ARTÍCULO DE REVISIÓN REVIEW

 

Acolhimento na Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa

 

User embracement in the Family Health Strategy in Brazil: an integrative review

 

 

Miriane Garuzi; Maria Cecília de Oliveira Achitti; Cintia Ayame Sato; Suelen Alves Rocha; Regina Stella Spagnuolo

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Campus de Botucatu, Faculdade de Medicina, Botucatu (SP), Brasil. Correspondência: Suelen Alves Rocha, suelenalvesrocha@gmail.com

 

 


RESUMO

OBJETIVO: Revisar a literatura acerca da aplicação do conceito de acolhimento e elucidar as contribuições desse conceito para as práticas na atenção primária à saúde.
MÉTODOS: Foi realizada uma revisão integrativa que investigou a produção do conhecimento sobre atenção primária à saúde. Foram pesquisadas as seguintes bases de dados: LILACS, SciELO e MEDLINE, no período de 2006 a 2010. Os termos de busca utilizados na LILACS E SciELO foram: "acolhimento" AND "programa saúde da família" AND "saúde". Na MEDLINE foram usados os termos "user embracement" AND "family health program" AND " health". A coleta de dados se deu no mês de novembro de 2010.
RESULTADOS: Foram identificados 21 artigos que preencheram os critérios de inclusão, todos descrevendo estudos brasileiros. Os artigos foram sistematizados em três categorias empíricas: vínculo e acolhimento; processo de trabalho em atenção primária à saúde; e avaliação dos serviços. As categorias são complementares e convergem para duas visões principais de acolhimento: dispositivo capaz de reorganizar a atenção à saúde e postura perante o usuário. Percebe-se ainda o acolhimento como ferramenta de gestão em defesa do Sistema Único de Saúde, associado aos princípios da integralidade e universalidade.
CONCLUSÕES: O acolhimento é capaz de promover o vínculo entre profissionais e usuários, possibilitando o estímulo ao autocuidado, melhor compreensão da doença e corresponsabilização pelo tratamento. Auxilia na universalização do acesso, fortalece o trabalho multiprofissional e intersetorial, qualifica a assistência, humaniza as práticas e estimula ações de combate ao preconceito. Entretanto, mereceria maior atenção a perspectiva do usuário sobre a utilização do acolhimento, um tópico a ser enfocado por estudos futuros.

Palavras-chave: Saúde da família; acolhimento; atenção primária à saúde; Brasil.


ABSTRACT

OBJECTIVE: To review the literature regarding the application of the notion of user embracement and to identify the contributions of this concept for primary health care practices in Brazil.
METHOD: We carried out an integrative review of the literature regarding primary health care. The following databases were searched: LILACS, SciELO, and MEDLINE, covering the period from 2006 to 2010. The following search terms were used in LILACS and SciELO: "acolhimento" and "programa saúde da família" and "saúde". For MEDLINE, the terms "user embracement" and "family health program" and "health" were used. The review was performed in November 2010.
RESULTS: We identified 21 articles meeting the inclusion criteria, all of which described studies carried out in Brazil. The articles were divided into three empirical categories: integration and embracement; primary care work process; and evaluation of services. These are complementary categories that converge to two main views of embracement: the first sees embracement as a means of reorganizing the primary health care environment, and the second sees embracement as an attitude towards users. The review also shows that embracement may be a management tool that supports the Unified Health System and is associated with the principles of comprehensiveness and universality.
CONCLUSIONS: Embracement is able to create a bond between health care workers and users. It promotes self-care, a better understanding of disease, as well as user co-responsibility for treatment. In addition, it facilitates universal access, strengthens multiprofessional and intersectoral work, qualifies care, humanizes practices, and encourages actions to combat prejudice. Nevertheless, the perspective of health care users regarding embracement deserves more attention and should be the focus of future studies.

Keywords: Family health; user embracement; primary health care; Brazil.


 

 

As comparações internacionais auxiliam na compreensão de importantes determinantes relacionados à política de saúde dos países. Um estudo que comparou indicadores como baixo peso ao nascer, mortalidade neonatal, mortalidade pós-natal, expectativa de vida e anos potenciais de vida perdidos em 13 países desenvolvidos concluiu que uma forte orientação para a atenção primária à saúde (APS) tem um efeito positivo na saúde da população, particularmente no início da vida (1).

