, esse campo de discussões precisa ser aprimorado inclusive na Diretriz Curricular Nacional para os Cursos de Saúde Coletiva, que deve explicitar esses temas, viabilizando uma formação que supere os preconceitos, violências e o binarismo presentes em uma sociedade sexista e heteronormativa.

Palavras-chave
Gênero; Sexualidade; Saúde Coletiva; Projeto Pedagógico Curricular

Introdução

Saúde Coletiva: um campo em constante (re)construção

A Saúde Coletiva pode ser definida como o campo do saber relacionado à saúde, doenças e agravos, mas também, à amplitude dos aspectos sociais envolvidos no processo saúde-adoecimento-cuidado. Por isso, a Saúde Coletiva envolve ações práticas, técnicas, teóricas e políticas11 Souza LEPF. Saúde pública ou saúde coletiva? Rev Espaço Saúde 2014; 15(4):7-21.. Enquanto área de conhecimento acadêmico, seu aparecimento, na década de 50 nos Estados Unidos, guarda relação com a crise na formação médica. Essa formação foi e ainda é caracterizada pela fragmentação e excessivo estímulo à especialização. Essa proposta, tinha a intenção de ampliar os conhecimentos sobre o processo saúde-adoecimento-cuidado e fornecer visão integral do indivíduo, com enfoque no currículo médico11 Souza LEPF. Saúde pública ou saúde coletiva? Rev Espaço Saúde 2014; 15(4):7-21.,22 Nunes ED. Saúde coletiva: história de uma idéia e de um conceito. Saúde Soc 1994; 3(2):5-21..

Esse campo do saber se consolidou e se institucionalizou no Brasil na década de 1970, através, principalmente, de duas instituições. A primeira foi o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), criado em 1976. Esse Centro fomentou o debate em torno da democratização da sociedade e a defesa dos direitos sociais, em particular o direito universal à saúde. Posteriormente, nasceu a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), em 1979 e que se chamava, inicialmente, Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Essa, por meio da articulação entre os centros de ensino, pesquisa e treinamento em Saúde Coletiva, fortaleceu o diálogo entre a comunidade técnico-científica, serviços de saúde, organizações governamentais e não governamentais e sociedade civil, como nas Conferências Nacionais de Saúde (CNS)22 Nunes ED. Saúde coletiva: história de uma idéia e de um conceito. Saúde Soc 1994; 3(2):5-21.

3 Ruela HCG. A formação de sanitaristas e os cursos de graduação em saúde coletiva no Brasil [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio; 2013.
-44 Lima NT, Santana JP. Saúde coletiva como compromisso: a trajetória da Abrasco. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

Hoje o campo da Saúde Coletiva cresceu, fazendo-se presente em agendas acadêmicas e políticas de vários países, com a missão de apoiar indivíduos e instituições de Graduação e Pós-Graduação, de pesquisa, e na prestação de serviços em Saúde Pública/Coletiva. Além disso, espera-se, com a Saúde Coletiva, ampliar a qualificação profissional, a produção de conhecimento e o aprimoramento de políticas de saúde, educação, ciência e tecnologia para o enfrentamento dos problemas de saúde da população brasileira44 Lima NT, Santana JP. Saúde coletiva como compromisso: a trajetória da Abrasco. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006..

Diante desse debate, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria n° 256, de 11 de março de 2013, em seu Art. 5°, inclui, na Tabela de Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), o CBO SANITARISTA:

Parágrafo Único. Entende-se por sanitarista o profissional de nível superior, graduado na área da saúde com pós-graduação em saúde pública ou coletiva, ou graduado em uma dessas áreas55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 256, de 11 de março de 2013. Estabelece novas regras para o cadastramento das equipes que farão parte dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES). Diário Oficial da União 2013; 11 mar..

Dessa maneira, a formação em Saúde Coletiva tem como objetivo ter futuros(as) profissionais da saúde com conhecimentos voltados para a análise crítica e reflexiva dos processos de saúde-adoecimento-cuidado no âmbito do Sistema de Saúde. Assim, esses(as) profissionais poderão ter compreensão das necessidades de saúde da população; das ações de promoção e prevenção; da vigilância em saúde; da participação no desenvolvimento e execução de políticas públicas e da gestão dos sistemas de saúde público e privado, principalmente o Sistema Único de Saúde (SUS); do planejamento de ações em saúde e da educação em saúde. Espera-se também desses(as) profissionais, o comprometimento, compromisso e respeito com a população, a fim de melhorar a qualidade de vida66 Conselho Nacional de Saúde (CNS). Recomendações do Conselho Nacional de Saúde à proposta de diretrizes nacionais do curso de graduação em saúde coletiva. Brasília: CNS; 2017..

O primeiro curso de bacharelado em Saúde Coletiva surge em 2002, chamado Administração de Sistemas e Serviços de Saúde da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Em 2009 mais instituições, do Nordeste (Universidade Federal da Bahia - UFBA), Sudeste (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG) e Sul (Universidade Federal do Paraná - UFPR, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS) dão início a novos cursos de Saúde Coletiva.

