Percepções de estudantes de Medicina sobre o estresse acadêmico e a mentoria no seu enfrentamento: um estudo qualitativo

Medical students’ perceptions of academic stress and mentoring for coping: a qualitative study

Percepciones de estudiantes de medicina sobre el estrés académico y la tutoría en su enfrentamiento: un estudio cualitativo

Izabel Cristina Rios Renata Silva Santos Pedro Felix Vital JuniorSobre os autores

Resumos

A formação médica é considerada estressante devido a fatores como: extensa carga horária, atividades práticas complexas, muito conteúdo e alta exigência de dedicação. Programas de mentoria podem amenizar esse estresse acadêmico. Com o objetivo de investigar a percepção dos estudantes de um programa de mentoria sobre o estresse da formação médica e a mentoria como recurso de enfrentamento, desenhou-se um estudo do tipo transversal com metodologia qualitativa. Selecionaram-se 12 alunos e realizaram-se sessões de grupo focal. Os dados produzidos foram submetidos à análise temática, resultando em duas categorias de estressores – 1. ser estudante e 2. ambiente acadêmico – e em duas categorias de elementos protetores – 1. autocuidado e 2. mentoria. A mentoria foi considerada recurso de enfrentamento por ser um espaço de reflexão e desenvolvimento de habilidades e comportamentos que aumentam competências relacionais, além de propiciar acolhimento, alívio psicológico, pertencimento e efeito tranquilizador.

Estresse psicológico; Mentoria na Medicina; Pesquisa qualitativa


Medical training is considered stressful due to factors such as heavy course load, complex practical activities, the large volume of content and high expectations in terms of dedication. Mentoring programs can alleviate academic stress. The aim of this qualitative cross-sectional study was to investigate medical students’ perceptions of a mentoring program designed to reduce stress and mentoring as a tool for coping. We selected 12 students and held focus group sessions. We performed a thematic analysis, which resulted in the identification of two categories of stressors and protectors: being a student and the academic environment and self-care and mentoring, respectively. Mentoring was considered a coping resource because it provided a space for reflection and helped students develop skills and behavior that enhance relational skills, in addition to providing a welcoming environment, psychological relief, a feeling of belonging and a tranquilizing effect.

Psychological stress; Mentoring in medicine; Qualitative research


La formación médica se considera estresante debido a factores tales como: extensa carga horaria, actividades prácticas complejas, mucho contenido, alta exigencia de dedicación. Programas de tutoría pueden amenizar ese estrés académico. Con el objetivo de investigar la percepción de los estudiantes de un programa de tutoría sobre el estrés de la formación médica y la tutoría como recursos de enfrentamiento, se diseñó un estudio del tipo transversal con metodología cualitativa. Se seleccionaron 12 alumnos y se realizaron sesiones de grupo focal. Los datos producidos se sometieron a análisis temático, resultando en dos categorías de factores de estrés: 1. ser estudiante, y 2. ambiente académico; y dos categorías de elementos protectores: 1. autocuidado, y 2. tutoría. La tutoría se consideró recurso de enfrentamiento por ser espacio de reflexión y desarrollo de habilidades y comportamientos que aumentan competencias relacionales además de propiciar amparo, alivio psicológico, pertenencia y efecto tranquilizador.

Estrés psicológico; Tutoría en la medicina; Investigación cualitativa


Introdução

A profissão médica é historicamente11. Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Editora Hucitec; 2008. marcada por representações socioculturais de forte apelo psicológico que se inicia desde o momento em que o jovem escolhe estudar Medicina e se estende por sua vida profissional. Entre as muitas paisagens psicológicas, a intensidade emocional na vida acadêmica é constantemente percebida como estressante e referida à vivência de pressões, cobranças e comparações de desempenho por parte da família, colegas, professores e principalmente por parte do próprio estudante de Medicina. O curso de Medicina seria então marcado pela experiência de estresse psicológico.

Estresse psicológico é o estado de tensão subjetivamente percebido pelo indivíduo frente a eventos de vida considerados estressores22. Chrousos GP, Gold PW. The concepts of stress and stress system disorders: overview of physical and behavioral homeostasis. JAMA. 1992; 267(9):1244-52.. Por essa concepção, os estressores são subjetivamente vivenciados como ameaça33. Margis R, Picon P, Cosner AF, Silveira RO. Relação entre estressores, estresse e ansiedade. Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2003; 25 Suppl 1:65-74. doi: 10.1590/S0101-81082003000400008.
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, constituindo-se de elementos cotidianos que colocam desafios ou barreiras ao indivíduo no exercício de suas atividades.

