Contribuições da pesquisa sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde ao projeto político-pedagógico da Saúde Coletiva

Contribuciones de la investigación sobre el Complejo Económico-Industrial de la Salud al proyecto político-pedagógico de la Salud Colectiva

Eduardo Levcovitz Sobre o autor

Uma reflexão crítica sobre a produção acadêmica recente da Saúde Coletiva brasileira

Após 16 anos trabalhando fora do Brasil, procurei atualizar meu conhecimento sobre a produção em Política, Planejamento e Gestão em Saúde, instigado por análises recentes 11. Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015.,22. Santos JS, Teixeira CF. Produção científica sobre política de saúde no Brasil (1988-2014). Contribuição ao debate sobre a Reforma Sanitária Brasileira. In: Teixeira CF, organizadora. Observatório de análise de política em saúde. Abordagens, objetos e investigações. Salvador: EdUFBA; 2016. p. 42-72.,33. Fleury S. Reforma Sanitária: múltiplas leituras, diálogos e controvérsias. In: Fleury S, organizadora. Teoria da reforma sanitária. Diálogos críticos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 15-30.,44. Teixeira CF. Produção científica na área de política, planejamento e gestão em saúde 1975-2010: temas e teorias. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 81-111., especialmente o trabalho seminal de Schraiber 55. Schraiber LB. Engajamento ético-político e construção teórica na produção científica do conhecimento em Saúde Coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 33-57.. Para isso, revisitei metodologia de pesquisa pioneira sobre o tema no período 1974-2000 66. Levcovitz E, Baptista TWF, Uchoa SAC, Nespoli G, Mariani M. Produção do conhecimento em política, planejamento e gestão em saúde e políticas de saúde no Brasil (1974-2000). Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2003. para revisão de artigos publicados entre 2001 e 2018 nos periódicos Cadernos de Saúde Pública, Ciência & Saúde Coletiva, Revista de Saúde Pública e Saúde em Debate, assim como em livros, coletâneas e teses intuitivamente selecionadas.

Observa-se grande redução nessa produção, dos temas do Estado nacional e seu papel na garantia da proteção social universal e das macropolíticas de Seguridade Social e do Sistema Único de Saúde (SUS) 22. Santos JS, Teixeira CF. Produção científica sobre política de saúde no Brasil (1988-2014). Contribuição ao debate sobre a Reforma Sanitária Brasileira. In: Teixeira CF, organizadora. Observatório de análise de política em saúde. Abordagens, objetos e investigações. Salvador: EdUFBA; 2016. p. 42-72.,33. Fleury S. Reforma Sanitária: múltiplas leituras, diálogos e controvérsias. In: Fleury S, organizadora. Teoria da reforma sanitária. Diálogos críticos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 15-30.,44. Teixeira CF. Produção científica na área de política, planejamento e gestão em saúde 1975-2010: temas e teorias. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 81-111.,55. Schraiber LB. Engajamento ético-político e construção teórica na produção científica do conhecimento em Saúde Coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 33-57.,77. Paim J, Teixeira CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saúde Pública 2006; 40(spe):73-8., progressivamente substituídos por estudos de caso, relatos de experiências locais, avaliações de programas 22. Santos JS, Teixeira CF. Produção científica sobre política de saúde no Brasil (1988-2014). Contribuição ao debate sobre a Reforma Sanitária Brasileira. In: Teixeira CF, organizadora. Observatório de análise de política em saúde. Abordagens, objetos e investigações. Salvador: EdUFBA; 2016. p. 42-72.,44. Teixeira CF. Produção científica na área de política, planejamento e gestão em saúde 1975-2010: temas e teorias. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 81-111. e exaltações de particularismos identitários, além do quase total abandono da abordagem teórico-metodológica da Economia Política 88. Mendes A, Ianni AMZ, Marques MCC, Ferreira MJ, Silva THS. A contribuição do pensamento da saúde coletiva à economia política da saúde. Saúde Soc 2017; 26:841-60..