Atualmente já são 21 cursos de bacharelado em Saúde Coletiva distribuídos em todas as regiões do país. Importante ressaltar que, antes da criação desses cursos de bacharelado, já era conhecida a profissão de sanitarista, sendo conferida essa titulação a partir de cursos de especializações e pós-graduação em Saúde Coletiva ou Saúde Pública77 Cezar DM, Ricalde IG, Santos L, Rocha CMF. O bacharel em saúde coletiva e o mundo do trabalho: Uma análise sobre editais para concursos públicos no âmbito do sistema único de saúde. Sared 2015; 1(4):65-73.,88 Lorena AG, Santos L, Rocha CF, Lima MSS, Pino MR, Akerman M. Graduação em saúde coletiva no Brasil: onde estão atuando os egressos dessa formação? Saúde Soc 2016; 25(2):369-380..

A discussão de gênero e sexualidade na formação em Saúde Coletiva

O Curso de Graduação em Saúde Coletiva tem uma formação acadêmica direcionada para o aprimoramento da Saúde Pública. Uma de suas bases está na construção da equidade em saúde, com redução do efeito negativo dos determinantes sociais em saúde, como aqueles relacionados à educação, raça e etnia e gênero. Esses, inclusive, devem ser orientadores das proposições de ações das políticas públicas de saúde99 Barata RB. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009..

Nesse sentido, observa-se que as intersecções de gênero e sexualidade têm ganhado escopo nas discussões da Saúde Coletiva nas últimas décadas. Isso é observado desde os anos de 1970 com o movimento Feminista, que buscava ampliar as concepções do cuidado em saúde para além de um saber reprodutivo do corpo feminino1010 Villela W, Monteiro S, Vargas E. A incorporação de novos temas e saberes nos estudos em saúde coletiva: o caso do uso da categoria gênero. Cien Saude Colet 2009; 14(4):997-1006.. Posteriormente, o movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) nos anos de 1980 buscou problematizar as questões de orientação sexual e identidade de gênero1111 Raimondi GA. Saúde da população "trans": uma revisão sistemática da produção teórica brasileira [dissertação]. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia; 2016..

A 12ª CNS, realizada em 2003, amplia a discussão das questões de gênero e sexualidade, com importantes debates sobre a intersecção gênero, sexualidade e direitos em saúde. Observa-se, pela primeira vez em um documento oficinal nacional, a inclusão dos temas de orientação sexual e identidade de gênero nas políticas de saúde. Há também a reiteração da não discriminação por identidade de gênero e orientação sexual no SUS e a definição de estratégias para o enfrentamento dos problemas de saúde da população LGBT. Além disso, houve o debate acerca dos avanços necessários à Saúde da Mulher e o combate à violência doméstica, sexual e racial, em busca da abolição de todas as formas de discriminação contra as mulheres. A incorporação, nos currículos escolares em todos os níveis de ensino, de conteúdos didáticos que garantam o conhecimento sobre o SUS e assuntos como a sexualidade, o acesso e uso de preservativos e os direitos reprodutivos, foi uma das estratégias elencadas para resolução dessas situações1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Relatório Final 12ª Conferência Nacional de Saúde: Conferência Sergio Arouca. Brasília: MS; 2004..

Especificamente com relação às questões do movimento LGBT, tem-se como uma importante iniciativa o “Brasil sem homofobia”, em 2004. Um dos objetivos centrais desse Programa era a educação e a mudança de comportamento dos gestores públicos. Ressalta-se que a bandeira da “não violência”, presente nessa iniciativa, era transversal a todas as propostas de ações, evidenciando a necessidade de mudanças em várias esferas sociais1313 Brasil. Ministério da saúde (MS). Brasil Sem Homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília: Conselho Nacional de Combate à Discriminação; 2004..

Destaca-se que somente em 2007, na 13ª CNS, a orientação sexual e a identidade de gênero foram incluídas na análise da determinação social da saúde. Isso reitera uma das várias demandas do movimento social a respeito da necessidade de inclusão desses marcadores sociais da diferença nas análises em saúde. Foram inclusive feitas algumas recomendações nesta Conferência nesse sentido, como o desenvolvimento de ações intersetoriais de educação em direitos humanos e respeito à diversidade e a efetivação de campanhas e currículos escolares que abordem direitos humanos1414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Relatório Final da 13ª Conferência Nacional de Saúde: Saúde e Qualidade de vida: políticas de estado e desenvolvimento. Brasília: Conselho Nacional de Saúde; 2008..

Em 2011, no Relatório da 14ª CNS, há a reiteração da pactuação, implementação e ampliação da Política Nacional de Saúde Integral LGBT, que data do mesmo ano, garantindo a capacitação dos profissionais de saúde, gestores e o desenvolvimento de ações de enfrentamento a qualquer forma de discriminação. Traz, ainda, a necessidade de fortalecimento da Política de Atenção à Saúde da Mulher, reafirmando a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, e a atenção à mulher em situação de violência. Recomenda-se, também, a implementação do Programa Saúde do Homem em todos os municípios, tendo em vista a promoção e prevenção em saúde. Tudo isso evidencia a necessidade de ampliação do debate na formação e no cuidado em saúde em relação às questões de gênero e sexualidade1515 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Relatório Final da 14ª Conferência Nacional de Saúde: Todos usam o SUS; SUS na Seguridade Social Política Pública; Patrimônio do Povo Brasileiro. Brasília: CNS; 2012..