Várias situações acadêmicas são comumente identificadas na vida do estudante de Medicina como mais ou menos ameaçadoras a depender da sua percepção e do seu modo de lidar com elas. Dentre elas, destacam-se o excesso de carga horária em sala de aula e laboratórios, as atividades práticas em serviços de saúde, a grande quantidade de conteúdo para aprender em pouco tempo, a intensa exigência de dedicação e disciplina de estudo (inclusive fora dos períodos de atividade curricular)44. Moreira SNT, Vasconcellos RLSS, Heath N. Estresse na formação médica: como lidar com essa realidade? Rev Bras Educ Med. 2015; 39(4):558-64. doi: 10.1590/1981-52712015v39n4e03072014.
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. A falta de habilidade para administrar o tempo para os estudos e o tempo para estar com a família e amigos; os comportamentos competitivos; os sentimentos de insuficiência; e dúvidas sobre capacidades intelectuais e emocionais para ser médico também constituem vivências subjetivas que contribuem para a experiência de estresse percebido por alunos de Medicina44. Moreira SNT, Vasconcellos RLSS, Heath N. Estresse na formação médica: como lidar com essa realidade? Rev Bras Educ Med. 2015; 39(4):558-64. doi: 10.1590/1981-52712015v39n4e03072014.
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,55. Dahlin M, Joneborg N, Runeson B. Stress and depression among medical students: a cross-sectional study. Med Educ. 2005; 39(6):594-604. doi: 10.1111/j.1365-2929.2005.02176.x.
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. No Brasil, em 2017, um estudo de revisão sistemática e meta-análise mostrou que cerca de 49,9% dos estudantes de Medicina referiam estresse psicológico66. Pacheco JP, Giacomin HT, Tam WW, Ribeiro TB, Arab C, Bezerra IM, et al. Mental health problems among medical students in Brazil: a systematic review and meta-analysis. Braz J Psychiatry. 2017; 39(4):369-78. doi: 10.1590/1516-4446-2017-2223.
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.

A literatura tem sustentado que o enfrentamento bem-sucedido de situações acadêmicas estressantes promove aprendizados sobre como lidar com situações que demandam esforço e resiliência, resultando em comportamentos que preparam o estudante para a vida profissional. Entretanto, no sentido contrário, a percepção de constante discrepância entre as exigências determinadas pelos estressores cotidianos e os recursos pessoais e institucionais para responder a elas de modo satisfatório conduzem os estudantes a uma experiência de estresse que prejudica o desempenho acadêmico e os relacionamentos pessoais; e e favorece o surgimento de distúrbios psicológicos como ansiedade, depressão e o abuso de substâncias químicas, principalmente álcool44. Moreira SNT, Vasconcellos RLSS, Heath N. Estresse na formação médica: como lidar com essa realidade? Rev Bras Educ Med. 2015; 39(4):558-64. doi: 10.1590/1981-52712015v39n4e03072014.
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5. Dahlin M, Joneborg N, Runeson B. Stress and depression among medical students: a cross-sectional study. Med Educ. 2005; 39(6):594-604. doi: 10.1111/j.1365-2929.2005.02176.x.
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6. Pacheco JP, Giacomin HT, Tam WW, Ribeiro TB, Arab C, Bezerra IM, et al. Mental health problems among medical students in Brazil: a systematic review and meta-analysis. Braz J Psychiatry. 2017; 39(4):369-78. doi: 10.1590/1516-4446-2017-2223.
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-77. Souza L. Prevalência de sintomas depressivos, ansiosos e estresse em acadêmicos de medicina [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2011..

Para além do sujeito, um desses estudos mostrou que fatores ambientais da escola médica participavam de forma determinante sobre a vivência de estresse77. Souza L. Prevalência de sintomas depressivos, ansiosos e estresse em acadêmicos de medicina [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2011.. Dentre os fatores que aumentariam o estresse, destacavam-se as relações professor-aluno distantes e pouco pessoalizadas, o incentivo à competição entre os estudantes e a busca excessiva por realizar o ideal narcísico de ser sempre “o melhor” entre muitos. Já os ambientes menos estressantes seriam aqueles em que predominariam relações professor-aluno mais próximas e dialógicas e que incentivariam valores e comportamentos mais colaborativos entre as pessoas. Por esse caminho, as escolas médicas poderiam amenizar a vivência de estresse dos estudantes, melhorando o ambiente relacional de estudantes e professores.

Dentre as estratégias de promoção de ambientes acadêmicos mais acolhedores, destacam-se os programas de mentoria que, já há algum tempo, acumulam resultados nas escolas médicas88. Skjevik EP, Boudreau JD, Ringberg U, Schei E, Stenfors T, Kvernenes M, et al. Group mentorship for undergraduate medical students - a systematic review. Perspect Med Educ. 2020; 9(5):272-80. doi: 10.1007/s40037-020-00610-3.
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,99. Bellodi PL, Martins MA. Tutoria: mentoring na formação médica. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005.. Na perspectiva do presente estudo, entende-se por mentoria a relação intersubjetiva de uma pessoa que está iniciando uma formação com outra que nela já é experiente; entre as duas, é estabelecida uma relação de ajuda baseada no acolhimento, na orientação e no fortalecimento do desenvolvimento profissional e pessoal1010. Bellodi PL, Martins MA. Mentoria na formação médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2023.. O mentor – embora geralmente um médico e professor – não desempenha um papel de instrutor ou de avaliador, mas sim de alguém que, a partir das experiências de vida compartilhadas (suas e do outro), estimula a reflexão e o autoconhecimento por meio do exercício de pensar junto criticamente1010. Bellodi PL, Martins MA. Mentoria na formação médica. 2a ed. Barueri: Manole; 2023.,1111. Franzoi MAH, Martins G. Experiência de mentoring entre estudantes de graduação em enfermagem – reflexões e ressonâncias dialógicas. Interface (Botucatu). 2020; 24:e190772. doi: 10.1590/Interface.190772.
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.

