A interculturalidade no cotidiano da atenção primária à saúde: O caso do modelo de saúde em Guainía, Colômbia

Saidy Eliana Arias-Murcia Cláudia Maria de Mattos Penna Sobre os autores

Resumo

A Colômbia encontra-se atualmente em fase de implantação de um novo modelo de saúde, que está sendo testado em uma região da Amazônia, e tem como principal objetivo estratégico a atenção primária à saúde com enfoque intercultural. Trata-se do recorte de uma tese de doutorado delineada pela metodologia de estudo de caso, que teve por objetivo compreender o processo de construção cotidiana da atenção primária à saúde na perspetiva de indígenas e profissionais de saúde, em Guainía, Colômbia. Participaram do estudo 22 usuários indígenas, 26 profissionais de saúde e três participantes chave. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas e observação direta, sendo posteriormente transcritos e analisados pela técnica de análise de conteúdo temática de Bardin. Os resultados mostram que a interculturalidade, como um processo permanente de negociações e articulações presentes no cotidiano de indígenas e profissionais de saúde, constitui-se parte fundamental da construção da atenção primária à saúde em Guainía. Nela materializa-se o encontro e intercâmbio de formas heterogêneas de pensar-saber, que permitem novas interpretações de conhecimentos e práticas em saúde, apesar desse processo estar permeado por conflitos, ambiguidades, assimetrias e contradições.

Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Saúde de Populações Indígenas; Pesquisa qualitativa

Introdução

Em 2016 iniciou, na Colômbia, a implantação do Modelo Integral de Atenção em Saúde (MIAS) no âmbito da Política de Atenção Integral à Saúde (PAIS), como iniciativa do Estado para melhorar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde no nível nacional. A implantação do Sistema Geral de Seguridade Social em Saúde (SGSSS) em 1993, sendo um sistema público-privado, trouxe importantes avanços em matéria de cobertura dos serviços de saúde, atingindo 95% da população para 201511 Colombia. Ministerio de Salud y Protección social (MSPS). Política de Atención Integral en Salud. Bogotá: MSPS; 2016.. Entretanto, a fragmentação e segmentação do sistema acentuou alguns problemas de financiamento, iniquidades e acesso aos serviços, ocasionando efeitos no plano da saúde pública22 Vega R, Acosta N. Mapeo y análisis de los modelos de atención primaria en salud en los países de América del Sur: Mapeo de la APS en Colombia. Rio de Janeiro: Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde; 2014.. A separação e especialização das funções de gestão, financiamento e prestação de serviços, com a inclusão de diferentes agentes públicos e privados, ocasionou uma atenção desarticulada entre as ações individuais e coletivas, gerando a acumulação de riscos em saúde11 Colombia. Ministerio de Salud y Protección social (MSPS). Política de Atención Integral en Salud. Bogotá: MSPS; 2016.,22 Vega R, Acosta N. Mapeo y análisis de los modelos de atención primaria en salud en los países de América del Sur: Mapeo de la APS en Colombia. Rio de Janeiro: Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde; 2014.. Soma-se a isso o reconhecimento tardio da atenção primária à saúde (APS) como estratégia de atenção dentro do SGSSS ao considerar “promoção e prevenção” em 2001 e ser conceituada dez anos depois como “uma estratégia de coordenação intersetorial que permite a atenção integral e integrada desde a saúde pública, a promoção da saúde, a prevenção da doença, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação do paciente em todos os níveis de complexidade”33 Colombia. Congreso de la República. Ley 1438 de 2011, por medio de la cual se reforma el Sistema General de Seguridad Social en Salud y se dictan otras disposiciones. Bogotá: Congreso de la República; 2011..

O MIAS surge como proposta do Ministério da Saúde e Proteção Social (MSPS), para resolver essas demandas e garantir o direito à saúde da população colombiana. O modelo preconiza a centralidade na pessoa, a mudança do paradigma biomédico transferindo o foco para o cuidado e a gestão integral do risco, bem como o fortalecimento da APS com enfoque em saúde familiar e comunitário como estratégia central. Além disso, sugere diretrizes para uma atenção diferenciada de acordo com as particularidades de três tipos de territórios: aqueles com população urbana, caracterizados por melhores condições de acesso aos serviços de saúde dada sua centralidade; territórios com população rural, que possuem oferta restrita aos níveis de atenção de baixa complexidade; e os com população dispersa, com limitada acessibilidade pela carência de vias de acesso e barreiras geográficas.

O estado de Guainía foi o primeiro em iniciar a implementação do MIAS, sendo escolhido pelo MSPS como piloto para os territórios com população dispersa do país44 Colombia. Ministerio de Salud y Protección social (MSPS). Modelo Integral de Atención en Salud (MIAS). Piloto de implementación en los departamentos con poblaciones dispersas. Departamento de Guainía: MSPS; 2015.. Além dos altos índices de dispersão (0,5 habitantes por Km²), Guainía caracteriza-se por ser o segundo estado com a maior população indígena da Amazônia colombiana (85% da população), adicionando desafios à abordagem diferencial trazida pelo modelo. Assim, a atenção em saúde na região deve tanto responder às particularidades geográficas e epidemiológicas, como atender às demandas próprias da diversidade étnica e cultural.

