Violação dos direitos humanos dos pacientes com tentativa de suicídio no Brasil

Luana Lima Laura dos Santos Boeira Aline Albuquerque Thatiana Ayres Marques Sobre os autores

Resumo

O suicídio é um grave problema de saúde pública mundial. Este estudo parte de um referencial teórico-normativo fundamentado nas normas de direitos humanos aplicáveis aos pacientes, no contexto dos cuidados em saúde. Objetivou-se investigar a violação dos direitos humanos dos pacientes em risco de suicídio. Foram realizadas 11 entrevistas semiestruturadas com profissionais da saúde, pacientes e familiares em quatro capitais brasileiras. Trata-se de uma pesquisa empírica qualitativa apoiada no método hermenêutico-dialético. Foi identificada a dificuldade dos profissionais em lidar com a temática, especialmente através da reprodução de condutas estigmatizantes, morais, religiosas, paternalistas e/ou hipervigilantes. Observou-se a violação dos direitos humanos dos pacientes, comprometendo o cuidado ofertado, a continuidade do tratamento, o protagonismo, a privacidade e a capacidade decisional do paciente, além do aumento da vulnerabilidade e do risco de novas tentativas. Entre os entrevistados, não houve consenso a respeito da conscientização das violações por parte dos profissionais. A proteção desses pacientes pressupõe a adoção de medidas de capacitação das equipes de saúde, processos de sensibilização e de informação para a sociedade, assim como a criação de políticas e legislações específicas, de modo a ampliar o entendimento sobre direitos humanos e prevenção do suicídio.

Palavras-chave:
Suicídio; Direitos Humanos; Paciente

Introdução

O suicídio é uma questão de saúde pública global e de direitos humanos. Aproximadamente 80% dos suicídios ocorrem em países de média e baixa renda, com ocorrência elevada entre grupos vulneráveis e marginalizados (WHO, 2019WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Suicide in the world. Global Health Estimates. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/326948/WHO-MSD-MER-19.3-eng.pdf?ua=1 >. Acesso em: 21 maio 2021
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). Jovens e idosos estão entre os grupos etários com risco aumentado de suicídio (OMS, 2013OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Plan de acciόn sobre salud mental 2013-2020. Genebra: OMS, 2013.), necessitando maior atenção e proteção do Estado. Entre os anos de 2010 e 2016, a taxa de suicídios aumentou 6% na região das Américas (WHO, 2019WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Suicide in the world. Global Health Estimates. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/326948/WHO-MSD-MER-19.3-eng.pdf?ua=1 >. Acesso em: 21 maio 2021
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), e o Brasil ocupa, em números absolutos, a oitava posição no ranking mundial, sendo o quarto país latino-americano com maior crescimento em números entre os anos de 2000 e 2012 (WHO, 2014WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Preventing Suicide. A global imperative. Geneva: WHO, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241564779 >. Acesso em: 5 abr. 2020.
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).

Em 2013 foi lançado o Plano de Ação em Saúde Mental (OMS, 2013WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The European Mental Health Action Plan. Turkey: WHO, set. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://www.euro.who.int/__data/assets/pdf_file/0004/194107/63wd11e_MentalHealth-3.pdf >. Acesso em: 21 maio 2021
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), cujo objetivo era reduzir a taxa de suicídio até o ano de 2020. Firmado pelo Brasil, o Plano de Ação exigia mudanças nos cuidados em saúde, enfatizando a necessidade de expansão dos serviços especializados e a melhoria na qualidade dos serviços prestados aos pacientes em risco de suicídio. Evidenciavam-se recomendações para que os Estados adotassem estratégias baseadas nos direitos humanos para a prevenção do suicídio, indicando que a saúde mental deveria ser uma prioridade política.

O referencial dos direitos humanos revela-se um potente instrumento para a reflexão sobre a condição dos pacientes com histórico de tentativa de suicídio por aglutinar um conjunto de normas ético-jurídicas que estabelecem obrigações para os Estados. Sendo assim, considerando a importância dos direitos humanos para a reflexão e a prescrição acerca dos cuidados em saúde de pacientes com risco e tentativa de suicídio, nesta pesquisa elegeu-se o referencial teórico-normativo denominado Direitos Humanos dos Pacientes (DHP). Os DHP constituem uma ferramenta de análise de questões ético-jurídicas que emergem do encontro clínico e encontram-se em desenvolvimento por pesquisadores do Observatório Direitos do Paciente do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília, com base nos estudos de Albuquerque (2016ALBUQUERQUE, A. Direitos Humanos dos Pacientes. Curitiba: Juruá, 2016.), Cohen e Ezer (2013COHEN, J.; EZER, T. Human rights in patient care: a theoretical and practical framework. Health and Human Rights Journal, Boston, v. 15, n. 2, p. 7-19, 2013.). A vertente dos DHP se alicerça nas normas internacionais de direitos humanos aplicadas ao contexto dos cuidados em saúde, partindo do entendimento de que os direitos humanos consistem em normas ético-jurídicas aptas a balizar a prescrição de condutas dos profissionais de saúde. Desse modo, os DHP constituem um referencial ético de todos os atores que interagem nos cuidados em saúde, conjugando a linguagem bioética com a dos direitos humanos, no objetivo de fornecer argumentos racionais que possam ser empregados no processo de análise e na deliberação de questões que emergem dos cuidados em saúde.

