Entre legitimação científica e legitimação cultural: transformações no campo das Práticas Integrativas e Complementares

Between scientific legitimation and cultural legitimation: transformations in the field of Integrative and Complementary Practices

Iago Marafina de Oliveira Dário Frederico Pasche Sobre os autores

Resumo

A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) foi publicada há 15 anos e entre 2017 e 2018 passou por dois atos de ampliação, partindo de cinco para 29 modalidades de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), um aumento de 24 novas práticas no período de um ano. O objetivo deste artigo é compreender as condições para tais transformações ao redor das PICS no Sistema Único de Saúde (SUS), refletindo como os atores sociais compreendem essas mudanças. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com oito interlocutores/as, analisadas à luz da teoria do campo de Pierre Bourdieu. Os resultados apontam que a ampliação da PNPIC, motivada por atravessamentos político-institucionais, é compreendida em duas matrizes de pensamento que se relacionam com a legitimação cultural e a legitimação científica das PICS nos SUS. Conclui-se que a rápida expansão da PNPIC gerou uma crise no campo, mostrando a necessidade de uma reestruturação dialogada com suas bases sociais.

Key words:
Complementary Therapies; Integrative Medicine; Health Policy; Public Health; Unified Health System

Abstract

The National Policy on Integrative and Complementary Practices (NPICP) was published 15 years ago, and between 2017 and 2018 it saw two phases of growth and increased from 5 to 29 modalities of Integrative and Complementary Practices (ICP), namely an increase of 24 new practices within a year. The scope of this article is to understand the conditions for such transformations in the ICPs in the Unified Health System (SUS), reflecting upon how social actors interpret these changes. Thus, semi-structured interviews were conducted with eight interlocutors, analyzed in the light of Pierre Bourdieu’s field theory. The results show that the expansion of the NPICP, motivated by political-institutional factors, is comprehended in two matrices of thought that are related to the cultural and scientific legitimation of the ICPs in the SUS. The conclusion drawn is that the rapid expansion of the NPICP generated a crisis in the field, showing the need for a restructuring dialogue with its social bases.

Key words:
Complementary Therapies; Integrative Medicine; Health Policy; Public Health; Unified Health System

Introdução

Em 2006 foi publicada no Brasil a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), o primeiro documento, em âmbito federal, a planejar, implementar e avaliar o trabalho com práticas não-convencionais nos serviços de saúde do país11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. 1ª ed. Brasília: MS; 2006.. No documento, as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) foram reunidas em torno do conceito de Racionalidades Médicas (RM) e a noção de Recursos Terapêuticos (RT), cujas distinções são fundamentais para a compreensão sobre as transformações ocorridas na Política Nacional.

Uma RM, de acordo com Luz22 Luz MT. Comparação de representações de corpo, saúde, doença e tratamento em pacientes e terapeutas de homeopatia, acupuntura e biomedicina na rede de saúde do município do Rio de Janeiro. In: Luz MT, Barros NF, organizadores. Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: Estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/LAPPIS; 2012., é um sistema médico complexo considerado em seis dimensões: morfológicas, fisiológicas, diagnósticas, terapêuticas e de doutrina médica - essas cinco dimensões compõem uma sexta dimensão que engloba todas as anteriores, chamada de cosmovisão. Já os recursos terapêuticos (RT), conforme a PNPIC11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. 1ª ed. Brasília: MS; 2006., são as ferramentas terapêuticas utilizadas em diferentes sistemas médicos complexos. Neste sentido, um RT está sempre vinculado a uma RM, como o caso da Acupuntura, recurso terapêutico pertencente à Racionalidade Médica Chinesa.

A PNPIC passou aproximadamente 10 anos sem modificações. Foi somente em 2017 que o documento passou a englobar 14 novas PICS33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União; 2017.. Naquele ano a política nacional passou de 5 para 19 práticas. Um ano depois, em 2018, durante o 1º Congresso Internacional de Práticas Integrativas e Saúde Pública (CONGREPICS), foi anunciada a inclusão de mais dez práticas44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria nº 702, de 21 de março de 2018. Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC. Diário Oficial da União; 2018.. Desta forma, atualmente a PNPIC é composta por 29 práticas e, entre elas, quatro racionalidades médicas: homeopática, chinesa, ayurvédica e antroposófica. As outras 25 modalidades de PICS dividem-se entre recursos terapêuticos vinculados a algum sistema médico complexo e práticas consideradas independentes, ou seja, não se constituem enquanto racionalidades médicas.

A partir das ampliações realizadas em 2017 e 2018, é possível perceber que a PNPIC vai tornando-se um espaço que passa a congregar não mais racionalidades médicas e seus recursos terapêuticos, mas também práticas que não se caracterizam nem como RM nem como um RT pertencente a algum sistema médico complexo. Tais atos de ampliação produziram efeitos diversos no campo, os quais o estudo buscou repercutir ao produzir a análise a partir de diferentes narrativas de agentes sociais que compõem matrizes de pensamento entre a legitimação científica e a legitimação cultural das PICS presentes no SUS. É importante ressaltar que não serão discutidas as práticas específicas neste artigo, mas as condições de conformação e transformação da PNPIC.

