Práticas sociais do parto e do nascer no Brasil: a fala das puérperas

Neide Pires Leal Maria Helena Versiani Maria do Carmo Leal Yammê Ramos Portella Santos Sobre os autores

Resumo

O artigo analisa as opiniões de um grupo de mulheres acerca da atenção por elas recebida em maternidades vinculadas ao Programa Rede Cegonha, do Ministério da Saúde. Tais opiniões foram sistematizadas por meio de um questionário aplicado a 10.665 puérperas, nos anos 2016 e 2017, como parte do estudo Avaliação das boas práticas na atenção ao parto e nascimento em maternidades no âmbito da Rede Cegonha, desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz e pela Universidade Federal do Maranhão. Composto majoritariamente de perguntas fechadas, o questionário contém, ao final, uma questão aberta, optativa, em que as puérperas são convidadas a falar com liberdade sobre as condições de seu atendimento nas maternidades. Das 10.665 puérperas entrevistadas, 2.069 registraram opiniões livres. Fez-se uma leitura crítica das opiniões, atenta às suas singularidades e recorrências, para discuti-las à luz de produções bibliográficas especializadas. Os temas destacados foram: relacionamento entre puérperas e equipe de saúde; o direito das puérperas à informação; presença do acompanhante; e qualidade dos serviços e infraestrutura hospitalares. Em comum, todas as mulheres, a partir de elogios ou críticas, reiteram a importância de qualificar os serviços públicos de saúde em prol da humanização do parto no Brasil.

Palavras-chave
Avaliação de serviços de saúde; Parto; Rede Cegonha

Práticas sociais do nascer no Brasil

Até o início do século XIX, no Brasil, os partos eram considerados “assunto de mulher”. Uma prática domiciliar, em que apenas mulheres acompanhavam o evento, realizado frequentemente sob os cuidados de uma parteira. De modo geral, a parteira gozava da inteira confiança das mulheres e era consultada quanto aos cuidados com a gestação e o recém-nascido. Outras práticas sociais nesse campo teriam início somente após a criação da Faculdade de Medicina da Bahia (1808) e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1809). A presença do homem nesse ambiente, até então estritamente feminino, encontraria muita resistência das mulheres e de seus familiares11 Brenes AC. História da parturição no Brasil, século XIX. Cad Saude Publica 1991; 7(2):135-149.,22 Palharini LA, Figueirôa SF. Gênero, história e medicalização do parto: a exposição "Mulheres e práticas de saúde". História, Ciências, Saúde-Manguinhos 2018; 25(4):1039-1061..

No século XIX, o esforço de conferir estatuto de cientificidade ao conhecimento ganhou força no Brasil, a partir da influência direta da escola positivista de Augusto Comte (1798-1857). O desenvolvimento do método científico expressaria o progresso do espírito humano, iluminando a sua marcha ascendente em direção ao verdadeiro conhecimento33 Coelho FE. A História das Ciências e seus públicos. Revista Maracanan 2015; 13(1):23-33.. Em linha com esse pensamento, a formação superior em Medicina conquista projeção social e credibilidade, questionando e desenvolvendo em outros termos o conhecimento empírico das parteiras. Já na primeira metade do século XX, pessoas com boa condição financeira recorriam a médicos para a realização de partos domiciliares. Simultaneamente, ganhou força o argumento das vantagens e segurança do parto hospitalar em relação ao domiciliar e, na década de 1950, a estrutura de atendimento hospitalar se estabeleceu como marco decisivo do processo de hospitalização44 Silva F, Nucci M, Nakano AR, Teixeira L. "Parto ideal": medicalização e construção de uma roteirização da assistência ao parto hospitalar no Brasil em meados do século XX. Saúde Soc 2019; 28(3):171-184..

A construção da imagem do médico que inspira confiança na população articulava o entendimento de que o parto não pode ser conduzido por leigas22 Palharini LA, Figueirôa SF. Gênero, história e medicalização do parto: a exposição "Mulheres e práticas de saúde". História, Ciências, Saúde-Manguinhos 2018; 25(4):1039-1061.. Junto, com o desenvolvimento da Medicina, o recurso ao uso do fórceps e à prática da cesárea, utilizado em situações extremas, salvando da morte a puérpera e/ou o recém-nascido, reforçava a ideia de que o médico seria o melhor condutor do parto. A gestante e a gestação tornam-se pessoa e processo que exigem cuidados médicos, e o parto deixa de ser tratado como evento natural e fisiológico. Ato contínuo, o controle e a condução das atitudes da parturiente passam a ser cada vez mais praticados pela equipe de saúde, reservando-se à mulher um papel mais passivo. O posicionamento da parturiente em decúbito dorsal, a proibição da ingestão de líquidos ou comida nos momentos que antecedem o parto e a orientação de que a mulher deve permanecer no leito aguardando as contrações para o parto são alguns exemplos dessa conduta, ainda hoje realizada em muitos hospitais.

Se na primeira metade do século XX a cirurgia cesariana assustava médicos e sociedade em geral, por apresentar alta taxa de mortalidade materna, na década de 1970 passou-se a acreditar que existia uma relação direta entre a redução da mortalidade materno-infantil e o crescimento do número de cesáreas. Essa hipótese não se sustentou e hoje sabemos que foi uma conjunção de fatores que levou a esse resultado. O advento do banco de sangue, a incorporação do antibiótico às práticas médicas, as condições de assepsia do ambiente hospitalar e de controle de assepsia da equipe médica, como a lavagem de mãos e uso de luvas, contribuíram conjuntamente para a redução da mortalidade materna e perinatal55 Nakano AR, Bonan C, Teixeira LA. Cesárea, aperfeiçoando a técnica e normatizando a prática. História, Ciências, Saúde - Manguinhos 2016; 23(1):155-172..