Sendo assim, os DHP são constituídos pelos princípios e direitos a seguir enumerados: direito à vida; a não ser submetido à tortura ou a tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; à liberdade e segurança pessoal; ao respeito à vida privada; à informação; de não ser discriminado; e à saúde (Albuquerque et al., 2019ALBUQUERQUE, A; BOEIRA, L. S.; LIMA, L., AYRES, T. Os direitos humanos dos pacientes em risco de suicídio no Brasil. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, [S.l.], v. 8, n. 1, p. 26-35, 2019.). Esses direitos derivam da dignidade humana e têm como pressuposto a lógica do cuidado (Mol, 2008MOL, A. The logic of care: health and the problem of patient choice. London: Routledge, 2008.), que é permeada pela interação entre paciente e profissionais de saúde. Esta deve considerar, sobretudo, o bem-estar, conforto e dignidade do paciente.

Os DHP se apartam da lógica do consumo, que reduz o cuidado em saúde a uma operação patrimonial, percebendo o paciente como consumidor, conferindo-lhe escolhas, mesmo quando essas escolhas possam ser inseguras e incrementar os riscos de danos à sua saúde. Desse modo, constata-se que o referencial dos DHP se associa aos valores que alicerçam o Sistema Único de Saúde (SUS), demonstrando, assim, sua pertinência ao contexto da saúde no Brasil.

Ademais, os DHP trazem em seu corpo teórico a categoria da vulnerabilidade acrescida, que compreende que alguns pacientes, principalmente em função de fatores pessoais ou sociais, encontram-se com maior propensão a sofrer violações no contexto dos cuidados em saúde. Os direitos desses pacientes devem ser assegurados por meio de mecanismos estatais e não estatais destinados a mitigar os obstáculos decorrentes da condição específica que incrementa sua fragilidade. Por outro lado, o reconhecimento da vulnerabilidade particular não deve conduzir à adoção de medidas paternalistas ou excessivamente restritivas de direitos, ao contrário, há que se estimular esses pacientes a desenvolverem suas capacidades e funcionalidades, de modo a participarem ativamente de seus cuidados em saúde (Marques, 2019MARQUES, T. A. Nise: Aproximações entre os direitos humanos e saúde mental dos pacientes. 2019. 120 f. Dissertação (Mestrado em Bioética) - Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2019.).

A assistência à saúde de pessoas que acessam os serviços por tentativa de suicídio tem sido descrita na literatura pela moralidade e falta de compreensão, informação e acolhimento aos pacientes em sofrimento. Reisdorfer e demais autores (2015REISDORFER, N.; ARAUJO, G. M.; HILDEBRANDT, L. M.; GEWEHR, T. R.; NARDINO, J.; LEITE, M. T. Suicídio na voz de profissionais de enfermagem e estratégias de intervenção diante do comportamento suicida. Revista de Enfermagem da UFSM, [S. l.], v. 5, n. 2, p. 295-304, 2015.), Araújo de Freitas e Martins Borges (2017ARAÚJO DE FREIRAS, A. P; MARTINS BORGES, L. Do acolhimento ao encaminhamento: o atendimento às tentativas de suicídio nos contextos hospitalares. Estudos de Psicologia, Natal, v. 22, n. 1, p. 50-60, 2017.) demonstram que demandas de atendimento de autoviolência como tentativa de suicídio são interpretadas como obstáculos no trabalho realizado nas emergências hospitalares, causando indiferença, indignação e inconformismo nos profissionais. Comumente as tentativas de suicídio são entendidas como um modo de chamar atenção. Através de entrevistas com profissionais, Lima (2020LIMA, L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética, 2020.) detecta que a dimensão do apelo é lida como manipulação, teatralidade e exibicionismo. Ainda nesta pesquisa, o ato é descrito também como fraqueza moral ou psicológica, desencadeando “cuidado diferenciado”, baseado em abordagens rudes, por obrigação e com possíveis sanções.

Botega (2015BOTEGA, N. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed, 2015.) aplicou o Questionário de Avaliação do Comportamento Suicida em 317 enfermeiros e demonstrou, entre outras coisas, que 39% acreditam que “quem quer se matar mesmo, não tenta se matar” e que 85% consideram que “a vida é um dom de Deus e ninguém pode tirar”, manifestando a reprodução de mitos e a perspectiva religiosa na percepção sobre o fenômeno.

No contexto dos pacientes com tentativa e risco de suicídio, a aplicação dos DHP tem como propósito a promoção do seu tratamento digno, a cultura dos direitos humanos nos serviços de saúde, a conscientização dos profissionais envolvidos no processo de cuidado e a melhoria da qualidade dos serviços ofertados. Dada a importância de empregar a perspectiva dos direitos humanos aos cuidados dos pacientes com tentativa e risco de suicídio no Brasil, este estudo tem como objetivo analisar as percepções de profissionais de saúde, familiares e pacientes acerca das violações de direitos humanos de pessoas em risco de suicídio quando se encontram sob cuidados em saúde.