Método

Minayo55 Minayo MC. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Rio de Janeiro: Cien Saude Colet 2013; 17(3):621-626. entende que existem etapas interconectadas para a construção de uma investigação, como: (a) escolha do tema; (b) recorte do problema; (c) colocação dos objetos de pesquisa e objetivos; (d) constituição dos direcionamentos conceituais; (e) instrumentos para coleta de dados; e (f) a forma como se irá adentrar o campo. Nesta perspectiva, foram adotados princípios e procedimentos metodológicos qualitativos para a realização da pesquisa, fundamentada pela Teoria do Campo de Pierre Bourdieu66 Bourdieu P. Sociologie générale II. Paris: Seuil; 2016..

Na fase exploratória, foi realizada uma pesquisa para o conhecimento do estado da arte de produções sobre o campo das PICS no SUS, etapa na qual ocorreu o delineamento do objeto. Foram encontradas lacunas no que tange a uma análise das condições de emergência e conformação das PICS no SUS, além de informações que justificassem a rápida expansão da política. A identificação destas lacunas possibilitou tanto a construção do problema de pesquisa como a elaboração de um roteiro de entrevista semiestruturado. As entrevistas foram realizadas com agentes sociais que atuam entorno do campo das PICS no Brasil - etapa que aconteceu de janeiro a março de 2021 de forma remota via plataforma de videoconferência. O roteiro foi composto por tópicos que englobavam as histórias de vida dos agentes sociais, os processos instituintes que possibilitaram a emergência da política, os tensionamentos durante sua construção, suas condições de conformação no SUS, o papel das práticas na produção de saúde e o contexto de expansão da PNPIC.

A amostra de interlocutoras/es da pesquisa foi composta por 8 sujeitos - 5 mulheres e 3 homens - ligados aos espaços da gestão (duas pessoas ligadas à formulação e implementação da política) e da academia (seis pessoas ligadas à pesquisa, ensino e/ou extensão em PICS). O número de interlocutoras/es do estudo não foi definido previamente ao início da fase de campo, utilizando-se como balizador a argumentação de Minayo77 Minayo MC. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesq Quali 2017; 5(7):1-12. que afirma não ser possível determinar a priori a amostragem em pesquisas qualitativas, já que, ao contrário das pesquisas quantitativas que tratam da magnitude dos fenômenos, as pesquisas qualitativas tratam da intensidade, singularidades e significados deles no tecido social. Disso decorre que a saturação dos dados em amostras não-probabilísticas é verificada durante a fase de campo por meio de avaliação constante das informações. Assim, o grupo de interlocutoras/es foi composto ao longo da pesquisa, conforme a técnica da bola de neve proposta por Biernarcki e Waldorf88 Biernarcki P, Waldorf D. Snowball sampling: problems and techniques of chain referral sampling. Soc Methods Res 1981; 10(2):141-163., de forma que um sujeito - ao finalizar a entrevista - poderia indicar outros agentes sociais do campo das PICS que pudessem contribuir para a pesquisa conforme as características do instrumento de coleta de dados, com os quais o pesquisador entrava em contato. A coleta de informações foi suspensa quando o material reunido possibilitou compreender - com qualidade, especificidade e heterogeneidade - a problemática da pesquisa.

A análise das informações coletadas nas entrevistas foi orientada pela articulação das diferentes narrativas, de acordo com a proposição de Minayo77 Minayo MC. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesq Quali 2017; 5(7):1-12. ao refletir que a interpretação não é a palavra final sobre o objeto de estudo, já que a realidade caminha em diversas direções abertas. Buscou-se compreender o campo das PICS a partir das narrativas dos sujeitos de pesquisa que constituíram um grande relato de compreensões subjetivas e parciais que se movimentam em composição e contraposição. Concomitantemente, também foram analisados documentos identificados no percurso da pesquisa, como portarias ministeriais.

Todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob parecer CAAE 39006720.1.0000.5334. Os sujeitos foram identificados por número e seus dados pessoais foram mantidos em sigilo.

Resultados e discussão

Foi possível identificar duas grandes matrizes de pensamento no que tange aos consensos e contrassensos sobre o processo de ampliação da PNPIC: a que compreende a ampliação em relação à legitimação científica e a que compreende a ampliação em relação à legitimação cultural. Desta forma, é proposto investigar os meandros entre as duas diferentes compreensões sobre a expansão da PNPIC, refletindo, ao mesmo tempo, seus cenários político-institucionais. Em um primeiro momento, é importante evidenciar a ampliação da PNPIC ao longo dos anos. O Quadro 1 ilustra tal processo.

Quadro 1
Ampliação da PNPIC.

Para apreender a complexidade das transformações entorno da PNPIC, torna-se necessário trazer à cena as ferramentas oferecidas pela Teoria do Campo de Pierre Bourdieu. O campo em Bourdieu66 Bourdieu P. Sociologie générale II. Paris: Seuil; 2016. é definido como um microcosmos de relações entre agentes sociais, organizações e instituições detentoras de autonomias distintas e diferentes tipos de capitais que se relacionam entre si em correlações de forças. Grenfell99 Grenfell M, organizador. Pierre Bourdieu: Conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes; 2018. diz que o campo de práticas sociais em Bourdieu torna-se também um campo de batalha no qual acontece a disputa de diferentes sentidos. Bourdieu66 Bourdieu P. Sociologie générale II. Paris: Seuil; 2016. sustenta que em campos sociais existe uma indissociabilidade entre as histórias singulares de cada ator e das histórias que se (re)produzem de maneira coletiva e dialética na forma do habitus. Em articulação ao conjunto de operadores conceituais que a Teoria do Campo possibilita operar na análise, foram reunidas as narrativas de agentes sociais que demonstram as distintas compreensões acerca das transformações na PNPIC.

