A pandemia de COVID-19 e os limites da Ciência

Rafael Varella Sobre o autor

A pandemia de Covid-19 trouxe à tona questões fundamentais relacionadas ao alcance do conhecimento científico, a previsibilidade de eventos naturais e o reconhecimento de seus próprios limites. Questões sobre as formas de transmissão do vírus, o uso de máscaras, aplicação de medidas restritivas, eficácia da vacina e o retorno à normalidade pré-pandêmica (COEN, 2021COEN, J. How soon will COVID-19 vaccines return life to normal? Science Feb. 16, 2021. DOI: doi:10.1126/science.abh0618.
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) muitas vezes exigem respostas imediatas e dicotômicas que são praticamente inexistentes nas Ciências Naturais, especialmente na Biologia. Esses questionamentos são necessários, pois o mundo enfrenta uma das maiores crises de sua história, mas também geram uma enorme tensão entre a busca por asserções objetivas e o campo das possibilidades, onde a Ciência se encontra mais à vontade (SMITH, 2019SMITH, W. Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista. Campinas: Vide Editorial, 2019.).

Não apenas os fundamentos da Ciência são escrutinados, mas a forma como a informação científica é interpretada pela sociedade e mídia, e pela própria comunidade científica, são colocados à prova. Para alcançar a população em geral, através dos veículos de comunicação, a informação científica é traduzida para a linguagem leiga, após ser convertida em uma forma condensada e geralmente supersimplificada, quando não tendenciosa, que pode alterar seu significado real. Da mesma forma, a interpretação dos dados científicos por aqueles que fazem ciência pode extrapolar os limites hipotéticos, alcançando a esfera especulativa (KÖCHE, 2011). São questões relevantes e devem ser amplamente debatidas para evitar um processo de desinformação e extremismos.

Idealmente, a busca pelo conhecimento é o objetivo mais nobre da Ciência, pois promove a elevação do ser humano através do saber, e aquilo que “produz a correção e a boa fortuna”, de acordo com Sócrates no Eutidemo (HAMELIN, 2018HAMELIN, G. Ciência e saber. A importância da concepção platônica da natureza da epistêmê em Aristóteles. J. Anc. Philos., 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-9471.v12i1p1-27.
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). Na visão moderna, a ciência ganha uma vertente utilitarista, passando a ser valorizada por sua capacidade em promover bem-estar físico e material, sendo especialmente representada por seus palpáveis avanços tecnológicos (REALE, 2014REALE, G. Saber dos antigos: terapia para os tempos atuais. 4ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.). Nessa valorização da utilidade e da práxis, a Ciência atual se tornou sinônimo de método científico. O “método” foi desenvolvido nas revoluções científicas dos séculos XVI e XVII, especialmente representado por Bacon e Galilei, e se tornou o elemento divisor entre as Ciências Naturais e as Ciências Ideais (HESSEN, 2012HESSEN, J. Teoria do conhecimento. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.). Sua fundamentação se baseia na criação de modelos contingentes da realidade que permitem a apreensão de determinados aspectos da natureza, sujeitando-os a verificação e quantificação (SMITH, 2019SMITH, W. Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista. Campinas: Vide Editorial, 2019.).

O campo da Biologia, como já dito, dificilmente apresenta suas conclusões de forma simplista. Os eventos biológicos são extremamente complexos e nosso entendimento se limita ao arsenal teórico e instrumental disponível. O surgimento da Covid-19 em plena era da informação e da biotecnologia é uma pequena amostra de nossa incompreensão dos fenômenos naturais (WIERSINGA ., 2020WIERSINGA, W. J. et al. Pathophysiology, transmission, diagnosis, and treatment of coronavirus disease 2019 (COVID-19): a review. JAMA. V. 324, n. 8, p. 782-793, 2020. doi: 10.1001/jama.2020.12839. PMID: 32648899.
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). Além disso, devemos nos lembrar de que a investigação científica não verifica diretamente os fenômenos naturais, pois sua abrangência e complexidade são incomensuráveis, mas sobre particularidades passíveis de mensuração. Sobre tais condições, os dados obtidos na pesquisa científica analítica são comumente expressos em termos probabilísticos, ou seja, inclusos no universo das possibilidades, entre o mundo da objetividade matemática e a interpretação subjetiva (MACIEL; TELLES, 2000MACIEL, E. M. G. S.; TELLES, F. S. P. Ensaio sobre a relação epistemológica entre probabilidade e método científico. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 487-497, jun. 2000.).