Percurso metodológico

O presente estudo é parte da pesquisa do Observatório Direitos dos Pacientes (2017OBSERVATÓRIO DIREITOS DOS PACIENTES. Relatório sobre Direitos Humanos dos Pacientes em Risco de Suicídio. Brasília, DF: UnB, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.observatoriopaciente.com.br/relatorio-sobre-direitos-humanos-dos-pacientes-em-risco-de-suicidio/ >. Acesso em 5 abr. 2020.
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), do Programa de Pós-Graduação em Bioética, que resultou no “Relatório de Direitos Humanos dos Pacientes em Risco de Suicídio no Brasil”. Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário de Brasília (69672017.4.0000.0023), a coleta de dados ocorreu entre os meses de agosto e setembro de 2017, em quatro capitais brasileiras: Salvador, Brasília, Goiânia e Porto Alegre. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 11 participantes: sete profissionais de saúde - da psicologia, enfermagem e terapia ocupacional -, dois pacientes e dois familiares, com objetivo de analisar a violação dos direitos humanos dos pacientes com tentativa de suicídio no contexto dos cuidados em saúde. Informa-se que os profissionais de saúde entrevistados possuem experiência no atendimento de pacientes com risco de suicídio, desempenhando atividades em serviços públicos e privados.

A amostragem foi estruturada por conveniência, regida pela tipificação “bola de neve”, profícua para pesquisar grupos difíceis para serem acessados, indicada também para estudo de questões delicadas e/ou íntimas, que necessita de pessoas-chaves para reconhecer e localizar informantes (Vinuto, 2014VINUTO, J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, Campinas, v. 22, n. 44, p. 203-220, 2014.). As entrevistas foram realizadas com privacidade em locais de trabalho ou privados escolhidos pelos participantes da pesquisa. Registra-se que o perfil sociodemográfico dos participantes não será considerado nesta pesquisa.

A análise das entrevistas adotou a hermenêutica-dialética de Minayo (2014MINAYO, M. C. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.), que se edifica na compreensão crítica do estudo da realidade social, trabalhando de forma minuciosa com as frases, palavras, concatenação de ideias, sentido geral do texto etc. expressos pelos participantes da pesquisa, com a finalidade de costurar narrativas, com destaque para as experiências, suas contradições e riquezas.

Após coleta e transcrição dos dados, esses foram categorizados a partir de temas prevalentes enunciados pelos participantes, sintetizados de forma dialética, o que significa o uso da reinterpretação dos achados voltada à compreensão dos conflitos inerentes ao processo interpretativo e reordenados em eixos analíticos (Gomes et al., 2005GOMES, R. et al. Organização, processamento, análise e interpretação de dados: o desafio da triangulação. In: MINAYO, M. C. S; ASSIS, S. G.; SOUZA, E. R. (Org.) Avaliação por Triangulação de Métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.).

Resultados e discussão

A partir do conteúdo emergido das entrevistas, os dados foram categorizados em quatro eixos principais:

  1. Violação dos direitos humanos dos pacientes - diz respeito à análise das violações dos direitos humanos dos pacientes com risco e tentativa de suicídio, em especial no contexto hospitalar.

  2. Efeitos das violações dos direitos humanos dos pacientes com tentativa de suicídio - envolvem as concepções dos profissionais de saúde sobre os impactos diretos ou indiretos das violações na saúde mental dos pacientes que tentaram suicídio.

  3. Conscientização sobre as práticas de violação de direitos humanos pelos profissionais, pelos familiares e pelos pacientes - implica a consciência da ocorrência das violações.

  4. Estratégias para garantir os direitos humanos dos pacientes com tentativa de suicídio - abarcam as medidas de enfrentamento e de prevenção da ocorrência das violações de direitos humanos de tais pacientes na ambiência clínica.

Violação dos direitos humanos dos pacientes

Com base no referencial dos DHP, serão abordadas as violações dos direitos de não ser discriminado; de não ser submetido à tortura ou tratamento degradante ou desumano; à saúde; à informação e à vida. Tais direitos estão previstos em documentos internacionais e foram ratificados pelo Brasil.

Direito de não ser discriminado

A discriminação é definida como sendo “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos” (OAS, 2013OAS - ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana contra toda forma de discriminação e intolerância. Washington, DC: OAS, 2013. Disponível em: <Disponível em: https://www.oas.org/en/sla/dil/docs/inter_american_treaties_A-69_Convencao_Interamericana_disciminacao_intolerancia_POR.pdf >. Acesso em: 25 maio 2021.
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, p. 3). Cabe ressaltar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Brasília, DF: ONU Brasil, 1948. Disponível em: <Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-humanos >. Acesso em 5 abr. 2020.
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) reforça que todas as pessoas são iguais perante a lei, sem distinção, possuindo direitos iguais à proteção contra qualquer ato discriminatório ou incitamento à discriminação. Nos cuidados em saúde, a discriminação pode ocorrer no acesso aos serviços ou nos cuidados recebidos (OMS, 2005OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Livro de recursos da OMS sobre saúde mental, direitos humanos e legislação: Cuidar, sim - excluir, não. Genebra: OMS, 2005.).

Ao analisar o conteúdo das entrevistas, constata-se que os profissionais citam diversas situações de discriminação contra os pacientes em risco de suicídio:

“Um médico falou para uma paciente: ‘Você veio pra atrapalhar o meu plantão! Você não está querendo se matar. […] Da próxima vez você vai ao Elevador Lacerda e se joga, que é tiro e queda!’” (PROF02).