Nos programa de mentoria, um mentor realiza encontros periódicos e regulares com um grupo de alunos para conversar sobre temas cotidianos da vida do estudante de Medicina, criando um espaço em que os estudantes podem expressar ideias, opiniões, afetos e sentimentos, inclusive negativos. O aluno consegue refletir sobre si mesmo e suas atitudes em um processo de autoconhecimento que o beneficia em diversos aspectos formativos e na tomada de decisões mais conscientes. Assim, o aprendizado torna-se mais prazeroso e consistente, uma vez que o processo é compartilhado e debatido no grupo de mentoria em meio à troca de experiências entre mentor e alunos.

A pergunta da pesquisa que deu origem ao estudo-base deste artigo construiu-se sobre a hipótese de que a mentoria, pelas características supracitadas, poderia ser considerada uma estratégia institucional de enfrentamento do estresse inerente à formação médica. Na literatura, há estudos que apontam nesse sentido1212. Al-Dubai SAR, Al-Shagga MA, Manaf MRA. Mentoring and perceived stress level among private medical students: a Malaysian perspective. Procedia Soc Behav Sci. 2013; 93(3):276-80. doi: 10.1016/j.sbspro.2013.09.189.
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,1313. Jordan J, Watcha D, Cassella C, Kaji AH, Trivedi S. Impact of a mentorship program on medical student burnout. AEM Educ Train. 2019; 3(3):218-25. doi: 10.1002/aet2.10354.
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, contudo, estes ainda são relativamente poucos no nosso meio, sobretudo com vistas a explorar a perspectiva do estudante de Medicina sobre efeitos da mentoria sobre o estresse.

Neste estudo, investigaram-se as impressões de estudantes – ingressantes e com mais tempo de experiência de curso médico – que participaram do programa de mentoria de uma faculdade de Medicina sobre o estresse inerente à formação médica e a mentoria como recurso de enfrentamento desse fenômeno, buscando-se aprofundar a compreensão do ponto de vista dos estudantes sobre elementos estressores e protetivos vivenciados.

Metodologia

A pesquisa foi realizada em uma faculdade de Medicina de natureza privada vinculada a um grande hospital filantrópico na cidade de São Paulo. Essa faculdade desenvolve uma formação fortemente humanística dentro de um modelo de ensino que associa recursos tradicionais de educação médica à Metodologia da Problematização.

Desenhou-se um estudo do tipo transversal com abordagem metodológica qualitativa1414. Patton MQ. Qualitative research & evaluation methods: integrating theory and practice. London: Sage Publications; 2014.,1515. Denzin N, Lincoln Y. Hand book of qualitative research. London: Sage Publications; 1994.. A escolha por esse tipo de pesquisa se deu em razão do objetivo de investigar aspectos subjetivos mais diversos e singulares sobre um fenômeno acadêmico cuja magnitude foi bem descrita em estudos quantitativos anteriores1212. Al-Dubai SAR, Al-Shagga MA, Manaf MRA. Mentoring and perceived stress level among private medical students: a Malaysian perspective. Procedia Soc Behav Sci. 2013; 93(3):276-80. doi: 10.1016/j.sbspro.2013.09.189.
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,1313. Jordan J, Watcha D, Cassella C, Kaji AH, Trivedi S. Impact of a mentorship program on medical student burnout. AEM Educ Train. 2019; 3(3):218-25. doi: 10.1002/aet2.10354.
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. A metodologia qualitativa oferece recursos técnicos de investigação de aspectos não quantificáveis da realidade, tais como significados, percepções, valores e interpretações subjetivas. Assim, para aprofundar o estudo dos fenômenos aqui em exame segundo as perspectivas dos estudantes, a metodologia de pesquisa qualitativa mostrou-se bastante adequada.

Todos os sujeitos da pesquisa foram alunos com experiência de mentoria, dispostos em dois grupos: 1. alunos que haviam cursado o primeiro período da faculdade no semestre anterior à pesquisa (neste estudo chamados de “alunos ingressantes” porque tiveram experiência de mentoria no semestre em que ingressaram ao curso médico); e 2. alunos do terceiro ao décimo segundo período que participaram da mentoria por pelo menos um ano (chamados de “alunos veteranos”).

Uma amostra de conveniência de 12 alunos – escolhidos entre o número total de 184 alunos inscritos e frequentes aos encontros de mentoria – foi definida segundo critérios de seleção intencional de sujeitos da pesquisa qualitativa identificados como bons “informantes-chave”1515. Denzin N, Lincoln Y. Hand book of qualitative research. London: Sage Publications; 1994., ou seja, estudantes que se comunicavam bem, eram conhecedores da realidade compartilhada entre seus pares e estavam dispostos a desenvolver reflexões sobre o objeto de estudo junto com os pesquisadores. A pesquisadora de campo foi uma aluna do internato dessa escola, treinada e diretamente supervisionada por uma professora com formação e experiência em pesquisa qualitativa, ambas presentes entre os autores deste artigo.

Definiu-se como técnica de produção de dados o grupo focal em modo remoto síncrono. A escolha dessa técnica justificou-se pela facilidade operacional do uso de meio digital de comunicação a distância e pelo interesse em se obter dados empíricos oriundos de um exercício reflexivo dos estudantes, aproximando ou confrontando ideias e observando a construção de consensos ou dissensos nas suas interpretações1414. Patton MQ. Qualitative research & evaluation methods: integrating theory and practice. London: Sage Publications; 2014..