Esse impacto também já foi percebido nos países da América Latina. Na Costa Rica, por exemplo, registrou-se um declínio de 13% na mortalidade infantil e de 4% na mortalidade de adultos 5 anos após a reforma da APS (2). No Brasil, resultados preliminares de uma avaliação do impacto do Programa Saúde da Família sobre a mortalidade infantil mostraram que o aumento em 10% da cobertura desse modelo de APS nos estados correspondeu a uma redução de 4,6% na mortalidade infantil, impacto mais significativo do que a ampliação do acesso à água potável (2,9%) ou do número de leitos hospitalares (1,3%) (3).

No Brasil, o Programa Saúde da Família, criado e implantado em 1994, é uma importante estratégia para reorganizar as práticas na APS e reorientar o sistema de saúde brasileiro, por meio do sistema de referência e contrarreferência. O Programa articula os demais níveis de complexidade de atenção com a APS, garantindo, assim, a integralidade das ações e a continuidade do cuidado. Trata-se de um modelo pautado no trabalho em equipe, priorização da família em seu território, acolhimento, vínculo, ações de prevenção e promoção da saúde, sem descuidar do tratamento e reabilitação.

A assistência alicerçada na equipe multiprofissional torna-se um elemento de grande valia, uma vez que a ideia interdisciplinar incorporada pela equipe multiprofissional permite a prestação do cuidado integral, tornando essas práticas, e em particular a do acolhimento, significativas nas relações afetivas entre os atores envolvidos (profissionais e usuários).

O acolhimento é uma das principais diretrizes éticas, estéticas e políticas da Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Definido em documentos oficiais como a recepção do usuário no serviço de saúde, compreende a responsabilização dos profissionais pelo usuário, a escuta qualificada de sua queixa e angústias, a inserção de limites, se for preciso, a garantia de assistência resolutiva e a articulação com outros serviços para continuidade do cuidado quando necessário (4).

Estudos nacionais apresentam o acolhimento sob diversos olhares. Partindo da compreensão de que é uma etapa do processo de trabalho, podendo ser realizado em um espaço físico determinado e por meio de uma equipe designada para atender à demanda da população adscrita (5), o acolhimento passa a ser pensado como uma "relação de ajuda", em que os usuários são aqueles que procuram ajuda, sendo simultaneamente "objetos e agentes da ação", pois opinam e tomam decisões (6, 7).

Outra perspectiva, eminentemente comunicacional, considera a rede tecnoassistencial de um serviço como uma verdadeira rede de conversação, onde cada nó (encontro com o usuário) envolve várias técnicas específicas (inclusive as de conversa), e concebe o acolhimento como dispositivo que promove a articulação das diferentes atividades (diferentes conversas) num espaço coletivo de conversações (8). Desse modo, o acolhimento não se faz apenas na porta de entrada das unidades de saúde, mas está presente em todo o percurso (9). Portanto, pode ser utilizado como ferramenta para a implantação de novas práticas em saúde, com base na problematização e reorganização dos processos de trabalho. Sua função é atender a demanda diária da unidade de saúde, fazendo com que os usuários tenham resolutividade dos problemas menos complexos ou encaminhamento para outros serviços, quando necessário, por meio da equipe multiprofissional (10). Por fim, o acolhimento pode ser entendido como tecnologia relacional capaz de desenvolver e fortalecer afetos, potencializando o processo terapêutico entre a população, os profissionais e os gestores do sistema de saúde (11).

Depreende-se que uma unidade de saúde seria capaz de reorganizar seu processo de trabalho a partir da utilização do acolhimento, revendo necessidades e prioridades, realizando a classificação por risco, evitando, na medida do possível, as filas por ordem de chegada, e, principalmente, a espera desnecessária dos usuários (11).

Assim, pergunta-se: como o conceito de acolhimento vem sendo descrito na literatura científica em saúde? Quais as tecnologias associadas e práticas de acolhimento desenvolvidas no novo modelo de APS brasileiro?