Essa fala configura incitação ao suicídio, conduta tipificada como crime no Brasil, além de sustentar o mito do ato “fracassado” do suicídio como um modo de chamar atenção.

A discriminação com os tentantes é expressa tanto via discursos acusatórios e julgamentos morais quanto através de atuações negligentes. Uma profissional citou o caso de uma internação recente, cuja paciente foi ignorada por mais de 24h:

“Ôh minha querida, aqui a gente tem que priorizar quem quer viver!” (PROF01).

Uma perspectiva de “sacralidade da vida” parece autorizar esse tipo de conduta, sem qualquer penalidade ou sanção institucional, mas com todo tipo de prejuízo para o paciente em situação de vulnerabilidade acrescida.

“Na passagem do plantão, veio outra médica: ‘Você aqui de novo? Não já mandei você ir pra casa? Seu problema é na Igreja, menina, vá procurar uma Igreja!’” (PROF02).

Tais achados dialogam com a perspectiva de que o sujeito que tenta ou consuma o ato suicida retira da instituição de saúde o agenciamento da sua vida, confrontando o poder e o saber dessas instituições e dos profissionais (Lima, 2020LIMA, L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética, 2020.). A partir de entrevistas com médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem responsáveis pelo primeiro atendimento após uma tentativa de suicídio, Lima (2020LIMA, L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética, 2020.) detectou sensações de afronta e inadequação profissional, desencadeamento de ofertas de cuidado ao nível mínimo, brincadeiras, provocações, negligência, ofensa direta ou indireta, hostilidade, sanções ou, ainda, mensagens pedagógicas e de ânimo.

As repercussões e as violações foram igualmente relatadas por Vidal e Gontijo (2013VIDAL, C. E. L.; GONTIJO, E. D. Tentativas de suicídio e o acolhimento nos serviços de urgência: a percepção de quem tenta. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 108-114, 2013.) sob o ângulo dos pacientes, os quais referiram dificuldade significativa de serem escutados pelas equipes. Foram citadas situações de discriminação e atitudes negativas de toda a equipe; as expressões de sofrimento foram nomeadas como manifestações histéricas, tratadas com descrédito, descaso, de forma hostil e desumana, especialmente nas ocorrências em que não havia risco de morte.

Direito de não ser submetido à tortura ou tratamento degradante ou desumano

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos afirma que ninguém pode ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes, destacando a proibição de submeter uma pessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou cientificas (Brasil, 1992BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 07 jul. 1992. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm >. Acesso em: 27 fev. 2020
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). Na esfera dos cuidados em saúde, o tratamento desumano é aquele que causa intenso sofrimento físico ou psíquico e o degradante implica provocar sentimentos de medo, angústia ou humilhação no paciente (Albuquerque, 2016ALBUQUERQUE, A. Direitos Humanos dos Pacientes. Curitiba: Juruá, 2016.).

Ao examinar as entrevistas com os profissionais de saúde, houve o reconhecimento de tratamento humilhante que infligia dor aos pacientes: “Vai fazer uma lavagem gástrica? Então é a sonda mais calibrosa. Não no sentido que a lavagem seja mais efetiva, mas no sentido de que, aquela pessoa, de alguma forma, se sinta punida, machucada.” (PROF03).

Na esfera dos cuidados de pessoas que tentaram suicídio, o tratamento degradante ou desumano não é restrito à demora ou à negação no atendimento, mas diz respeito, sobretudo, à “vingança” moral contra aquele que subverteu a ordem médica, religiosa e científica (Carvalho, 2014CARVALHO, S. A morte pode esperar? Clínica Psicanalítica do Suicídio. Salvador: Campo Psicanalítico, 2014.):

“Chega um assaltante que levou um tiro, podem até pensar: ‘Não devia te salvar’, mas não falam nada, porque ali o assaltante diz: ‘Pelo amor de Deus, Doutor, me salve!’ […] atribuindo ou confirmando um poder médico, o saber médico. O suicida, que é uma morte violenta e que seria o ápice do sofrimento, ele não é acolhido justamente porque ali ele prescinde do saber médico. Então ele é uma pessoa que deve ser descuidada.” (PROF02).

Essa ideia de descuido é ratificada por uma paciente com histórico de diversas tentativas, que partilhou as experiências de tratamentos e respostas violentas:

“Já ouvi muito: Vou preparar a medicação da louca! Ah, quer morrer? Por que não se mata? Fica aqui me dando trabalho!” (PAC01).

Outro entrevistado enfatizou ainda que muitas das ações dos profissionais de saúde são regidas pela abordagem farmacológica, compreendendo suas incumbências, deveres e responsabilidades restritos ao corpo físico, como explicitado:

“Uma paciente que tentou suicídio […] estava grávida de oito meses. […] Só que ela não morreu, mas o bebê morreu […] Ela foi extremamente crucificada. Não queriam levar a comida pra ela. Ela estava na época com soro nos dois braços, tinha que dar na boca a alimentação, mas se recusavam a ir: ‘Vai ficar com fome.’” (PROF02).