Utilizou-se um roteiro de perguntas abertas para uma condução flexível e a produção de falas livres e pessoais, além de debates de opiniões entre os participantes dos grupos. As perguntas orientadoras foram: 1. Fale um pouco sobre seu cotidiano na faculdade de Medicina; 2. A faculdade é estressante?; 3. Como você lida com o estresse?; e 4. A mentoria ajuda a lidar com o estresse?

Cada encontro foi gravado e posteriormente as gravações foram transcritas e conferidas quanto à confiabilidade pela pesquisadora de campo. Os dados assim obtidos foram analisados por meio de técnica de análise do tipo temática1616. Souza LK. Pesquisa com análise qualitativa de dados: conhecendo a análise temática. Arq Bras Psicol. 2019; 71(2):51-67. doi: 10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i2p.51-67.
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. Inicialmente, foram realizadas leituras exaustivas do material empírico seguidas de blocagem de conteúdos semânticos relacionados entre si. Na etapa seguinte, elaboraram-se os temas que deram substrato para a modelagem das categorias analíticas do estudo. Os critérios adotados na identificação de temas foram a densidade, a constância, a singularidade e a profundidade, de maneira a se constituírem camadas de significados, dos mais superficiais aos mais profundos.

Para prover confiabilidade ao estudo, as análises foram realizadas separadamente pelos pesquisadores e posteriormente discutidas em sessões de debriefing.

O projeto da pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética, sendo aprovado sob número CAEE 39543120.6.0000.8125. Obteve-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido devidamente assinado por todos os sujeitos da pesquisa.

Resultados

A produção de dados se deu no primeiro semestre de 2021, em duas sessões de grupo focal – uma para cada grupo de alunos – com duração de aproximadamente uma hora cada, via plataforma de videoconferência. O tempo de cada encontro considerou a emergência de problematização e de saturação de conteúdos narrativos pelo grupo.

Os alunos participantes foram predominantemente do sexo feminino, com idades entre vinte e 25 anos e procedentes da região sudeste do país. Alguns alunos eram financiados por suas famílias e outros, por programas governamentais estudantis como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (Prouni).

Durante as sessões de grupo focal, investigaram-se as percepções e reflexões dos alunos dos dois grupos quanto ao estresse atribuído a fatores cotidianos da vida de estudante de Medicina e aos efeitos da participação em grupos de mentoria no seu enfrentamento.

Em uma camada mais superficial, identificou-se que, de um modo geral, os alunos percebiam a formação médica como altamente estressante. Observou-se que, entre os alunos com mais tempo de curso médico, a realização de atividades práticas, os relacionamentos interpessoais no ambiente acadêmico e as preocupações com a formação profissional foram percebidos como os elementos estressores mais comuns do cotidiano da faculdade. Já entre os alunos do primeiro período, embora as preocupações com a formação profissional também estivessem presentes, o aprendizado em sala de aula, as avaliações teóricas e o gerenciamento do tempo seriam estressores mais impactantes nesse começo de formação médica.

Da exploração de camadas mais profundas, elaboraram-se as quatro categorias analíticas do estudo – duas de aglutinação de elementos considerados estressores e duas de aglutinação de elementos tidos como protetores do desconforto na vida acadêmica (quadro 1).

Quadro 1
Categorias analíticas e elementos estressores ou protetores na vida acadêmica segundo alunos de Medicina de um programa de mentoria

Análise interpretativa e discussão

Na análise interpretativa, utilizou-se como fio condutor as categorias analíticas qualitativas descritas na seção anterior.

Ser estudante de Medicina é estressante

A Medicina é uma profissão antiga cuja tradição, entre outros aspectos, assenta-se na longa e exigente formação, sem a qual não se adquire as competências técnica e ética imprescindíveis para o seu exercício pleno e responsável11. Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. São Paulo: Editora Hucitec; 2008.. O peso da responsabilidade social do médico se faz presente desde o início da formação, percebida pelos estudantes como desafio ou como ameaça. As atividades práticas – em particular, aquelas com pacientes e que de certa forma simulam as responsabilidades futuras – são as que mais exigem recursos emocionais dos alunos, figurando como estressores cotidianos de alto impacto na percepção deles1717. Sarikaya O, Civaner M, Kalaca S. The anxieties of medical students related to clinical training. Int J Clin Pract. 2006; 60(11):1414-8. doi: 10.1111/j.1742-1241.2006.00869.x.
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.

Neste estudo, alunos mais velhos e mais novos relataram a percepção de estresse devido à preocupação com a formação profissional.

Antes mesmo do contato com pacientes, o medo de cometer erros durante a assistência e em determinados procedimentos apareceu como um aspecto importante na perspectiva dos alunos ingressantes:

Acho que se eu não souber qualquer coisa mínima vou matar algum paciente. (Grupo de ingressantes)

Entretanto, esse elemento apareceu mais intensamente entre os alunos veteranos. Entre os alunos ingressantes, observou-se menos ênfase nesse estressor possivelmente porque recém-chegados ainda não teriam elementos para avaliar as limitações do aprendizado escolar frente às necessidades de conhecimento e de experiência para o exercício profissional. Achado de outro estudo mostrou que o tempo de faculdade aumenta o estresse, principalmente a partir dos segundo e terceiro anos, quando o estudante passaria a ver a carreira médica de forma mais realista frente ao aumento de suas responsabilidades no cuidado aos pacientes1818. Dini PS, Batista NA. Graduação e prática médica: expectativas e concepções de estudantes de medicina do 1° ao 6° ano. Rev Bras Educ Med. 2004; 28(3):198-203. doi: 10.1590/1981-5271v28.3-026.
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.