O objetivo deste artigo foi revisar a literatura acerca da aplicação do conceito de acolhimento e elucidar as contribuições desse conceito para as práticas na APS.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

Este estudo de abordagem qualitativa revisou a literatura para identificar a produção científica relacionada ao acolhimento na APS entre 2006 e 2010, período no qual houve grande incentivo para a implantação desse conceito, por ser uma diretriz da Política Nacional de Humanização de 2003 (12). Optou-se pela realização de uma revisão integrativa, definida como um instrumento de obtenção, identificação, análise e síntese da literatura direcionada a um tema específico. Permite, ainda, construir análise ampla da literatura, abordando, inclusive, discussões sobre métodos e resultados das publicações (13).

A revisão integrativa compreende cinco etapas: 1) estabelecimento do problema, ou seja, definição do tema da revisão em forma de questão ou hipótese primária; 2) seleção da amostra (após definição dos critérios de inclusão); 3) caracterização dos estudos (definem-se as características ou informações a serem coletadas dos estudos, por meio de critérios claros, norteados por instrumento); 4) análise dos resultados (identificando similaridades e conflitos); e 5) apresentação e discussão dos achados (13, 14).

O objeto de estudo foi a produção do conhecimento em periódicos sobre o acolhimento na Estratégia Saúde da Família (ESF) conforme as bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Scientific Electronic Library Online (SciELO) e MEDLINE. Nas duas primeiras foram usados os descritores controlados combinados com operadores booleanos: "acolhimento" AND "programa saúde da família" AND "saúde"; e, na última: "user embracement" AND "family health program" AND "health". A coleta de dados se deu no mês de novembro de 2010.

Adotaram-se como critérios de inclusão: artigos disponíveis integralmente, publicação em português, inglês ou espanhol em periódicos nacionais e internacionais e indexação nas bases de dados referidas no período de 2006 a 2010. Tomou-se o cuidado em excluir os artigos que se repetiam entre as bases. A partir disso, foram selecionados 21 artigos como corpus de análise, sendo 15 indexados na LILACS, cinco na SciELO e um na MEDLINE (figura 1).

 

 

 

Visando à sistematização dos dados, as autoras desenvolveram um instrumento de coleta contendo: dados referentes à autoria (nome dos autores, profissão, titulação e local de atuação) e dados relativos às publicações (base de dados de indexação, título, ano, periódico, idioma, país de origem, natureza do estudo, objeto de estudo, objetivos, problema, sujeitos, conceitos definidos, principais resultados relativos ao acolhimento e cenário).

Após coleta dos dados, foi caracterizado o corpus de análise. Os artigos foram comparados e agrupados por similaridade de conteúdo, definindo-se três categorias empíricas.

 

RESULTADOS

Trata-se de um corpus de análise totalmente brasileiro, publicado em português, majoritariamente indexado na LILACS e no ano de 2008 (28,57%). A maioria das publicações foi proveniente do estado de São Paulo (28,57%), conforme evidencia a tabela 1.

 

 

Quanto à distribuição dos artigos conforme o eixo temático do periódico de publicação, mereceram destaque as áreas da saúde pública (66,67%), interdisciplinares (23,81%) e de enfermagem (9,52%). Os artigos foram também classificados segundo o paradigma metodológico: 17, foram classificados como qualitativos, três como quantitativos e um como quantitativo/qualitativo. Em relação ao desenho metodológico adotado, foram identificados: 10 análises temáticas, três relatos de experiência, duas análises estatísticas, e outros com uma utilização cada (representação social; Donabedien associado à análise estatística; hermenêutica dialética; representação social complementada pela teoria do núcleo social; discurso do sujeito coletivo e triangulação de métodos).

Em relação à profissão dos autores, houve predominância de enfermeiros (58,44%), seguidos por médicos (14,29%) e estudantes de enfermagem (11,69%), dados justificáveis pelo fato de que, na maioria dos municípios, os enfermeiros são responsáveis técnicos na ESF. Em relação à titulação dos autores, o doutorado (38,96%) foi mais prevalente, seguido pelo mestrado (19,48%).