Direito à saúde

O direito à saúde, na esfera dos DHP, está atrelado sobretudo à qualidade e segurança dos cuidados em saúde. Desse modo, o Estado deve garantir o direito à saúde com o acesso a serviços de saúde adequados, com qualidade e especializados (United Nations Human Rights Office, 2019OHCHR - UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS OFFICE. Open Statement by the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental healt. Geneva: OHCHR, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G19/297/58/PDF/G1929758.pdf?OpenElement >. Acesso em: 5 abr. 2020.
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). Todas as pessoas têm direito à saúde e a serem tratadas com dignidade e respeito quando acessam os serviços de saúde.

O estigma em relação ao paciente que tentou suicídio pode comprometer a atenção profissional, com consequências graves para a saúde do paciente, como a exclusão de procedimento ou tratamento.

“A última tentativa de suicídio […] a médica se negou a me atender. Ela disse que se eu quisesse morrer, eu ia morrer, mas que eu não ia atrapalhar o final do plantão dela. Ela pegou a bolsa e foi embora. Ela não me atendeu.” (PAC01).

Paralelamente à escusa dos profissionais, observou-se nos relatos atendimentos ocorridos com atraso e fundamentados na ideia de “favor”, além da ausência de encaminhamentos a serviços especializados. A lógica do trabalho em rede é fragilizada por desconhecimento dos profissionais e/ou por precarização do sistema, de modo a suscitar efeitos danosos para os pacientes em risco de suicídio:

“Não assegurar o encaminhamento na rede de saúde mental pra o usuário, isso é muito complicado. Hoje eu fiz duas triagens aqui de pessoas […] que já estão uma na 17ª tentativa e a outra na 5ª tentativa. […] Muitas destas tentativas poderiam ter sido evitadas se elas tivessem já fazendo acompanhamento” (PROF04).

Comumente, pacientes são liberados da emergência sem passar por avaliação psiquiátrica ou receber encaminhamento para serviços especializados (Vidal; Gontijo, 2013VIDAL, C. E. L.; GONTIJO, E. D. Tentativas de suicídio e o acolhimento nos serviços de urgência: a percepção de quem tenta. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 108-114, 2013.). Tais oportunidades perdidas para instituir e/ou dar continuidade ao tratamento estão relacionadas à evolução negativa do cuidado e à intervenção terapêutica; ao aumento do sentimento de desamparo; a novas tentativas, podendo se tornar ainda mais graves; e ao desencorajamento de novas buscas de ajuda (Tavares, 2013; Silva; Sougey; Silva, 2015SILVA, T. P. S.; SOUGEY, E. B.; SILVA, J. Estigma social no comportamento suicida: reflexões bioéticas. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 23, n. 2, p. 419-426, 2015.).

Direito à informação e o direito à vida

O direito à informação é fundamental ao ser humano, preserva a sua dignidade e abarca os direitos da pessoa a receber informações adequadas sobre seus cuidados em saúde, o tratamento que deve ter, assim como garante a preservação de sua vida (ONU, 2017ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Report of the Special Rapporteur on the right of everyone to the enjoyment of the highest attainable standard of physical and mental health. New York: ONU, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.aspx?si=A/HRC/35/21 >. Acesso em: 25 maio 2021
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; Albuquerque, 2016ALBUQUERQUE, A. Direitos Humanos dos Pacientes. Curitiba: Juruá, 2016.). O direito à vida é previsto em diversos documentos internacionais de direitos humanos (ONU, 1948ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Brasília, DF: ONU Brasil, 1948. Disponível em: <Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-humanos >. Acesso em 5 abr. 2020.
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), devendo, portanto, ser assegurado pelo Estado.

Alguns profissionais relataram a provisão de informação inadequada, principalmente no que tange ao registro do caso no prontuário. Os efeitos do estigma e do tabu sobre o tema do suicídio podem resultar em familiares e equipes alterando o registro correto da situação, de modo a caracterizar o ocorrido de forma socialmente aceitável.

“Familiares que às vezes solicitam para as equipes que alterem o registro - então, uma pessoa se joga de um andar e sobrevive com múltiplas fraturas, mas fica o acolhimento de ser um politraumatizado” (PROF04).

O registro correto no prontuário, sem alterações e livres de preconceito, como direito do paciente, permite o planejamento dos cuidados em saúde, especialmente com finalidade de prevenir novas tentativas de suicídio. Essa conduta visa um manejo hospitalar responsável, mas também compreende informações, como encaminhamento para serviços de atenção psicossocial especializados. A mesma lógica se refere à (não) notificação, de natureza compulsória. Se essas condutas não são supridas, perde-se a possibilidade de um tratamento integrado, eficaz e de qualidade, assim como reduz os cuidados e direitos à informação e à vida.

“Imagina o caso de uma pessoa que tomou medicamentos com álcool e sofre uma overdose […] se tu notifica [a tentativa de suicídio] só como ‘overdose’, tu não permite que a pessoa busque atendimento para a tentativa de suicídio, tu ajuda a alimentar um segredo e isso ser um estressor. Daí existe uma grande correlação entre o estresse e novas tentativas de suicídio” (PROF04).