Entre legitimação científica e legitimação cultural: os meandros da ampliação da PNPIC

A equação “[(habitus) (capital)] + campo = prática”, proposta por Bourdieu1010 Bourdieu P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk; 2007.(p.97), exemplifica como um campo pode ser disposto. É possível tomar a prática como aquilo que se torna visível, uma gênese sobre a série de relações que precedem, produzem e tornam possível as ações visíveis e objetivas. Neste sentido, o que estaria em jogo no que não está visível na ampliação da PNPIC?

Para o Interlocutor 2 a “ampliação esteve sempre em pauta, não houve momento em que surgiu”, o que demonstra que desde a publicação da política existia o interesse de agentes demandando sua ampliação, levando a Coordenação Nacional das PICS (CNPICS) a responder inúmeras notas técnicas. O Interlocutor cita que no Ministério da Saúde (MS), ao final de 2011, eram discutidos os resultados do Programa Nacional de Acesso e Qualidade da Atenção Básica (PMAQ), momento no qual começava-se a avaliar quais tipos de práticas estavam presentes nos serviços de saúde para além daquelas circunscritas na PNPIC até então. É possível inferir que os agentes sociais envolvidos com as práticas que não estavam presentes na PNPIC não começam meramente a reivindicar seu espaço no SUS em um determinado momento histórico. Tais agentes, reunidos em coletivos representantes da organização política de determinadas práticas, vão abrindo espaço em relação ao direito que elas possuem de existir no SUS, um direito de existir ancorado nos hábitos presentes culturalmente nos territórios. Torna-se importante sublinhar que as Medicinas Tradicionais Indígenas e as práticas de cura afro-brasileiras, de acordo com a Interlocutora 1, não foram incorporadas a PNPIC justamente para que elas fossem protegidas da regulação e controle do Estado, a fim de evitar uma nova possibilidade de violência epistêmica em populações historicamente subalternizadas.

É justamente na indefinição sobre o momento em que se iniciam as discussões sobre novas inserções na PNPIC que essa análise se torna possível, já que desde a publicação da política existiam solicitações de inclusão de novas práticas, o que, de acordo com as informações do Interlocutor 2, levava a CNPICS a responder a essas forças externas em duas dimensões: a primeira vinculada à máquina jurídico-burocrática do estado - na forma de notas técnicas que explicavam os motivos pelos quais determinadas práticas não poderiam entrar na política naquele momento; e a segunda vinculada à construção de um diálogo com bases sociais - na forma da agenda de eventos da CNPICS em diversas regiões do país.

Em meio a esse jogo de forças, os resultados obtidos pelo PMAQ parecem ser uma das justificativas técnicas para a ampliação da política, revelando uma multiplicidade terapêutica coexistindo no SUS. A inclusão de novas práticas, justificada pelos resultados do PMAQ, pode sugerir que a oferta foi validada institucionalmente em um primeiro momento pelos próprios profissionais em uma abertura às experimentações de produção de saúde ao redor das variadas culturas de cuidado que se encontram na correlação serviço-território. Os resultados do primeiro e segundo ciclos do PMAQ na Atenção Básica, conforme Amado et al.1111 Amado D, Rocha PRS, Ugarte AO, Ferraz CC, Lima MC, Carvalho FFB. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde 10 anos: avanços e perspectivas. J Manag Primary Health Care 2017; 8(2):290-308., demonstraram que existia maior oferta da PICS no território do que até então era conhecido via o Sistema Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES) e no Sistema de Informação da Atenção Básica (SISAB), o que apontava não somente uma subnotificação, mas um desconhecimento do Ministério da Saúde acerca das terapêuticas presentes no cotidiano dos serviços. A partir da avaliação do segundo ciclo do PMAQ, as Equipes de Saúde da Família foram questionadas se estavam realizando algum tipo de prática terapêutica que ainda não estava inserida na PNPIC. Os resultados apontaram para a existência de práticas ainda não inseridas na Política, sendo as mais significativas em termos numéricos de atendimentos a Terapia Comunitária Integrativa, Arteterapia, Danças Circulares, Shantala e a Musicoterapia, respectivamente.

A CNPICS continuou sofrendo pressões externas de agentes sociais, que se movimentavam em torno do Ministério da Saúde buscando legitimidade das práticas das quais eram representantes - legitimidade que poderia ser angariada via PNPIC em âmbito nacional. Entretanto, segundo interlocutores da pesquisa, a CNPICS não se propunha a dizer quais práticas eram legítimas ou não, mas se propunha, como apontado na própria PNPIC11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. 1ª ed. Brasília: MS; 2006., a descentralizar e regionalizar a Política: “os gestores podem reconhecer práticas de importância local. Às vezes a prática não tem uma relevância nacional, mas tem para aquele território, então cabe ao território normatizar e monitorar” (Interlocutor 2).