A leitura do corpus de análise permitiu a sistematização dos artigos em três categorias empíricas: acolhimento e vínculo (cinco artigos); acolhimento no processo de trabalho em APS (14 artigos); avaliação de serviços de saúde (dois artigos).

Acolhimento e vínculo

Em alguns estudos (15–19), os autores entendem o acolhimento como um arranjo tecnológico que almeja assegurar acesso aos usuários. Nesse cenário, o acolhimento objetiva ouvir todos os pacientes, resolver os problemas mais simples ou referenciar os pacientes, se necessário (15, 16). Implica em atendimento com resolubilidade e responsabilização (15–18), constituindo um momento de aproximação com o usuário (15) e possibilitando o resgate de valores de solidariedade, cidadania, respeito com o outro e estabelecimento de vínculo entre os envolvidos (17, 18).

As ações de acolhimento fazem parte do processo de trabalho da ESF e são essenciais para a construção de um vínculo entre o profissional de saúde e o usuário/família (15, 17). O vínculo pode ser caracterizado como uma relação de cumplicidade entre usuários e profissionais, concretizando-se no âmbito do acolhimento e sendo ponto de partida para a construção de confiança entre os envolvidos. Para haver vínculo, é indispensável que haja empatia e respeito. Os elementos que denotam a formação do vínculo baseiam-se no reconhecimento mútuo entre serviço e comunidade, pois não se estabelece vínculo sem a condição de sujeito, sem a livre expressão do usuário, por meio da fala, julgamento e desejo (15).

O vínculo permite a construção de confiança, capaz de estimular o autocuidado, favorecendo a compreensão da doença, a assimilação e seguimento correto das orientações terapêuticas pelos usuários, com destaque aos portadores de tuberculose (18) e de diabetes (19), além de propiciar um diálogo mais franco com mulheres portadoras de HIV/AIDS, levando-as ao desejo de revelar seu diagnóstico aos profissionais de saúde (17).

Acolhimento no processo de trabalho em APS

Nesta categoria (20–34), o acolhimento é entendido como uma tecnologia leve (tecnologia das relações) que deve ser usada na perspectiva de implantação de novas práticas de saúde. Trata-se de uma postura de escuta com compromisso de dar uma resposta às necessidades de saúde trazidas pelo usuário (20–27), uma possibilidade de universalizar o acesso (20, 22, 23, 26–30) ou ainda um novo modo de organizar o processo de trabalho em saúde, fundamentado na ação de equipe multiprofissional (20–23, 28) e na intersetorialidade (28) e centrado no usuário (22), possibilitando o exercício da solidariedade e cidadania (22, 26–30).

Teoricamente, acolher deixa de se resumir à porta de entrada ou à triagem e passa a envolver a escuta das necessidades do usuário e a responsabilização do serviço de saúde pelas demandas identificadas (22). No entanto, no cotidiano de algumas ESFs, evidencia-se que o acolhimento é entendido como uma atividade cuja terminalidade é a consulta médica, exprimindo a adoção de uma concepção reduzida, focada na organização da oferta do serviço médico (22, 25–28, 30).

Na tentativa de atender a todos, os usuários se deparam com o longo tempo de espera para o atendimento e com a necessidade de chegar muito cedo para garantir a consulta médica (30). Assim, há quem justifique que a limitação dos horários e a inserção dos médicos com número determinado de atendimentos no acolhimento visa a preservar a qualidade das consultas e a organização da demanda, orientando os recursos disponíveis conforme as prioridades da ESF (26).

No que se refere à concepção dos profissionais sobre o significado do acolhimento, observaram-se alguns nós críticos que necessitam ser desatados. Concepções que identificam o acolhimento como triagem (22, 27, 28, 33) ou "ato de bondade" e impulsionador de demandas (em especial para os profissionais médicos) devem ser objeto de reflexão da equipe que pretende direcionar a atenção em saúde a um modelo que tenha sua centralidade no usuário (22, 30).