Um posicionamento que chamou a atenção dos pesquisadores apareceu no seguinte trecho da sessão:

É estressante [ser estudante de Medicina] principalmente na questão de que, se errar, seu paciente pode morrer e isso causa uma cobrança enorme e desgastante. Às vezes acho que alguns professores colocam um pânico desnecessário, principalmente no primeiro período. (Grupo de veteranos)

O aluno do grupo de veteranos não atribuiu o estresse a um esperado – e normal – medo de errar por sua falta de conhecimento, mas sim à cobrança que viria de fora, dos professores, sobre a gravidade de se cometer erros médicos. Porém, como se pode ver no trecho anterior a esse, em um posicionamento subjetivo contrastante, o aluno do grupo de ingressantes imprimiu a si mesmo a cobrança de conhecimentos para não cometer erros e causar a morte dos pacientes.

O início da prática médica é um marco da formação da identidade médica e momento de alto nível de estresse devido às novas situações enfrentadas e às responsabilidades correlatas. Segundo a literatura, o medo de cometer erros durante a assistência é a preocupação mais prevalente, seguido por problemas de comunicação, comunicação de más notícias e realização de alguns procedimentos invasivos como suturas, punções e infiltrações1717. Sarikaya O, Civaner M, Kalaca S. The anxieties of medical students related to clinical training. Int J Clin Pract. 2006; 60(11):1414-8. doi: 10.1111/j.1742-1241.2006.00869.x.
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,1818. Dini PS, Batista NA. Graduação e prática médica: expectativas e concepções de estudantes de medicina do 1° ao 6° ano. Rev Bras Educ Med. 2004; 28(3):198-203. doi: 10.1590/1981-5271v28.3-026.
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.

Nesse sentido, o posicionamento do aluno do grupo de veteranos talvez expresse o fato de que alguns alunos, quando não conseguem lidar com as suas insuficiências, acabam por, defensivamente, tentar minimizar o problema.

A preocupação com a formação também se apresentou em relação ao conteúdo teórico e às avaliações. O curso médico tem carga horária extensa, abordando grande quantidade de assuntos complexos e de difícil aprendizado avaliados, na maioria das vezes, de modo somativo, por meio de provas teóricas. O volume de conteúdo e as provas teóricas são importantes estressores no curso de Medicina33. Margis R, Picon P, Cosner AF, Silveira RO. Relação entre estressores, estresse e ansiedade. Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2003; 25 Suppl 1:65-74. doi: 10.1590/S0101-81082003000400008.
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. Neste estudo, entre os veteranos, a ênfase recaiu, porém, sobre o desconforto da pressão e cobrança por boas notas:

Ser estudante de Medicina é muito estressante pelo exagero que colocam em tudo. O curso tem bastante coisa, mas já vi, várias vezes, colegas passando mal antes de prova por pressão excessiva. (Grupo de veteranos)

Há também cobranças que partiriam de amigos, familiares e até mesmo do próprio aluno, em um ambiente de pares competitivos:

É estressante principalmente pela cobrança externa de familiares e conhecidos, além da competição entre colegas. (Grupo de veteranos)

Entre os alunos ingressantes, a pressão apareceu também é referida à preocupação em conseguir aprender:

O volume de assuntos me deixa ainda mais ansiosa sobre o resultado da prova e se realmente aprendi alguma coisa. (Grupo de ingressantes)

Os estudantes do grupo de ingressantes deram mais ênfase à dificuldade de gerenciamento do tempo como estressor do que os estudantes do grupo de veteranos. Estudos corroboram esse achado, apontando que os alunos dos primeiros períodos teriam dificuldades de organizar seus horários diante de muito conteúdo novo e estranho ao que estavam acostumados a ver no ensino médio1919. Stewart SM, Betson C, Lam TH, Marshall IB, Lee PW, Wong CM. Predicting stress in first year medical students: a longitudinal study. Med Educ. 1997; 31(3):163-8. doi: 10.1111/j.1365-2923.1997.tb02560.x.
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.

Os estudantes do primeiro período trouxeram como importante elemento de preocupação a obrigação de obter bom desempenho para justificar os gastos dos pais com seus estudos. Além do fato de que a formação médica é custosa, esta pesquisa se deu durante a pandemia de SARS CoV-2, que, além dos danos sanitários, também impactou na situação econômica das famílias.

É bastante estressante [ser estudante de Medicina], mais pelo fato de pensar que tenho que dar um bom resultado e me formar logo porque meus pais estão pagando. (Grupo de ingressantes)

Ser estudante de Medicina é estressante, mas no momento não é nem pela faculdade. [...] meu estresse se dá mais pelo fato de me cobrar pelo gasto que dou aos meus pais. (Grupo de ingressantes)

Ambiente acadêmico como estressor

Neste estudo, categorizamos como ambiente acadêmico o conjunto de vivências tidas como estressantes cuja ênfase recaiu sobre o cotidiano das relações interpessoais dos estudantes nos cenários de ensino médico. Sobre esse tema, entre os alunos veteranos observou-se maior ênfase do que entre os alunos ingressantes.

