“As instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde...”**BRASIL. Constituição Federal de 1988. Título VIII – Da ordem social - Seção II da Saúde – art. 199 - § 1º ou será o contrário?

“Private institutions may participate on a supplementary in the Brazilian Unified Health System...” or would it be the reverse?

Manoela de Carvalho Nelson Rodrigues dos Santos Gastão Wagner de Sousa Campos Sobre os autores

RESUMO

A Constituição Federal de 1988 determinou ao Estado a universalidade da assistência à saúde e possibilitou ao setor privado a participação complementar. A partir das pesquisas de Assistência Médico-Sanitária, realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), descreve-se a evolução do setor privado no campo da saúde na primeira década do século XXI, que apontam crescimento de 81,03% dos estabelecimentos privados de saúde; de 43,58% dos planos de terceiros e 48,64% do pagamento particular. A diferença proporcional entre estabelecimentos privados e públicos foi ampliada em quatro vezes, favorecendo o setor privado. Os achados indicam a necessidade de retomar os conceitos de universalidade e ‘complementaridade’.

PALAVRAS-CHAVE:
Sistema Único de Saúde; Setor Privado; Política de Saúde; Assistência à Saúde; Pesquisa sobre Serviços de Saúde

ABSTRACT

The Constitution of 1988 established to State the universality of health care and the complementary participation of the private sector From the research about Medical Care (IBGE), it is described the evolution of the private sector in the field of health in the first decade of this century. The results point out a growth of 81.03% of private health establishments; 43.58% of the third-party plans and 48.64% of the private payment. The proportional difference between private and public institutions has been expanded four times, and it favors the private sector. The results indicate the need to resume the concepts of universality and ‘complementarity.’

KEYWORDS:
Unified Health System; Private Sector; Health Policy; Delivery of Health Care; Health Services Research

Introdução

Com exceção de poucos países no mundo, atualmente observa-se a constituição de sistemas de saúde a partir dos setores público e privado, tanto na prestação, como no financiamento dos serviços. Essa composição é a síntese histórica do processo de construção desses sistemas em cada país, refletindo o jogo de interesses presente e a força dos agentes para fazer prevalecer seus interesses (SANTOS; UGÁ; PORTO, 2008SANTOS, I.S.; UGÁ, M.A.D.; PORTO, S.M. O mix público-privado no Sistema de Saúde Brasileiro: financiamento, oferta e utilização de serviços de saúde. Gência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, out. 2008, p. 1431-1440. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000500009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 abr. 2011.
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).

No Brasil, a existência de um poderoso mercado de serviços de saúde anterior à proposta de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi um dos fatores decisivos para acomodar os interesses dos proprietários de estabelecimentos de saúde nas novas formulações da política de saúde da década de 1980, expressos na Constituição no art. 199 que faculta à iniciativa privada a liberdade para atuar no setor de saúde (MKNICUCCI, 2007; 2008; SANTOS; UGÁ; PORTO, 2008SANTOS, I.S.; UGÁ, M.A.D.; PORTO, S.M. O mix público-privado no Sistema de Saúde Brasileiro: financiamento, oferta e utilização de serviços de saúde. Gência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, out. 2008, p. 1431-1440. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000500009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 abr. 2011.
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; BAHIA, 2009BAHIA, L. O sistema de saúde brasileiro entre normas e fatos: universalização mitigada e estratificação subsidiada. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n.3, jun. 2009, p. 753-762. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000300011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2011.
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). O Brasil, mesmo após a Constituição que estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado, mantém dois grandes projetos polares para a política de saúde: a tradição dos sistemas nacionais de saúde, de caráter universal, e o modo liberal privatista, com valores e interesses distintos, quando não antagônicos (CAMPOS, 2007aCAMPOS, G.W.S. O SUS entre a tradição dos Sistemas Nacionais e o modo liberal-privado para organizar o cuidado à saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, Suppl., 2007a, p. 1865-1874. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232007000700009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2011.
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).

Desde a década de 1960, tem se ampliado o número de trabalhadores cobertos por planos de saúde, seja por adesão individual ou por meio de contrato empresarial ou associativo. A baixa qualidade e a escassez da oferta, causadas pelo desfinanciamento do setor público, tem sido a justificativa para a continuidade desse crescimento, mesmo após a criação de um sistema de saúde público de caráter universal (OCKÉ-REIS; ANDREAZZI; SILVEIRA, 2005OCKÉ-REIS, CO.; ANDREAZZI, M.F.S.; SILVEIRA, F.G. O mercado de pianos de saúde no Brasil: uma criação do Estado? IPEA – texto para discussão n.º 1094, Rio de Janeiro, 2005. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/pub/td/2005/td_1094.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2011.
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).