Entretanto, o que se observa nessa CNS é um não pronunciamento sobre as especificidades do cuidado em saúde, como para as questões de igualdade de gênero, da transexualidade e da travestilidade, como havia ocorrido anteriormente. É possível observar isso, inclusive, no documento orientador e no relatório final da 15ª CNS1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Documento Orientador de apoio aos debates da 15ª Conferência Nacional de Saúde. Brasília: CNS; 2015.. Nele, essas questões aparecem subentendidas nos termos “LGBT” e “gênero”, evidenciando a falta de especificidade a essa população, em contraponto à intensificação dos movimentos acadêmicos e populares voltados à saúde integral da população LGBT1111 Raimondi GA. Saúde da população "trans": uma revisão sistemática da produção teórica brasileira [dissertação]. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia; 2016..

Concomitantemente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2006 evidencia, em um primeiro documento de caráter mundial, que o debate sobre gênero é parte imprescindível do currículo do(a) profissional de saúde, a fim de promover o enfrentamento das desigualdades na saúde relacionadas às questões de gênero. A chave para alcançar esse objetivo é fazer com que as questões de gênero se tornem integrantes dos currículos dos(as) profissionais da saúde, a partir da capacitação de professores(as) e da defesa para a mudança de políticas relativas aos currículos dos(as) profissionais de saúde1717 World Health Organization (WHO). Integrating gender into the curricula for health professionals. Geneva: Department of Gender, Women and Health (GWH), WHO; 2006..

Os Projetos Pedagógicos dos Cursos de Graduação

A Diretriz Curricular Nacional (DCN) para os Cursos de Graduação em Saúde Coletiva, que estabelece o perfil do bacharel em Saúde Coletiva e os componentes curriculares fundamentais para a sua formação, foi aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em abril de 2017. Por tratar-se de documento recente, os projetos pedagógicos curriculares (PPC) dos cursos fundamentam-se majoritariamente nas DCNs que regulamentam os cursos de graduação da área da Saúde e nas Diretrizes e Bases da Educação. Sabe-se que os cursos de graduação em Saúde Coletiva apresentam uma íntima relação com as instituições relacionadas a esse campo e aos movimentos sociais também relacionados com essa prática de saúde. Entretanto, evidencia-se a necessidade de ampliação do debate acerca dos determinantes sociais em saúde, bem como das questões de gênero e sexualidade, na DCN dos cursos de graduação em Saúde Coletiva.

Dessa forma, apesar dos direcionamentos para a abordagem das questões de gênero e sexualidade nos cursos de graduação das profissões da saúde, como apresentado, observa-se que ainda faltam ações pedagógicas/políticas sobre esse debate nos cursos de graduação em saúde. Assim, o presente artigo tem como objetivo problematizar a presença ou não de conteúdos que contemplem aspectos de gênero e sexualidade na formação dos(as) sanitaristas em nosso país.

Método

Trata-se de pesquisa qualitativa, com a utilização da Pesquisa Documental, a partir do levantamento e análise dos PPC dos cursos de graduação em Saúde Coletiva no Brasil. Tem-se a análise temática como suporte analítico.

Foram analisados os PPC disponíveis de cada curso de graduação em Saúde Coletiva a partir de 2008, quando surgiram os primeiros projetos, até os documentos de 2016. Como são documentos de domínio público, não houve a necessidade de submissão dessa pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa.

A primeira forma de obtenção dos PPC dos cursos, foi através de uma busca sistematizada nos sítios eletrônicos das 21 instituições que oferecem o curso de graduação em Saúde Coletiva. Diante da não disponibilização pública de alguns PPC, foi solicitado, via e-mail o envio. Foram desconsiderados os PPC que não foram enviados após a terceira tentativa de obtenção via e-mail.

Realizou-se uma análise de conteúdo com categorização, para verificar se gênero e sexualidade eram contemplados nos currículos. O primeiro passo foi ler todos os projetos e identificar neles quais continham os descritores “gênero” e/ou “sexualidade” e quais não. A partir disso, foram criadas as categorias “Contempla” e “Não Contempla” disciplinas com os temas gênero e sexualidade.

Em seguida, nos projetos que contemplavam esses descritores, buscou-se identificar de que forma se propunha a abordagem desses assuntos. Assim, foi possível apresentar mais duas categorias, “Disciplinas Obrigatórias” e “Disciplinas Optativas”.

A última etapa consistiu na análise de como é a abordagem desses temas por meio do ementário das disciplinas. Apresentaremos os resultados, seguidos da discussão sobre o que foi encontrado. A Figura 1 permite a visualização da síntese da análise desta pesquisa.