Nesse sentido, os profissionais elencam as características necessárias ao acolhedor: saber ouvir, ter um bom relacionamento com a população e ter competência técnica. Porém, o cotidiano da recepção qualificada conformou-se como atribuição da enfermagem, destacadamente do auxiliar de enfermagem (20, 21, 27, 28), quando deveria ser realizado por toda a equipe de saúde, em toda relação profissional de saúde-pessoa em cuidado (28). O fato de haver um espaço específico e uma equipe específica para o acolhimento pode desresponsabilizar os demais membros (27).

Alguns fatores foram apontados como obstáculos para o desenvolvimento do trabalho acolhedor, como a pressão da demanda (gerando um tempo reduzido para o atendimento), o desconhecimento da realidade da população por alguns membros da equipe que não realizam atividades extramuros, o imediatismo inerente à sociedade atual (20), a dificuldade de realizar encaminhamentos para especialistas (21, 34, 30), o despreparo dos profissionais para o trabalho em equipe (22, 26, 30) e para o acolhimento de demandas de saúde mental (31), o desgaste da equipe e a resistência dos usuários, decorrente da hegemonia do modelo médico-privatista, limitação de espaço físico (22, 26), limitação de horários, postura do profissional (22), falta de condições da ESF para atendimentos de urgência e falta de retaguarda de serviços de remoção (34).

Como potencialidades do acolhimento, os profissionais assinalaram o estabelecimento de espaços de conversação entre profissionais e usuários, a melhoria da comunicação entre os membros das equipes de saúde, a maior visibilidade do trabalho dos profissionais não médicos, a garantia de acesso e a atenção mais qualificada e humanizada (22, 31), a adoção de estratégias alternativas para acolhimento de segmentos excluídos da sociedade e o estímulo às ações para eliminação do preconceito (23).

Embora o acolhimento seja uma prática reconhecida e vivenciada pela equipe de saúde no cotidiano laboral, observa-se que é foco de conflitos e contradições que se expressam nas concepções dos profissionais, repercutindo no processo de trabalho e na atenção à saúde (22).

Avaliação de serviços de saúde

Dois artigos apontaram o acolhimento como um indicador de avaliação dos serviços de APS: indicador de implantação do modelo da ESF (35) e indicador da qualidade da assistência prestada (36), ambos na dimensão relacional.

As unidades de saúde da família têm sido reconhecidas pelos usuários como "porta de entrada" do sistema de saúde, fato impulsionado pelo trabalho dos agentes comunitários de saúde e pelo funcionamento em horário integral das unidades estudadas (35). Destacam-se as formas criativas usadas para inserir o acolhimento, por meio de grupos de conversa (usuários e profissionais), e ainda a institucionalização das práticas de monitoramento e avaliação dos serviços de APS pela gestão municipal (35).

No contexto da avaliação, algumas dificuldades foram apontadas: falta de estruturação e pessoal (ambiência e atitude), precariedades nas unidades (principalmente na zona rural), excessiva priorização de segmentos populacionais específicos (quase exclusividade dos portadores de doenças crônicas), protocolos incipientes (36) e predomínio de práticas curativo-individuais (35, 36).

 

DISCUSSÃO

A prática do acolhimento tem sido estimulada nacionalmente na ESF, pois incrementa o acesso e melhora o processo de trabalho nos cenários dos serviços de saúde, bem como possibilita o fortalecimento de laços — o estabelecimento de um vínculo — entre usuários, trabalhadores e gestores em defesa do SUS enquanto política pública e não de governo. Acredita-se que o entendimento do vínculo possa trazer, no âmbito do serviço, a concretização do princípio da integralidade, uma vez que permite aos usuários exercerem seu papel de cidadãos, conferindo maior autonomia em relação à sua saúde, tendo garantidos os seus direitos de fala, argumentação e escolha, permitindo ao profissional conhecer o usuário para que colabore na manutenção de sua saúde e redução dos agravos. Portanto, o vínculo amplia a eficácia das ações em saúde e favorece a participação do usuário na prestação do serviço (15).