Ao mesmo tempo em que se desenvolvia o arcabouço jurídico que regulamentava e normatizava o SUS, também se desenrolava o processo de regulamentação da saúde suplementar, tendo sido aprovada, em 1998, a Lei n.º 9.656 que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde e, em 2000, a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Os planos e seguros de saúde têm sido os principais intermediários do acesso aos serviços privados de saúde no Brasil. Além disso, políticas de ajuste estrutural da economia implementadas na década de 1990 foram responsáveis pela retração de serviços públicos ofertados por meio de práticas focalizadas e compensatórias ao mesmo tempo em que ampliou a participação dos setores privados, expandindo a atuação do mercado na saúde (SILVA, 2006SILVA, G.G. A. Uma abordagem da antinomia ‘público x privado’: descortinando relações para a saúde coletiva. Revista interface (Botucatu), Botucatu, v. 10, n. 19, jun. 2006, p. 7-24. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832006000100002&lng=en&nrm=iso>, Acesso em: 22 abr. 2011.
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).

Muitos avanços foram conquistados pela população brasileira, no que tange aos direitos sociais e os relativos à saúde, a partir da Constituição Federal de 1988. O acesso de milhões de brasileiros a serviços de saúde, os quais estavam excluídos antes da implantação do SUS, é um indicador bastante exaltado e celebrado por gestores, usuários, trabalhadores de saúde que têm despendido forças para alcançar tal feito (SAN TOS, 2008; 2010; COHN, 2009COHN, A. A reforma sanitária brasileira após 20 anos do SUS: reflexões. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 7, jul. 2009, p. 1614-1619. Disponível em: <http://www.seielosp.org/scielo.php?seript=sci_arttext&pid=S0102-311X2009000700020&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2011.
http://www.seielosp.org/scielo.php?serip...
; CAMPOS, 2007bCAMPOS, G.W.S.. Reforma política e sanitária: a sustentabilidade do SUS em questão? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, abr. 2007b, p. 301-306. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?seript=sci_arttext&pid=S1413-81232007000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2011.
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).

No entanto, vários estudos têm sido realizados para apresentar que a coexistência de dois sistemas de saúde tem ocasionado prejuízos para a política de saúde no Brasil, principalmente, implicações para o desenvolvimento do SUS em direção ao cumprimento dos princípios da universalidade, equidade e integralidade da assistência. Também tem sido analisado o papel duplicado e contraditório do Estado frente a essa coexistência de prestadores e serviços públicos e privados de saúde; ao mesmo tempo em que é responsável pela viabilização do SUS e seus princípios, também mantém um mercado de saúde ao qual lhe caberia a ‘distante’ função de regulador.

Neste artigo buscou-se contribuir com esses debates, ainda que de forma bastante elementar, fornecendo dados quantitativos que expressam a evolução desses ‘sistemas’ de saúde, ao longo da década de 1999 a 2009, indicando o favorecimento prioritário para o crescimento do setor privado em detrimento do setor público.

Metodologia

A partir dos dados publicados nas pesquisas de Assistência Médico-Sanitária (AMS) realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE 1999INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Assistência Médico-sanitária – 1999. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/ams/ams99.shtm>. Acesso em: 01 abr. 2011.
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; 2002INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Assistência Médico-sanitária – 2002. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/esratistica/populacao/condicaodevida/ams/default.shtm>. Acesso em: 01 abr. 2011.
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; 2009INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Assistência Médico-sanitária – 2009. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/ams/2009/default.shtm>. Acesso em: 01 abr. 2011.
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), apresentaram-se séries históricas referentes ao número de estabelecimentos de saúde, leitos hospitalares, internações e equipamentos para serviços de apoio ao diagnóstico e terapia (SADT), expressos em valores absolutos e relativos. Foi analisada a distribuição desses estabelecimentos, internações e equipamentos, principalmente em relação ao tipo de financiador e esferas administrativas (pública, privada), instância gestora (federal, estadual e municipal) e distribuição por habitantes.