Destarte, o MIAS para o Guainía apresenta-se com o propósito de ser um modelo “fundamentado no princípio da diversidade étnica, cultural e territorial, baseado na estratégia da APS”55 Colombia. Ministerio de Salud y Protección social (MSPS). Decreto No. 2561, por el cual se definen los mecanismos que permitan mejorar el acceso a los servicios de salud a la población afiliada al Sistema General de Seguridad Social en Salud -SGSSS y fortalecer el aseguramiento. Bogotá: MSPS; 2014., o que implica a implementação de uma APS com a família e a comunidade e voltada a um enfoque intercultural.

Autores como Giovanella et al.66 Giovanella L, Almeida PF, Oliveira S, Silva T. Panorama de la Atención Primaria de Salud en Suramérica: concepciones, componentes y desafíos. Saude Debate 2015; 39(105):300-322. e Langdon e Garnelo77 Langdon EJ, Garnelo L. Articulación entre servicios de salud y "medicina indígena": reflexiones antropológicas sobre política y realidad en Brasil. Salud Colect 2017; 13(3):457-470. afirmam que o enfoque intercultural dos serviços de saúde e a articulação da medicina tradicional dos povos indígenas têm feito cada vez mais parte das políticas sanitárias da maioria dos países da América Latina. No caso da Colômbia, anos após o reconhecimento da natureza pluriétnica e pluricultural do Estado, a Constituição Política de 1991, a Lei 691/2001 e, posteriormente, o Acordo 326/2005 determinaram a adequação do sistema de saúde para os povos indígenas no âmbito dos modelos de saúde interculturais, especificamente para o regime subsidiado de saúde88 Colombia. Congreso de la República. Ley 691 de 2001, mediante la cual se reglamenta la participación de los Grupos Étnicos en el Sistema General de Seguridad Social en Colombia. Bogotá: Congreso de la República; 2001.,99 Colombia. Consejo Nacional de Seguridad Social en salud (CNSSS). Acuerdo 326 de 2005. Por medio del cual se adoptan algunos lineamientos para la organización y funcionamiento del Régimen Subsidiado de los pueblos indígenas. Bogotá: CNSSS; 2005.. Além disso, a interculturalidade foi considerada um dos princípios da APS incluindo, dentre outros elementos, “as práticas tradicionais, alternativas e complementarias para a atenção à saúde”33 Colombia. Congreso de la República. Ley 1438 de 2011, por medio de la cual se reforma el Sistema General de Seguridad Social en Salud y se dictan otras disposiciones. Bogotá: Congreso de la República; 2011. e tida como parte dos componentes essenciais para garantir o direito à saúde e a proteção dos povos indígenas1010 Colombia. Congreso de la República. Ley Estatutaria No. 1751, por medio de la cual se regula el derecho fundamental a la salud y se dictan otras disposiciones. Bogotá: Congreso de la República; 2015..

Entretanto, apesar dessas considerações no âmbito de legalização, os avanços referentes à articulação dos sistemas de saúde indígenas na APS têm sido limitados no que dizem respeito à execução. Essas articulações têm sido reduzidas a casos pontuais, enquanto produtos de iniciativas autônomas de algumas comunidades indígenas ou a projetos específicos desenvolvidos por vontade política dos entes territoriais. Assim, o MIAS para o Guainía constitui-se a primeira iniciativa proveniente do Estado colombiano, no âmbito do SGSSS, que propõe uma aproximação direta entre os serviços de saúde ocidentais e a medicina tradicional indígena, por meio de um trabalho articulado com os curadores tradicionais (agentes médicos tradicionais e parteiras) e a vinculação de gestores comunitários como mediadores entre os conhecimentos biomédicos e tradicionais.

Nesse contexto, torna-se fundamental e estratégica a aproximação ao cotidiano dos atores sociais envolvidos na prestação dos serviços de APS em Guainía, que têm vivenciado a experiência de implementação das novas diretrizes incorporadas pelo modelo de atenção.

O presente artigo deriva de uma tese de doutorado que objetivou compreender o processo de construção cotidiana da APS na perspetiva de indígenas e profissionais de saúde, em Guainía, Colômbia. Se apresentam os resultados relacionados à questão da interculturalidade como componente chave da dinâmica cotidiana da APS na região.

Percurso metodológico

Trata-se de um estudo de caso com abordagem qualitativa, sob o olhar teórico da Sociologia Compreensiva do Cotidiano. A escolha da abordagem qualitativa é norteada pela natureza do objeto de estudo, que implicou aproximação compreensiva a um fenômeno da experiência cotidiana para captar seu caráter subjetivo. Para Maffesoli1111 Maffesoli M. O conhecimento comum: Introdução a la sociologia compreensiva. Porto Alegre: Sulina; 2010. a compreensão exige uma aproximação ao mundo tal qual ele é, sem intenções explicativas, “descrevendo o vivido naquilo que é, contentando-se, assim, em discernir as visadas dos diferentes atores envolvidos”. Dessa maneira, o estudo de caso permitiu reter as caraterísticas holísticas e significativas da construção cotidiana da APS sendo, segundo Yin1212 Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5ª ed. Porto Alegre: Bookman; 2015., “o método preferido quando o enfoque está sobre um fenômeno contemporâneo no contexto da vida real”. A eleição de um caso único corresponde à particularidade do objeto a ser estudado e ao contexto em que ele acontece.