Na Saúde Coletiva, a convivência intelectual entre docentes, pesquisadores e estudantes de distintas formações e experiências profissionais, sejam eles estruturalistas-marxistas ou pós-estruturalistas, pós-modernistas ou neoinstitucionalistas, está presente desde os escritos pioneiros 66. Levcovitz E, Baptista TWF, Uchoa SAC, Nespoli G, Mariani M. Produção do conhecimento em política, planejamento e gestão em saúde e políticas de saúde no Brasil (1974-2000). Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2003.,99. Donnangelo MCF. A pesquisa na área de Saúde Coletiva no Brasil: a década de 70. In: Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, organizadora. Ensino da Saúde Pública, Medicina Preventiva e Social no Brasil. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva; 1983. p. 17-35.,1010. Canesqui AM. Ciências sociais, a saúde e a saúde coletiva. In: Canesqui AM, organizadora. Dilemas e desafios das ciências sociais na saúde coletiva. São Paulo: Hucitec Editora; 1995. p. 19-35.. Essa pluralidade não limitou a articulação orgânica da produção original com a política, os serviços e o desenvolvimento de capacidades de compreensão, interpretação e intervenção transformadora na realidade setorial, baseadas no “triedro ideologia-saber-prática” 1111. Paim J. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: EdUFBA/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008..

Tal articulação orgânica se estabeleceu ao longo dos anos 1970, orientada por uma compreensão compartilhada pelo “campo” sobre o setor saúde brasileiro: uma “Grande Narrativa” sobre as condições de vida e saúde da população; a evolução das políticas sanitárias e corporativo-previdenciárias; a organização social do trabalho médico e do modelo assistencial “hospitalocêntrico” frente ao modo de produção capitalista; o acesso segmentado à assistência médico-hospitalar; a “mercadorização” da saúde e as relações de poder protagonizadas pela corporação médica e pelo nascente empresariado, sob influência do Materialismo Histórico e da Economia Política 33. Fleury S. Reforma Sanitária: múltiplas leituras, diálogos e controvérsias. In: Fleury S, organizadora. Teoria da reforma sanitária. Diálogos críticos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 15-30.,88. Mendes A, Ianni AMZ, Marques MCC, Ferreira MJ, Silva THS. A contribuição do pensamento da saúde coletiva à economia política da saúde. Saúde Soc 2017; 26:841-60.,1010. Canesqui AM. Ciências sociais, a saúde e a saúde coletiva. In: Canesqui AM, organizadora. Dilemas e desafios das ciências sociais na saúde coletiva. São Paulo: Hucitec Editora; 1995. p. 19-35., que foi “A” referência, nas décadas seguintes, para uma produção politicamente engajada e inovadora em seus objetos, métodos e produtos 66. Levcovitz E, Baptista TWF, Uchoa SAC, Nespoli G, Mariani M. Produção do conhecimento em política, planejamento e gestão em saúde e políticas de saúde no Brasil (1974-2000). Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2003.,77. Paim J, Teixeira CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saúde Pública 2006; 40(spe):73-8.,1212. Sophia DC. Saúde & utopia. O Cebes e a Reforma Sanitária Brasileira (1976-1986). São Paulo: Hucitec Editora/Sobravime; 2014..

A densidade/complexidade teórico-metodológica dessa produção foi construída a partir dos seminários promovidos pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) entre 1969 e 1978, dos ensinamentos de Garcia 1313. Garcia JC. Juan Cezar Garcia entrevista Juan Cezar Garcia. In: Nunes ED, organizador. As Ciências Sociais em saúde na América Latina, tendências e perspectivas. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 1985. p. 21-8. com orientação estruturalista-marxista, reforçada, no caso de vários autores, por sua militância no Partido Comunista Brasileiro (PCB) 1212. Sophia DC. Saúde & utopia. O Cebes e a Reforma Sanitária Brasileira (1976-1986). São Paulo: Hucitec Editora/Sobravime; 2014.,1414. Arouca S. Crise brasileira e reforma sanitária. Saúde Debate 1991; 4:15-20. e do pensamento crítico latino-americano.

É incomensurável a riqueza da produção acadêmica que veio à luz neste recém-inaugurado campo da Saúde Coletiva, em que se desenvolveram estudos que tomaram a questão do Estado, da democracia e das políticas sociais como eixo de atualização do debate marxista (...) expondo as formas de mercantilização em saúde, a dinâmica de acumulação capitalista na área e as diferentes configurações organizacionais e de articulação entre o setor público e o privado33. Fleury S. Reforma Sanitária: múltiplas leituras, diálogos e controvérsias. In: Fleury S, organizadora. Teoria da reforma sanitária. Diálogos críticos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 15-30. (p. 17-8).