Os dados apresentados nesse estudo referem-se a características quantitativas da rede nacional de serviços de saúde e são de domínio público, disponibilizados na internet pelo IBGE; portanto, a pesquisa não foi avaliada por Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

Resultados

As pesquisas de AMS-IBGE de 1999, 2002 e 2009 apontam para um crescimento de 81,03% dos estabelecimentos privados no setor saúde, considerando o conjunto dos estabelecimentos financiados por planos e instituições particulares. Em contrapartida, o setor público, representado pelos estabelecimentos financiados pelo SUS, apresentou um crescimento de 57,89%, conforme apresenta a Tabela 1.

Tabela 1
Estabelecimentos de saúde, por financiador de serviços. Brasil, 1999-2009

A Tabela 1 mostra que, no conjunto de estabelecimentos privados, financiados por planos e instituições particulares, a modalidade de financiamento por planos próprios apresentou redução de 7,78%, em 1999, para 3,42%, em 2009, e os planos de terceiros e financiamento particular aumentaram de 43,58 e 48,64%, respectivamente, em 1999, para 43,88 e 52,70%, respectivamente, em 2009. Pode-se creditar o aumento do número de estabelecimentos do setor privado ao tipo de financiamento particular na primeira década dos anos 2000.

Considerando a diferença proporcional entre o conjunto de estabelecimentos do setor privado e do SUS (5,10% em 1999, 4,89% em 2002 e 20,5% em 2009), pode-se afirmar que a diferença (ou a distância) foi ampliada em quatro vezes a favor do setor privado nos últimos anos do período analisado (Tabela 1).

Na Tabela 2 é possível identificar que, de 1999 a 2009, os estabelecimentos de saúde cresceram em 53,18%, sendo que o aumento observado no setor público foi de 54,12% e no setor privado 51,29%, excluindo os serviços de apoio diagnóstico e terapêutico, analisados a seguir. Do total desses estabelecimentos, nesse período, em média, 68% pertenciam ao setor público, enquanto 31%, em média, eram do setor privado. No entanto, observando-se os estabelecimentos com internação, essa proporção se inverte: em média, o setor privado deteve 62,5% desses estabelecimentos, enquanto o público representou, em média, 36,5%. No entanto, enquanto o setor público ampliou em 8,65% o número de estabelecimentos com internação, houve uma diminuição de 22,28% desses estabelecimentos no setor privado. Essa redução também foi observada no total de estabelecimentos com internação (−11,93%). Apesar dessa diminuição observada no total de estabelecimentos com internação no período, o setor público ampliou em 8,65% o número de estabelecimentos com internação, reduzindo dessa forma, a diferença proporcional entre os estabelecimentos com internação públicos e privados nesse período que, em 1999, era duas vezes a favor do setor privado, em 2009, ficou abaixo da metade.

Tabela 2
Estabelecimentos de saúde* por tipo de atendimento e esfera administrativa da entidade mantenedora do estabelecimento. Brasil, 1999–2009

Quanto aos estabelecimentos sem internação, tanto o setor público, quanto o privado, apresentaram aumento no período. Porém, enquanto o setor público apresentou aumento de 58,08%, o setor privado ampliou em 85,98% o número de estabelecimentos sem internação. Entre 1999 e 2009, a proporção entre o setor público e o privado para os estabelecimentos sem internação foi de, em média, 72,75% públicos e 26,25% privados, não se alterando significativamente nesses dez anos (Tabela 2), Cabe indicar que a ampliação no número de estabelecimentos sem internação é distinta entre o setor público e privado: enquanto para o primeiro esse aumento implica essencialmente no crescimento da rede básica de saúde, com unidades ambulatoriais de atenção a saúde, no segundo, as unidades sem internação ampliadas foram destinadas principalmente para a media e alta complexidade, realizadas fora do âmbito hospitalar.

De um modo geral, em 1999, os estabelecimentos com internação representavam 15,99% do total de estabelecimentos de saúde no Brasil, enquanto os sem internação somavam 84,01%. Em 2009, essa proporção foi de 9,19% com internação para 90,80% sem internação (Tabela 2).

Em 11 anos (1999/2009), o Brasil acumulou uma redução do número total de leitos da ordem de 10,92%, o que significa cerca de 52.949 leitos (Tabela 3). Tal redução foi fortemente influenciada pela involução do número de leitos do setor privado (−18,36%), o que corresponde a cerca de 62.767 leitos. Registre-se, contudo, que o setor público aumentou a oferta de leitos em cerca de 6,89%, o que equivale a 9.818 leitos. Em 2009, dos 152.892 leitos públicos, 15.479 (10,12%) eram da esfera federal, 61.844 (40,45%) estaduais e 75.569 municipais (49,43%) (IBGE, 2009).