Atualmente, mais de 90% dos partos no Brasil ocorrem em hospitais66 Bittencourt SDA, Vilela MEA, Oliveira MC, Santos AM, Silva CKRT, Domingues R, Reis AC, Santos GL. Atenção ao parto e nascimento em maternidades da Rede Cegonha: avaliação do grau de implantação das ações. Cad Saude Publica 2020; [no prelo]. e é nesse contexto que observamos uma mudança radical na forma de nascer, centrada no ambiente hospitalar, no médico, na tecnologia e na intervenção cirúrgica. Uma alteração total de ambiente físico, de protagonistas, de instrumentos utilizados, de rituais e da dinâmica de todo o processo. Esse novo padrão de parto admite o recurso exagerado à prática da cesárea, em que mesmo partos de risco habitual muitas vezes são programados para um desfecho cirúrgico77 Nakano A. A normalização da cesárea como modo de nascer: cultura material do parto em maternidades privadas no Sudeste do Brasil. Physis 2015; 25(3):885-904.. Além disso, fatores relacionados às rotinas hospitalares que valorizam o agendamento dos partos, o aprimoramento da técnica, o domínio e a confiança dos médicos na cirurgia cesariana têm influenciado para a ampliação e a promoção do uso dessa prática. A cesárea, que na primeira metade do século XX era um recurso utilizado em casos de extrema necessidade – risco de vida para a mãe e/ou o bebê –, passa a ser considerada uma forma “normal” de nascer, ganhando a preferência de muitos médicos. A par dessa realidade, a taxa de cesárea no Brasil é hoje muito mais elevada do que o recomendado pela Organização Mundial de Saúde-OMS e pela Organização Pan-Americana de Saúde-OPAS: “Não há justificativa, em nenhuma região do mundo, para taxas de cesáreas maiores que 10-15%”88 World Health Organization (WHO). Appropriate technology for birth. Lancet 1985; 24(2):436-437.. No Brasil, essa taxa é de quase 90% nos hospitais da assistência suplementar e de quase 45% na rede pública77 Nakano A. A normalização da cesárea como modo de nascer: cultura material do parto em maternidades privadas no Sudeste do Brasil. Physis 2015; 25(3):885-904.. Mesmo na rede pública, a taxa de cesáreas é grande, em torno de três vezes mais elevada do que o recomendado pela OMS e pela OPAS.

Rede Cegonha

A percepção da necessidade de mudanças nas lógicas e nas práticas sociais de assistência ao parto mobilizou profissionais de saúde pública e militantes do parto humanizado, em movimento que ganhou força particular no processo que conduziu à promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e à criação do Sistema Único de Saúde-SUS. O Fundo VIII Conferência Nacional de Saúde, acervo arquivístico preservado na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, reúne importante conjunto de documentos sobre os debates em torno da consolidação do SUS e da humanização das práticas do nascimento.

No âmbito das iniciativas então desenvolvidas, programas de melhoria da atenção ao parto e nascimento vêm sendo discutidos e estruturados, destacadamente a partir dos anos 199099 Leal MC, Szwarcwald CL, Almeida PVB, Aquino EML, Barreto ML, Barros F, Victora C. Saúde reprodutiva, materna, neonatal e infantil nos 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1915-1928.. Com base na experiência de médicos, enfermeiros, parteiras, doulas, ativistas, formuladores de políticas de saúde, gestores e mulheres, em junho de 2011, o Programa Rede Cegonha foi instituído pelo Ministério da Saúde, no âmbito do SUS, estabelecendo-se como uma rede de cuidados que visa a assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada na gravidez, no parto, no puerpério e em eventuais abortamentos. Ao recém-nascido, visa a garantir o direito ao nascimento seguro e ao desenvolvimento saudável1010 Brasil. Portaria nº 1.459, de 24 junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Diário Oficial da União 2011; 24 jun.. Trata-se de uma rede que se estende desde o planejamento familiar até os dois primeiros anos de vida da criança. Um novo modelo de atenção à saúde materna e infantil, com foco na atenção humanizada ao parto e ao nascimento.

Foge ao objetivo deste artigo uma apresentação densa das características do Rede Cegonha, mas vale pontuar que, inicialmente, o Programa ambicionava atender regiões brasileiras que apresentavam maiores índices de mortalidade materna e infantil. Porém, acabou por abarcar a noção de universalidade que alicerça o SUS1111 Marques CPC, organizador. Redes de Atenção à Saúde: A Rede Cegonha. São Luís: Universidade Federal do Maranhão; 2015.. Em dezembro de 2013, a Rede Cegonha já atuava em 100% dos estados do Brasil1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Implantação das Redes de Atenção à Saúde e Outras Estratégias da SAS. Brasília: MS; 2014.. Dados disponíveis para o ano de 2017 mostram que o Programa alcançava 5.488 municípios do país1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Rede Cegonha: Panortama, 2017. [acessado 2020 Maio 4]. Disponível em: s://www.saude.gov.br/acoes-e-programas/rede-cegonha/panorama
s://www.saude.gov.br/acoes-e-programas/r...
. No site do Ministério da Saúde, hoje, consta que a estruturação do Programa segue sendo gradativamente ampliada em todo território nacional1414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Rede Cegonha. [acessado 2020 Maio 6]. Disponível em: https://www.saude.gov.br/acoes-e-programas/rede-cegonha
https://www.saude.gov.br/acoes-e-program...
.

Uma avaliação da Rede Cegonha

Como toda política pública, a Rede Cegonha deve ser acompanhada e monitorada, com avaliações periódicas, a fim de confirmar se os recursos disponibilizados pelo SUS estão gerando as ações de saúde desejadas. Dentro dos ciclos avaliativos planejados, o Ministério da Saúde solicitou à Fundação Oswaldo Cruz-Fiocruz e à Universidade Federal do Maranhão-UFMA, um estudo das práticas nas maternidades onde o programa Rede Cegonha está implementado, compreendendo os anos de 2016 e 2017. Coordenaram a pesquisa: Maria do Carmo Leal (Fiocruz) e Érika Barbosa Abreu Fonseca Thomaz (UFMA).

A pesquisa foi denominada “Avaliação das boas práticas na atenção ao parto e nascimento em maternidades no âmbito da Rede Cegonha”. A coleta de dados no campo aconteceu em maternidades públicas e mistas (privadas, conveniadas ao SUS). Foram contempladas 606 maternidades, distribuídas por 408 municípios brasileiros, cobrindo todos os estados do país e o Distrito Federal1515 Vilela MEA, Leal MC, Thomaz EBAF, Gomes MASM, Bittencourt SDA, Gama SGN, Silva LBRAA, Lamy ZC. Avaliação da atenção ao parto e nascimento nas maternidades da Rede Cegonha: os caminhos metodológicos. Cien Saude Colet 2020; 26(3):789-800..