No final da década de 1980 era visível que, junto com a nova hegemonia liberal, o pensamento crítico perdera sua vitalidade, enquanto muitos estruturalistas-marxistas aderiram, de uma forma ou de outra, ao projeto liberal-conservador1515. Fiori JL. As trajetórias intelectuais do debate sobre desenvolvimento na América Latina. In: Brandão CA, organizador. Teorias e políticas de desenvolvimento latino-americano. Rio de Janeiro: Contraponto; 2018. p. 17-46. (p. 33). Os anos 1990 testemunharam profunda mudança de referenciais político-ideológicos, acompanhando os impactos nos movimentos socialistas das derrotas eleitorais dos partidos socialdemocratas e da dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), agravados, no Brasil, pela autodissolução do PCB, pelo esgotamento dos desenvolvimentismos keynesiano e “cepalino” e pelo afastamento de intelectuais do estudo do Estado brasileiro, propiciando a hegemonia das visões utilitárias do Estado e dos limites restritos das políticas públicas.

A Saúde Coletiva brasileira resistiu inicialmente a essa mudança 22. Santos JS, Teixeira CF. Produção científica sobre política de saúde no Brasil (1988-2014). Contribuição ao debate sobre a Reforma Sanitária Brasileira. In: Teixeira CF, organizadora. Observatório de análise de política em saúde. Abordagens, objetos e investigações. Salvador: EdUFBA; 2016. p. 42-72.,44. Teixeira CF. Produção científica na área de política, planejamento e gestão em saúde 1975-2010: temas e teorias. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 81-111.,66. Levcovitz E, Baptista TWF, Uchoa SAC, Nespoli G, Mariani M. Produção do conhecimento em política, planejamento e gestão em saúde e políticas de saúde no Brasil (1974-2000). Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2003.,77. Paim J, Teixeira CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saúde Pública 2006; 40(spe):73-8., mas, desde a transição ao século XXI, perdemos a referência da Grande Narrativa e, consequentemente, a profundidade, complexidade, inteligência e relevância da nossa produção 44. Teixeira CF. Produção científica na área de política, planejamento e gestão em saúde 1975-2010: temas e teorias. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 81-111.,77. Paim J, Teixeira CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saúde Pública 2006; 40(spe):73-8.,1212. Sophia DC. Saúde & utopia. O Cebes e a Reforma Sanitária Brasileira (1976-1986). São Paulo: Hucitec Editora/Sobravime; 2014., que “se torna cada vez mais fragmentada e fragmentária33. Fleury S. Reforma Sanitária: múltiplas leituras, diálogos e controvérsias. In: Fleury S, organizadora. Teoria da reforma sanitária. Diálogos críticos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 15-30. (p. 22). Somos coletivamente responsáveis pelo abandono da categoria metodológica central ao marxismo da Totalidade Dialética que, somada à crescente despolitização e “rarefação teórica da nossa produção55. Schraiber LB. Engajamento ético-político e construção teórica na produção científica do conhecimento em Saúde Coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 33-57. (p. 36), resulta no empobrecimento da reflexão crítica em artigos, livros e teses, hoje predominantemente povoados por um empirismo indutivo de baixo poder explicativo, que constitui motivo de frustração para muitos de nós. “O pragmatismo, o oportunismo e o pós-modernismo servem de pretexto para obstar uma reflexão sobre projetos e futuro1111. Paim J. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: EdUFBA/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. (p. 302).