Tabela 3
Leitos para internação em estabelecimentos de saúde, por esfera administrativa. Brasil, 1999-2009

Em 1999, a proporção de leitos era de 3/1.000 habitantes, sendo que essa proporção no setor público era de 0,9/1.000 habitantes e no setor privado era de 2,1/1.000 habitantes. Em 2009, essa proporção foi reduzida para 2,26/1.000 habitantes, sendo 1,46/1.000 habitantes no setor privado e 0,8/1.000 habitantes no público. De acordo com o IBGE (2009), o Ministério da Saúde recomenda uma proporção de 2,5 a 3 leitos/1.000 habitantes. Com exceção da região Sul, em todas as outras, a media de leitos por habitantes esteve abaixo do preconizado durante o período (Figura 1).

Figura 1
Número de leitos por mil habitantes segundo as grandes regiões. Brasil, 1999-2009

Dentre as internações realizadas entre os anos 2001 e 2008, em média, 66,5% foram no setor privado. Entretanto, do total de internações privadas ocorridas nesse período, 74,5% foi custeada pelo SUS. Dos 279.104 leitos privados, 219.540 (78,66%) foram utilizados pelo SUS (IBGE, 2002; 2009). Ou seja, apesar de possuir apenas 32% dos leitos hospitalares da rede de saúde, o setor público é o responsável pela maioria das internações hospitalares realizadas na primeira década dos anos 2000.

De 1999 a 2009, as internações ocorreram principalmente nos âmbitos estaduais e municipais (90%, em média), com crescimento em 50,37% das internações municipais, 19,62% nas estaduais e redução de 4,05% no âmbito federal (IBGE, 2009).

Em relação aos equipamentos utilizados pelos SADT, os equipamentos de diagnóstico por imagem foram ampliados em 48,78% de 2002 a 2009, sendo que em média, 76% desses equipamentos são privados (Tabela 4). Dos equipamentos privados, a utilização pelo SUS foi de 41,01%, em 2002, e 34,79%, em 2009. Os equipamentos privados foram ampliados em 48,96% no período analisado; porém, a utilização desses pelo SUS foi reduzida em 6,22 pontos percentuais. A Tabela 4 apresenta que os equipamentos públicos de diagnóstico por imagem também apresentaram um aumento de 48,19% de 2002 a 2009, porém, permaneceram representando aproximadamente 24% do total de equipamentos na rede de estabelecimentos de saúde no período. Além disso, os equipamentos de diagnósticos por imagem disponíveis ao SUS foram reduzidos de 44,16%, em 2002, para 40,21%, em 2009. Esses achados apontam para uma utilização crescente pelo setor privado, uma vez que, mesmo mantendo-se a proporção de 76% privados/24% públicos, os equipamentos de diagnóstico por imagem estão menos disponíveis ao SUS.

Tabela 4
Equipamentos existentes em estabelecimentos de saúde por esfera administrativa, segundo o tipo de equipamento. Brasil, 2002-2009

Quanto aos equipamentos por métodos ópticos, foi observado um crescimento de 28,96% entre 2002 e 2009, sendo que os equipamentos privados representaram, em média, 80% do total desses equipamentos. Desses equipamentos privados, foram utilizados pelo SUS 43,07%, em 2002, e 40,73%, em 2009. Os equipamentos disponíveis pelo SUS foram ampliados em 30,88%, representando, em média, 40% do total de equipamentos por métodos ópticos no país (Tabela 4).

Os equipamentos por métodos gráficos apresentaram um crescimento de 42,67%, entre 2002 e 2009, da mesma forma, esses equipamentos disponíveis para o SUS também foram ampliados em 44,65%, ainda que, praticamente, tenham mantido uma proporção de 55% do total de equipamentos por métodos gráficos ao longo desse período. Proporcionalmente, o setor privado foi o responsável por 63,5%, em média, dos equipamentos por métodos gráficos. Desses, aproximadamente 40% eram utilizados pelo SUS (45,24%, em 2002, e 42,03%, em 2009). Apesar de apresentarem um aumento de 57,31%, os equipamentos públicos de métodos gráficos mantiveram a proporção em relação ao total de 34,27%, em 2002, e 37,79%, em 2009 (Tabela 4).