Entre outros instrumentos de avaliação, foram elaborados questionários para gestores, trabalhadores da assistência e puérperas. O questionário aplicado às puérperas é composto por 95 questões, majoritariamente em formato de perguntas fechadas, e sistematiza informações relacionadas à identificação geral dessas mulheres, tais como faixa etária, escolaridade e número de partos, e também informações relacionadas ao acesso à maternidade, ao acolhimento da gestante, classificação de risco, direito a acompanhante, condições físicas da maternidade e garantia do contato pele-a-pele entre mãe e recém-nascido. Ao final do questionário consta uma questão aberta, em que as puérperas são convidadas a falar com liberdade sobre quaisquer assuntos ou aspectos de sua experiência durante a internação. Em um universo de 10.665 puérperas, 2.069 fizeram esta opção.

Para realização das entrevistas, foram mobilizados 126 entrevistadores, entre dezembro de 2016 e outubro de 2017. Os dados coletados foram registrados em formulário eletrônico, na plataforma web – Research Electronic Data Capture e geraram um banco de dados.

Neste artigo, interessa-nos analisar especificamente as opiniões livres registradas, cabendo destacar que a transcrição desse material, inserida no banco de dados, não apresenta as falas originais das puérperas, mas sim registros dessas falas produzidos pelos entrevistadores.

A fala das puérperas

O interesse em analisar as opiniões livres das puérperas entrevistadas apoia-se no pressuposto de que as experiências dos usuários do sistema de saúde ajudam à compreensão de lógicas e condicionantes desse sistema. Uma série de estudos reforça a importância da participação social nos processos de planejamento e avaliação do SUS1616 Gomide MFS, Pinto IC, Bulgarelli AF, Santos ALP, Serrano Gallardo MP. A satisfação do usuário com a atenção primária à saúde: uma análise do acesso e acolhimento. Interface (Botucatu) 2018; 22(65):387-398.. Gabi et al.1717 Gabe MB, Rosa AS, Garcia LSB, Ambrosio PG, Madeira K. O grau de satisfação do usuário é um importante indicador na avaliação da qualidade dos serviços de saúde. Arquivos Caterinenses de Medicina 2018; 47(3):146-158. está entre os que afirmam que o grau de satisfação do usuário é um importante indicador na avaliação da qualidade dos serviços de saúde. Na mesma linha, Esperidião e Vieira-da-Silva1818 Esperidião MA, Vieira-da-Silva LM. A satisfação do usuário na avaliação de serviços de saúde: ensaio sobre a imposição de problemática. Saúde Debate 2018; 42(n. esp. 2):331-340. destacam que as pesquisas de satisfação são estratégicas na defesa dos direitos do usuário, também reconhecido como ator-chave no controle das ações do SUS, em sintonia com um dos postulados do sistema: a participação social1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Princípios do SUS. Portal do Ministério da Saúde. [acessado 2019 Dez 9]. Disponível em: https://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude/principios-do-sus
https://www.saude.gov.br/sistema-unico-d...
.

Nessa perspectiva, as opiniões livres das puérperas aqui em análise são percebidas como formas de participação social que constituem fonte de saber singular à compreensão de demandas relacionadas à qualificação da gestão e da atenção obstétrica e neonatal no Brasil. Assumimos que a experiência dessas mulheres tem lugar ativo na construção do conhecimento científico. Ouvi-las contribui decisivamente para a identificação de problemas e a construção de soluções para o sistema de saúde no campo da obstetrícia.

Neste estudo, nos beneficiamos do método de análise de conteúdo proposto por Bardin2020 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979. e retomado, entre outros, por Silva e Fossá2121 Silva AH, Fossá MIT. Análise de conteúdo: exemplo de aplicação da técnica para análise de dados qualitativos. Qualitas 2015; 17:1-14., reconhecendo as opiniões das puérperas como formas de comunicação passíveis de serem objeto de inferência e interpretação. Com tal finalidade, iniciamos a leitura de cada registro de opinião sem perder de vista as relações entre eles, visando a reter os valores que aparecem de forma recorrente no conjunto. Assim, desenvolvemos a análise dentro do movimento pendular, que nos levou de cada opinião ao conjunto, observando os elementos identitários que apontam para tendências unificadoras. Cada opinião foi percebida, não apenas como elemento da identidade de quem a produziu, mas também como expressão de valores compartilhados.

Todos os 2.069 registros foram analisados. O primeiro esforço foi compreender os sentidos atribuídos pelas puérperas às suas falas. Em seguida, buscamos situar os temas abordados no contexto da produção de conhecimento acadêmico relacionada. Ou seja, procuramos estabelecer os nexos entre os temas abordados e a produção de conhecimento científico, desse modo potencializando as opiniões livres das puérperas como elemento de reflexão sobre a atenção ao parto e ao nascimento no Brasil.

As percepções predominantes no conjunto de registros analisados foram organizadas na forma de um quadro temático, em que tiveram destaque quatro questões: relacionamento entre puérperas e equipe de saúde; o direito das puérperas à informação; a presença do acompanhante; e a qualidade dos serviços e da infraestrutura hospitalares.

Para o desenvolvimento da análise, destacamos a seguir alguns trechos de opiniões registradas, exemplares de cada um dos quatro eixos temáticos definidos.

Relacionamento entre puérperas e equipe de saúde

No conjunto analisado, há pronunciamentos contundentes em afirmar que, nos processos do nascimento, as opiniões e os sentimentos das parturientes importam. Contra o suposto de que a equipe de saúde detém com exclusividade o saber e a competência nesse campo, algumas puérperas queixam-se de serem vistas como uma paciente que tão somente devem seguir orientações, participando pouco nas injunções do parto. Reclamam, quando as decisões dos profissionais de saúde acontecem sem o seu consentimento, conforme exposto nos trechos abaixo:

- Na hora do meu parto parecia que estava tendo uma festa em que eu não fui convidada.

- Existem profissionais que te dão mais atenção e tem aqueles que não te veem.

Oliveira e Penna2222 Oliveira VJ, Penna CM. Cada parto é uma história: processo de escolha da via de parto, Brasília. Rev Bras Enferm 2018; 71(Supl. 3):1304-1312. afirmam que, frequentemente, o médico define a conduta a seguir nos processos do parto sem diálogo com as gestantes e parturientes, estabelecendo-se uma relação de poder.

Porém, não obstante as críticas, outros depoimentos apontam para a satisfação das puérperas entrevistadas no tocante à atenção com os seus sentimentos e desejos:

- Fiz plano de parto e todas as minhas preferências foram atendidas. Pude ganhar na sala de pré-parto, como quis. Permitiram que eu ganhasse na posição que eu me sentia melhor. A ocitocina foi colocada por apenas 10 minutos, com combinação prévia. Meu marido cortou o cordão. Foi perfeito! Me preparei para este momento, e fui atendida.