A pesquisa foi desenvolvida no estado de Guainía, localizado no extremo centro-leste da Colômbia, no nordeste da Amazônia colombiana. A população estimada é de 41.482 habitantes, sendo 85% indígenas, pertencentes a oito povos predominantes: Curripaco, Puinave, Piapoco, Sikuani, Tukano, Desano, Yeral e Cubeo. Foram escolhidos como cenários de estudo os postos de saúde, os centros de saúde e o hospital pertencentes à rede pública de atenção.

Participaram deste estudo 22 usuários indígenas e 26 profissionais de saúde (sendo 9 indígenas e 17 não-indígenas), selecionados de maneira intencional e cuja participação foi voluntária. Os critérios de inclusão dos usuários indígenas foram: ser usuários dos serviços de APS do regime subsidiado, maiores de 18 anos; e dos profissionais de saúde: qualquer membro da equipe de APS (médico, enfermeiro, dentista, bacteriólogo, auxiliar/técnico de enfermagem, gestor comunitário ou microscopista), com atuação mínima de seis meses no cargo. Incluiu-se, adicionalmente, três participantes chave (um pajé, um funcionário administrativo e uma liderança indígena) que proporcionaram informações relevantes sobre o objeto de estudo.

A pesquisa de campo foi realizada entre os meses de fevereiro a junho de 2018. Os dados foram coletados mediante observação direta e entrevistas individuais. A observação foi realizada no ambiente dos participantes (unidade de saúde, domicílio, comunidade) com seu prévio consentimento e focalizada na unidade de análise. O registro, identificado como notas de observação (NO), foi feito em diário de campo, após a finalização de cada observação. As entrevistas foram conduzidas por meio de um roteiro semiestruturado e realizadas em um local predefinido junto aos participantes. Sempre que permitido, as respostas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas na íntegra.

A análise de dados utilizou a técnica de análise de conteúdo temática, seguindo três polos cronológicos de acordo com Bardin1313 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.: 1) pré-análise; 2) exploração do material; e 3) tratamento dos resultados obtidos e interpretação.

A pesquisa obedeceu aos critérios éticos para a investigação em saúde na Colômbia estabelecidos pela Resolução 8.430/19931414 Colombia. Ministerio de Salud y Protección Social (MSPS). Resolución 008430. Por la cual se establecen las normas científicas, técnicas y administrativas para la investigación en salud. Bogotá: MSPS; 1993.. Para o acesso ao campo obteve-se autorização por parte do Hospital Departamental, da Secretária Departamental de Saúde e da Asociación del Consejo Regional Indígena del Guainía (ASOCRIGUA) como máxima autoridade representativa das comunidades indígenas da região. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e seu anonimato foi garantido, sendo identificados pelas iniciais: médico - MED, enfermeiro - E, auxiliar de enfermagem - AE, gestor comunitário - G, microscopista - MIC, bacteriólogo - BAC, dentista - DEN e usuários - U, seguidas de número relativo à sequência de inclusão no estudo.

Resultados e discussão

A compreensão da interculturalidade: o olhar dos profissionais de saúde

Para os profissionais de saúde a interculturalidade é referida como elemento que conflui uma variedade, quer seja de saberes, práticas ou culturas diferenciadas. É o ponto onde a diversidade se encontra, convive e se relaciona em um mesmo espaço. O particular é que essa convivência é percebida por eles de maneira harmoniosa, havendo um intercâmbio bidirecional em igualdade de condições, que levada ao âmbito da saúde, concentra-se na troca ocorrida entre as noções indígenas e ocidentais de cuidado:

Interculturalidade é um intercâmbio de saberes, é compreender como é a cosmologia, neste caso indígena, e compreender que na realidade nós somos os estranhos e os que devemos nos adaptar muito a sua cultura sim? e também fazer nesse intercâmbio que eles compreendam, nossos costumes e que é o que nós precisamos (MED1).

Espera-se que, como produto da convivência entre as culturas, se estabeleça uma relação compreensiva, em que seja possível o intercâmbio de crenças, costumes e saberes sem a presença de conflitos. Esse achado remete a um dos usos contemporâneos e conjunturais da interculturalidade associada, conforme Walsh1515 Walsh C. Interculturalidad crítica y (de)colonialidad: Ensayos desde Abya Yala. Quito: Ediciones Abya-Yala; 2012., à perspectiva relacional fazendo referência ao “contato e intercambio entre culturas, ou seja, entre pessoas, práticas, saberes, valores e tradições culturais distintas, que poderiam se dar em condições de igualdade ou desigualdade”.

Nesse sentido, a interculturalidade implica, para os profissionais da saúde, a integração entre dois sistemas de conhecimentos: o ocidental trazido por eles e o tradicional próprio dos usuários a quem atendem. Espera-se assim, uma conjunção “ideal” entre estes dois saberes, uma “amalgama de conhecimentos” como é descrito por este participante:

É como a integração e essa conjunção entre o que nós vemos da vida e o que eles [indígenas] veem, não sei, é como isso, como fazer como uma amalgama aí entre conhecimentos, entre formas de ver entre eles e nós (ODON3).