Os equipamentos para terapia por radiação sofreram uma redução, no país, de 10,42%, no período analisado. Apesar do setor público manter o número de equipamentos durante essa década (variação de 1,89%), a redução, em 12,25%, no setor privado, desses equipamentos, também foi acompanhada da redução dos equipamentos disponíveis ao SUS (−20,25%) e dos privados utilizados pelo SUS (−13,53%). Do total de equipamentos privados para radioterapia, manteve-se uma média de uso pelo SUS de aproximadamente 70% (71,83%, em 2002, e 70,79%, em 2009). Proporcionalmente, os equipamentos privados representaram 87,01% do total de equipamentos para radioterapia, em 2002, e 85,23%, em 2009 (Tabela 4).

Do total de equipamentos para manutenção da vida pesquisados pela AMS-IBGE entre 2002 e 2009 (berço aquecido, desfibrilador, fototerapia, incubadora, marcapasso temporário, monitor de eletrocardiograma, monitor de pressão invasivo, monitor de pressão não invasivo, oxímetro, reanimador pulmonar, respirador/ventilador adulto e respirador/ventilador infantil), apenas 30%, aproximadamente, eram públicos. Observou-se um crescimento maior para os equipamentos públicos (11,12%) do que entre os privados (0,06%). Houve redução no número de equipamentos privados utilizados pelo SUS (−12,24%); enquanto, em 2002, 58,46% desses equipamentos privados foram utilizados pelo SUS, em 2009, esse percentual diminuiu para 51,27%. No total, os equipamentos para manutenção da vida foram ampliados em 3,49% nessa década, mas houve diminuição de 5% desses equipamentos disponíveis para o SUS, reflexo da diminuição de utilização pelo SUS desses equipamentos privados.

O conjunto dos outros equipamentos pesquisados pela AMS-IBGE, de 2002 a 2009, apresentou um crescimento de 99,54% no Brasil. Esse aumento também foi observado para os equipamentos disponíveis para o SUS (98,74%). O setor privado apresentou maior crescimento do número desses equipamentos (103,39%) em relação ao setor público (92, 97%); esse crescimento não alterou significativamente a proporção de equipamentos públicos e privados, estes com mais de 60% do total de equipamentos da rede. Proporcionalmente, a utilização pelo SUS desses equipamentos privados diminuiu de 48,73%, em 2002, para 44,47%, em 2009.

Análise e discussão

De um modo geral, observou-se, na primeira década dos anos 2000, uma ampliação dos estabelecimentos privados no sistema de saúde do Brasil. Essa ampliação foi observada principalmente em relação aos serviços de apoio ao diagnóstico e terapia, a maioria pertencentes ao setor privado (aproximadamente 70%)11Outras análises sobre a origem e o desenvolvimento das práticas privadas no setor saúde e o complexo médico industrial no Brasil ver Vianna (2002) e Negri e Giovanni (2001).. De acordo com o IBGE, os serviços de apoio ao diagnóstico e terapia aumentaram o percentual de contribuição no total de estabelecimentos, entre 2005 e 2009, passando de 18,9% para 20,5% (IBGE, 2009). Excluindo-se esses serviços, observou-se um crescimento maior entre os estabelecimentos públicos com internação, conforme apontado também por Bahia (2009)BAHIA, L. O sistema de saúde brasileiro entre normas e fatos: universalização mitigada e estratificação subsidiada. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n.3, jun. 2009, p. 753-762. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000300011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2011.
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. Os leitos públicos foram ampliados principalmente nas esferas estaduais e municipais, indicando que o processo de municipalização tem impulsionado, não só o primeiro nível de atenção, mas também os setores secundários e terciários da assistência. Apesar da ampliação de leitos públicos, no Brasil, entre 2002 e 2009 houve uma importante redução dos estabelecimentos com internação e de leitos por mil habitantes, abaixo dos 3 leitos/1.000 habitantes preconizados pelo ministério da Saúde. A principal redução dos leitos foi observada a partir da retração no número de leitos privados. Paralelamente, observou-se um maior aumento dos estabelecimentos sem internação no setor privado do que no público.