Direito à privacidade

Os profissionais de saúde têm o dever de manter confidencialidade dos dados pessoais dos pacientes, devem respeitar sua privacidade corporal e não podem privá-los do convívio com seus familiares e com a sociedade. Ademais, o direito à autodeterminação do paciente implica o direito de tomar decisão sobre o próprio corpo e a própria saúde (Marques, 2019MARQUES, T. A. Nise: Aproximações entre os direitos humanos e saúde mental dos pacientes. 2019. 120 f. Dissertação (Mestrado em Bioética) - Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2019.).

Um dos entrevistados mencionou a dificuldade de equipes manterem a privacidade sobre as informações sobre a tentativa e risco de suicídio contidas no prontuário do paciente. Outra profissional descreveu a violação à privacidade quando o paciente estava desacordado e ficou exposto às pessoas que circulavam pelo serviço de saúde:

“Ela estava exposta nua não só na frente dos profissionais, no caso do plantão, eram enfermeiros, homens, mas também diante de outras pessoas que estavam na emergência naquele local” (PROF06).

O caso supracitado denuncia a objetificação do corpo, sem um olhar integrado para o sujeito, suas necessidades, seu sofrimento e sua vulnerabilidade acrescida.

Direito à liberdade

É necessário que sejam respeitadas as legislações no âmbito da saúde, que garantem a autonomia e a liberdade do paciente. Devem ser evitadas as hospitalizações involuntárias e a retenção do paciente, e caso sejam necessárias, conforme os padrões internacionais de direitos humanos, devem ser adotados pelo menor tempo e de forma menos restritiva. Sob a ótica dos DHP, é imprescindível buscar tratamentos alternativos não restritivos da liberdade do paciente, com a sua participação na tomada de decisão (OMS, 2005OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Livro de recursos da OMS sobre saúde mental, direitos humanos e legislação: Cuidar, sim - excluir, não. Genebra: OMS, 2005.).

Fazer o paciente ficar em privação ou impedi-lo de acessar o meio externo viola o seu direito à liberdade. Um caso paradigmático foi relatado por um familiar cuja irmã ficou internada após uma tentativa de suicídio e a instituição hospitalar negou visita e comunicação entre elas. Nesse momento, a paciente sofreu contenção física e química em excesso, sem qualquer tipo de necessidade ou justificativa terapêutica:

“ela não conseguia nem falar, ela não conseguia nem falar, o estado que ela estava, porque amarraram ela… amarraram ela, deram injeção nela…” (FAM01).

Efeitos das violações dos direitos humanos dos pacientes com tentativa de suicídio

Tendo em vista os direitos humanos dos pacientes, que compreendem os direitos de não ser discriminado, não ser submetido a tratamento degradante ou desumano, à saúde, à informação, à vida, à privacidade e à liberdade, os profissionais entrevistados apontaram com consenso que as violações dos direitos supracitados representariam uma reprodução de violências e negligências capazes de agravar os quadros de sofrimento dos pacientes, inclusive impulsionando novas tentativas de suicídio e potencializando, igualmente, o sofrimento dos familiares.

“Eu chamo de iatrogenia das palavras. Que é justamente quando o paciente volta, vem pro ambulatório e diz assim: ‘Se até o médico diz que eu devo morrer, que eu devo me atirar lá de cima do Elevador, é porque eu tenho que morrer mesmo, é porque eu não presto.’” (PROF02).

O risco que se aponta é a evitação por parte dos pacientes aos serviços e profissionais de saúde, como modo de reduzir os efeitos danosos do julgamento moral aos quais são submetidos:

“As pessoas preferem se afastar de qualquer tipo de atendimento como forma de proteção. Às vezes elas não conseguem, então vão mesmo em busca desses serviços e vão passar por novas violências. Ou elas se afastam desses serviços, o que vai piorar, né?! […] De alguma forma, vai intensificar o quadro de adoecimento.” (PROF03).

Os profissionais trouxeram o tema da violação de direitos humanos dos pacientes articulado com outras violações de direitos, reconhecendo a sobreposição de vulnerabilidades que podem impactar negativamente e comprometer a sobrevivência dessas pessoas:

“O comportamento suicida é bastante complexo e muitos fatores influenciam na constituição do risco: fatores sociais, culturais, psicológicos e biológicos […] e muitos deles podem ser considerados como violação de direitos humanos. Alguns exemplos: ter sido vítima de violência física, sexual, psicológica ou negligência na infância, desemprego, privação de liberdade, ser vítima de preconceitos (homofobia, racismo) etc.” (PROF05).

Muitas dessas questões são demarcadas pelos profissionais como pautas políticas invisibilizadas.

Conscientização sobre as práticas de violação de direitos humanos pelos profissionais, familiares e pacientes

Os entrevistados divergem sobre a conscientização e a sensibilização das violações dos DHP - direito de não ser discriminado, de não ser submetido a tratamento degradante ou desumano, à saúde, à informação, à vida, à privacidade, à liberdade - por parte dos profissionais de saúde. Aqueles que consideram que os profissionais não as reconhecem, apontam os seguintes fatores: (1) não há consenso sobre o significado do que consiste o direito à saúde; (2) quem viola, o faz por desconhecimento; (3) os profissionais não têm oportunidade de discutir sobre direitos humanos no contexto de trabalho, seja pela ausência de tempo, pela inexistência dessa pauta ou mesmo pela ausência da percepção do fenômeno como pluridimensional; (4) há uma lógica produtivista nos serviços de saúde, que faz com que a produção quantitativa de procedimentos esteja acima da qualidade do atendimento.

