Matta GC, Rego S, Souto EP, Segata J, organizadores. Os impactos sociais da Covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19, Editora Fiocruz; 2021.

Ana Maria Caldeira Oliveira Simone Aparecida Albuquerque Cristina Gouveia de Figueiredo Sobre os autores
2021

Trata-se de um instant book que procura compreender as condições que se entrelaçam na pandemia da COVID-19, gerando repercussões diferentes nos distintos contextos e grupos sociais: a escala global da pandemia não a torna universal e homogênea; se, por um lado, dizem os autores, é possível identificar o patógeno, compreender a mecânica biológica e transmissibilidade, por outro, não é possível explicar o processo saúde-doença independentemente dos diferentes cenários. O livro tem como pano de fundo a crítica à cosmovisão individualista, cujas argumentações desconsideram as “configurações sociais” adotando o conceito de “populações” compostas por indivíduos intercambiáveis e classificáveis em quatro categorias: “susceptíveis, infectados, sobreviventes e mortos”11 Carrara S. As ciências humanas e sociais: entre múltiplas epidemias. Physis 2020; 30(2):1-6.(p.2). E aponta para a necessidade de estabelecer relação com outros marcadores sociais, como raça, gênero, classe social, sexualidade, território, dinâmica social e econômica.

São apresentados em formato de Notas os principais acontecimentos da COVID-19 no Brasil, organizados cronologicamente, de janeiro a dezembro de 2020: primeiro caso, primeira morte e primeiras medidas de isolamento tomadas por estados e municípios, assim como abordagens inadequadas do governo Bolsonaro: negacionismo, estímulo à mobilização antivacina, proliferação de informações enviesadas, apoio ao tratamento precoce sabidamente ineficaz e à tese de imunidade de rebanho. Cumpre assinalar que, para além do recorte temporal da obra, surgem reações necessárias, instala-se, por exemplo, a CPI da COVID-19, que denuncia, de forma contundente, tais atitudes do governo federal e sua tentativa de induzir a população a seguir vida normal, apesar da morbimortalidade do vírus. A partir de pressão política e social, garante-se a vacinação da população brasileira, inclusive crianças de 5 a 11 anos, e a Anvisa acaba por aprovar a produção da vacina com insumo brasileiro, avanços a serem comemorados, embora não podendo descuidar de novas ameaças, como, no momento, a variante Ômicron do coronavírus.

O livro apresenta questionamentos: Quem são as vítimas dessa pandemia? O que se sabe sobre elas? Na busca por respostas, o mundo todo recorreu inicialmente aos tradicionais conceitos epidemiológicos de grupos de risco e de evidências. Todavia, dizem os autores, tais conceitos parecem insuficientes para a análise da pandemia, que se apresenta como uma crise sanitária e humanitária, um desastre de dimensões planetárias: nem mesmo o conceito de narrativas oriundo das ciências sociais é eficaz, pois o que se constata é a existência de disputas sobre as narrativas da pandemia. Como exemplo, os autores citam o Supremo Tribunal Federal que, ao reconhecer a competência concorrente entre os entes federados, acabou “deslocando” a União de seu papel de coordenador das políticas e ações nacionais de saúde. No nosso entendimento, equivocam-se os autores a esse respeito e, ironicamente, o argumento que utilizam se assemelha ao argumento de Bolsonaro, que manipula o significado da decisão do Supremo Federal para se livrar da responsabilidade, comprometendo, isto sim, a coordenação nacional de combate à COVID-19.

A respeito das escolhas políticas, os autores destacam o valor desigual dado à vida humana, em que se lamenta a perda de algumas vidas, mas não a de outras. Denunciam a mistanásia22 Santos MF. Eutanásia em chave de libertação. São Paulo: Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde; 1989.: morte fora do tempo, miserável e totalmente evitável. O tempo nos mostra que a situação é mais grave do que a descrita no livro: a CPI da COVID-19 denunciou a utilização de seres humanos como cobaias, em experimentos não autorizados e a alteração de prontuários médicos, numa tentativa de driblar a ciência em nome de imperativos político-ideológicos.

Segundo os autores, a vulnerabilidade tem sua origem no processo de produção e reprodução das desigualdades sociais; não está posta no sujeito33 Acselrad H. Vulnerabilidade ambiental, processos e relações. Rio de Janeiro: UFRJ; 2006.. A pandemia da COVID-19 agravou as condições das populações em situação de rua, privadas de liberdade, migrantes, refugiadas, solicitantes de refúgio e apátridas. Três fatores deixam esses grupos ainda mais expostos ao adoecimento e morte por COVID-19: a situação de pobreza, a impossibilidade de adesão às medidas de isolamento social e adequada higienização - visto que parte deles não tem moradia e os que a possuem estão em serviços de acolhimento superlotados ou residências coletivas - e, por último, o aumento da insegurança e estresse, que agrava os sintomas de transtornos mentais ou o uso problemático de álcool e outras drogas. Territórios com alta densidade populacional, habitações precárias e insuficientes ofertas de serviços públicos corroboram com a piora das condições de saúde da população, com destaque para favelas e terras indígenas. A inexistência de informações sobre os grupos acima descritos, incluindo o número de infectados, hospitalizados e mortos por COVID-19, inviabiliza a equidade no processo de proteção e prevenção.