Isso leva à formulação de que a realidade dos territórios se faz muito mais plural do que a política pública em saúde a nível nacional. De acordo com o Interlocutor 3, as PICS ainda são muito periféricas no SUS, mas crescem na medida em que a legitimidade social cresce tanto no país quanto mundo a partir dos esforços da OMS para institucionalização das Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas nos sistemas de saúde: “Até onde eu entendo, a PNPIC tem essa coisa de legitimar culturalmente, e isso é o grande ganho. A ampliação para 29 práticas foi um reforço disso” (Interlocutor 3).

As PICS, a partir de suas organizações e agentes, conformam uma base social, mostrando-se como uma força instituinte no tecido social com interesse em se institucionalizar - uma luta por reconhecimento que em certo grau poderia advir da legitimação do Estado na forma de política pública e na participação as regras destes jogos. É na perspectiva dos interesses específicos que envolvem os sujeitos em um campo que Bourdieu1212 Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1989. sustenta a noção de illusio, remetendo que os agentes não estão somente presentes em um jogo de forças, mas envolvidos por ele. Estes interesses, que compõem a illusio, também estão associados ao que Boudieu66 Bourdieu P. Sociologie générale II. Paris: Seuil; 2016. chama de habitus, um conceito que revela a existência de estruturas, tanto estruturadas quanto estruturantes, que conformam as maneiras que os agentes sociais pensam e agem no mundo.

Um exemplo desta dinâmica dialética do habitus está presente no próprio documento da política nacional, apontando que as motivações para a sua formulação também envolviam a presença de práticas terapêuticas não-convencionais já sendo realizadas nos territórios33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União; 2017., o que atribui as PICS presentes no SUS um sentido consuetudinário - que diz sobre um habitus social de múltiplas formas de cuidado em saúde localizado nos territórios. Assim, em seu primeiro momento, a PNPIC seria uma política pública que vem de baixo para cima - do coletivo para a máquina estatal. Contudo, o Estado opera também institucionalizando de cima para baixo - da máquina estatal para o coletivo. Pasche e Passos1313 Pasche D, Passos E. Inclusão como método de apoio para a produção de mudanças na saúde - aposta da Política de Humanização da Saúde. Saude Debate 2010; 34(86):423-432. discorrem que o Estado funciona como uma máquina centrípeta que se abre e se fecha para as forças instituintes a fim de capturá-las, uma vez que a institucionalização permite o controle de movimentos disruptivos que emanam dos coletivos.

No sentido de uma política pública composta também por forças que operam de baixo para cima, a legitimação cultural das PICS no SUS poderia ser lida, no sentido de Bourdieu1212 Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 1989., enquanto o acúmulo de um capital cultural que atribui um valor de cuidado em saúde distinto da Racionalidade Biomédica, tornando-se um sistema amplo de trocas entre diferentes agentes no campo e entre diferentes capitais, como o social, o cultural, o econômico e o simbólico. Para Lebaron1414 Lebaron F. Capital. In: Catani AM, Nogueira MA, Hey AP, Medeiros CCC. Vocabulário Bourdieu. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2017. p. 109-112. (p.103), os capitais se dão por “maneiras muito variadas e sempre dependentes dos contextos sociais que condicionam seu valor social. Diferentes tipos de capital tornam-se, por sua vez, um fator de lutas simbólicas”. O capital, assim, é compreendido por Bourdieu em relação à disposição de agentes e organizações no campo e que confere um determinado poder, influência e autonomia.

A legitimação cultural enquanto matriz de pensamento presente no campo torna possível entender a PNPIC como um transbordamento de uma produção desejante que já acontecia nos serviços públicos de saúde, no qual o real, de acordo com Deleuze e Guattari1515 Deleuze G, Guattari F. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, volume 1. Rio de Janeiro: Ed. 34; 1995., é composto por uma incessante produção de desejo que expande, se (re)faz e transborda na realidade. Neste caso, é entre o SUS real - na forma de múltiplas culturas de cuidado nos territórios; e o SUS jurídico-formal - na forma de seu regramento pelo Estado, que acontece a incessante produção de forças instituintes. A própria PNPIC33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria nº 849, de 27 de março de 2017. Inclui a Arteterapia, Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia, Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa e Yoga à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Diário Oficial da União; 2017. menciona que a institucionalização de terapêuticas não-convencionais no SUS visava a legitimar e incorporar práticas que já eram exercidas mesmo antes de sua promulgação, além de ampliar o acesso ao que anteriormente acontecia de forma mais frequente no setor privado da saúde. É possível inferir que tal produção desejante afirma exatamente a acumulação de uma legitimidade cultural até aqui.