Figura 1
Distribuição esquemática dos cursos de Saúde Coletiva em relação às categorias analisadas.

Resultados

Foram analisados os documentos dos cursos de graduação em Saúde Coletiva no Brasil das instituições: Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Universidade Federal do Acre (UFAC), Universidade Federal de Roraima (UFRR), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade de Brasília (UnB) – Campus Ceilândia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA).

Devido à indisponibilidade dos documentos no momento da coleta dos dados, não foi possível realizar a análise dos PPC das instituições: Associação Caruarense de Ensino Superior (ASCES), Universidade de Pernambuco (UPE), Faculdade de Medicina do ABC (FMABC), e Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Universidade de Brasília (UnB) – Campus Darcy Ribeiro.

Dentre os cursos de Saúde Coletiva que contemplam disciplinas com as questões de gênero e sexualidade, existem disciplinas que tratam das duas temáticas. Há também aquelas que discutem apenas gênero ou apenas sexualidade.

A discussão, em algumas Instituições, aparece relacionada às Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), ou a outras particularidades como raça e etnia. É possível notar também que em algumas Instituições as disciplinas são optativas (UFMT, UFMG, UFBA, USP, UFRJ e UFPR) e, em outras obrigatórias (UFRGS, UFBA, UFAC, UEA, UFPE, UFRR e UNILA) (Quadro 1).

Quadro 1
Disciplinas e forma de oferta dos cursos de graduação em Saúde Coletiva no Brasil que explicitam as palavras gênero e sexualidade.

Debates sobre Gênero e Sexualidade

Instituições como UFBA, UFMT, UFRJ, USP e UFPE ofertam em suas disciplinas discussões sobre as questões gênero na saúde, noções sobre o corpo, sexualidade e reprodução, teorias de gênero no campo da saúde, relação sexualidade e desigualdade social. A maioria dessas disciplinas são optativas. Somente a disciplina da UFPE é obrigatória. A UFBA oferta quatro disciplinas com abordagem de gênero/sexualidade. Dentre elas oferta, por exemplo, “Gênero, raça, sexualidade e saúde” onde o foco principal são as relações de gênero nos estudos em saúde, examinando a construção cultural e histórica dos significados de gênero e sexo e as suas interfaces com raça, etnia e classe social. São exploradas a geração dos significados e sua influência sobre a vivência do corpo e os processos de saúde e doença. O foco é nos processos sociais e históricos em que os significados sobre gênero, etnia, raça e classe são construídos, negociados, impostos ou combatidos. Também há a oferta de uma disciplina optativa intitulada “Aids, sexualidade e gênero” que analisa a relação entre AIDS e desigualdades sociais, sendo discutidos os principais conceitos teóricos para apreender a complexa relação entre sexualidade, gênero, poder e vulnerabilidade ao HIV/AIDS.

A UFMT oferta a disciplina “Povos indígenas, Gênero e Saúde: Aspectos antropológicos”, onde propõe-se a discussão da etnologia dos povos indígenas da América do Sul. Há o enfoque nas relações gênero/saúde e sexualidade/saúde tratando de alguns temas como: noção da pessoa e do corpo; nutrição; sexualidade; reprodução; organização social e saúde; política e saúde; políticas da saúde indígena e outros.

A UFRJ, com a disciplina “Gênero e Saúde”, apresenta uma discussão dos aspectos históricos, conceituais e metodológicos do gênero na assistência à saúde, dos modelos assistenciais, das práticas educativas, direitos reprodutivos, da questão da sexualidade no campo da saúde, da emergência do masculino nos estudos de gênero. Além disso, aborda a violência de gênero e a mortalidade materna.

A USP oferta a disciplina “Gênero, Sexualidade, Raça/Etnia e Saúde Pública” que objetiva compreender os conceitos de gênero, raça e etnia aplicados ao campo da saúde, os diferenciais de gênero, raça/etnia na assistência à saúde, a sexualidade enquanto dimensão da saúde; o campo da saúde reprodutiva em suas expressões epidemiológicas, assistenciais e educativas. São discutidos os fundamentos teórico-metodológicos da análise da articulação das relações sociais de gênero, raça/etnia e classe social na sociedade brasileira, tanto através da história quanto na atualidade.

Os(as) estudantes do curso de Saúde Coletiva da UFPE têm durante a graduação a disciplina “Teoria de Gênero e Sexualidade”, que visa abordar questões teórico-metodológicas fundamentais para os estudos das relações de gênero e da sexualidade nas suas dimensões sociais, psicológicas e culturais. Busca tratar também das diversas interpretações das noções de gênero, o feminismo no ocidente e suas transformações e as lutas políticas das mulheres. Almeja trazer a discussão sobre a importância e emergência de estudos das relações de gênero e da sexualidade e das identidades masculinas. A ementa propõe abordar também a homoafetividade, o movimento LGBT e o gênero e a sexualidade no Nordeste.