O livro apresenta também análises das condições de organização, sobrevivência e acesso a direitos básicos de pessoas idosas, mulheres, sobretudo as mulheres negras que vivem nos centros urbanos ou são remanescentes quilombolas, em territórios rurais e as minorias sexuais e de gênero, consideradas em seus contextos socioculturais e espaços de convívio interrelacional. As pessoas idosas tratadas como grupo de risco tiveram sua autonomia e independência fortemente reduzidas; mulheres nos grandes centros urbanos convivem com seus agressores e/ou assumem cargas de trabalho elevadas a níveis insuportáveis e mulheres nos quilombos rurais permanecem sem garantia de acesso à água potável. No que diz respeito ao gênero, é denunciada a falta de plano nacional de enfrentamento à COVID-19, ao passo em que é destacado o empenho das organizações, que constituem a Frente de Defesa pela Vida, responsável pela publicação do Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da COVID-19, revelando a situação de violência e vulnerabilidade social e pessoal extrema à qual estão submetidas as mulheres e pessoas LGBTQIAP+.

No cerne da análise, nota-se a crítica à visão biomédica que fragmenta os sujeitos em detrimento de abordagens mais integradoras que priorizem a vinculação da Promoção de Saúde ao exercício da práxis de autonomia dos envolvidos44 Melo EM. Promoção de Saúde como Práxis de Autonomia e Mudança. In: Melo EM, Silva JM, Akerman M, Belisário SA, organizadores. Promoção de Saúde: Autonomia e Mudança. Belo Horizonte: Folium; 2016. p. 3-16.. As descrições do cotidiano e as análises dos impactos e efeitos da pandemia nas vidas das populações mencionadas revelam o assujeitamento e a desumanização a que estão submetidas, seja no âmbito privado ou no público, e que acabam por produzir danos que vão da desassistência à morte. Do nosso ponto de vista, a interseccionalidade expressaria bem essa situação denunciada no livro e se destacaria como ferramenta analítica seja para o entendimento de como o poder opera no atual contexto, seja como uma orientação para a práxis, posto que “as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, etnia e faixa etária - entre outras - são interrelacionadas e moldam-se mutuamente”55 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2020.(p.15-16), fortalecendo as construções sociais de sobrevivência dessas populações em situação de vulnerabilidade para o enfrentamento e resistência à opressão imposta pela pandemia.

Não passa desapercebida do olhar agudo dos autores a construção discursiva do medo e da confiança em espaços midiáticos, particularmente o jornalismo; a ocorrência não linear e não homogênea da pandemia, pois é informada por diferentes contextos, “na e pela linguagem” e sua edificação como fato jornalístico formidável, colaborando com o aumento de vendas dos jornais, exatamente por serem eles “as fontes mais confiáveis de notícias sobre a crise”. Em que pese o importante papel da mídia na informação da população, há que se concordar com os autores quando analisam que jornais e redes impõem sentidos e emoções que obedecem a múltiplas lógicas, intencionalmente ou não, e podem gerar informações falsas ou distorcidas e/ou promover o bombardeio de informações levando à exaustão, desinteresse e até mesmo adoecimento da população.

O livro retrata ainda o esforço da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na produção de conhecimentos sobre o SARS-CoV-2 e a COVID-19, abrangendo todas as áreas de pesquisa da instituição. Ao completar 120 anos, a Fiocruz aprimora e fortalece seus vínculos com a sociedade e com a própria ciência. O Projeto Conexão Saúde: de olho na Covid tem como objetivo oferecer assistência à saúde aos residentes nas favelas cariocas da Maré e de Manguinhos. De nossa parte, acrescentamos a atuação de outras instituições, por exemplo, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que trabalha no desenvolvimento de uma vacina contra o SARS-CoV-2 e a Universidade de São Paulo (USP) apresentando o estudo Linha-do-Tempo, que busca aferir a hipótese de que está em curso no Brasil uma estratégia de disseminação da COVID-19, promovida de forma sistemática em âmbito federal.

Por fim, resta dizer que, com esse contexto dramático, não há como discordar do alerta dos autores para o potencial agravamento da crise sanitária, que conjuga elementos sociais e econômicos, afinal, a pandemia revelou, ampliou e se nutriu de cenários já existentes, como os fenômenos das desigualdades e vulnerabilidades entre pessoas e territórios. Apesar disso, ainda há alento, múltiplas vozes ecoam na esfera pública, em defesa do SUS, que apesar de asfixiado pelo subfinanciamento, cumpriu quase heroicamente seu papel e se ergue reconhecido desse cenário de dor e sofrimento.

Referências

  • 1
    Carrara S. As ciências humanas e sociais: entre múltiplas epidemias. Physis 2020; 30(2):1-6.
  • 2
    Santos MF. Eutanásia em chave de libertação. São Paulo: Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde; 1989.
  • 3
    Acselrad H. Vulnerabilidade ambiental, processos e relações. Rio de Janeiro: UFRJ; 2006.
  • 4
    Melo EM. Promoção de Saúde como Práxis de Autonomia e Mudança. In: Melo EM, Silva JM, Akerman M, Belisário SA, organizadores. Promoção de Saúde: Autonomia e Mudança. Belo Horizonte: Folium; 2016. p. 3-16.
  • 5
    Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br