Contudo, a ampliação da PNPIC também é vista com ressalvas. O processo de ampliação da PNPIC é percebido, pela Interlocutora 6, como desfavorável, pois “munem as críticas que algumas PICS sofrem, especialmente as vistas como mais polêmicas”. A Interlocutora sublinha que essa ampliação foi realizada com pouco diálogo em suas bases sociais, atores e organizações, o que gerou reações internas e externas ao MS, demonstrando uma nova correlação de forças por setores que estavam em disputa por legitimação e mercado de trabalho dentro e fora do SUS, o que será discutido a frente. Neste sentido, a Interlocutora 4 pondera a questão das críticas entorno do acúmulo de capital científico: “o Ministério da Saúde chancelou as 29, mas temos poucos estudos e poucos profissionais qualificados. Como que estão essas 29? Quais as evidências? Acho que muita coisa não deveria estar ali” (Interlocutora 4). Na mesma direção, outra participante também demonstra contrariedade com as mudanças ocorridas na PNPIC: “foi ‘esculhambada’ com a entrada de qualquer coisa. Desculpe, mas isso é verdade, porque quando você joga o conceito na terra, vira terra de ninguém” (Interlocutora 1).

Os relatos acima permitem compreender as ressalvas em relação à ampliação da PNPIC, passando pelas preocupações com a pesquisa e a formação dos profissionais, além da busca por evidências que justificassem sua presença no SUS. Aqui, nota-se mais precisamente que a ampliação da PNPIC vai sendo questionada a partir de motivações científicas. Neste sentido, a equipe do Ministério das Saúde tentou consolidar uma forma de ação lastreada por evidências científicas: “a Coordenação Nacional conseguiu o mapa de evidências com a OPAS que nos empodera muito” (Interlocutora 1).

O mapa das evidências é um analisador da luta por legitimação científica identificada no campo como matriz de pensamento. Foram realizados 14 mapas de evidências sobre 14 diferentes PICS, categorizados por natureza metodológica, país, população e efeitos, apontando o nível de confiança do estudo entre alto, moderado e baixo, sendo as pesquisas predominantemente empíricas quantitativas e/ou revisões de literatura de dados quantitativos. Os mapas se constituem, portanto, como uma forma de argumentar sobre as evidências científicas de algumas PICS que ainda sofrem resistências frente à racionalidade biomédica convencional.

Entretanto, adotar o pressuposto das evidências em PICS também é compreendido como uma situação conflituosa na perspectiva de outros sujeitos entrevistados, uma vez que se corre o risco de um retorno a um tema-chave clássico da ciência biomédica que molda saberes e conhecimentos entre o que é legítimo (verdadeiro) e o que é ilegítimo (falso). Estes pontos de vista não devem ser lidos, contudo, como os atuais discursos anticiência, mas como um debate epistemológico que propõe uma reflexão crítica às epistemes moderno-coloniais que, de acordo com Santos1616 Santos BS. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez; 2017., promovem o epistemicídio, apagamento e desperdício de diferentes formas de experiências, práticas, conhecimentos e existências que os sujeitos constroem ao redor do mundo.

De acordo com Camargo Jr.1717 Camargo Jr KR. A medicina ocidental contemporânea. In: Luz MT, Barros NF organizadores. Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: Estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/LAPPIS; 2012., o início do positivismo científico com Comte e posteriormente com Fichte e Mach inauguram discussões, entre os séculos XVIII e XIX, sobre a metodologia da ciência e formas de (re)produção de uma verdade universal. O século XX marca o apogeu da ciência como modo de produção da verdade com Karl Popper, que pretendia encontrar um crivo absoluto entre o que poderia ou não poderia ser científico, quando a ciência “assume cada vez mais o papel de tribunal da razão, uma espécie de ciências das ciências”1717 Camargo Jr KR. A medicina ocidental contemporânea. In: Luz MT, Barros NF organizadores. Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde: Estudos teóricos e empíricos. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/LAPPIS; 2012.(p.51). Tal modus operandi da ciência produziu efeitos nos mais diversos campos da vida, construindo regimes de verdade que operam legitimando ou deslegitimando as práticas.

Na perspectiva de Stengers1818 Stengers I. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Ed. 34; 2002., a discussão acerca das evidências científicas remonta à disputa por uma diferenciação entre uma medicina racional e o que seria charlatanismo. A ciência racional é tomada como fonte única de verdade fundamentada em seus próprios pressupostos e a dominância da racionalidade biomédica convencional no campo da saúde torna-se a única situada como capaz de possuir uma matriz científica, logo, verdadeira. O modelo biomédico, assim como em outras racionalidades médicas, possui uma cosmologia própria de compreensão sobre os processos de adoecimento e a visão do ser humano, criando critérios específicos de pesquisa que podem ser inviáveis de praticar em outras racionalidades. A problemática, para Nascimento et al.1919 Nascimento M, Barros N, Nogueira M, Luz M. A categoria racionalidade médica e uma nova epistemologia em saúde. Cien Saude Colet 2013; 18(12):3595-3604., estaria no momento em que certos pressupostos positivistas não são atendidos por uma racionalidade, o que pode levar uma a uma deslegitimação enquanto irracionalidade ou charlatanismo. De acordo com Stengers1818 Stengers I. A invenção das ciências modernas. São Paulo: Ed. 34; 2002., esse é um processo que diz sobre uma tipologia de fazer-ciência que cria moldes de produzir-evidências à sua própria racionalidade.