“Pouquíssimos no campo da saúde fazem a discussão dos direitos humanos, o próprio acesso à saúde, o direito à saúde como direito humano não é um paradigma consensual entre as equipes. Isso envolve desde a pessoa ter direito ao protagonismo no seu tratamento e a situação de controle social, até mesmo questões básicas de dia a dia, quando acessam um serviço de saúde.” (PROF04).

Os entrevistados que defendem a existência da conscientização afirmam que os profissionais violadores o fazem de maneira consentida, entendendo que podem violar os direitos dos pacientes em função da tentativa de suicídio, ato que parece corromper o “pacto entre os vivos”.

“Eu acredito que os profissionais percebam, ainda assim, eles acreditam que eles estão no direito de violar, porque aquela pessoa que atenta contra a própria vida vai contra outros princípios que eles acreditam que são princípios profissionais, pessoais, sei lá o quê, morais, éticos… Parece que isso dá direito a eles a esse tipo de violação.” (PROF03).

Aqueles que adotam essa segunda perspectiva indicam que os pacientes e os familiares podem nem sempre conhecer seus direitos, mas reconhecem tal violação, não se queixando por medo de represália ou da prática de novas violações. “Eu acho que eles entendem, mas […] as pessoas acreditam ainda que, no Brasil, mesmo com tanto esclarecimento sobre que é o que é o SUS […] eles ainda acreditam que eles estão ali num atendimento que é gratuito e que, mesmo se sentindo violados, por esse atendimento gratuito, que de alguma forma pode ser de qualidade, preferem silenciar.” (PROF03).

A análise das entrevistas permitiu corroborar achados anteriores, os quais afirmavam que, em decorrência da compreensão da tentativa de suicídio como um ato impregnado de intencionalidade, resultante de uma escolha, esse paciente é categorizado como aquele que não precisa de cuidados (Vidal; Gontijo, 2013VIDAL, C. E. L.; GONTIJO, E. D. Tentativas de suicídio e o acolhimento nos serviços de urgência: a percepção de quem tenta. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 108-114, 2013.). A negação ou a subversão do cuidado reflete o preconceito e a desinformação das tentativas de suicídio como um pedido de ajuda (Vidal; Gontijo, 2013VIDAL, C. E. L.; GONTIJO, E. D. Tentativas de suicídio e o acolhimento nos serviços de urgência: a percepção de quem tenta. Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 108-114, 2013.), expressa o desconhecimento da ambivalência entre o desejo de viver e de morrer e da tentativa como principal fator de risco para o suicídio (WHO, 2014WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Preventing Suicide. A global imperative. Geneva: WHO, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241564779 >. Acesso em: 5 abr. 2020.
https://www.who.int/publications/i/item/...
).

Estratégias para garantir os direitos humanos dos pacientes com tentativa de suicídio

No que diz respeito às estratégias em políticas públicas, alguns profissionais ressaltaram como necessidade primária a construção de ações e de planos de prevenção do suicídio. Registre-se que na época do estudo ainda não existia a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, publicada em abril de 2019 (Brasil, 2019BRASIL. Lei nº 13.819, de 26 de abril de 2019. Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 abr. 2019. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13819.htm >. Acesso em: 27 fev. 2020
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
).

Outra pauta ressaltada foi o fortalecimento do trabalho de saúde em rede, de modo a garantir condições mais dignas de atendimento e de encaminhamento dos pacientes, salvaguardando vínculos para prosseguimento nos serviços de saúde. Quanto à articulação intersetorial, um entrevistado trouxe a importância de se debater a arquitetura e o urbanismo das cidades, identificando locais de risco para suicídio, criando estratégias de proteção e de oferta de informações sobre serviços de apoio a pessoas em sofrimento.

No que tange às estratégias de formação e de capacitação de profissionais de saúde, a maioria dos entrevistados considerou essencial a implementação de processos de educação permanente e de capacitação dos profissionais sobre o tema do suicídio e seus determinantes, além do tema dos direitos humanos:

“A formação ainda é muito médico-centrada em torno da tentativa, muito em torno do transtorno mental e a gente não faz uma discussão basal de determinantes sociais que envolvem essas questões. As pessoas não se matam porque tem um transtorno, mas porque romperam um relacionamento, foram/estão desempregadas, por uma falta de expectativa de vida, porque entraram em falência.” (PROF04).

A dinâmica do trabalho apartada da temática e toda a sua complexidade refletem uma pobreza instrumental técnica e ética para lidar com os pacientes em questão, o que é reflexo do tabu social a respeito do assunto (Lima, 2020LIMA, L. Deverei velar pelo outro? Suicídio, estigma e economia dos cuidados. Belo Horizonte: Dialética, 2020.).

Alguns profissionais identificaram a capacitação como medida significativa, mas insuficiente. Para eles, essa medida veicula informação, de modo a favorecer a operacionalização da técnica, porém, pode ser insatisfatória quanto aos aspectos éticos, que devem ser abordados por meio dos processos de sensibilização.