O crescimento dos estabelecimentos privados foi observado principalmente a partir do aumento dos estabelecimentos que atendem a planos de saúde de terceiros e os atendimentos particulares. No setor privado, houve redução apenas da modalidade de planos próprios, definidos pelo IBGE como aquele de propriedade do estabelecimento ou de uma empresa de Seguro de Saúde, Autogestão, Grupo Médico ou Medicina de Grupo, que financia suas próprias atividades, através de planos de saúde ou de associados por cotas. No entanto, e importante salientar que a adesão da grande maioria dos participantes de planos e seguros privados de saúde é realizada via inserção no mercado de trabalho, ou seja, o trabalhador tem acesso ao plano de saúde contratado pelo empregador. Apenas cerca de 30% dos contratos de planos de saúde são efetuados diretamente pelo titular. Isso não quer dizer que a adesão aos planos de saúde não tem legitimação no país, ao contrário, haja vista a participação de uma parcela considerável da população com renda baixa (superior a 20%) que possui plano ou seguro saúde no país (MEN1CUCC1, 2008).

Essa legitimação perante à assistência privada está relacionada com a atuação governamental que favorece essa configuração institucional dual por meio de incentivos diretos (convênios com repasses de recursos) e indiretos (incentivos fiscais), na conformação da demanda (MEN1CUCC1, 2008; BAHIA, 2008BAHIA, L.. As contradições entre o SUS universal e as transferências de recursos públicos para os planos eseguros privados de saúde.Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, out. 2008, p. 1385-1397. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000500002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2011.
http://www.scielosp.org/scielo.php?scrip...
). Quando ao setor público é relegado o atendimento no primeiro nível da atenção à saúde, porém, todo o processo complementar ao diagnóstico e tratamento está alocado no setor privado, como é o caso dos equipamentos de SADT e os leitos hospitalares (conforme Tabelas 3 e 4). Aproximadamente 70% dos equipamentos utilizados em serviços de SADT estão sob controle do setor privado. Desses, em média, 40% são utilizados pelo SUS.

Destaca-se a diminuição dos equipamentos para radioterapia no Brasil, reflexo da redução desses equipamentos no setor privado e aumento pouco significativo de apenas dois equipamentos públicos de 2002 até 2009, apesar dos indicadores de morbimortalidade apontarem as neoplasias como um importante fator de adoecimento e óbito no Brasil, no mesmo período. Estudos indicam que aproximadamente 90 mil portadores de câncer não têm acesso oportuno à radioterapia (SANTOS, 2008SANTOS, N.R. Política pública de saúde no Brasil: encruzilhada, buscas e escolhas de rumos. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, Suppl. 2, 2008, p. 2009-2018. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000900002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 19 out. 2011.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Também corrobora o fato da atenção de alta complexidade ser financiada basicamente pelo setor público, ainda que o mesmo não detenha proporcionalmente a maior parte dos equipamentos da rede de saúde. Isso significa a destinação dos recursos públicos para o setor privado também nesse nível de assistência.

Menicucci (2007)MENICUCCI, T.M.G. Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetórias. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007. defende a tese de que, rigorosamente, a instituição do SUS mudou substancialmente o segmento público, porém, essa mudança tem sido limitada pela antiga estrutura do sistema de saúde brasileiro, originariamente dicotomizado entre o público e o privado, entre a prevenção e o tratamento e reabilitação, entre o coletivo e o indivíduo. E ainda, as características preservadas da política de saúde anterior criam uma ‘dualidade’, e não uma síntese dialética, na visão da autora. Ao mesmo tempo em que se propõe um sistema universal, paralelamente, mantém-se intocadas as instituições privadas de assistência à saúde, e ao que indicam os dados apresentados das AMS-1BGE, estas instituições demonstram grande capacidade de se acomodarem à proposta da ‘complementariedade’ ao sistema público.

Da mesma forma, Santos (2010)SANTOS, N.R. Sistema Único de Saúde – 2010: espaço para uma virada. Revista O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 34, n. 1, 2010, p. 8-19. Disponível em: <http://www.saocamilo-sp.br/pdf/mundo_saude/74/01_Sistema%20Unico%20de%20Saude.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2011.
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afirma que, apesar do SUS ter promovido uma grande inclusão social aos serviços de saúde, anteriormente inacessíveis a quase metade da população brasileira, essa façanha não foi acompanhada de mudanças estruturais no modelo de atenção, não alterando os interesses e estruturas básicas do modelo ‘pré-SUS’. O autor aponta o desafio de tomar esse movimento e práticas de inclusão como força motriz de mudança do modelo.