Entretanto, essa aproximação pressupõe aparente “equidade” na forma de valorizar os dois tipos de conhecimentos, além de apagamento das assimetrias e desigualdades existentes. Segundo Walsh1515 Walsh C. Interculturalidad crítica y (de)colonialidad: Ensayos desde Abya Yala. Quito: Ediciones Abya-Yala; 2012., a interculturalidade compreendida a partir do âmbito relacional é problemática, pois carrega consigo ocultamento ou minimização da conflitividade e dos contextos de poder, dominação e colonialidade onde tem-se levado a cabo tal relação.

Dessa forma, a compreensão da interculturalidade para os profissionais remete ao esforço por conceituar a perspectiva “ideal”, em um cenário de intercâmbio harmonioso entre saberes. Embora esse intercâmbio ocorra de fato nas relações estabelecidas na prática cotidiana da APS, mediante processos de negociação permanentes, nota-se a dificuldade dos profissionais em reconhecer as relações de poder imersas nos processos interculturais, em que os sistemas de conhecimento tradicionais e ocidentais se encontram assimetricamente posicionados.

Tensões e convergências nos (des)encontros com a diferença

A maioria dos profissionais de saúde encarregados de desenvolver as ações de APS em Guainía provém de outros lugares do país. Em sua chegada, os profissionais carregam consigo questões que influenciam os encontros iniciais com a população indígena, sendo em parte, convicções ou princípios trazidos de sua própria cultura1616 Martins J. O trabalho do enfermeiro na Saúde Indígena: desenvolvendo competências para a atuação no contexto intercultural [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017. ou ideias pré-concebidas sobre a região e os povos indígenas:

A gente vem com muito... muito receio, muitos preconceitos sobre a população indígena e quando a gente se dá a oportunidade de conhecê-los, encontra um mundo totalmente diferente (E3).

As primeiras imersões dos profissionais de saúde no trabalho com a população indígena são marcadas por imaginários que são confrontados com a realidade1616 Martins J. O trabalho do enfermeiro na Saúde Indígena: desenvolvendo competências para a atuação no contexto intercultural [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017.. A imagem idealizada e homogeneizante de ser indígena, de seu modo de vida e de sua medicina tradicional trazida pelos profissionais contrapõe-se com o indígena que encontram na realidade e sua alteridade1717 Dias-Scopel R. A cosmopolítica da gestação, parto e pós-parto: práticas de autoatenção e processo de medicalização entre os índios Munduruku [tese]. Florianópolis: Universidade de Federal de Santa Catarina; 2014.. Isto, somado aos primeiros intentos de fazer uma leitura com base nos próprios valores culturais, gera nos profissionais certo estranhamento:

No princípio foi difícil porque a gente vem com outro chip, realmente como que a universidade não prepara a gente para as coisas cotidianas e a gente se choca muito porque às vezes tem o conceito errado de que o indígena é o que anda com a típica vestimenta indígena, e pois realmente a parte cultural acorda a gente (E4).

Entretanto, as primeiras experiências de contato além de serem conflituosas e inquietantes, podem constituir momentos críticos de confrontação de verdades e de abertura a novos conhecimentos. Depois de certa ruptura vivenciada nos primeiros encontros com a diferença, os profissionais de saúde refletem sobre os preconceitos, prejulgamentos e tornam-se mais atentos às questões culturais dos usuários indígenas. A consciência cultural como é denominada por Campinha-Bacote1818 Campinha-Bacote J. The Process of Cultural Competence in the Delivery of Healthcare Services: A Model of Care. J Transcult Nurs 2002; 13(3):181-184. permite aos profissionais construir uma distinção das comunidades indígenas e de suas práticas em saúde, enquanto autoquestionam suas ideias preestabelecidas.

Tal processo, porém, concordando com os achados de Martins1616 Martins J. O trabalho do enfermeiro na Saúde Indígena: desenvolvendo competências para a atuação no contexto intercultural [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2017., não é isento de tensão. Os profissionais não-indígenas estão sendo constantemente interpelados pelas diferentes concepções terapêuticas, de saúde e doenças dos usuários indígenas. Assim, ao perceber o discurso etnocêntrico insuficiente, questionam-se sobre suas próprias “verdades” e “pressupostos”:

Isso foi um choque grande, porque na universidade lhe inserem o chip de que os medicamentos, que este é o mecanismo de ação... quando eles [indígenas] falam aqui de suas plantas e de suas rezas, a gente não tem a maneira de dizer como funciona isso no organismo, e o fato de que a gente perceba que funcionam, a gente fica como... ou seja, tudo o que tem me ensinado na universidade?... a gente começa aí a duvidar... é como esse choque de dizer esta é minha verdade e só minha verdade, e quando a gente abre os olhos e olha no seu redor há muitas formas de vê-la (E3).

Os estranhamentos aparecem, nesse caso, como produtos da tensão ao confrontar o saber biomédico com lógicas e racionalidades “outras” que partem da diferença e ultrapassam suas fronteiras. Contudo, mesmo sendo uma situação conflituosa, as fissuras produzidas nesse confronto parecem ser espaços de abertura para que os profissionais comecem a se interrogar sobre seu próprio conhecimento e, portanto, os limites da biomedicina. Segundo Pereira1919 Pereira P. Limites, traduções e afetos: profissionais de saúde em contextos indígenas. Mana 2012; 18(3):511-538. os profissionais de saúde que trabalham em contextos indígenas vivenciam nos encontros imprevisíveis com alteridade radical, processos complexos de limitações, de equívocos e necessárias e incompletas traduções que os fazem se questionar sobre seus próprios conhecimentos.