Portanto, a incorporação de novas terapêuticas na PNPIC também revela a busca por evidências de práticas que evitam cair na deslegitimação e descrédito, efeitos de um possível charlatanismo ao olhar da biomedicina. O ponto de inserção de novas práticas na PNPIC traz justamente a discussão sobre as fronteiras do que pode e do que não pode estar presente, do que possui evidências e do que não possui. Neste sentido, é possível pensar que o espaço das PICS no SUS também responde e (re)produz as correlações de forças da corrente científica de pensamento, (co)criando as bordas entre o que poderia estar circunscrito no SUS e o que não poderia. Resta compreender os contextos político-institucionais nos quais se situam as tomadas de posição dos agentes e organizações em volta da PNPIC. Este aprofundamento pode fornecer mais elementos para a reflexão sobre os meandros e disputas entre legitimação científica e legitimação cultural.

Espaços de lutas e disputas: cenários político-institucionais na ampliação da PNPIC e as transformações na Coordenação Nacional das PICS

As narrativas de interlocutores da pesquisa, expostas anteriormente, trazem à cena um contexto de diferentes interesses e lutas em torno da PNPIC que acontecem mesmo antes da ampliação da PNPIC. O último ato de expansão da PNPIC, realizado durante o CONGREPICS em 2018, se mostra como um analisador que condensa tais relações de força: “no primeiro CONGREPICS o Ministro da Saúde assinou as 10 PICS e eu vibrei junto. Mas aí tinha um local com vários profissionais oferecendo PICS, oferecendo de qualquer jeito, indicando aromaterapia numa conversa de dois minutos” (Interlocutora 4). O CONGREPICS segundo a Interlocutora 5, que também esteve no evento, foi “uma questão política. Não foi fruto do trabalho da RedePICS, um congresso que não estava previsto na agenda. Foi construído em seis meses, se deu por uma série de ações e conjunções políticas. O Ministro da Saúde colocou muito dinheiro no congresso, dinheiro que as PICS nunca tiveram. A Política não tinha a intenção de nomear [as novas práticas]”.

A fala da Interlocutora evidencia que o CONGREPICS não foi um evento articulado pela RedePICS - importante organização no campo para a mobilização das suas bases sociais. Segundo interlocutores da pesquisa, a partir de articulações que não se deram nem pela RedePICS, nem pela CNPICS, é possível avaliar que o CONGREPICS pode ter sido utilizado como dispositivo de legitimação e espetacularização de uma nova e maior PNPIC promovida pelos novos atores políticos à frente do Ministério da Saúde. Este acontecimento ultrapassa o preconizado pela PNPIC11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. 1ª ed. Brasília: MS; 2006. até então: o incentivo para que os estados e municípios criassem suas próprias políticas a partir do princípio da territorialização. Embora houvesse o endosso para a emergência de novas culturas de cuidado à saúde a partir do estímulo da política nacional, é possível identificar que a entrada de novos atores políticos no Ministério da Saúde produziu uma ampliação e revisão pouco dialogada da Política.

Em um primeiro momento a PNPIC11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. 1ª ed. Brasília: MS; 2006. era pensada como um dispositivo capaz de abrir espaço, a nível federal, para a produção de uma cultura das PICS no SUS, estimulando gestores a formular suas próprias políticas estaduais e municipais adequadas às especificidades de suas realidades territoriais, afirmando a diversidade cultural do país em termos de cuidados da saúde. Como exposto, no curso de sua história a PNPIC encontrou agentes sociais e organizações que afirmam projetos políticos distintos de acordo com certos interesses, desejos e necessidades. O munícipio de “Recife, por exemplo, tinha editado a sua política com muito mais práticas do que na política nacional. E essa é uma diretriz da PNPIC que aponta para a responsabilidade dos gestores, de que eles podem reconhecer práticas de importância local. Às vezes a prática não tem uma relevância nacional, mas tem para aquele território, então cabe ao território normatizar e monitorar” (Interlocutor 2).

Além disso, a intenção de motivar os estados e os municípios a reconhecerem práticas de relevância local dialoga com o princípio da descentralização do SUS. Na perspectiva bourdieusiana, é possível entender que as organizações do campo, com suas regras do jogo, estariam conformando um habitus específico, localizados em territórios específicos. Entretanto, a criação de políticas estaduais e municipais acabou acontecendo em poucos estados e municípios brasileiros. A Interlocutora 5 demonstra porque, em sua opinião, esse processo acabou acontecendo diferentemente do que se imaginava, pois os as bases sociais em torno das práticas: “querem o nome na portaria do ministério. Acho que isso tem muitos efeitos e te digo, tem uma busca dessas legitimações. Isso podia acontecer a nível estadual, municipal, mas no nível federal acho que não precisava”.

Um campo, para Bourdieu66 Bourdieu P. Sociologie générale II. Paris: Seuil; 2016., é exatamente um espaço de lutas que não é blindado às transformações. Novas correlações de força no microcosmo relacional do campo não raro geram perturbações no que já existia conformado entre a tessitura dos fios que engendram seus tecidos, uma espécie de estresse nas estruturas que realizam a sustentação do campo - fenômeno que Bourdieu66 Bourdieu P. Sociologie générale II. Paris: Seuil; 2016. chama de histerese. A condensação destas relações de forças que atravessam o campo podem ser melhor analisadas a partir da mudança no comando da Coordenação Nacional das PICS, momento que evidencia a acumulação das lutas e disputas travadas interna e externamente ao MS, que aconteceu em fevereiro de 2021.