Quanto ao acolhimento no processo de trabalho, fica evidente que, apesar da proposta em reorientar o modelo tecnoassistencial por meio da ESF, buscando ultrapassar o modelo hegemônico — bio- logicista, reducionista, individualista e orientado para a cura — os profissionais ainda têm uma formação que privilegia ações curativas, fragmentadas, mecanizadas, médico-centradas (22, 25, 29, 31). Consequentemente, os trabalhadores, em sua prática, mantêm o modelo médico assistencial privatista da divisão por especialidade e por disciplina (28). A implicação mais séria desse modelo é o enfraquecimento da dimensão cuidadora do trabalho em saúde, em particular do próprio médico. Outro problema existente é a submissão dos outros profissionais da equipe à lógica dominante da ação médica (25). Em outro estudo, apresentou-se uma reflexão da categoria médica acerca de seu papel profissional na ESF. Essa reflexão demonstrou que, a prática médica de uma "escuta carinhosa" é considerada resolutiva para alguns profissionais, reunindo em si a dimensão interprofissional. Dessa maneira, os autores apontam a necessidade de o médico reconhecer os limites de sua atuação e a importância da multidisciplinaridade (32).

A ênfase na equipe interdisciplinar parece ser uma ferramenta indutora de mudança nos processos de trabalho, alicerçando a integralidade e seus dispositivos (acolhimento, vínculo, autonomia, resolubilidade, responsabilização) na confecção de práticas originais de novos modelos (33). O acolhimento enquanto dispositivo organizador do processo de trabalho tem o potencial para desencadear uma mudança substancial, em que a centralidade da atenção não mais se situaria na consulta médica e possibilitaria a ampliação da utilização do conhecimento dos demais profissionais e o incremento da qualidade na assistência (22, 28).

Independentemente da configuração utilizada para incorporar o acolhimento, alguns usuários parecem reconhecer o trabalho das equipes da ESF e relatam que os profissionais da unidade proporcionam um atendimento resolutivo, comprometido e responsável. Buscam contribuir na organização do serviço, participando das decisões e definições de ações e atividades na unidade (21). Por outro lado, a inadequação profissional ao novo modelo indica a necessidade de os gestores investirem em educação permanente e na reflexão das ações por parte do sistema formador (24, 29). Além disso, de um ponto de vista de avaliação dos serviços de saúde, a dimensão relacional apresenta-se como principal determinante da satisfação dos usuários, sendo deixados em segundo plano os aspectos técnicos dos profissionais e dos serviços, inclusive os referentes à organização e estrutura (36).

Cabe destacar que este artigo apresenta algumas limitações, como o tempo decorrido entre a coleta de dados e sua publicação, sendo inevitável que alguma modificação conceitual e prática relacionada ao acolhimento tenha ocorrido nesse intervalo. A perda de estudos indexados em bases de dados diferentes das examinadas e a amostra incluindo apenas artigos completos, publicados em periódicos científicos, excluindo dissertações, teses, documentos oficiais e a literatura cinza, pode ter resultado na exclusão inadvertida de alguns estudos.

Considerações finais

A maioria dos artigos que compuseram essa revisão foi de natureza qualitativa, publicada em revista de saúde pública, no ano de 2008, com maior contribuição dos enfermeiros.

As categorias empíricas elucidadas são complementares e convergem para duas visões principais de acolhimento na literatura: a primeira considera o acolhimento um dispositivo capaz de reorganizar a atenção à saúde visando ao atendimento da demanda espontânea, o incremento do acesso e a humanização das práticas em saúde; a segunda vê o acolhimento como uma postura perante o usuário, numa dimensão relacional.

O acolhimento é apontado como ferramenta capaz de promover o vínculo entre profissionais e usuários, possibilitando o estímulo ao autocuidado, melhor compreensão da doença e corresponsabilização na terapêutica proposta. Auxilia ainda na universalização do acesso, fortalece o trabalho multiprofissional e intersetorial, qualifica a assistência à saúde, humaniza as práticas e estimula ações de combate ao preconceito. Entretanto, mereceria maior atenção a perspectiva do usuário sobre a utilização de tecnologias leves como o acolhimento, um tópico a ser enfocado por estudos futuros.

 

Conflitos de interesse. Nada declarado pelos autores.

 

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Manuscrito recebido em 18 de setembro de 2012;
Aceito em versão revisada em 4 de janeiro de 2013

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