Essa questão dos limites nos conhecimentos também foi posta pelos usuários e profissionais indígenas, porém de maneira diferente. Ao longo de seus depoimentos, os participantes indígenas descreveram a distinção entre doenças indígenas e ocidentais. Segundo os participantes, as doenças indígenas, chamadas de “postizas”, “daños” ou “males”, requerem ser tratadas com curas tradicionais, enquanto as doenças ocidentais com curas ocidentais:

Há coisas que são naturais que não são para o curandeiro, como uma cirurgia... e se requer pessoal de experiência dependendo da doença, porque todas as doenças não vão à botânica, nem ao curioso [curador tradicional], mas vão a um profissional [de medicina ocidental], ou a uma cirurgia (U12).

Embora, como alerta Langdon2020 Langdon EJ. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Cien Saude Colet 2014; 19(4):1019-1030., a relação entre a causa e o tratamento não se reduz apenas às noções etiológicas - pois são vários os fatores que intervêm na escolha das terapias - pode-se inferir que, para compreender a distinção entre doenças e seus tratamentos, os limites dos conhecimentos ocidentais e tradicionais são delineados pelos usuários indígenas.

No caso dos profissionais de saúde indígenas esses limites foram igualmente considerados durante sua formação:

Lá [na universidade] a gente vê as doenças como tal [ocidentais], aqui há coisas que você vê que a pessoa está doente, mas as doenças são de outro ambiente (E1).

Dessa forma, os profissionais indígenas vivenciam os encontros com a alteridade de forma diferente dos profissionais de saúde não-indígenas. Ao encontrar-se na interseção entre as diferenças, os profissionais indígenas não percebem a medicina ocidental e a tradicional como duas visões opostas, mas complementares.

Nesse sentido, as questões trazidas pelos participantes indígenas sugerem que o delineamento claro dos limites do conhecimento próprio e a necessidade de abertura a saberes “outros”2020 Langdon EJ. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Cien Saude Colet 2014; 19(4):1019-1030. vislumbrando igualmente seus limites, pode minimizar possíveis estranhamentos e, portanto, facilitar as convergências entre as diferenças.

Procurando a cura: práticas e fatores que influenciam a escolha de tratamentos

O modo como os usuários indígenas fazem escolhas de maneira relativamente autônoma sobre as possíveis opções de prevenção, terapia e cura emerge como parte fundamental dos processos interculturais presentes no cotidiano da APS. Nessas deliberações confluem um conjunto de fatores a serem considerados, os quais se apresentam de forma sucinta no Quadro 1.

Quadro 1
Fatores que influenciam a escolha de tratamentos

A família foi destacada pelos participantes como a primeira instância de tomada de decisão sobre o cuidado da saúde, sendo um espaço importante da prática cotidiana da medicina tradicional. Particularmente, muitos dos saberes e práticas empregados no âmbito familiar - além de incluir o uso de rituais e preparação de remédios provenientes do saber herdado pelos membros mais velhos - misturam recursos provenientes do saber tradicional (sobretudo remédios feitos com plantas) com recursos da medicina ocidental (incluindo medicamentos auto-formulados ou formulados pelos médicos ocidentais):

Nós mesmos sim, ou seja, a gente mesmo prepara o remédio... pra a diabetes, às vezes pra a tensão, pra os rins, pra a úlcera... Eu tenho as plantas por aí estão semeadas... tensão e princípios de diabetes me disseram a última vez que fui ao médico e me deram umas pílulas, mas já tenho-me sentido bem, colesterol também tinha alto e já... já me fiz o remédio eu mesma, com a folha de abóbora e também com as pílulas que me deram (U17).

Assim, resultando da integração de saberes provenientes de diferentes tradições médicas, os remédios caseiros constituem um dos principais recursos com os quais as famílias dos usuários indígenas resolvem os problemas de saúde ou mal-estar de seus membros. Estudos na área da antropologia da saúde confirmam este achado77 Langdon EJ, Garnelo L. Articulación entre servicios de salud y "medicina indígena": reflexiones antropológicas sobre política y realidad en Brasil. Salud Colect 2017; 13(3):457-470., destacando estes elementos de diferentes formas de atenção disponíveis no território, adotados e usados pelas famílias segundo suas necessidades e prioridades, como práticas de autoatenção, compreendidas conforme Menéndez2121 Menéndez EL. Autoatención de los padecimientos y algunos imaginarios antropológicos. Desacatos 2018; 58:104-113. como “as representações e práticas que a população utiliza tanto individual quanto socialmente para diagnosticar, explicar, atender, controlar, aliviar, suportar, curar, solucionar ou prevenir os processos que afetam sua saúde em termos reais ou imaginários, sem a intervenção central, direta e intencional de curadores profissionais”.

Igualmente, a família cumpre um papel importante ao determinar a gravidade da doença e em definir a instância na procura de terapia, podendo optar por curadores tradicionais e/ou por serviços de saúde ocidentais:

Com a criança também, minha mãe é que lhe dá [remédio]... médico tradicional que tenhamos aqui? Não, isso não mais que é como dos papais da gente ou dos avôs, do que transmitem eles, dos saberes, são eles que nos dão a nós os remédios, mas então assim já quando a gente vai [ao curador tradicional], já é quando já a doença está muito avançada ou coisas assim que a gente precisa de alguém que saiba (U20).