No dia 1º de fevereiro de 2021, os coordenadores nacional e adjunto das PNPICS foram desligados de seus cargos. Ambos ocuparam a posição por 10 anos, dialogando com agentes, entidades e organizações, conforme comunicado via carta aberta da RedePICS2020 REDEPICS. Carta aberta em defesa das PICS no SUS [Internet]. Conselho Federal de Enfermagem; 2021 [acessado 2021 out 1]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2021/02/Carta-Aberta-RedePICS-Brasil-.pdf.
http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploa...
. Em um comunicado oficial, a RedePICS diz que os ex-coordenadores vinham trabalhando com “ética, competência técnica e valores coletivos, conquistando irrefutáveis avanços às PICS no Brasil e também no âmbito internacional. Uma atuação ética reconhecida pela RedePICS Brasil”2020 REDEPICS. Carta aberta em defesa das PICS no SUS [Internet]. Conselho Federal de Enfermagem; 2021 [acessado 2021 out 1]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2021/02/Carta-Aberta-RedePICS-Brasil-.pdf.
http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploa...
(p.1). Em 3 de fevereiro de 2021, a RedePICS Brasil publicou uma imagem em suas mídias sociais que diz: “A RedePICS está de luto! A coordenação da PNPIC foi vilmente usurpada!”, causando grande comoção e a produção de uma série de vídeo-manifestos de atores das PICS.

A RedePICS atua conectando usuários, movimentos sociais, estudantes, profissionais, pesquisadores e instituições entorno das PICS. É importante compreender como a RedePICS, assim como a CNPICS, vinha realizando a gestão da correlação de forças e dos tensionamentos com outros agentes sociais. Um exemplo dessa crise é descrito pela Interlocutora 5: “Eu acho que hoje a gente vive uma crise bem importante na RedePICS, provocada pelo deputado [x], que tem as PICS numa compreensão dele e não segue nenhum autor ao que parece. Ele também trata de outras práticas que não tem nada a ver com PICS” (Interlocutora 5).

O nome do deputado federal foi mantido em sigilo, uma vez que desde maio de 2021 sua assessoria não havia respondido às solicitações por uma entrevista - situação que se manteve até a finalização desta pesquisa. O próprio silêncio do deputado pode ser analisado em relação às novas forças em torno do campo, que se transformam em crise e reestruturação. A histerese em Bourdieu66 Bourdieu P. Sociologie générale II. Paris: Seuil; 2016. é como ocorre uma defasagem nos momentos de mudança no habitus de um campo, sendo ela “uma consequência necessária do habitus e do campo como inter-relacionados e interpenetrantes, de modo que uma mudança num deles exige uma mudança no outro”, conforme aponta Hardy2121 Hardy C. Histerese. In: Grenfell M, organizador. Pierre Bourdieu: Conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes; 2018.(p.169). A histerese pode ser compreendida, assim, como uma defasagem entre o habitus em alteração, que na política pública pode ocorrer como uma dificuldade em fazer a gestão de uma nova dinâmica de forças trazidas por novos atores políticos.

A Interlocutora 1 também menciona novos interesses sendo disputados por agentes sociais no campo pela atuação do deputado federal.: “A gente vê as barbaridades do deputado [x]. A grande problemática hoje está na pessoa dele. Se apropriaram da política de práticas indevidamente, na minha opinião” (Interlocutora 1).

A apropriação da PNPIC, mencionada pela Interlocutora 1, fala sobre agentes sociais em disputa de diferentes sentidos no campo e que forçaram a passagem para a inserção de práticas que até então estariam fora dos pressupostos da PNPIC. Conforme Gonçalves2222 Gonçalves LAP. Mais um ministério de farda: coronavírus e militarismo, a dupla carga epidêmica sobre a Saúde. Physis 2020; 30:(4):1-10., a cena se reflete na própria gestão pública federal desde os acontecimentos que propiciaram o impeachment da Presidenta Dilma e levaram à eleição do atual governo civil-militar que aparelha os Ministérios e, especificamente, o Ministério da Saúde. O contexto de anormalidade institucional no Brasil pode ser visto como uma condição de possibilidade para atuação de novos atores sociais na dimensão pública das políticas, como é o caso do deputado mencionado pelos sujeitos de pesquisa. Podemos inferir que a figura do deputado, a partir das entrevistas, parece ser a de uma posição tática ao redor do Ministério da Saúde para a entrada de terapêuticas na PNPIC utilizadas no setor privado da saúde: “Esse deputado que se aproximou aproveitou do apoio da CNPICS e na hora que os dois entraram em uma desavença em questão ao rumo da política, o deputado dá força para colocar [uma nova] coordenação” (Interlocutor 8).

