Desenho, Modo de Operação e Representação de interesses - do Sistema Municipal de Saúde - e os Conselhos de Saúde

Ana Luiza d'Ávila Viana Sobre o autor

O artigo de Soraya Maria Vargas Cortes ressalta, com justeza e acerto, que os principais determinantes da participação dos representantes dos usuários nos Conselhos Municipais de Saúde são as mudanças recentes na estrutura institucional do sistema brasileiro de saúde e as características dos movimentos popular e sindical na cidade.

E é sobre o primeiro aspecto que me deterei mais, nestes comentários sobre o trabalho de Soraya, tendo em vista a minha participação em pesquisas e estudos recentes sobre a municipalização e o modo de funcionamento dos serviços de saúde. Vejamos como o desenho e o modo de operação do sistema de saúde se refletem nos tipos de conselhos e em suas dinâmicas internas de funcionamento.

Qual é a marca atual mais significativa da política de saúde? É a preponderância dos executivos municipais na gestão dessa política, uma decorrência natural do tipo de descentralização operada nas diretrizes do SUS. Foi uma descentralização de tipo política, para instâncias subnacionais de governo - em específico para a instância municipal -, na qual não se tinha idéia, ainda, do grau de autonomia, poder e iniciativa que os municípios disporiam sob a Constituição de 1988, como bem lembrou Almeida (1996ALMEIDA, M.H.T. (1996) - Federalismo e Políticas Sociais. In: Affonso, R.B.A. & Silva, P.L.B. (orgs.) - Descentralização e Políticas Sociais. São Paulo: FUNDAP (Coletânea Federalismo no Brasil).:22).

O fato de se deslocar a política de saúde para o nível municipal, em um país de estrutura federativa, com grande grau de autonomia da esfera local - são relações de governo a governo - resulta em transferir para o executivo municipal e a figura do prefeito (e secretário municipal de saúde) as principais decisões sobre essa política. Assim, introduziram-se atores, como prefeitos, vereadores e deputados nas arenas decisórias da política de saúde. Esses atores, com extensos recursos, passam a responder pelos rumos da saúde no nível local.

Os prefeitos, hoje, exercem o papel de policy brokers, ao articularem todos os interesses envolvidos com a questão da saúde. Prefeitos e políticos locais passaram a ver a saúde como um grande reservatório de legitimidade e votos, o que pode induzir, tanto à implementação de inovações institucionais, quanto à reafirmação de antigas formas de prover serviços.

Entretanto, são as formas de organização e o grau de desenvolvimento das estruturas administrativas municipais - no caso a Secretaria Municipal de Saúde - que podem diminuir o impacto do poder de direcionamento do executivo central. Essas estruturas podem ser mais ou menos autônomas em relação à estrutura do executivo municipal. Isto é, as Secretarias Municipais de Saúde podem (ou não): administrar o Fundo Municipal de Saúde; contratar/dispensar recursos humanos; comprar insumos, equipamentos e medicamentos; operar de forma centralizada ou descentralizada os serviços municipais; ofertar novas modalidades de assistência; incentivar práticas multiprofissionais, matriciais e participativas de gestão dos serviços. Isso influenciará de forma bastante decisiva os tipos e as formas de conselho existentes, isto é, sua capacidade de impor (autonomamente ou não) os rumos da política local de saúde.

A gestão centralizada na área da saúde não favorece a uma dinâmica mais autônoma do conselho, e sua existência, nesse caso, pode ser apenas um expediente burocrático, uma forma de cumprir algumas exigências da política (transferência de recursos e o enquadramento do município nas formas de gestão propostas)22 Conforme as duas últimas NOBs (1993 e 1996)..

Formas descentralizadas e mais autônomas de organização de serviços podem induzir a novos tipos de participação, tanto de profissionais quanto de usuários, redefinindo, assim, as práticas e o modo de prover serviços e, ainda, a forma e o tipo de participação dos usuários nos conselhos.

Por outro lado, o reforço do executivo municipal também se dá pela ausência das esferas estadual e federal (como vemos hoje), aprofundando o insulamento municipal. As esferas de poder federal e estadual só podem intervir nos caminhos da política de saúde se seus papéis e funções estiverem claramente definidos. As relações intermunicipais (vitais para a constituição de sistemas intermunicipais de saúde) só se estabelecem com maior harmonia quando há instâncias superiores, pois há uma igualdade de poder entre os municípios. A ausência de outra instância de poder (seja regional e/ou nacional) fere a idéia de sistema - porque não se estabelecem lógicas de complementaridade e de hierarquia entre serviços e instituições.

Esse desenho e modo de operação dos serviços também se refletirão nos grupos de interesse que apóiam a política, e nas formas como esses se articulam no plano local. Pode-se afirmar que há a preponderância de uma tríade de representação da política no nível local, composta por políticos, médicos e proprietários de serviços. Secundariamente, aparecem os demais atores: demais profissionais e trabalhadores da área da saúde e os usuários dos serviços.

Vejamos cada um desses atores: os médicos têm presença decisiva não só pelo atual modelo assistencial (centrado na doença), mas também por serem elementos de integração do sistema, pois prestam serviços em diferentes instituições e em diferentes serviços; e é assim, através deles, que se constróem os mecanismos de referência/contra-referência do sistema. Além disso, o médico é também um personagem do poder local, pois médicos e políticos muitas vezes se confundem no espaço local e a política tem, nessa profissão, como se sabe, um reservatório de quadros para o exercício do poder.

Os proprietários muitas vezes são os médicos e também os políticos locais, em disputa pelo poder municipal: em vários municípios os proprietários de serviços ou são do grupo político da prefeitura ou estão na oposição, aguardando a próxima eleição. Quem poderia constituir uma força contra-restante à essa tríade? Os usuários, porém com duas ressalvas importantes: os trabalhadores do setor formal (mais organizados) muitas vezes têm seguros próprios de saúde e a classe média (mais influente) é cada vez mais usuária dos serviços de planos de saúde. Assim, basicamente são usuários do SUS os pobres das periferias urbanas.

Quanto aos profissionais de saúde, eles se tornam peças importantes na definição das políticas locais para o setor, quando sua atuação é menos corporativa e há um olhar para a questão da saúde.

Além disso, como a autora corretamente ressalta, quando se solidificam alianças entre profissionais e usuários, aumenta o envolvimento destes nos conselhos; e, complemento, se estabelecem contrapontos vigorosos à política imposta, muitas vezes, pela tríade hegemônica da política municipal de saúde.

Quero terminar com uma afirmação de Soraya bastante elucidativa e com a qual concordo integralmente: o funcionamento dos conselhos é limitado e condicionado pela realidade concreta das instituições e da cultura política dos municípios brasileiros. Isto é: o conselho espelha e é limitado pelo desenho e modo de operação da política de saúde, pelas formas de representação de interesses (a base social da política), e de como esses mesmos interesses se articulam no plano local.

Referência bibliográfica

  • ALMEIDA, M.H.T. (1996) - Federalismo e Políticas Sociais. In: Affonso, R.B.A. & Silva, P.L.B. (orgs.) - Descentralização e Políticas Sociais. São Paulo: FUNDAP (Coletânea Federalismo no Brasil).

  • 2
    Conforme as duas últimas NOBs (1993 e 1996).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 1998
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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