Nesse sentido, é evidente como as famílias dos usuários exercem sua autonomia quanto ao que fazer, onde e quando consultar durante o processo de adoecimento, busca de terapia e prevenção, independentemente do prescrito pelo sistema ou pelos profissionais de saúde, sendo esta uma questão também afirmada por outros autores77 Langdon EJ, Garnelo L. Articulación entre servicios de salud y "medicina indígena": reflexiones antropológicas sobre política y realidad en Brasil. Salud Colect 2017; 13(3):457-470.,2121 Menéndez EL. Autoatención de los padecimientos y algunos imaginarios antropológicos. Desacatos 2018; 58:104-113..

Além disso, a tomada de decisões relacionada à cura ou prevenção de doenças, além de estar influenciada pela distinção entre doenças e suas causas, é limitada por outros fatores próprios dos grupos indígenas ou externos a eles, incluindo: a praticidade e efetividade dos tratamentos, o acesso aos serviços de saúde (ocidentais ou tradicionais), as crenças religiosas e a perda/transformação de saberes. Em relação aos tratamentos ocidentais os participantes relatam:

A medicina ocidental para nós é uma medicina que atua rápido, enquanto que a medicina tradicional é uma medicina que é lenta, mais lenta... ou seja, ela não vai reagir já, ela vai devagar... enquanto a ocidental é rápida, ou seja, as reações são mais rápidas (U12).

Mesmo que exista o reconhecimento por parte dos usuários sobre a existência de tratamentos tradicionais para certos eventos, alguns preferem optar pelos recursos biomédicos, por serem considerados mais práticos em dado momento. Em concordância, Garnelo e Wright2222 Garnelo L, Wright R. Doença, cura e serviços de saúde. Representações, práticas e demandas Baníwa. Cad Saude Publica 2001; 17(2):273-284. observaram que entre os Baníwa no Brasil, o uso de tratamentos ocidentais representa uma comodidade quando comparado às terapêuticas tradicionais, por facilitar a resolução de doenças sem fazer as restrições inerentes às prescrições tradicionais.

Contudo, o acesso aos serviços ocidentais é, por vezes, limitado em algumas aldeias dada a ausência de unidades de saúde próximas ou a escassez de medicamentos, restringindo o leque de possibilidades para a escolha de tratamentos:

No caso em que nós não temos remédio no posto de saúde ou não podemos ir para o hospital, pois há que procurar talvez ao pajé para que consiga para nós o remédio (U11).

Nesse caso os usuários veem-se na “necessidade” de empregar recursos da medicina tradicional, porém, às vezes também escassos, pois não são todas as comunidades que contam com curadores tradicionais ou, aqueles que foram nomeados com o MIAS não são reconhecidos por todos os membros da comunidade:

O médico tradicional? eu não sei onde estará ele, porque eu não tenho escutado nada, nomearam ele, mas mas nunca tem dado remédio à gente (U17).

De outra parte, a religião emergiu como outro fator direcionador na escolha das alternativas terapêuticas. Os usuários pertencentes a igrejas evangélicas preferem optar por serviços de saúde ocidentais, sobretudo nos casos específicos em que demandam a atenção de curadores profissionais:

Eu sou evangélico, quase não gosto disso [pajé], eu não vou pra lá, sim, é melhor aqui sim posto de [Saúde], é dizer o que Deus fez para todos (U3).

Aparentemente, ao se associar a figura do pajé com a realização de rituais que incluem rezas, bruxaria ou invocação de espíritos, os usuários crentes evitam recorrer a estes especialistas (NO1). Infere-se, entretanto, que essa negativa não interfere na realização de remédios caseiros ou na busca por outro tipo de curadores (parteiras ou ervateiros). Conforme verificado por Ghiggi Jr.2323 Ghiggi Jr A. Uma Abordagem Relacional da Atenção à Saúde a partir da Terra Indígena Xapecó [tese]. Florianópolis: Universidade de Federal de Santa Catarina; 2015. em sua pesquisa com o povo Kaingang, as pessoas que frequentam igrejas evangélicas continuam valorizando os remédios fitoterápicos como parte importante de seu conhecimento tradicional, independentemente do credo religioso.

Finalmente, alguns usuários revelaram não contar com os conhecimentos sobre algumas terapias tradicionais, optando pelo uso de recursos biomédicos:

Alguns indígenas já não sabemos a medicina de nós [tradicional], por isso eu gosto de vir tanto à medicina dos brancos, com isso quando eu estou doente, eu sempre corro ao hospital, assim... os outros sabem sim de medicina indígena, mas nós não (U2).

A preocupação pela “perda” e resgate da medicina tradicional apareceu frequentemente em conversas informais. A maioria dos participantes indígenas relacionava este fenômeno com a chegada das missões religiosas ou com a forte influência do contato com os brancos e sua medicina ocidental (NO2), fazendo evidente a existência de um consenso sobre o comprometimento das formas de transmissão dos conhecimentos tradicionais em saúde.

Estratégias de articulação de saberes: o prescrito, o real e o esperado

Os dados revelaram diversas estratégias de articulação de saberes no âmbito da APS em Guainía que, por uma parte, são propostas pelo modelo de saúde MIAS e, de outra, resultam de construções desenvolvidas espontaneamente pelos indígenas e profissionais de saúde no cotidiano da prestação dos serviços. Essas estratégias serão abordadas a partir de três olhares: o prescrito, o real e o esperado.