Sabe-se que os contatos mais frequentes do estudante de Medicina são com seus pares. Ao encontro da literatura2020. Rios IC, Schraiber LB. Humanização e humanidades em medicina. Botucatu: Editora Unesp; 2012., que aponta a estrutura hierárquica e o autoritarismo como elementos corrosivos das relações estudantis, comportamentos hostis entre estudantes foram apontados como estressores:

Para mim, o pior é a síndrome do pequeno poder, porque só por estar alguns semestres acima o aluno acha que pode ditar ou não o que eu posso fazer. Já cheguei a evitar lugares por não me sentir bem com a presença de determinadas pessoas. (Grupo de veteranos)

No tocante à relação professor-aluno, que é um importante elemento formador99. Bellodi PL, Martins MA. Tutoria: mentoring na formação médica. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005., neste estudo, os alunos referiram a proximidade ou o distanciamento comunicacional como comportamentos implicados no seu aprendizado:

A forma que a pessoa [professor] fala e se está aberta ou não para conversar muda a interação e torna a aprendizagem proveitosa ou não. (Grupo de veteranos)

A comunicação, não só entre professores e alunos, mas também entre professores, teria efeitos sobre o cotidiano escolar. Alunos relataram que a falta de comunicação entre professores acabaria acarretando-lhes estresse porque causaria desorientação sobre obrigações e insegurança sobre conteúdos disciplinares:

Falha de comunicação me deixa estressada demais [...], sendo que muitas vezes professores de uma mesma matéria não se conversam e isso afeta nosso aprendizado. (Grupo de ingressantes)

A cultura de competição seria outro elemento contribuinte do estresse por manter o aluno em estado de tensão constante, inclusive em momentos que seriam para o seu relaxamento:

A gente vem de anos de competição durante o cursinho e isso se prolonga durante a faculdade. Sempre vem na cabeça o pensamento de que enquanto descansamos ou dormimos tem alguém estudando. (Grupo de veteranos)

Entre alunos beneficiados por programas sociais, as diferenças socioeconômicas seriam mais um fator estressante do ambiente acadêmico:

Tenho financiamento estudantil e o meio social da Medicina é muito diferente, é um tanto difícil lidar com esse choque de realidade. (Grupo de veteranos)

Segundo um estudo, algumas das dificuldades que alunos bolsistas de baixa renda encontram para se integrar ao restante do corpo discente no ensino superior seriam referidas justamente à condição socioeconômica2121. Fontele TLL, Crisóstomo VL. PROUNI - pontos controversos sob a análise de alunos bolsistas. Avaliação (Campinas). 2016; 21(3):739-66. doi: 10.1590/S1414-40772016000300005.
https://doi.org/10.1590/S1414-4077201600...
. A falta de recursos financeiros prejudicaria a participação do aluno bolsista em atividades estudantis extracurriculares e incidiria sobre sua autoestima quando ele compara suas condições de vida familiar com a de colegas de outras classes sociais.

Enfrentamento do estresse acadêmico

Neste estudo, alunos ingressantes e veteranos relacionaram os estressores cotidianos a diferentes impactos na trajetória acadêmica a depender do modo como os enfrentariam. Ao encontro de outro estudo2121. Fontele TLL, Crisóstomo VL. PROUNI - pontos controversos sob a análise de alunos bolsistas. Avaliação (Campinas). 2016; 21(3):739-66. doi: 10.1590/S1414-40772016000300005.
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, observou-se que, na perspectiva dos estudantes, fatores individuais modulariam respostas pessoais ao estresse acadêmico. Estudantes emocionalmente mais fortalecidos e maduros reagiriam melhor ao estresse do que estudantes inseguros e psicologicamente mais vulneráveis. Estudantes que lidam melhor com o estresse acabariam aproveitando mais o curso médico e as oportunidades de experiências formadoras concomitantes.

Estudantes mais velhos, que já tinham vivenciado o ambiente acadêmico ou o de trabalho, percebiam os estressores cotidianos da formação médica como menos prejudiciais ao seu bem-estar do que os alunos inexperientes. As experiências pregressas foram apontadas como facilitadoras de bons relacionamentos com colegas e pacientes, assim como da organização dos estudos e da definição de prioridades:

Entrei mais velha na faculdade, então já tenho mais maturidade para lidar com situações mais difíceis, então dificilmente fico estressada diretamente com a faculdade. (Grupo de veteranos)

A convivência com a família e amigos foi referida como forma de lidar com o estresse:

Conversar diariamente com certas pessoas me coloca no eixo, assim como passar um tempo com a minha família. (Grupo de ingressantes)

Bons relacionamentos com colegas da faculdade também ajudariam nesse enfrentamento, mesmo que em modo remoto, como ocorreu com alunos que ingressaram no curso durante a pandemia:

Me ajuda muito compartilhar os problemas com amigos feitos na turma, mesmo sem nem os ter conhecido pessoalmente. (Grupo de ingressantes)

Entretanto, o convívio social e o tempo com a família ficariam ameaçados pela grande carga horária, atividades extracurriculares e provas, uma vez os estudantes acabariam priorizando as demandas acadêmicas. Contrariamente ao que se poderia esperar, a privação da convivência restauradora com a família e amigos para se dedicar mais à faculdade resultaria no oposto do esperado, ou seja, no baixo rendimento. Além da frustração e do estresse, o baixo desempenho escolar seria um dos preditores para depressão e ansiedade entre estudantes, especialmente aqueles do primeiro período1919. Stewart SM, Betson C, Lam TH, Marshall IB, Lee PW, Wong CM. Predicting stress in first year medical students: a longitudinal study. Med Educ. 1997; 31(3):163-8. doi: 10.1111/j.1365-2923.1997.tb02560.x.
https://doi.org/10.1111/j.1365-2923.1997...
.