É precisamente nesta interseção entre o dado obtido na investigação científica e a extrapolação para o "mundo real", onde a Ciência dá seu passo mais significativo. Esta ponte do circunstancial para complexo busca a simplificação explicativa dos fenômenos e sua previsibilidade, abrindo as portas para o controle sobre os mesmos. Embora os experimentos forneçam estimativas sólidas, os resultados experimentais e a realidade operam em planos paralelos que parecem se aproximar e se distanciar conforme progredimos na busca pelo conhecimento. Infelizmente, porém, o modelo científico quantitativista atual, que dá ênfase excessiva à prática e pouco estudo da teoria do conhecimento, faz com que os cientistas esquecem que suas observações são modelos que operam dentro de limites, e não uma representação fiel da realidade acabada (SMITH, 2019SMITH, W. Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista. Campinas: Vide Editorial, 2019.). Nesse autoengano daquilo que a investigação científica representa de fato, e na ânsia por prover respostas objetivas, vão além dos limites de suas observações, tirando conclusões que operam no mundo especulativo.

Além do caráter eternamente provisório das teorias científicas, a Ciência, longe de operar em bases puramente racionais, está fortemente alicerçada em fatores subjetivos. A mudança de consenso paradigmático, por exemplo, mais que a refutação científica da teoria, constitui uma das principais forças atuantes da marcha científica (KUHN, 1978KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978.). Esta característica é geralmente desconsiderada pelo público, e mesmo pelo corpo científico, como fator vital desse amálgama de valores, conceitos e preceitos que compõem o que chamamos de “Ciência”. Ainda assim, a adoção de alguns critérios para o que consideramos como “científico válido” podem ser úteis, no sentido de se evitar um relativismo científico, em que todos são portadores de verdades de mesmo peso. A formulação de hipóteses passíveis de verificação e, portanto, de refutação (SCHMIDT; SANTOS, 2007SCHMIDT, P.; SANTOS, J. L. O pensamento epistemológico de Karl Popper. ConTexto, v. 7, n. 11, 2007. 15p.) tem sido considerada um poderoso critério que separa uma proposição científica testável da mera atividade especulativa.

Em suma, o conhecimento científico não é propriedade do cientista, mas um bem universal (KÖCHE, 1997KÖCHE, J. C. Fundamentos de metodologia científica. Petrópolis: Vozes, 1997.). A sociedade moderna, no entanto, projetou na Ciência uma resposta para todos os seus males, abrindo precedência desta sobre outras áreas do saber (REALE, 2014REALE, G. Saber dos antigos: terapia para os tempos atuais. 4ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.). Dentro desta concepção de mundo, a ocorrência de uma pandemia torna ainda maior a responsabilidade do cientista perante a sociedade na busca por soluções. Em suas limitações inerentes, o método científico continua sendo uma das maiores invenções do ser humano, capaz de produzir respostas convincentes, embora “eternamente provisórias” (POPPER, 1993POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1993.). A desconsideração desses princípios estruturantes produz uma deturpação valorativa das proposições científicas, abrindo caminho para a dogmatização do conhecimento, enraizado em verdades indiscutíveis, o que fere a própria natureza da Ciência.

Referências

  • COEN, J. How soon will COVID-19 vaccines return life to normal? Science Feb. 16, 2021. DOI: doi:10.1126/science.abh0618.
    » https://doi.org/10.1126/science.abh0618
  • HAMELIN, G. Ciência e saber. A importância da concepção platônica da natureza da epistêmê em Aristóteles. J. Anc. Philos, 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-9471.v12i1p1-27.
    » https://doi.org/10.11606/issn.1981-9471.v12i1p1-27
  • HESSEN, J. Teoria do conhecimento 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
  • KÖCHE, J. C. Fundamentos de metodologia científica Petrópolis: Vozes, 1997.
  • KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas São Paulo: Perspectiva, 1978.
  • MACIEL, E. M. G. S.; TELLES, F. S. P. Ensaio sobre a relação epistemológica entre probabilidade e método científico. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 487-497, jun. 2000.
  • POPPER, K. A lógica da pesquisa científica São Paulo: Cultrix, 1993.
  • REALE, G. Saber dos antigos: terapia para os tempos atuais. 4ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
  • SCHMIDT, P.; SANTOS, J. L. O pensamento epistemológico de Karl Popper. ConTexto, v. 7, n. 11, 2007. 15p.
  • SMITH, W. Cosmos e transcendência: rompendo a barreira da crença cientificista. Campinas: Vide Editorial, 2019.
  • WIERSINGA, W. J. et al. Pathophysiology, transmission, diagnosis, and treatment of coronavirus disease 2019 (COVID-19): a review. JAMA V. 324, n. 8, p. 782-793, 2020. doi: 10.1001/jama.2020.12839. PMID: 32648899.
    » https://doi.org/10.1001/jama.2020.12839

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2021
  • Revisado
    30 Abr 2021
  • Aceito
    13 Maio 2021
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