Em relação ao prescrito, os participantes destacaram, em primeira medida, a incorporação de curadores tradicionais nos serviços de atenção primária. Enquanto os profissionais de saúde não-indígenas ressaltaram aspectos positivos que essa vinculação, na teoria, poderia trazer para o benefício do atendimento aos usuários indígenas, os profissionais indígenas indicaram algumas dificuldades:

No projeto está estipulado isso, de colocar o pajé, por isso é que se logrou o novo modelo cá, mas não está funcionando no momento (G1).

Embora alguns curadores tradicionais tenham sido nomeados com a implantação do MIAS, muitos deles ainda não estavam prestando seus serviços nas aldeias nem nos postos ou centros de saúde (NO3). Uma questão frequentemente associada como causadora desse fenômeno é a dificuldade administrativa para formalizar a contratação remunerada destes especialistas:

Eles [pajés e parteiras], com este novo modelo de saúde, eles querem trabalhar, mas também querem um incentivo, isso é o que lhes falta, não há forma como pagar-lhes, retribuir (AE6).

Segundo Ferreira2424 Ferreira LO. Medicinas indígenas e as políticas da tradição: entre discursos oficiais e vozes indígenas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. [Saúde dos povos Indígenas collection]., a contratação remunerada dos curadores tradicionais faz parte da luta destes povos pelo reconhecimento da medicina tradicional frente ao Estado, porém está condicionada à regulamentação de seus ofícios, o que implicaria empreender sua profissionalização para integrá-los aos serviços de saúde.

A implantação da figura do gestor comunitário foi outra estratégia citada pelos participantes:

Aí eles no modelo colocaram o gestor, gestor comunitário o chamaram, mas pensava-se que era para isso, para mediar entre o ocidental e o tradicional, para orientar, mas agora ele está é coletando dados, coletando coisas, só estatística (BAC1).

Salienta-se a dificuldade que esse profissional tem para exercer sua função de “articulador de conhecimentos” conforme o prescrito pelo modelo, limitando-se a realizar ações exclusivamente administrativas. Essa questão poderia ser comparada com a situação vivenciada pelo Agente Indígena de Saúde no Brasil, cuja função de mediador segundo Diehl et al.2525 Diehl E, Langdon EJ, Dias-Scopel RP. Contribuição dos agentes indígenas de saúde na atenção diferenciada à saúde dos povos indígenas brasileiros. Cad Saude Publica 2012; 28(5):819-831. é marcada por conflitos e ambiguidades.

O encontro de pajés e parteiras, um evento que vem sendo implementado há anos pelo governo do Estado de Guainía, com o objetivo de promover o intercâmbio de conhecimentos e estratégias de vigilância comunitária em saúde e interculturalidade, também foi destacado pelos participantes como parte importante dos projetos que foram fortalecidos com a implantação do novo modelo de atenção.

Além dessas propostas estabelecidas pelos discursos oficiais, foi possível identificar outras estratégias operando espontaneamente no dia a dia da prestação dos serviços, sendo este o olhar do real. Os profissionais de saúde não-indígenas por sua parte, realizam a articulação de saberes por meio de uma negociação de responsabilidades ou estabelecimento de “concessões” para o emprego de certas práticas de medicina tradicional:

No hospital também eles [curadores tradicionais] podem entrar, porque eles entram a orar, fazem umas rezas e a gente lhes permite, o que não podemos permitir é que quando o doutor diz: “nada via oral”, é nada via oral, porque isso sim nos comprometeria a todos (AE9).

Porém, muitas dessas estratégias partem do estabelecimento de limites sob parâmetros biomédicos. As práticas tradicionais consideradas prejudiciais para a saúde do usuário - geralmente as que incluem a ingestão de bebidas - ou que podem alterar o curso normal das atividades de trabalho, não são permitidas pelos profissionais. Essa atitude pode ser entendida, conforme Silva2626 Silva CD. Cotidiano, saúde e política. Uma etnografia dos profissionais da saúde indígena [tese]. Brasília: Universidade de Brasilia; 2010., não somente com base nas reações impositivas ou restritivas, mas também por uma situação histórica que pressupõe uma análise das relações de poder nesse contexto.

Deve-se ressaltar, entretanto, os esforços feitos por alguns profissionais para propor processos de negociação em termos de respeito e “igualdade”, apesar da interlocução estar sujeita a hierarquias e exercício de poderes.

Além disso, foi possível identificar outras estratégias realizadas pelos profissionais de saúde indígenas em sua prática cotidiana:

Como faz meu companheiro, sempre vêm [pacientes] quando há uma doença de nós indígenas, então ele na hora começa a trabalhar sua medicina tradicional, ele sabe massagens e tudo isso, sabe até algumas rezas, ou seja, quando não termina [a doença] nós fazemos qualquer coisa, aí mesmo no posto [de saúde] (AE6).

Assim, além dos profissionais de saúde indígenas desempenharem as funções competentes à sua formação biomédica, tentam responder a outras demandas dos usuários, seja exercendo práticas de medicina tradicional, atuando como intermediários com outros profissionais de saúde (geralmente médicos) ou transgredindo os limites impostos.