Ainda como recurso de enfrentamento do estresse, neste estudo, o autocuidado foi referido pelos estudantes, começando no primeiro período e estendendo-se ao longo do curso. Eles referiram diferentes meios de descompressão e de investimento no bem-estar, tais como dormir, praticar atividades físicas e entreter-se:

Separo dias para não estudar e apenas descansar. Também não desisto de dormir por causa de provas ou apresentações. Foi um jeito encontrado por mim de tentar manter o equilíbrio. (Grupo de veteranos)

Em um primeiro momento, choro bastante! Mas também pratico yoga, meditação, brinco com minha cachorra e faço trabalhos manuais. (Grupo de veteranos)

Recursos terapêuticos, tais como fazer psicoterapia e tomar medicamentos, também foram mencionados pelos alunos:

Eu lido tomando ansiolítico e às vezes indutor do sono. Comecei a ter crises de ansiedade no cursinho. Atualmente comecei a correr, isso me faz abstrair de tudo. (Grupo de ingressantes)

Nesses depoimentos, chamou a atenção a recorrência do choro como forma de desabafar e alcançar algum conforto consigo mesmo. A solidão e o esgotamento são estados subjetivos cada vez mais presentes entre estudantes da área da Saúde77. Souza L. Prevalência de sintomas depressivos, ansiosos e estresse em acadêmicos de medicina [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2011.. Medicamentos psicotrópicos, embora amplamente utilizados entre estudantes, é preocupante, pois, devido aos efeitos colaterais e ao seu potencial de causar dependência química, seu uso não seria recomendado, tampouco considerado como “cuidado”, exceto em casos indicados adequadamente por psiquiatras.

Em outra vertente, os estudantes identificaram ambientes na faculdade que os ajudariam a lidar com o estresse acadêmico. Entre os veteranos, o ambiente clínico seria um deles, pois aumentaria a satisfação do aluno na experiência “simulada” de ser médico.

Outros ambientes protetores trazidos pelos alunos foram os espaços de apoio psicopedagógicos e a mentoria:

Faço muita terapia, tanto dentro da faculdade, quanto particular, medito, participo da mentoria e tento não me estressar muito com as matérias. (Grupo de veteranos)

Mentoria no enfrentamento do estresse acadêmico

No aprofundamento qualitativo deste estudo, os alunos atribuíram à mentoria um importante papel no seu cotidiano acadêmico. Em uma visão geral, a mentoria propiciaria acolhimento, alívio psicológico e sentimento de pertencimento:

A mentoria me ajudou muito e me ajuda! É um momento de paz na minha vida, sei que não estou sozinha e tenho apoio de outras pessoas. (Grupo de veteranos)

A mentoria permitiria o reconhecimento de semelhanças no modo de sentir e de pensar sobre as experiências acadêmicas, proporcionando efeito tranquilizador:

Acho bom [participar da mentoria], tenho a sensação de que não estou passando por essas situações sozinha, isso me acalma. (Grupo de ingressantes)

Além disso, a mentoria facilitaria a construção de bons relacionamentos entre os estudantes, já que seria um espaço aberto para diálogo e debate, pautado no respeito a diferentes opiniões e experiências:

É uma das melhores coisas que me aconteceu na faculdade, gostaria que tivesse mais vezes durante o mês. A mentora é muito acolhedora, falamos sobre vários temas e é um ambiente que sinto poder falar sobre tudo. (Grupo de veteranos)

Também em relação a dificuldades de relacionamento no ambiente da faculdade, verificou-se que, na visão dos estudantes, a mentoria seria particularmente útil, pois os ajudaria a lidar com essas dificuldades:

Tenho dificuldade para socializar e a mentoria ajudou muito nesse ponto. Gosto bastante e acho importante. É um lugar para compartilhar informações, sofrimentos e criar conexões com outras pessoas da faculdade. (Grupo de veteranos)

Mais além, a mentoria seria considerada um espaço de interlocução dos estudantes com a própria faculdade “personificada”. Essa função mostrou-se muito importante para os alunos ingressantes que, devido à pandemia, até então só a conheciam virtualmente:

Acho legal, porque é um espaço livre e as pessoas podem expor opiniões diferentes e debater. É um primeiro passo de uma relação mais profunda que a faculdade pode ter com os alunos. (Grupo de ingressantes)