- Fui bem tratada e tudo que precisava ser feito foi feito. Me sinto completa e satisfeita com o profissionalismo das pessoas daqui.

Ou seja, alguns depoimentos sugerem que a imagem dos profissionais de saúde capazes e de gestantes e puérperas incapazes já não expressa uma realidade cristalizada, sendo plausível afirmar que as ações do Rede Cegonha – voltadas para o reconhecimento das gestantes e puérperas como sujeito social que tem direitos, consciente e participante – contribuem para colocar em xeque o suposto saber único dos profissionais de saúde, na proporção em que revalorizam a gestante nos processos do parto. Não mais os papéis subordinados, pré-fixados, mas sim mulheres que devem ser ouvidas e participam das decisões em relação ao parto, instruídas pelo seu vivido e pelos seus sentimentos.

O direito das puérperas à informação

Algumas puérperas são diretas em dizer que a falta de diálogo com a equipe de saúde deixa margem para dúvidas e interpretações equivocadas em relação a situações por elas vivenciadas nas maternidades. Entre os exemplos:

- Não sei por que fiquei em isolamento. Me sinto mal de estar isolada.

- Não me informaram da dilatação na hora de ter o bebê, e acho que isso influenciou pra fazerem a episiotomia. Estou muito chateada...

- Eu acho que os profissionais deviam informar melhor às mulheres sobre o que está acontecendo.

Pimentel e Oliveira-Filho2323 Pimentel TA, Oliveira-filho EC. Fatores que influenciam na escolha da via de parto cirúrgico: uma revisão bibliográfica. Universitas 2016; 12(12):187-199. concordam que a mulher nem sempre está bem informada no momento do parto. No âmbito dos serviços de saúde pública, relatam que é comum que as mulheres desconheçam os recursos analgésicos e os métodos não farmacológicos para alívio da dor. O fato de que nem todos os hospitais do SUS dispõem de artefatos fisioterapêuticos que auxiliam na evolução do trabalho de parto e parto, como bola de bobath, cavalinho, banheira e chuveiro para banho morno etc., não justifica a falta de diálogo aberto entre a equipe de saúde e a gestante sobre os procedimentos utilizados, tendo em vista construir confiança e unir forças em torno de ações que sejam benéficas. É nesse sentido que Baldisseroto2424 Baldisserotto ML. Associação entre as boas práticas de assistência ao trabalho de parto e parto e a avaliação pelas puérperas do cuidado recebido [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2015. afirma que o bom diálogo com a equipe de cuidadores durante o trabalho de parto e parto é condição-chave para a satisfação das parturientes e, por isso, defende que o Ministério da Saúde deve investir na qualificação da equipe para esse fim.

Cabe destacar, contudo, que, em relação à falta de bom diálogo entre profissionais de saúde e usuárias de maternidades públicas, a estratégia de implantação do Rede Cegonha envolveu a qualificação de recursos humanos abrindo cursos de especialização e residências médicas voltadas para a saúde da mulher e do neném, incluindo formações em enfermagem obstétrica2525 Leal MC, Bittencourt SA, Esteves-Pereira AP, Ayres BVS, Silva LBRAA, Thomaz EBAF, Lamy ZC, Nakamura-Pereira M, Torres JA, Gama SGN, Domingues RMSM, Vilela MEA. Avanços na assistência ao parto no Brasil: resultados preliminares de dois estudos avaliativos. Cad Saude Publica 2019; 35(7):1-14.. De fato, algumas entrevistadas reconhecem avanços na qualidade do atendimento do SUS, conforme os exemplos abaixo:

- Gostei do atendimento, não tem diferença do atendimento do SUS e do plano de saúde.

- Se fosse dizer, diria que eu agradeço pelo atendimento, eles veem um ser humano, eles ajudam a gente.

- Amei a maternidade, gostei dos profissionais, eles respeitam a privacidade e ensinam coisas que são importantes pra o bebê e pra gente.

- Achei bom o atendimento, explicando tudo certo.

Em direção oposta, se não há diálogo, a insatisfação e a frustração encontram terreno fértil, como se vê no pronunciamento abaixo:

- Não tive atendimento adequado, não recebi medicação pra ajudar nas contrações, mesmo tendo pedido. Se fosse pra ter filho sozinha, teria ficado em casa.

As situações-limite combinam falta de diálogo com desrespeito. Entre outros exemplos, as mulheres que se queixam de dor tornam-se alvo de chacotas e insinuações:

- Me mandaram parar de gritar quando eu estava em trabalho de parto, falaram que até os bichos ganham seus filhos sozinhos, e que eu devia parar de gritar, porque eu não era louca.

- Não gostei da atitude da médica durante o trabalho de parto. Me mandaram calar a boca.

Socorro et al.2626 Socorro TC, Matos AO, Machado JBH. A violência obstétrica como afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e a necessidade de implementação de políticas públicas específicas no Brasil. Anais do I Congresso Internacional de Direito Público dos Direitos Humanos e Políticas de Igualdade, Maceió, Alagoas, 2018. discutem que a violência obstétrica – por negligência, grosseria e por procedimentos dolorosos realizados sem a permissão ou o conhecimento da mulher – é uma realidade que demanda, não só a implementação de políticas públicas para identificação e punição desses atos, mas, também, a capacitação profissional e dos serviços de saúde para garantia plena dos direitos da parturiente e do seu bebê, o que inclui o direito à informação. Ou seja, são pertinentes e necessários os esforços do SUS na direção de promover políticas públicas específicas no campo da obstetrícia, investindo na qualificação dos seus profissionais, para que, cada vez mais, os casos de violência obstétrica sejam exceções enfrentadas e punidas no âmbito do funcionamento geral do sistema de saúde público.

Alguns autores apontam o problema da desinformação em casos relacionados à escolha da mulher pelo tipo de parto. Kottwitz et al.2727 Kottwitz F, Gouveia H, Gonçalves A. Via de parto preferida por puérperas e suas motivações. Escola Anna Nery 2018; 22(1):1-8. ressaltam a importância do aconselhamento da gestante pela equipe de saúde, partilhando informações sobre as especificidades de cada parto, sem desconsiderar as suas necessidades socioeconômicas e culturais.