Finalmente, os dados revelaram que tanto usuários como profissionais indígenas e não-indígenas apresentam expetativas sobre a articulação de saberes, sugerindo possíveis caminhos para operacionalizá-la na prática. Algumas propostas em relação à aprovação dos curadores tradicionais pela comunidade ou sobre a maneira como orientar o usuário para a utilização dos recursos indígenas e biomédicos foram postas pelos profissionais de saúde indígenas:

Para mim o jeito seria por meio de um intermediário, alguém aqui [no ponto meio] que avalie as duas coisas e por isso deve ter os dois conhecimentos [indígena e biomédico] (BAC1).

Esperam, portanto, que seja possível a implantação de uma espécie de “rotas” padronizadas para orientar a conduta do usuário, seja por meio do gestor comunitário em seu papel de mediador ou determinando como início do ponto de consulta os serviços médicos ocidentais.

Os profissionais de saúde não-indígenas também expressaram expectativas sobre possíveis formas de concretizar a articulação de saberes na prestação dos serviços de APS:

Me parece interessante que se pudesse fazer articulação com a medicina tradicional, ou seja, é um trabalho que eu acho que é longo, é árduo... deve ter um suporte científico, então é procurar isso, que se faça uma pesquisa em conjunto (DEN4).

Assim, para estes profissionais a articulação de saberes implica a validação científica das práticas de medicina tradicional, por meio de pesquisas voltadas à comprovação de sua eficácia, segurança e qualidade. Nessa perspetiva, corresponde à ciência - como única fonte legítima - o papel de identificar a eficácia das terapias tradicionais a serem incorporadas nos serviços de saúde. Entretanto, como aponta Ferreira2424 Ferreira LO. Medicinas indígenas e as políticas da tradição: entre discursos oficiais e vozes indígenas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. [Saúde dos povos Indígenas collection]., esse processo implica a depuração dos aspetos culturais, das crenças e dos valores que impregnam estas medicinas.

Considerações finais

As questões aqui abordadas contribuem para a compreensão de dinâmicas imersas na atenção à saúde em contextos interétnicos, que devem ser consideradas ao impulsionar objetivos interculturais em modelos de atenção em saúde com enfoque diferencial.

O olhar sobre a experiência dos sujeitos envolvidos na prestação dos serviços de APS em Guainía, permitiu refletir sobre a forma como se concebe e opera a interculturalidade no cotidiano, para além das formulações prescritas na política governamental. É por meio de articulações e negociações constantes na socialidade de indígenas e profissionais de saúde, que os processos interculturais se constroem e se concretizam, sem estar desprovidos de conflitos, ambiguidades e contradições.

Uma questão evidente nos resultados desta pesquisa foi a diferença na maneira como se concebe conceitualmente a interculturalidade e como ela se desenvolve nas práxis. Para os profissionais de saúde, a compreensão da interculturalidade compreende um esforço para alcançar a perspectiva “ideal” em um cenário harmonioso de vontade, reciprocidade e horizontalidade, as questões advindas no encontro com a diferença, entretanto põem em evidência as dinâmicas estabelecidas pela estrutura hegemônica e as assimetrias presentes nas relações.

A tensão constante que vivenciam os profissionais não-indígenas na interação com os conhecimentos e práticas em saúde dos usuários indígenas é reflexo da impotência e desconforto ao perceber o conhecimento biomédico, situado em posição hegemônica, como insuficiente. Porém, essa situação permite considerar o papel dos saberes “outros” para interpelar e questionar os limites estabelecidos, de forma contra-hegemônica.

Mostra disso é a maneira com a qual os participantes indígenas definem os limites e alcances dos tratamentos e fazem diferentes transações com os recursos terapêuticos disponíveis para tratar seus padecimentos. Nesse processo, formas heterogêneas de pensar-saber são negociadas e articuladas para criar novas interpretações e reinvenções de conhecimentos1515 Walsh C. Interculturalidad crítica y (de)colonialidad: Ensayos desde Abya Yala. Quito: Ediciones Abya-Yala; 2012., manifestando as maneiras com as quais a interculturalidade materializa-se na trajetória de cuidado dos usuários indígenas e nas práticas locais.

Da mesma forma, a concretização da interculturalidade, para além do prescrito, manifesta-se no cotidiano da prestação dos serviços de APS nas diferentes estratégias de articulação de saberes que tanto usuários como profissionais de saúde desenvolvem no âmbito das unidades de atenção. Muitas dessas estratégias se constituem em construções criativas que partem do conhecimento empírico, do senso comum posto na centralidade subterrânea1111 Maffesoli M. O conhecimento comum: Introdução a la sociologia compreensiva. Porto Alegre: Sulina; 2010. do cotidiano que ultrapassa lógicas racionalizadoras.

Considera-se relevante, portanto, atentar em estas questões de forma a consolidar o enfoque intercultural na APS proposto pelo novo modelo de atenção em Guainía, partindo das construções emergentes do cotidiano de usuários e profissionais de saúde, que permitam efetivar um verdadeiro diálogo de saberes77 Langdon EJ, Garnelo L. Articulación entre servicios de salud y "medicina indígena": reflexiones antropológicas sobre política y realidad en Brasil. Salud Colect 2017; 13(3):457-470. no âmbito da atenção.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2019
  • Aceito
    07 Fev 2020
  • Publicado
    09 Fev 2020
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