Fleury (2009)FLEURY, S. Reforma sanitária brasileira: dilemas entre o instituintee o instituido. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, jun. 2009, p. 743-752. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=51413-81232009000300010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2011.
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constata que, cultural e socialmente, valores como o individualismo e o consumismo foram acentuados após a década de 1980, em detrimento de valores mais próximos à proposição do SUS, como solidariedade, igualdade, participação civil. Indica que a existência de dois sistemas de saúde, um público para os pobres, mas ao qual os pagadores de seguros privados recorrem em várias situações, e outro privado, reflete a alienação da classe média acerca da realidade nacional e a marginalização da população provocada pelo processo de globalização.

Apostando na incompletude do projeto de reforma sanitária incorporado no projeto SUS, Campos (2007, p.302)CAMPOS, G.W.S.. Reforma política e sanitária: a sustentabilidade do SUS em questão? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, abr. 2007b, p. 301-306. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?seript=sci_arttext&pid=S1413-81232007000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2011.
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propõe três estratégias para recuperar (ou promover) o prestígio que esse sistema necessita para. possibilitar sua consolidação, que passam pela legitimação desse sistema perante a sociedade:

um movimento de peso em defesa de políticas de proteção social e distribuição de renda; apresentar o SUS à sociedade como uma reforma social significativa com grande impacto sobre o bem-estar e proteção social, indicando com objetividade, os passos e programas necessários; e sua legitimidade dependerá de seu desempenho concreto, de sua efetiva capacidade de melhorar as condições sanitárias e a saúde das pessoas.

Por outro lado, Cohn (2009)COHN, A. A reforma sanitária brasileira após 20 anos do SUS: reflexões. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 7, jul. 2009, p. 1614-1619. Disponível em: <http://www.seielosp.org/scielo.php?seript=sci_arttext&pid=S0102-311X2009000700020&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2011.
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, apesar de também defender a retomada dessa capacidade propositiva do movimento de reforma sanitária, que delineou a proposta organizacional do SUS, questiona se ainda é possível pensar o SUS como um projeto em processo de implantação. Considera primordial a necessidade de reflexões críticas sobre a atual realidade evitando ‘o conforto das vitórias passadas’ e resgatando alguns temas centrais àquela época, tais como universalização, regulação do setor pela lógica dos preceitos do SUS e não do mercado e as relações público/privado e Estado/sociedade.

Bahia (2008)BAHIA, L.. As contradições entre o SUS universal e as transferências de recursos públicos para os planos eseguros privados de saúde.Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, out. 2008, p. 1385-1397. Disponível em: <http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000500002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 abr. 2011.
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denuncia certa naturalização das desigualdades de cobertura, acesso e utilização de serviços de saúde entre os segmentos populacionais vinculados ou não a contratos de planos de saúde. Aparentemente, a noção de universalização sucumbiu à noção de ‘liberdade’ de escolha do consumidor quanto ao seu plano de saúde, rebaixando também o SUS à condição de comprador de serviços. Em que pese a reprovação formal da tentativa de retirar o princípio da universalidade e gratuidade da prestação de serviços de saúde, em 1995, por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32, que propunha a modificação do artigo 196 da Constituição Federal de 1988 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2011CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei e outras proposições. PEC 32/1995 – Modifica a redação do artigo 196 da Constituição Federal. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=169281>. Acesso em: 20 abr. 2011.
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), informalmente, observou-se sua efetivação na primeira década dos anos 2000.

Cabe, por final, analisar a interdependência das questões apontadas neste texto, com a estratégia desejável da Atenção Primária de Saúde: rumo à cobertura universal com elevada resolutividade e responsável pelo acesso ao sistema de saúde integral, porta de entrada preferencial desse sistema, estruturando-o a partir das necessidades de saúde dos usuários sob orientação e ordenação das linhas de cuidado ou, ao contrário, rumo à focalização nos grupos populacionais mais pobres, com baixa resolutividade, padronização federal da composição, perfil e competências das equipes de saúde e, de certo modo, de legitimação do modelo de atenção à saúde ainda hegemônico, pautado na oferta de procedimentos dos setores de média e alta complexidade, submetido às leis do mercado.