De fato, algumas puérperas entrevistadas sinalizam que o modo como são atendidas pode favorecer ou prejudicar o seu discernimento para decidir sobre a via do parto:

- Eu queria ter parto normal, mas não me deram essa opção. A enfermeira disse que ia demorar muito, que eu ia sofrer muito e que eu ia ter que ficar sozinha na sala de espera.

- Meu acompanhante ficou muito incomodado com a insistência dos médicos pra eu ter parto normal, sendo que eu queria cesárea.

Arik et al.2828 Arik R, Parada CMGL, Tonete VLP, Sleutjes FCM. Percepções e expectativas de gestantes sobre o tipo de parto. Rev Bras Enferm 2019; 72(3):46-54. chamam atenção para a urgência de bem informar as mulheres especificamente sobre os riscos e desvantagens do parto cesariano sem indicações clínicas. Ainda são excessivas, no Brasil, as intervenções cirúrgicas no parto, sem um diagnóstico prévio2929 Nakamura-Pereira M, Leal MC, Esteves-Pereira AP, Domingues RMSM, Torres JA, Dias MAB, Moreira ME. Use of Robson classification to assess cesarean section rate in Brazil: the role of source of payment for childbirth. Reproductive Health 2016; 13(Supl. 3):245-265.. Em muitos casos, a cesárea é percebida como via facilitadora da realização do parto, concorrendo para isso a crença de que é um parto mais limpo, asséptico, sem dores, sem surpresas, totalmente seguro, programado e controlado. Nakano77 Nakano A. A normalização da cesárea como modo de nascer: cultura material do parto em maternidades privadas no Sudeste do Brasil. Physis 2015; 25(3):885-904. comenta que está em plena construção a consolidação de um novo sistema de normas e regras para o nascimento e o parto. No entanto, ao contrário do que reza o senso comum, hoje há evidências científicas de que o uso indiscriminado da técnica cesariana resulta em elevação da morbimortalidade materna e infantil, além de uma alta desnecessária nos custos para o sistema de saúde. Estudos indicam que as cesarianas aumentam o risco de hemorragias e infecções em mulheres, podendo levar à morte3030 Esteves-Pereira AP, Deneux-Tharaux C, Nakamura-Pereira M, Saucedo M, Bouvier-Colle MH, Leal MC. Caesarean Delivery and Postpartum Maternal Mortality: A Population-Based Case Control Study in Brazil. Plos One 2016; 11(4):1-13.. Além disso, em gravidezes futuras, aumentam as chances de óbito fetal sem causa aparente e de formação anormal da placenta3131 Martinelli KG. Idade materna avançada e sua associação com placenta prévia e deslocamento placentário: uma metanálise. Cad Saude Publica 2018; 34(2):1-14.. Para os bebês, o parto cesariana ligado à prematuridade está associado a maiores chances de morte pós-natal, bem como de terem um Apgar baixo no quinto minuto após o nascimento3232 Varela AR, Schneider BC, Bubach S, Silveira MF, Bertoldi AD, Duarte LSM, Menezes AMB, Domingues MR, Bassani DG. Mortalidade fetal, neonatal e pós-neonatal e fatores associados na coorte de nascimentos de 2015 de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica 2019; 35(7):1-15.. Não obstante, apesar das evidências que apontam os efeitos adversos dessa cirurgia, ainda não se vê redução significativa das taxas no Brasil77 Nakano A. A normalização da cesárea como modo de nascer: cultura material do parto em maternidades privadas no Sudeste do Brasil. Physis 2015; 25(3):885-904..

Decerto, a cesárea bem indicada deve estar disponível no sistema de saúde e deve ser praticada, sendo importante fator para a redução da mortalidade materna e infantil em casos específicos.

A desinformação sobre a competência da enfermagem nos cuidados com o parto e o pós-parto também representou um fator gerador de insegurança para algumas puérperas entrevistadas. Uma delas, resumiu:

- As mulheres deviam ser informadas que as enfermeiras são capacitadas para atender o parto, porque podem se sentir inseguras sem o médico presente.

O comentário alude à dificuldade de romper com a tradição da tutela médica, interiorizada como condição superior e única, em que cabe à enfermagem uma função meramente auxiliar. A falta de informação, nesse caso, encobre a expertise própria à enfermagem obstétrica/obstetriz, que controla com habilidade e conhecimento a atenção à gravidez, ao parto e ao pós-parto. Somente em cesáreas ou gestações de risco o profissional médico necessita ser mobilizado.

Dentro desse entendimento, a criação do programa Rede Cegonha incluiu a promoção do atendimento ao parto vaginal por enfermeiras obstetras/obstetriz, com excelentes resultados. Gama et al.3333 Gama SGN, Viellas EF, Medina ET, Angulo-Tuesta A, Silva CKRT, Silva SD, Santos YRP, Esteves-Pereira AP. Atenção ao parto por enfermeira obstétrica em maternidades vinculadas à Rede Cegonha. Cien Saude Colet 2021; 26(3):919-929. realizou um estudo dessa iniciativa e mostrou que a inserção da enfermagem obstétrica/obstetriz na assistência ao parto resulta, para a parturiente, em menos ocorrência de intervenções, tais como litotomia, episiotomia e uso de ocitocina para aceleração do trabalho de parto. Além disso, de modo geral proporciona maior bem-estar às parturientes e aos recém-nascidos. Leal et al.2525 Leal MC, Bittencourt SA, Esteves-Pereira AP, Ayres BVS, Silva LBRAA, Thomaz EBAF, Lamy ZC, Nakamura-Pereira M, Torres JA, Gama SGN, Domingues RMSM, Vilela MEA. Avanços na assistência ao parto no Brasil: resultados preliminares de dois estudos avaliativos. Cad Saude Publica 2019; 35(7):1-14., em estudo comparativo dos resultados do programa Rede Cegonha, respectivamente, em 2011 e em 2017, mostram que houve aumento de em torno de 15% para 30% da participação da enfermagem obstétrica/obstetriz na atenção ao parto vaginal. Ou seja, partos normais podem e devem ser feitos pela enfermagem com absoluta garantia de qualidade, o que ainda está longe de ser reconhecido e aceito por parte expressiva dos brasileiros, demandando por campanhas educativas. Algumas puérperas entrevistadas confirmam a importância do trabalho da enfermeira obstetra:

- Agradeço à enfermeira que fez meu parto. Ela é dez!.