Debates apenas sobre Gênero

As universidades UFMG, UFRJ, UFPR, UNILA, UFRGS, UFAC, UFBA e UEA apresentam mais a questão de gênero em suas disciplinas que, em sua maioria, são obrigatórias, à exceção da UFMG e da disciplina raça, etnia e gênero em Saúde Coletiva ofertada pela UFBA.

A UFMG propõe abordar na disciplina “Seminários de Saúde e Gênero” o histórico de formação de identidade de gênero na sociedade brasileira, as repercussões das questões de gênero no mundo do trabalho e a relação de saúde e gênero. A UFBA procura abordar, também, os estudos de raça, racismo, e gênero, articulando ao campo da Saúde Coletiva por meio da disciplina “Raça, etnia e gênero em Saúde Coletiva”.

A UFRJ almeja estudar na disciplina Gênero e Saúde, que é ofertada de forma optativa, a relação de gênero com a AIDS. Nas Instituições UFPR, UNILA e UFRGS, as discussões propõem foco nas diversidades humanas e o respeito a elas na saúde, nas relações de raça/etnia, classe e gênero e suas contribuições para o processo de adoecimento e cuidado.

As Instituições UEA, UFBA e UFAC, ministram a disciplina “Sociedade, Cultura e Saúde II”, na qual propõe-se a discussão das desigualdades na saúde por classe social, gênero e raça/etnia e as políticas sociais. Essa disciplina tem como pré-requisito a disciplina Sociedade, Cultura e Saúde I, que estuda a relação Saúde, Sociedade e Cultura, os determinantes sociais e de saúde e a historicidade dos conceitos de saúde e doença.

A UFRR também oferta a disciplina Sociedade, Cultura e Saúde II, com uma ementa diferente. Nela propõe-se o estudo dos modelos teóricos e metodológicos aplicados ao estudo dos determinantes sociais do processo saúde-doença.

Debates apenas sobre Sexualidade

A universidade UFRR oferta de forma obrigatória, a disciplina “Introdução à saúde indígena”, na qual propõe-se a abordagem de assuntos relacionados à noção do corpo, sexualidade e reprodução indígena. Todas as disciplinas deste curso em particular são voltadas para a população indígena.

Gênero e Sexualidade para além das disciplinas

Ressalta-se que nas Instituições UNILA, UFMG E UFPE, a palavra gênero é mencionada não apenas na ementa ou matriz curricular.

A UNILA incentiva em suas diretrizes que em seus componentes curriculares sejam destacados assuntos como gênero, raça e etnia na atuação profissional e também pessoal. A Instituição aponta, assim, condutas e posturas que podem ajudar na melhoria dos serviços de saúde e daqueles que atuam no seu entorno, atingindo, por fim, o sujeito, seja ele outro(a) profissional ou usuário(a).

A UFMG orienta que as bases legais e as relações étnico-sociais e de gênero devem ser abordadas em suas disciplinas. No texto, a Instituição incentiva que os(as) estudantes cursem essas disciplinas optativas.

A UFPE oferta disciplinas para uma formação transversal não apenas aos(às) graduandos em Saúde Coletiva, mas a todos os/as estudantes de graduação, a exemplo da disciplina Teorias de Gênero e Sexualidade, Libras e Educação Ambiental.

Discussão

O debate em torno da temática de gênero e sexualidade, apresentada nos PPC dos cursos de graduação em Saúde Coletiva, elucida os embates em torno do(s) corpo(s) na formação em saúde. Corpo(s) esse(s) que é(são) atravessado(s) por uma série de elementos como o gênero e a sexua­lidade, bem como pela etnicidade, raça, classe social, entre outros.

É importante destacar que as disciplinas que abordam esse(s) corpo(s) a partir dos aspectos de gênero trazem o componente socio-histórico desse debate como um dos focos principais para compreender as performances em torno desse conceito que se materializa nas relações de cuidado em saúde. A esse respeito, Joan Scott1818 Scott JW. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. Am Historical Rev 1986; 91(5):1053-1075. já apontava que o gênero era, e ainda é, uma categoria útil de análise histórica ao evidenciar as estratégias de classificação de determinados fenômenos sociais, permeadas pelas relações de poder na materialização dessas diferenciações classificatórias. Assim, com a utilização do termo gênero, em diálogo com o movimento feminista e a teoria queer, os PPC apontam para uma distinção entre as “práticas sexuais” e os “papéis sexuais”, ampliando as noções tradicionais do corpo para além do componente biológico1818 Scott JW. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. Am Historical Rev 1986; 91(5):1053-1075..