Este ponto de vista demonstra que a CNPICS já vinha sofrendo pressões políticas que, antes da troca de comando, motivaram a própria ampliação rápida e pouco dialogada da PNPIC com as bases sociais. As águas turbulentas deste cenário desaguam na atual crise do campo. Para Bourdieu66 Bourdieu P. Sociologie générale II. Paris: Seuil; 2016., a crise é um momento no qual o habitus entra em conflito com novas forças e necessita formular respostas para responder às alterações no campo - que podem se dar de forma abrupta e, em muitas vezes, percebidas como catastróficas. Nesse interlúdio de mudança, é possível perceber que um habitus se transforma com desdobramentos imprevisíveis, pois ainda não é possível saber quais serão os interesses em disputa no campo. Para Hardy2121 Hardy C. Histerese. In: Grenfell M, organizador. Pierre Bourdieu: Conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes; 2018.(p.170) quando a mudança “é indeterminada desse modo, a histerese torna-se um termo técnico inestimável para destacar a perturbação entre o habitus e o campo e as consequências disso ao longo do tempo”.

O Interlocutor 2 complementa sobre interesses ligados ao reconhecimento de algumas práticas dentro da PNPIC: “Existe de tudo nesse universo, desde práticas reconhecidas e práticas que reconhecidamente não funcionam. E a política traz para dentro do serviço público uma normatização e um reconhecimento. Tem interesses diversos e a disputa parece ser do campo do reconhecimento” (Interlocutor 2). Uma pista, a partir da fala do interlocutor, é a possibilidade da existência de agentes e organizações interessados nos possíveis efeitos a médio e longo prazo do reconhecimento das práticas na Política, como um crescimento da demanda por estas terapêuticas em serviços de saúde privados em razão do reconhecimento conferido na dimensão pública.

Portanto, neste sentido, coaduna-se com a Interlocutora 4: “ainda falta muito para termos elas organicamente institucionalizadas no SUS. Ainda não tem reconhecimento de fato, é algo meio alternativo”. Tal afirmação pode demonstrar que a listagem e institucionalização das práticas na PICPIC não significa, a priori, reconhecimento ou legitimação - nem científica, nem cultural.

Considerações finais

O campo das PICS, em sua dimensão pública reunida no SUS em torno da PNPIC, sofreu transformações importantes em seus quinze anos de existência. Entre consensos e contrassensos, afastamentos e aproximações entre diferentes compreensões sobre a ampliação da PNPIC e a recente troca de comando na Coordenação Nacional das PICS, é possível perceber que desde sua criação, a PNPIC é um espaço condensador de correlações de forças no campo da saúde.

Parece improvável poder afirmar um momento exato em que a ampliação da política começou a ser discutida, mas é visível que sua expansão produziu tensionamentos entre atores sociais do campo. Além disso, também estaria em jogo distintas concepções de PICS na qual derivam de duas matrizes de pensamento: (a) uma vinculada à legitimação científica das evidências, que conferiria para o campo um capital científico; e (b) outra vinculada à legitimação cultural que ocorre na dinâmica de interação e coprodução de saúde entre serviços-territórios e equipes-usuários, que conferiria para o campo um capital cultural. Importante destacar a necessidade de contemplação integral do ethos-cultural de cada território, criando dispositivos capazes de reconhecer e valorizar, por exemplo, epistemologias e práticas de cuidado próprias das populações indígenas e afro-brasileiras que estão foras da PNPIC, sem que isso signifique expô-las às possíveis violências originadas por um controle e regulação do Estado.

As transformações na Coordenação Nacional da Política de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde pode ser compreendida enquanto um efeito de sua própria ampliação e abertura da PNPIC a partir de 2018 que já marcava o começo do atual momento de histerese pelo qual o campo atravessa e precisará se reestruturar. A partir das compreensões dos sujeitos de pesquisa, o momento parece ser de reorganização de um campo que experienciou uma crise coincidente com o estado de anormalidade político-institucional no Brasil e, especificamente, no Ministério da Saúde.

Uma pista para essa reestruturação pode estar em um retorno à declaração de Alma-Ata2323 Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre cuidados primários de saúde. USSR; 1978 set 6-12., que coloca a necessidade de integração entre cultura e ciência, pois os cuidados primários de saúde precisam tanto da fundamentação científica quanto da aceitação cultural da sociedade na produção de uma determinada cultura sanitária - e, neste sentido, a cultura sanitária hegemônica é fortemente marcada pelo modelo médico-assistencial hospitalocêntrico em sua tríade de signos entre hospital, medicação e medicina. No âmbito da PNPIC, a intersecção entre uma matriz de legitimação científica e a de legitimação cultural pode estar na luta por uma virada paradigmática na cultura de cuidado e atenção à saúde no SUS, lugar no qual as PICS no SUS, nesta análise, podem possuir a potência de ser uma incubadora deste projeto.

Por fim, sublinha-se a necessidade de mais pesquisas que investiguem a dimensão privada do campo das PICS no Brasil, refletindo as possíveis correlações de forças que o setor privado da saúde exerce sobre dimensão pública deste campo. Investigações críticas neste âmbito ainda são incipientes, porém necessárias para explicar mais sobre fenômenos que se tornaram visíveis nas transformações da PNPIC.

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  • Financiamento

    Artigo fruto da pesquisa de dissertação de IM Oliveira no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Mestrado com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Dez 2021
  • Aceito
    26 Maio 2022
  • Publicado
    28 Maio 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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