- Fui muito bem tratada pela enfermeira que fez meu parto. Me deu muita atenção. Ficou me apoiando e até nos divertimos, pois ela viu que eu não tinha acompanhante e ficou comigo o tempo todo.

Presença do acompanhante

Outra questão problematizada por algumas puérperas diz respeito à presença de acompanhantes nas maternidades:

- Ficaria muito mais calma na hora da anestesia se tivesse ficado com o acompanhante próximo, segurando minha mão e me dando apoio.

- Gostaria que tivesse acompanhante o tempo todo.

Apesar dessas e outras queixas, Leal et al.2525 Leal MC, Bittencourt SA, Esteves-Pereira AP, Ayres BVS, Silva LBRAA, Thomaz EBAF, Lamy ZC, Nakamura-Pereira M, Torres JA, Gama SGN, Domingues RMSM, Vilela MEA. Avanços na assistência ao parto no Brasil: resultados preliminares de dois estudos avaliativos. Cad Saude Publica 2019; 35(7):1-14. apontam para importantes avanços no tocante à presença do acompanhante nas maternidades a partir da implantação do Rede Cegonha. Nesse quesito, foi observado um aumento, entre 2011 e 2017, de mais de 150% na presença de acompanhantes durante o parto. Algumas puérperas entrevistadas confirmam essa mudança para melhor:

- Essa maternidade melhorou muito e esse negócio de ter acompanhante foi a melhor coisa. Meu acompanhante me ajudou muito.

- Dessa vez me senti melhor atendida, é meu terceiro filho, todos nasceram nessa maternidade, e das outras vezes não permitiram acompanhante na hora do nascimento.

A Organização Mundial de Saúde recomenda explicitamente que a mulher tenha um acompanhante de sua escolha durante o parto e sugere que a presença do acompanhante está diretamente associada à garantia a uma assistência respeitosa, competente e atenciosa3434 Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde, 2014. [acessado 2019 Dez 1]. Disponível em: s://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf;jsessionid=6B8C2C3FEF468BA496DD07082ABB4266?sequence=3
s://apps.who.int/iris/bitstream/handle/1...
.

A experiência sensível de dar à luz a uma criança alude a um tipo de comunhão familiar desejada. Estar em companhia de alguém que partilha a emoção do seu parto é um modo de enfrentar com mais força as pressões advindas de lógicas burocráticas, tecnocráticas e impessoais comuns em atendimentos hospitalares. A presença do acompanhante é um vínculo com o antes do hospital, que ajuda a situar o parto como história de vida. Junto, oferece à puérpera a segurança de contar com o apoio de alguém que desfruta de maior liberdade para, caso necessário, solicitar a presença da equipe de enfermagem, sendo também uma proteção em eventuais situações de maus-tratos3535 Zanardo G, Uribe MC, Nadal AHR, Habigzang LF. Violência Obstétrica no Brasil: Uma revisão narrativa. Psicologia & Sociedade 2017; 29:e155043..

Amigos e familiares são amparos importantes de nossa inserção no espaço público e na lida com o que desconhecemos e não controlamos. Em maternidades públicas, a presença de um acompanhante relativiza, e mesmo burla, as lógicas impessoais. O seu lugar é o do partilhamento de sentimentos e experiências sensíveis de vida.

Ademais o acompanhante é um direito da parturiente e da puérpera, instituído por lei nos serviços de saúde do SUS, para todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto3636 Brasil. Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União 2005; 8 abr..

Qualidade dos serviços e da infraestrutura hospitalares

Algumas opiniões aqui em exame são demandas relacionadas à falta de infraestrutura hospitalar e à falta de privacidade, para as puérperas e para os seus acompanhantes:

- Só tem dois chuveiros e um estava com o ralo entupido.

- Falta lençol.

- Acho que as enfermarias poderiam ter cortinas entre os leitos.

- Tem que melhorar as condições do acompanhante. Oferecer café da manhã, banheiro que ele possa tomar banho e poltrona pra descansar.

Em direção semelhante, a carência e/ou a qualidade das refeições ofertadas nas maternidades são também pontos de tensão em alguns pronunciamentos:

- A nutrição não considera a amamentação, já que todas as refeições são muito secas.

- O lanche não é suficiente, eu fico com fome.

Em suma, trata-se da reivindicação de bens e serviços que satisfaçam as necessidades das puérperas e de seus acompanhantes. O espaço da maternidade é idealizado como um lugar minimamente equipado para garantir alguma privacidade e estabilidade nos fazeres cotidianos, da alimentação, da higiene pessoal e do descanso. De certo modo, a expectativa é a de uma moradia provisória e o inconformismo surge quando, por exemplo, torneiras e chuveiros não funcionam, o provimento da alimentação é insuficiente, falta roupa de cama e banho, entre outros fatores que garantam às puérperas e aos seus acompanhantes um lugar para “coexistir” com dignidade.

De fato, Bittencourt et al.66 Bittencourt SDA, Vilela MEA, Oliveira MC, Santos AM, Silva CKRT, Domingues R, Reis AC, Santos GL. Atenção ao parto e nascimento em maternidades da Rede Cegonha: avaliação do grau de implantação das ações. Cad Saude Publica 2020; [no prelo]., analisando o grau de implantação da Rede Cegonha não encontraram um quadro por inteiro promissor no tocante aos bens e serviços hospitalares. Nesse quesito, as maternidades estão em estágios diferenciados, refletindo a desigualdade territorial que marca o desenvolvimento socioeconômico das diversas regiões do país.

Ressalve-se, porém, que a partir das críticas das puérperas entrevistadas aos serviços e infraestrutura hospitalares, nem sempre é possível aferir se as questões reclamadas são fruto de descaso profissional, má gestão ou carência de recursos públicos. Além disso, todas as reivindicações convivem com elogios ao SUS, em que as puérperas se mostram bem impressionadas com o atendimento público em geral, não raro surpresas, na contramão do senso comum reducionista que desqualifica todo esforço de universalização da saúde pública no Brasil e da humanização do parto. Os elogios aparecem nos pronunciamentos das puérperas, inclusive, em maior proporção que as críticas, representando 50,5% do total dos pronunciamentos. Fartam exemplos:

- Tive medo de ser internada nesse hospital por ser público. Mas tive uma surpresa agradável pois estou sendo muito bem atendida, a comida muito boa, local limpo, equipe gentil.

- Superou as expectativas! Estava com receio de usar o SUS e ser maltratada, mas me surpreendi com o bom atendimento.