Durante a pandemia, evidenciou-se que o ambiente da mentoria, presencial ou virtual, teve impacto positivo na experiência dos estudantes com a faculdade2222. Rios IC, Medeiros Junior ME, Fernandes MTA, Zombini EV, Pacheco MKO, Mascarenhas EG, et al. Mentoria virtual para estudantes de medicina em tempos de Covid-19. Rev Bras Educ Med. 2021; 45(3):e170. doi: 10.1590/1981-5271v45.3-20200419.ING.
https://doi.org/10.1590/1981-5271v45.3-2...
, diminuindo angústias de um futuro incerto, reforçado também neste estudo:

Me ajuda bastante, principalmente agora nesse momento de pandemia, porque me sinto por fora do ambiente da Medicina. Com a mentoria fico mais tranquila sobre o futuro. (Grupo de veteranos)

O mentor, sobre o qual não faltam estudos evidenciando sua essencialidade para o êxito dos encontros de mentoria2121. Fontele TLL, Crisóstomo VL. PROUNI - pontos controversos sob a análise de alunos bolsistas. Avaliação (Campinas). 2016; 21(3):739-66. doi: 10.1590/S1414-40772016000300005.
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,99. Bellodi PL, Martins MA. Tutoria: mentoring na formação médica. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2005., ajudaria os alunos a lidar com o estresse decorrente do distanciamento social e do ensino remoto, aproximando faculdade e aluno:

É um ponto de apoio dentro da faculdade, alguém que tem um cargo lá. Isso me deixa confortável. (Grupo de ingressantes)

Essas qualidades da mentoria apontadas pelos estudantes a tornam um bom recurso de enfrentamento do estresse acadêmico consoante às recomendações de autoconhecimento e reflexão como práticas para lidar com o esgotamento psicológico2323. Lima ACR, Sabino BC, Borges C. Identificação de indicativos de bem-estar subjetivo e estresse em psicólogos. Rev Psicol UNESP. 2020; 19(2):96-124. doi: 10.5935/1984-9044.20200027.
https://doi.org/10.5935/1984-9044.202000...
. A evitação da abordagem dos problemas que causam estresse aumentaria o sofrimento pelo estresse e, contrariamente, quando tais problemas são abordados e elaborados, há diminuição da percepção negativa de estresse. Um estudo clássico do tipo caso-controle realizado nos Estados Unidos analisou o impacto do autoconhecimento e da gestão do estresse em determinadas situações acadêmicas propostas para o grupo experimental e o controle2424. Kelly JA, Bradlyn AS, Dubbert PM, St Lawrence JS. Stress management training in medical school. J Med Educ. 1982; 57(2):91-9. doi: 10.1097/00001888-198202000-00003.
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. O grupo experimental participou de sessões nas quais foram ensinadas técnicas de reconhecimento do estresse; de relaxamento; de organização do tempo para estudo e lazer; de identificação de prioridades; e de modificações cognitivas de comportamento. Observou-se que um dos fatores de exacerbação do estresse foi a dificuldade em identificar o que era realmente prioritário, pois, ao julgar tudo como importante, o estudante não conseguia cumprir todas as tarefas propostas. Ao fim da investigação, o estudo concluiu que o grupo que participou das sessões de autoconhecimento e técnicas de enfrentamento referiu menos tensão e demonstrou mais habilidades de gerenciamento de situações estressantes.

Nessa linha de abordagem, pode-se dizer que a mentoria ajuda o estudante no enfrentamento do estresse – inclusive impedindo seu impacto negativo na saúde mental porque atua como espaço de reflexão e de desenvolvimento de habilidades e comportamentos que aumentam suas competências relacionais – e promove o fortalecimento da rede de apoio formada entre os alunos, professores e escola médica.

Considerações finais

A proposta deste trabalho foi verificar a percepção de estresse acadêmico entre estudantes de Medicina – ingressantes e veteranos – que participaram do programa de mentoria da faculdade; e o papel da mentoria no enfrentamento do estresse percebido. Os achados mostraram que, como descrito na literatura, os estudantes percebem-se estressados em diversas situações das quais participam e que são inerentes à formação médica hodierna. Não obstante o estresse, no estudo, a mentoria foi considerada um bom recurso para lidar com os principais estressores cotidianos identificados.

A principal limitação do estudo se refere às contingências ambientais em que o campo da pesquisa foi realizado. A pandemia do SARS-CoV-2 levou ao afastamento dos alunos do campus da instituição e à necessidade de adaptar todas as atividades acadêmicas ao modo remoto, incluindo a pesquisa-base deste trabalho. Em certa medida, isso pode ter afetado a dinâmica dos grupos focais cuja técnica é mais bem conhecida durante o encontro do pesquisador e dos sujeitos da pesquisa em modo presencial. No entanto, o modo remoto favoreceu a operacionalização dos encontros, facilitando a participação dos estudantes naquele momento.

Por outro lado, a amostra delineada mostrou-se qualitativamente suficiente, e a proximidade de idade entre a pesquisadora de campo e os sujeitos da pesquisa favoreceu a interação entre eles de tal forma que os encontros produziram dados que expressaram perspectivas significativas dos fenômenos em questão e manifestadas em detalhes, exemplos, explicações e novos conteúdos, que permitiram compreender melhor o objeto de estudo, consoante aos objetivos da pesquisa.

Outrossim, não esgotando a investigação da problemática abordada neste artigo, recomendam-se mais estudos a ela relacionados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2023
  • Aceito
    05 Jun 2023
UNESP Botucatu - SP - Brazil
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