Diante disso, esses componentes curriculares convidam os(as) estudantes a questionarem a realidade corporal pautada somente na dimensão biológica1919 Separavich MA, Canesqui AM. Girando a lente socioantropológica sobre o corpo: uma breve reflexão. Saúde Soc 2010; 19(1):249-259.. Problematizando assim, a ideia do “natural”, da “natureza”, inerente aos processos corporais2020 Moore H. Understanding sex and gender. In: Ingold T, editor. Companion encyclopedia of anthropology. London: Routledge ed.; 1997. p. 813-830.. Essa ideia que muitas vezes fixa o sujeito em uma matriz identitária heteronormativa, reiterando que uma determinada genitália indica um determinado gênero que, por sua vez, induz uma determinada orientação afetivo-sexual2121 Louro GL. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica; 2013.,2222 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2016.. Ou seja, a presença de uma vagina, indicaria que a pessoa é do gênero feminino e que ela tem uma atração afetivo-sexual por uma pessoa do gênero oposto, constituindo então uma relação heterossexual na qual, obrigatoriamente, essa outra pessoa teria um pênis. Além do mais, há o debate em torno das relações de poder entre homem(ns)/mulher(es) e sua (re)(des)construção em nossa sociedade, problematizando o dispositivo da sexualidade2323 Foucault M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra; 2015. em nossas práticas de cuidado em saúde.

Assim, os questionamentos produzidos por essas disciplinas a essa “ordem social” muitas vezes naturalizada, a qual busca organizar os (im)possíveis padrões de corpos e sujeitos, bem como das relações de poder (superior/inferior), permite aos(às) discentes refletirem sobre as sistemáticas subjugações, violências e exclusões de determinados corpos e sujeitos do cuidado em saúde2424 Teixeira FB. Dispositivos de dor: saberes poderes que (con)formam as transexualidades. São Paulo: Annablume/Fapesp; 2013.,2525 Ferraz D, Kraiczyk J. Gênero e Políticas Públicas de Saúde - construindo respostas para o enfrentamento das desigualdades no âmbito do SUS. Rev Psicol Unesp 2017; 9(1):70-82., compreendendo, dessa forma, os efeitos das iniquidades em saúde99 Barata RB. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.. Nesse sentido, para algumas disciplinas, a compreensão dos modelos explicativos da relação sociedade-cultura-saúde é um requisito prévio fundamental para se compreender as desigualdades na sociedade como um fenômeno com múltiplas dimensões.

Por isso, há uma viabilidade teórica para que a formação em Saúde Coletiva questione o que é ser mulher e ser homem em nossa sociedade, como já apontado por algumas unidades curriculares dos PPC analisados que problematizam, por exemplo, a questão da(s) masculinidade(s). Nesse caso, especificamente, observa-se uma proposta de problematização em torno de uma suposta identidade cultural hegemônica masculina, que muitas vezes é identificada como uma das barreiras para o cuidado integral em saúde2323 Foucault M. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra; 2015.,2626 Couto MT, Dantas SMV. Gênero, masculinidades e saúde em revista: a produção da área na revista Saúde e Sociedade. Saúde Soc 2016; 25(4):857-868.. Assim, essa problemática apresenta-se em várias políticas públicas (Saúde Integral da Mulher; Saúde Integral do Homem, Saúde Integral da população LGBT) como uma das estratégias de articulação entre saúde e educação para reduzir as barreiras no cuidado em saúde e promover a saúde integral dos(as) cidadãos(ãs) brasileiros(as).

Nessa esteira de discussões, muitos PPC analisados explicitam a interseccionalidade de gênero(s) e sexualidade(s) com outros marcadores sociais da diferença, como raça e etnia e o debate em torno dos povos indígenas. Alguns documentos propõem essa articulação de forma transversal, ao explicitarem essa interseccionalidade ao longo de todo o Projeto. Dessa forma, busca-se evidenciar que gênero e sexualidade atravessam e são atravessados pelos demais determinantes sociais (cor/raça/etnia, classe social). Isso é fundamental para a formação em Saúde Coletiva, por se tratarem de determinantes fundamentais na compreensão das desigualdades sociais1010 Villela W, Monteiro S, Vargas E. A incorporação de novos temas e saberes nos estudos em saúde coletiva: o caso do uso da categoria gênero. Cien Saude Colet 2009; 14(4):997-1006.. Talvez essa transversalidade no documento seja uma estratégia de reafirmar a importância de uma análise que articule diferentes marcadores para, com isso, potencializar a reflexão crítica dos modos que os dispositivos de poder produzem a diferença, subjugação, exclusão e violência2727 Moutinho L. Diferenças e desigualdades negociadas: raça, sexualidade e gênero em produções acadêmicas recentes. Cad Pagu 2014; 42(1):201-248..

Em relação à presença de questões que articulem gênero e sexualidade com os povos indígenas, especificamente em dois PPC, destaca-se que isso pode também estar relacionado ao fato de as regiões geográficas dessas Instituições apresentarem uma grande concentração indígena do país, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)2828 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Rio de Janeiro: IBGE; 2012.. Esse fato pode evidenciar uma possível busca dos PPC de se aproximarem das especificidades regionais, demonstrando um compromisso social das Instituições com seu entorno sociocultural.