- Fui muito bem atendida, tenho plano de saúde, mas uso o SUS.

Corroborando os elogios, Leal et al.2525 Leal MC, Bittencourt SA, Esteves-Pereira AP, Ayres BVS, Silva LBRAA, Thomaz EBAF, Lamy ZC, Nakamura-Pereira M, Torres JA, Gama SGN, Domingues RMSM, Vilela MEA. Avanços na assistência ao parto no Brasil: resultados preliminares de dois estudos avaliativos. Cad Saude Publica 2019; 35(7):1-14. observam avanços nos indicadores obstétricos a partir da implantação do Rede Cegonha. Uma estratégia que envolveu a consolidação de uma cultura de planejamento reprodutivo e pré-natal, incluindo a criação de residências e cursos especializados na área da saúde da mulher, com formações específicas em enfermagem e em gestão participativa e fiscalização hospitalar. Os resultados mostram melhorias expressivas, entre os anos 2011 e 2017, marco de sete anos de criação do programa Rede Cegonha. Entre as quais: significativo aumento da taxa de partos vaginais; aumento da presença nas maternidades de acompanhantes de livre escolha das gestantes; aumento no uso de métodos não farmacológicos para o abrandamento de dores físicas; e maior liberdade de movimento para a gestante nos momentos preliminares ao parto. Ou seja, com todos os desafios que se fazem presentes e urgentes, a qualidade da atenção ao parto e nascimento no Brasil está em processo de mudança para melhor, a partir de iniciativas de qualificação do modelo de saúde brasileiro. Nas palavras das puérperas:

- Cada vez melhora a maternidade.

- Em relação aos partos anteriores, o serviço é excelente.

- Adorei o atendimento, comparado com meu outro parto há 21 anos atrás, onde sofri todo tipo de constrangimento.

- No parto da Yasmin, minha filha mais velha, fui maltratada, isso aconteceu há sete anos. Hoje melhorou muito, deixam ficar sentada, ajudam no banho do bebê, agora dão mais atenção.

Considerações finais

As opiniões das puérperas aqui reportadas são indicadores de experiência vivida que lançam luz sobre as condições de atendimento em maternidades públicas brasileiras. Opiniões pessoais que auxiliam na identificação de prioridades e na construção de soluções para problemas coletivos. Neste artigo, valorizamos esse manancial de experiência, observando o que ele revela sobre as lógicas da atenção à saúde da mulher, boas ou danosas ao exercício da cidadania. Sem pretensão de explicitar respostas definitivas, o propósito é contribuir para o bom fluxo do conhecimento, transformador da realidade.

Uma importante lição perpassa o conjunto dos pronunciamentos analisados, que seja: todos os valores apresentados como justificativa para a satisfação ou a insatisfação das puérperas de algum modo reiteram a relevância da luta social em prol do parto humanizado no país. As expressões de satisfação por parte das puérperas estão relacionadas à existência de uma rede pública de cuidados que assegura às mulheres o direito à atenção humanizada nos processos do parto e pós-parto. Por sua vez, as insatisfações manifestadas apontam para a pertinência de fortalecer e ampliar o trabalho de melhor qualificação dessa rede. A maternidade é idealizada como espaço de acolhimento da mulher, de seus familiares e do recém-nascido. A seu modo e de diferentes maneiras, essas mulheres expressam que o parto não deve ser percebido como um evento meramente técnico. Uma delas, sintetizou: Eu queria dizer que os médicos têm que prestar um atendimento cada vez mais humanizado.

Humanização do parto diz respeito à qualidade da assistência proporcionada às gestantes, parturientes e puérperas. Está relacionado ao lugar central da mulher no processo do nascimento; ao seu direito de estar bem informada e de tomar decisões em relação ao próprio corpo, à gestação e ao parto. Humanização do parto diz respeito também ao direito dessas mulheres de serem ouvidas.

Nessa perspectiva, é importante reconhecer que as políticas públicas empreendidas pelo Ministério da Saúde, no Brasil, consubstanciadas no Rede Cegonha, despontam como ações acertadas, que efetivamente promovem mudanças alvissareiras nos processos de atenção ao parto e nascimento, com a redução de desfechos maternos e neonatais indesejados. Ações que devem ser valorizadas e aprofundadas, com a estruturação orquestrada dos serviços prestados pelo SUS. Para além dos debates e campanhas públicas, o desafio da universalização do parto humanizado envolve a consolidação de arranjos institucionais no campo da saúde reprodutiva. Mais que uma demanda pontual em benefício da sociedade, o aperfeiçoamento das políticas públicas voltadas para a humanização do parto é um direito social e um dever do Estado.