Conclusões

Os dados apresentados apontam para o crescimento do setor privado no campo da saúde na última década. Apesar do texto constitucional, que afirma que as instituições privadas poderiam participar de forma complementar ao SUS, aparentemente é o inverso que se concretiza. O setor público se limita a ‘complementar’ as ações e serviços faltantes ou rejeitados pelo setor privado. Apesar da ampliação de inúmeros estabelecimentos públicos ao longo do período analisado, a composição proporcional entre o público e o privado não se modificou substancialmente nos últimos anos, em favor da consolidação do SUS e seus princípios constitucionais. Ao contrário, em alguns casos, o setor privado ampliou essa diferença em quatro vezes.

Assim, a complementaridade do público em relação ao privado tem se concretizado, principalmente, pelo modelo de atenção adotado que privilegia a assistência individual-curativa, induz ao consumo de procedimentos para diagnóstico, exames clínico laboratoriais, favorecendo o fluxo de usuários do setor público, que iniciam o atendimento nas unidades básicas ambulatoriais, porta de entrada preferencial do sistema de saúde, para completar o atendimento no setor privado que detém a maior parte dos recursos especializados e equipamentos de diagnóstico e terapia, além dos leitos hospitalares. Além disso, outros autores (OCKE-REIS; ANDREAZZ1; SILVEIRA, 2005) já denunciaram que ações governamentais acabam patrocinando o setor privado, via mercado de planos e seguros de saúde, por meio de contratação coletiva para funcionários públicos, concessão de subsídios, isenções e renúncia de arrecadações fiscais e outros incentivos.

Gallo (1988)GALLO, E. et al. Reforma sanitária: uma análise de viabilidade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 4, n. 4, out./dez. 1988, p. 414-419. Disponível em: <http//www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1988000400007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 our. 2011.
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, em artigo que analisava a viabilidade da reforma sanitária naquele momento, apontaram para a falta de sustentação social ao projeto da reforma, que seria conseguido assumindo-se um caráter popular e operário, enfrentando-se os interesses capitalistas do setor. Hoje, no entanto, a adesão a planos privados de saúde faz parte da pauta de reivindicação da maioria dos sindicatos de trabalhadores, quando a empresa já não oferece no momento da contratação. As próprias instituições públicas oferecem planos privados de saúde aos servidores públicos, os mesmos que, muitas vezes, estão do lado de dentro do balcão atendendo usuários do SUS. As possibilidades de apresentar o SUS como uma viabilidade de acesso aos serviços de saúde requeridos por esses trabalhadores têm se tornado cada vez mais difíceis, no contexto atual.

O alerta de Menicucci (2007)MENICUCCI, T.M.G. Público e privado na política de assistência à saúde no Brasil: atores, processos e trajetórias. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007. a respeito dos legados das políticas de saúde estabelecidas anteriormente ao SUS e que condicionaram o desenvolvimento posterior da assistência limitando o avanço em direção a um sistema público universal e único, instiga a urgente reflexão sobre qual legado as atuais políticas deixarão para o futuro próximo.

Por fim, parece urgente provocar o debate, no Brasil, sobre a cultura vigente que tem aceitado como natural a possibilidade de obtenção de lucro com o comércio de açóes e serviços de saúde. Se concordarmos que ao menos a saúde física, juntamente com a autonomia do ser humano, é condição básica para sua sobrevivência e libertação de quaisquer formas de opressão (PEREIRA, 2007PEREIRA, P.A.P. Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2007.), então, o que justificaria que esse direito moral, de ter saúde para poder viver, transformado em direito social e civil, poderia ser adquirido apenas por alguns mediante pagamento? E ser negado a outros desprovidos de condições para comprá-lo? Não estaríamos aceitando, afinal, que a vida teria preço?

  • *
    BRASIL. Constituição Federal de 1988. Título VIII – Da ordem social - Seção II da Saúde – art. 199 - § 1º
  • Suporte financeiro: Não houve
  • 1
    Outras análises sobre a origem e o desenvolvimento das práticas privadas no setor saúde e o complexo médico industrial no Brasil ver Vianna (2002)VIANNA, C.M.M. Estruturas do sistema de saúde: do complexo médico-industrial ao médico-financeiro. PHYSIS Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, dez. 2002, p. 375-390. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312002000200010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 19 out. 2011.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    e Negri e Giovanni (2001)NEGRI, B.; GIOVANI, D. (Org.). Brasil: radiografia da saúde. Campinas: UNICAMP, 2001..

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2012

Histórico

  • Recebido
    Maio 2011
  • Aceito
    Nov 2011
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