Outro ponto que se destaca na análise dos PPC é o diálogo das questões de gênero e sexualidade com o debate em torno do HIV/aids. Essa questão se torna relevante pois a epidemia do HIV/aids na década de 1980 no Brasil, permitiu a vocalização de grupos até então silenciados pela heteronormatividade, ampliando a discussão em torno das possibilidades de existências dos sujeitos1111 Raimondi GA. Saúde da população "trans": uma revisão sistemática da produção teórica brasileira [dissertação]. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia; 2016.,2525 Ferraz D, Kraiczyk J. Gênero e Políticas Públicas de Saúde - construindo respostas para o enfrentamento das desigualdades no âmbito do SUS. Rev Psicol Unesp 2017; 9(1):70-82.. No entanto, segundo Seffner e Parker2929 Seffner F, Parker R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à AIDS. Interface (Botucatu) 2016; 20(57):293-304., o estigma e a discriminação continuam presentes nos sujeitos homossexuais que são ainda atrelados à ideia de impureza a partir da suposta contaminação pelo HIV, como evidenciado pela ambígua posição do Ministério da Saúde sobre a doação de sangue por pessoas que se autodeclaram homossexuais. Além disso, vivenciamos uma re-emergência da epidemia do HIV/aids na sociedade brasileira, principalmente em relação ao aumento do número de mortes e da taxa de mortalidade3030 Grangeiro A, Castanheira ER, Nemes MIB. A re-emergência da epidemia de aids no Brasil: desafios e perspectivas para o seu enfrentamento. Interface (Botucatu) 2015; 19(52):5-8..

Esse cenário em torno do HIV/aids e das questões de gênero e sexualidade explicitam os regimes de verdade que ainda sistematicamente aumentam a vulnerabilidade ao HIV/aids devido ao preconceito e discriminação. Problematizar isso na formação em Saúde Coletiva traz a potencialidade de concretização de se (re)pensar políticas públicas que efetivem a promoção da saúde e os direitos humanos.

Mesmo diante da incorporação desse debate dos determinantes sociais em saúde, especificamente o(s) gênero(s) e a(s) sexualidade(s), aparentemente os PPC mantêm um enfoque em apresentar esses determinantes aos(às) discentes como “fatos a serem conhecidos” e não como “condições a serem desafiadas”. Isso ocorre pois explicita-se nos PPC e nas várias unidades curriculares analisadas o debate em torno do sexo, mas não do sexismo, da raça e etnia, mas não do racismo, da LGBTlidade e não da LGBTfobia. O que limita, com isso, as possibilidades de alcance da equidade em saúde3131 Sharma M, Pinto AD, Kumagai AK. Teaching the Social Determinants of Health: A Path to Equity or a Road to Nowhere? Academic Med 2018; 93(1):25-30.. É essencial que esses discursos sejam ampliados bem como a questão da desigualdade de gênero, incluindo, por exemplo, a pauta da violência contra a mulher, uma vez que, há um aparente silêncio e/ou pouco pronunciamento desse debate nos documentos analisados.

Destaca-se que somente uma disciplina analisada explicita o estudo do preconceito e da discriminação aos sujeitos, ao abordar as questões do racismo. Em relação às questões envolvendo a população LGBT observa-se que somente um Projeto aborda essa temática, com enfoque somente na homoafetividade e no movimento LGBT.

Poder-se-ia pensar que esses debates, como o sexismo, o racismo e a LGBTfobia, ocorram em momentos oportunos da formação em Saúde Coletiva, em diálogo com os determinantes sociais em saúde. No entanto, essa possibilidade esbarra na decisão docente de abordar aquilo que julga ser mais adequado. A explicitação curricular poderia garantir que essas abordagens ocorrerão, evitando assim, a simplificação e o silenciamento desse debate. Um exemplo dessa questão, é o debate da inclusão ou não do(s) gênero(s) na Base Nacional Curricular Comum, que encontra resistência por setores conservadores da sociedade3232 Macedo E. As demandas conservadoras do movimento escola sem partido e a base nacional curricular comum. Educ Soc 2017; 38(139):507-524..

Apesar da abordagem da temática em disciplinas optativas poder ser considerada uma conquista na superação das iniquidades concernentes ao gênero e à sexualidade, não é possível mensurar, por esta análise, a abrangência de estudantes que optam por estas disciplinas através do PPC. Assim alguns/algumas discentes podem formar-se sanitaristas sem aprimorar suas competências relacionadas à temática de gênero e sexualidade.

A oferta da disciplina de forma obrigatória proporciona a participação total dos(as) estudantes do curso, garantindo que durante a graduação este conhecimento seja abordado. Destaca-se que um(a) sanitarista – como profissional do setor saúde, com uma formação intrinsicamente relacionada aos princípios e diretrizes do SUS, tendo os determinantes sociais como um dos elementos constitutivos para a compreensão do processo saúde-adoecimento-cuidado e sendo uma pessoa que irá se relacionar com outras pessoas, buscando promover o cuidado em saúde – precisa compreender essas diferenças, a fim de desenvolver competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) que proporcionem um cuidado integral e equânime em saúde, como proposto pela Lei 8.0803333 Brasil. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 19 set..