“Eu costumo dizer que, para atuar nessa área, não é uma questão de conhecer simplesmente, mas uma questão de estar disponível para. Porque você é chamado para um lugar de flexibilidade, de desmistificar, de desconstruir, né?!” (PROF04).

Foi reforçada a importância de ações de educação não serem direcionadas apenas aos Cursos de Graduação e de Pós-graduação da área da saúde, mas também terem como alvo profissionais da segurança pública que atendem a ocorrências de suicídio, além dos profissionais da mídia:

“Porque divulgar informação também muda o jeito das pessoas terem acesso, o direito à informação é um direito humano, digamos, e as pessoas não têm acesso hoje, porque a informação sucumbe ao estigma das pessoas.” (PROF04).

Uma profissional advoga que a ausência de lei que preveja os direitos dos pacientes no país impede e/ou dificulta a adoção de práticas responsáveis e responsivas.

Por fim, um dos profissionais entrevistados refletiu sobre a importância de ações comprometidas e aprofundadas com pacientes em risco de suicídio e seus familiares na interface com os direitos humanos:

“Acho que o trabalho com as pessoas em risco ou com história de tentativa de suicídio, assim como com seus familiares, deve ajudá-los a organizarem-se em busca da garantia de direitos humanos. Incentivar o protagonismo dessas pessoas é fundamental até mesmo para a superação das dificuldades que as levaram ao risco” (PROF05).

Considerações finais

A condenação moral do suicídio somada ao imperativo da vida no contexto hospitalar propicia a (re)produção de condutas estigmatizantes e tutelares. As entrevistas com os profissionais, pacientes e familiares enunciam, em maior ou menor proporção, a violação dos direitos humanos dos pacientes com tentativa de suicídio. O direito de não ser discriminado foi subvertido a partir da desconfiança e deslegitimação do ato, de discursos acusatórios, julgamentos morais e religiosos, priorização dos atendimentos às pessoas que “querem viver” e, mesmo, incitação ao suicídio. O direito de não ser submetido a tratamento degradante foi invalido pelo reconhecimento de tratamentos humilhantes aos tentantes, à exemplo de provocação desnecessária de dor como forma de punição à tentativa de suicídio. A razão fundante da internação faz com que profissionais demorem ou neguem atendimento, infringido também o direito à saúde.

Os direitos à informação e à vida foram rompidos pela provisão de informação inadequada, especialmente no que tange ao registro no prontuário, com redução das possibilidades de acesso às alternativas terapêuticas e, consequentemente, modos de potencialização da vida e do viver. O direito à privacidade também foi suspenso a partir do registro e repercussões do prontuário, com fissuras do sigilo. Por fim, o direito à liberdade foi descumprido pelo impedimento de visita e comunicação com o meio externo, bem como pelas contenções física e química durante internações.

O cenário descrito tende a fragilizar os pacientes, principalmente do ponto de vista decisional, desrespeitando preceitos preconizados pelos DHP, como a sua capacidade decisional, a autonomia e o seu protagonismo no itinerário em saúde. Ainda dentre os efeitos das violações, as narrativas afirmaram que a violação dos DHP pode agravar os quadros de sofrimento ou psicopatológicos dos pacientes, inclusive aumentando o risco de novas tentativas. O afastamento dos serviços de saúde para evitar julgamentos pode ampliar ainda mais vulnerabilidade dessas pessoas.

No que tange à conscientização sobre as práticas de violação dos DHP pelos profissionais, familiares e pacientes, não houve consenso. Entrevistados apostaram na ausência de consciência por desconhecimento, inexistência de consenso sobre o significado dos direitos em saúde e de debate no contexto de trabalho e, ainda, pela escassez de tempo e pela lógica produtivista. Outros entrevistados afirmaram a conscientização das ocorrências, consentem que os profissionais violam por entenderem que os tentantes romperam primeiramente com as éticas médica, religiosa e capitalista.

As estratégias para garantir os DHP com tentativa de suicídio foram descritas pelo imperativo de construir um Plano Nacional de Prevenção do Suicídio (A Lei Nacional foi instituída em abril de 2019, sem plano correspondente), necessidade de fortalecimento do trabalho em rede, particularmente para garantir condições mais dignas de acolhimento e encaminhamento. A articulação intersetorial ultrapassou a área da saúde, de modo que a revisão e edificação da arquitetura urbanística e a oferta de informação à população pela mídia também foram registrados. No âmbito da saúde, apontou-se para a necessidade de processos de capacitação, sensibilização e educação permanente sobre o tema do suicídio e seus condicionantes, além da temática do DHP. Ações de educação consideraram também agentes de segurança pública e cursos de graduação e pós-graduação em saúde.

Demarca-se, por fim, a necessidade de medida legislativa que estabeleça os direitos dos pacientes, a fim de balizar a conduta dos profissionais e indicar expressamente aos pacientes e seus familiares os seus direitos. Particularmente para os pacientes em risco de suicídio, em razão da sua condição de vulnerabilidade acrescida, é fundamental a existência de lei, pois essa constitui um poderoso instrumento de reivindicação de tratamento digno e respeitoso.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2021
  • Revisado
    08 Dez 2020
  • Revisado
    18 Maio 2021
  • Revisado
    27 Ago 2021
  • Aceito
    03 Fev 2022
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