Apesar da diversidade disciplinar-epistemológica, nossa produção original expressava reflexões das pessoas sobre suas práxis política, profissional e institucional 33. Fleury S. Reforma Sanitária: múltiplas leituras, diálogos e controvérsias. In: Fleury S, organizadora. Teoria da reforma sanitária. Diálogos críticos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 15-30., e, mesmo tendo se direcionado cada vez mais para investigações de caráter acadêmico 22. Santos JS, Teixeira CF. Produção científica sobre política de saúde no Brasil (1988-2014). Contribuição ao debate sobre a Reforma Sanitária Brasileira. In: Teixeira CF, organizadora. Observatório de análise de política em saúde. Abordagens, objetos e investigações. Salvador: EdUFBA; 2016. p. 42-72.,66. Levcovitz E, Baptista TWF, Uchoa SAC, Nespoli G, Mariani M. Produção do conhecimento em política, planejamento e gestão em saúde e políticas de saúde no Brasil (1974-2000). Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2003., manteve um olhar crítico sobre a dinâmica do Estado, do mercado, da sociedade e das políticas 44. Teixeira CF. Produção científica na área de política, planejamento e gestão em saúde 1975-2010: temas e teorias. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 81-111.,66. Levcovitz E, Baptista TWF, Uchoa SAC, Nespoli G, Mariani M. Produção do conhecimento em política, planejamento e gestão em saúde e políticas de saúde no Brasil (1974-2000). Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2003.,77. Paim J, Teixeira CF. Política, planejamento e gestão em saúde: balanço do estado da arte. Rev Saúde Pública 2006; 40(spe):73-8..

No século XXI, nossa produção se distanciou da práxis 33. Fleury S. Reforma Sanitária: múltiplas leituras, diálogos e controvérsias. In: Fleury S, organizadora. Teoria da reforma sanitária. Diálogos críticos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. p. 15-30. e, consequentemente, incorreu em importante dissociação teórico-empírica, expressa na incapacidade de construir o diálogo entre os elementos teóricos com os resultados de pesquisa 55. Schraiber LB. Engajamento ético-político e construção teórica na produção científica do conhecimento em Saúde Coletiva. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV, organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 33-57., que leva ao risco de contribuirmos para a difusão de especulações, fatos alternativos e pós-verdades. Esse processo é agravado pela multiplicação de grupos de pesquisa que são “propriedade” de poucos pesquisadores e expressões de seus interesses (ou desinteresses) pessoais, amparados em entendimentos laissez-fairianos da liberdade de cátedra, por “certo ecletismo na definição de abordagens e métodos1616. Machado CV, Lima LD. Perspectivas históricas na análise de políticas de saúde. In: Baptista TWF, Azevedo C, Machado CV , organizadores. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p. 115-45. (p. 116) e pela crescente transformação de nossos cursos/debates de espaços de formação coletiva em manifestações de autoafirmação de grupos identitários, em que “lugares de fala” se superpõem a reflexões sobre a práxis.

Resultados frequentes dessa produção não ampliam ou atualizam conhecimentos, nem promovem compreensão da realidade. Não contribuem à reflexão crítica, raramente propõem agendas inovadoras de investigação ou recomendam intervenções transformadoras. São, majoritariamente, restritos à descrição dos processos sociopolítico-sanitários estudados; e nunca é demais recordar o alerta de Marx: “Toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas1717. Marx K. O Capital - crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008. (p. 939).

Contribuição da pesquisa sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde para a explicação/compreensão/interpretação do setor saúde do Brasil no século XXI

Pesquisas sobre a consolidação/expansão do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) - reconhecendo-o como base produtiva da saúde e, simultaneamente, espaço de acumulação do capital e de inovação, competição e financeirização - são críticas para a reconstrução da Grande Narrativa, como na investigação sobre Complexo Econômico Industrial da Saúde; Inovação e Dinâmica Capitalista: Desafios Estruturais para a Construção do Sistema Universal de Saúde no Brasil, liderada pelo Grupo de Pesquisa e Documentação do Empresariamento em Saúde, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro (GPDES/IESC/UFRJ). O grupo, ao avançar além de reflexões teóricas 88. Mendes A, Ianni AMZ, Marques MCC, Ferreira MJ, Silva THS. A contribuição do pensamento da saúde coletiva à economia política da saúde. Saúde Soc 2017; 26:841-60., estuda a realidade atual do mercado da saúde e seus impactos nas políticas de proteção social, adotando a abordagem da Economia Política para explicar/compreender/interpretar o capitalismo brasileiro numa perspectiva teórica e histórica, analisando empresas que desenvolvem atividades diretas de prestação de cuidados às pessoas ou indiretas de formação de recursos humanos, comercialização de planos/seguros de saúde ou produção/comercialização de materiais, equipamentos e medicamentos, avaliando ainda sua atuação nos espaços político-institucionais.