Identificamos também que todas as Instituições abordam mais os aspectos relacionados às discussões de gênero do que de sexualidade e quando ocorre o debate, ele é um complemento às discussões de gênero. A ausência da abordagem da sexualidade evidencia que os(as) sanitaristas provavelmente graduam-se sem conhecimentos específicos quanto a esses assuntos, havendo uma possível limitação para uma boa prática profissional que considere a diversidade e a potencialidade humana. Isso estaria em contradição com as orientações da Associação Mundial de Saúde Sexual que, na Declaração da Saúde Sexual para o Milênio, afirma que todos(as) têm o direito de uma “educação sexual esclarecedora”, que aborde essa temática em articulação com sexo, identidade de gênero, orientação afetivo sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução3434 World Association for Sexual Health. Sexual health for the millennium: a declaration and technical document. Minneapolis: World Association for Sexual Health; 2008.,3535 World Association for Sexual Health. Declaration of sexual rights. Prague: World Associaciation for Sexual Health; 2014.. Isso também é reiterado pela Organização Mundial de Saúde nos Princípios de Yogyakarta3636 The International Service for Human Rights. The International Commission of Jurists. The yogyakarta principles plus 10 - Additional principles and state obligations on the application of international human rights law in relation to sexual orientation, gender identity, gender expression and sex characteristics to complement the yogyakarta. Geneva: UN; 2017.,3737 The International Commission of Jurists; The International Service for Human Rights. The yogyakarta principles - Principles on the application of international human rights law in relation to sexual orientation and gender identity. Yogyakarta: UN; 2007..

Ademais, temos que considerar que algumas ementas tendem a ser sucintas, sem muitas informações, contendo às vezes apenas palavras-chave sobre os conteúdos que serão abordados em determinada disciplina. Além disso, certos PPC não disponibilizam as ementas das disciplinas, limitando assim a nossa compreensão, o que constituem limitações do estudo.

Sendo esta pesquisa de cunho documental, falta-nos informações do currículo vivo e de demais formas de abordagens pedagógicas utilizadas ao longo da formação como, palestras, projetos de extensões, mini-cursos, etc. Essas estratégias podem possibilitar essas discussões, mas não são alcançadas nessa análise, devido ao tipo de pesquisa.

Para potencializar essa discussão, novos trabalhos que envolvam a análise das fichas completas dos PPC de todos os cursos de graduação em Saúde Coletiva no Brasil, bem como a análise do currículo vivo, presente no cotidiano real da formação dos(as) sanitaristas, é fundamental.

Conclusão

Nota-se que ainda existem PPC que podem inserir e expandir o debate de gênero e sexualidade. Outros fazem essa discussão e pelas ementas é possível observar que o debate pode ser aprimorado. A ausência dos termos gênero e sexualidade nos documentos oficiais sobre a formação em Saúde Coletiva evidencia uma fragilidade importante, podendo deixar a formação à mercê do currículo oculto ou informal. O silenciamento da temática no PPC ou a sua associação a contextos que limitam a visão integral do sujeito é importante resultado sobre o discurso institucional e seus impactos na formação e cuidado em saúde integral da população brasileira. Em especial no tocante aos determinantes sociais gênero e sexualidade, apesar das conquistas das CNS e dos movimentos sociais, com destaque para o movimento feminista e o LGBT.

O que se percebe é que a graduação em Saúde Coletiva é uma formação acadêmica muito recente em nosso país, e por isso, muitos cursos estão se estruturando. As matrizes curriculares estão sendo revistas e atualizadas, assim como os projetos pedagógicos. Assim, é fundamental que a DCN para os cursos de Graduação em Saúde Coletiva no país considere e explicite essa temática, uma vez que o silenciamento reitera os obstáculos que o debate enfrenta nos diferentes setores da formação acadêmica.

A sensibilização de docentes e discentes, durante a graduação, por meio dessas discussões permitirá uma maior compreensão sobre as demandas em saúde relacionadas a gênero e sexualidade, aprimorando o acesso e o cuidado em saúde. Trazer estes debates para formação em saúde, possibilita um novo olhar para as pessoas, permitindo reavaliar suas necessidades1010 Villela W, Monteiro S, Vargas E. A incorporação de novos temas e saberes nos estudos em saúde coletiva: o caso do uso da categoria gênero. Cien Saude Colet 2009; 14(4):997-1006..

O presente trabalho pode contribuir com as Instituições, mostrando a forma como essas discussões têm sido propostas na graduação, especialmente para os cursos que ainda não contemplam disciplinas com estas temáticas. Assim, espera-se estimular seu aperfeiçoamento e inserção longitudinal ao longo da formação, na interface com outros determinantes que atravessam o cuidado em saúde do ser integral.

Agradecimentos

Agradecemos à Profª. Flávia do Bonsucesso Teixeira e ao Prof. Nilton Pereira Junior, pelas valiosas contribuições a essa pesquisa, durante sua apresentação em banca de trabalho de conclusão de curso de graduação.

Agradecemos ao curso de Gestão em Saúde Ambiental/Saúde Coletiva do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia por viabilizar a realização deste trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2018
  • Aceito
    22 Set 2018
  • Publicado
    24 Set 2018
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br