Referências

  • 1
    Brenes AC. História da parturição no Brasil, século XIX. Cad Saude Publica 1991; 7(2):135-149.
  • 2
    Palharini LA, Figueirôa SF. Gênero, história e medicalização do parto: a exposição "Mulheres e práticas de saúde". História, Ciências, Saúde-Manguinhos 2018; 25(4):1039-1061.
  • 3
    Coelho FE. A História das Ciências e seus públicos. Revista Maracanan 2015; 13(1):23-33.
  • 4
    Silva F, Nucci M, Nakano AR, Teixeira L. "Parto ideal": medicalização e construção de uma roteirização da assistência ao parto hospitalar no Brasil em meados do século XX. Saúde Soc 2019; 28(3):171-184.
  • 5
    Nakano AR, Bonan C, Teixeira LA. Cesárea, aperfeiçoando a técnica e normatizando a prática. História, Ciências, Saúde - Manguinhos 2016; 23(1):155-172.
  • 6
    Bittencourt SDA, Vilela MEA, Oliveira MC, Santos AM, Silva CKRT, Domingues R, Reis AC, Santos GL. Atenção ao parto e nascimento em maternidades da Rede Cegonha: avaliação do grau de implantação das ações. Cad Saude Publica 2020; [no prelo].
  • 7
    Nakano A. A normalização da cesárea como modo de nascer: cultura material do parto em maternidades privadas no Sudeste do Brasil. Physis 2015; 25(3):885-904.
  • 8
    World Health Organization (WHO). Appropriate technology for birth. Lancet 1985; 24(2):436-437.
  • 9
    Leal MC, Szwarcwald CL, Almeida PVB, Aquino EML, Barreto ML, Barros F, Victora C. Saúde reprodutiva, materna, neonatal e infantil nos 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cien Saude Colet 2018; 23(6):1915-1928.
  • 10
    Brasil. Portaria nº 1.459, de 24 junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Diário Oficial da União 2011; 24 jun.
  • 11
    Marques CPC, organizador. Redes de Atenção à Saúde: A Rede Cegonha. São Luís: Universidade Federal do Maranhão; 2015.
  • 12
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Implantação das Redes de Atenção à Saúde e Outras Estratégias da SAS. Brasília: MS; 2014.
  • 13
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Rede Cegonha: Panortama, 2017. [acessado 2020 Maio 4]. Disponível em: s://www.saude.gov.br/acoes-e-programas/rede-cegonha/panorama
    » https://www.saude.gov.br/acoes-e-programas/rede-cegonha/panorama
  • 14
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Rede Cegonha. [acessado 2020 Maio 6]. Disponível em: https://www.saude.gov.br/acoes-e-programas/rede-cegonha
    » https://www.saude.gov.br/acoes-e-programas/rede-cegonha
  • 15
    Vilela MEA, Leal MC, Thomaz EBAF, Gomes MASM, Bittencourt SDA, Gama SGN, Silva LBRAA, Lamy ZC. Avaliação da atenção ao parto e nascimento nas maternidades da Rede Cegonha: os caminhos metodológicos. Cien Saude Colet 2020; 26(3):789-800.
  • 16
    Gomide MFS, Pinto IC, Bulgarelli AF, Santos ALP, Serrano Gallardo MP. A satisfação do usuário com a atenção primária à saúde: uma análise do acesso e acolhimento. Interface (Botucatu) 2018; 22(65):387-398.
  • 17
    Gabe MB, Rosa AS, Garcia LSB, Ambrosio PG, Madeira K. O grau de satisfação do usuário é um importante indicador na avaliação da qualidade dos serviços de saúde. Arquivos Caterinenses de Medicina 2018; 47(3):146-158.
  • 18
    Esperidião MA, Vieira-da-Silva LM. A satisfação do usuário na avaliação de serviços de saúde: ensaio sobre a imposição de problemática. Saúde Debate 2018; 42(n. esp. 2):331-340.
  • 19
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Princípios do SUS. Portal do Ministério da Saúde. [acessado 2019 Dez 9]. Disponível em: https://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude/principios-do-sus
    » https://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude/principios-do-sus
  • 20
    Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979.
  • 21
    Silva AH, Fossá MIT. Análise de conteúdo: exemplo de aplicação da técnica para análise de dados qualitativos. Qualitas 2015; 17:1-14.
  • 22
    Oliveira VJ, Penna CM. Cada parto é uma história: processo de escolha da via de parto, Brasília. Rev Bras Enferm 2018; 71(Supl. 3):1304-1312.
  • 23
    Pimentel TA, Oliveira-filho EC. Fatores que influenciam na escolha da via de parto cirúrgico: uma revisão bibliográfica. Universitas 2016; 12(12):187-199.
  • 24
    Baldisserotto ML. Associação entre as boas práticas de assistência ao trabalho de parto e parto e a avaliação pelas puérperas do cuidado recebido [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2015.
  • 25
    Leal MC, Bittencourt SA, Esteves-Pereira AP, Ayres BVS, Silva LBRAA, Thomaz EBAF, Lamy ZC, Nakamura-Pereira M, Torres JA, Gama SGN, Domingues RMSM, Vilela MEA. Avanços na assistência ao parto no Brasil: resultados preliminares de dois estudos avaliativos. Cad Saude Publica 2019; 35(7):1-14.
  • 26
    Socorro TC, Matos AO, Machado JBH. A violência obstétrica como afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e a necessidade de implementação de políticas públicas específicas no Brasil. Anais do I Congresso Internacional de Direito Público dos Direitos Humanos e Políticas de Igualdade, Maceió, Alagoas, 2018.
  • 27
    Kottwitz F, Gouveia H, Gonçalves A. Via de parto preferida por puérperas e suas motivações. Escola Anna Nery 2018; 22(1):1-8.
  • 28
    Arik R, Parada CMGL, Tonete VLP, Sleutjes FCM. Percepções e expectativas de gestantes sobre o tipo de parto. Rev Bras Enferm 2019; 72(3):46-54.
  • 29
    Nakamura-Pereira M, Leal MC, Esteves-Pereira AP, Domingues RMSM, Torres JA, Dias MAB, Moreira ME. Use of Robson classification to assess cesarean section rate in Brazil: the role of source of payment for childbirth. Reproductive Health 2016; 13(Supl. 3):245-265.
  • 30
    Esteves-Pereira AP, Deneux-Tharaux C, Nakamura-Pereira M, Saucedo M, Bouvier-Colle MH, Leal MC. Caesarean Delivery and Postpartum Maternal Mortality: A Population-Based Case Control Study in Brazil. Plos One 2016; 11(4):1-13.
  • 31
    Martinelli KG. Idade materna avançada e sua associação com placenta prévia e deslocamento placentário: uma metanálise. Cad Saude Publica 2018; 34(2):1-14.
  • 32
    Varela AR, Schneider BC, Bubach S, Silveira MF, Bertoldi AD, Duarte LSM, Menezes AMB, Domingues MR, Bassani DG. Mortalidade fetal, neonatal e pós-neonatal e fatores associados na coorte de nascimentos de 2015 de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica 2019; 35(7):1-15.
  • 33
    Gama SGN, Viellas EF, Medina ET, Angulo-Tuesta A, Silva CKRT, Silva SD, Santos YRP, Esteves-Pereira AP. Atenção ao parto por enfermeira obstétrica em maternidades vinculadas à Rede Cegonha. Cien Saude Colet 2021; 26(3):919-929.
  • 34
    Organização Mundial da Saúde (OMS). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde, 2014. [acessado 2019 Dez 1]. Disponível em: s://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf;jsessionid=6B8C2C3FEF468BA496DD07082ABB4266?sequence=3
    » https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf;jsessionid=6B8C2C3FEF468BA496DD07082ABB4266?sequence=3
  • 35
    Zanardo G, Uribe MC, Nadal AHR, Habigzang LF. Violência Obstétrica no Brasil: Uma revisão narrativa. Psicologia & Sociedade 2017; 29:e155043.
  • 36
    Brasil. Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União 2005; 8 abr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2020
  • Aceito
    11 Jun 2020
  • Publicado
    13 Jun 2020
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br