Entendo que é na Economia Política Marxista que encontramos os fundamentos teórico-metodológicos para um renovado projeto político-pedagógico para a Saúde Coletiva brasileira, por abordar a realidade sob uma perspectiva simultaneamente histórica, econômica, política e ideológica.

A análise da evolução e os desafios apresentados pelo complexo industrial da saúde tornam uma necessidade a introdução de um enfoque dinâmico de economia no campo da saúde, que focalize os processos de desenvolvimento, de acumulação de capital e de inovações, recuperando abordagens de economia política 1818. Gadelha CAG. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciênc Saúde Colet 2003; 8:521-35..

Além de analisar a “dinâmica contraditória do Capital cuja essência é dada pelos processos de acumulação, distribuição [e] inovação1919. Teixeira A. Marx e a economia política: a crítica como conceito. Econômica 2000; II:85-109. (p. 107) e as relações de poder e propriedade, a Economia Política Marxista estabelece uma “vinculação muito complexa entre o processo de conhecimento e o processo de organização política das forças sociais2020. Dos Santos T. Economia política Marxista: um balanço. https://www.nodo50.org/cubasigloXXI/taller/dossantos_290204.pdf (acessado em 18/Dez/2018).
https://www.nodo50.org/cubasigloXXI/tall...
, ao avançar rumo à práxis transformadora, conforme propõe Marx na 11ª Tese sobre Feuerbach.

Essa abordagem também induz a recuperação do engajamento político das origens da Saúde Coletiva e a orientação metodológica pela categoria da Totalidade Dialética, entendida como “percepção da realidade social como um todo orgânico, estruturado, no qual não se pode entender um elemento, um aspecto, uma dimensão, sem perder a sua relação com o conjunto2121. Löwy M. Ideologias e ciência social. Elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez Editora; 2015. (p. 23-4), rejeitando tanto a linearidade causal na explicação de fenômenos complexos como a pseudoneutralidade positivista na interpretação desses fenômenos, tão na moda na era das políticas baseadas em evidências e livres de valores. Compreende-as como impregnadas de visões sociais do mundo, como “conjuntos estruturados de valores, representações, ideias e orientações cognitivas2121. Löwy M. Ideologias e ciência social. Elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez Editora; 2015. (p. 21).

Com base na Economia Política Marxista, a renovação do projeto político-pedagógico da Saúde Coletiva exigirá reconstruir a reflexão sobre o Estado brasileiro e seu papel insubstituível na condução estratégica do desenvolvimento, da redução das desigualdades e da universalização da proteção social. Para isso, nossos debates e esforços intelectuais devem orientar-se por um conjunto coletiva e solidariamente acordado de desafios e objetivos políticos, institucionais e acadêmicos:

(1) Prioridade para a pesquisa cooperativa/produção coletiva de conhecimentos, baseada no adensamento teórico-conceitual, no resgate da complexidade, na reconstrução do diálogo teórico-empírico, na reflexão crítica, na inovação técnico-científica e no engajamento ético-político;

(2) Construção compartilhada de uma Grande Narrativa sobre o setor saúde do Brasil no século XXI, baseada na reflexão sobre o Estado, o mercado, as classes sociais, o conflito distributivo, a política, os projetos de desenvolvimento e a expansão do CEIS;

(3) Socialização dos conhecimentos e das análises, com base no triedro ideologia-saber-prática;

(4) Formação de nova geração de professores, pesquisadores, gestores e técnicos com capacidade de descrição/explicação - compreensão/interpretação - e intervenção técnico-político-institucional/ação transformadora no Estado, na economia, na sociedade e na política de saúde.

Agradecimentos

Agradecimentos às equipes do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro; do Grupo de Análise de Políticas de Saúde, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde, que compartilharam os debates para formulação do presente texto.

Referências

  • 1
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  • 2
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  • 21
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2020
  • Revisado
    26 Ago 2020
  • Aceito
    31 Ago 2020
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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